1.ª Secção
Relator: Conselheiro João Pedro Caupers
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Alcatel - Lucent Portugal, SA, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, do n.º 2, do artigo 72.º, do n.º 2 do artigo 75.º, do artigo 75.º-A e do n.º 1 do artigo 76.º todos da Lei 28/82, de 15 de novembro, que aprovou a Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (doravante, "LTC"), do acórdão do Tribunal Arbitral em Matéria Tributária proferido no Processo 7912013-T, na parte em que interpreta e aplica o artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (doravante, "CPPT"), qualificando como um ónus, e não como uma faculdade, a possibilidade de o contribuinte impugnar autonomamente os atos considerados imediatamente lesivos dos seus direitos (fls. 2 a 8)
Apresenta como parâmetros constitucionais do seu pedido a alegada violação pelo tribunal recorrido do princípio da tutela judicial efetiva e do princípio da justiça, ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (doravante "CRP").
2 - O acórdão recorrido, assentando na referida pré-compreensão quanto ao artigo 54.º do CPPT, extraiu da possibilidade legal de impugnação dos atos administrativos interlocutórios em matéria tributária imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte a conclusão de que tal possibilidade constituía uma exceção ao princípio da impugnação unitária. Mas não só: tal possibilidade constituiria um verdadeiro ónus, impondo, no caso, regra de sinal oposto, sob pena de ficar precludida a impugnação do ato final (fls. 99 a 102 do processo apensado n.º 792/14).
3 - Note-se que a recorrente interpusera recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (doravante, "STA") do acórdão do Tribunal Arbitral, pretendendo com tal recurso superar uma suposta contradição de julgados, obtendo a consequente uniformização da jurisprudência (fls. 2 a 4 do processo apensado). O STA, porém, por despacho da Relatora, não admitiu o recurso, por considerar não existir «contradição sobre a mesma questão fundamental de direito» (fls. 117 a 125 do mesmo processo). A recorrente reclamou para a conferência (fls. 130 a 141, ainda do mesmo processo), tendo sido proferido pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA acórdão que indeferiu a reclamação, confirmando a decisão reclamada (fls. 148 a 159 do processo apensado).
4 - As partes - recorrente e Administração-Geral Tributária (doravante, "AGT") - foram notificadas para alegar (fls. 73 e 129) e fizeram-no (fl. 74 a 96 e 130 a 153). A recorrente juntou aos autos um parecer (fls. 97 a 127) e contra-alegou sobre duas questões prévias suscitadas pela AGT - (fls. 161 a 171).
Cumpre apreciar e decidir.
II - Questões prévias
5 - Porque a AGT recorrida colocou duas questões prévias que, em seu entender, obstariam à apreciação do mérito do recurso, há que proceder à sua apreciação.
A primeira respeita à hipotética falta de suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido. Escreveu:
"Porém, como já se frisou, no âmbito do processo arbitral, não foi suscitada ou sindicada questão de inconstitucionalidade de qualquer dos normativos aplicáveis e ao abrigo dos quais a decisão foi proferida, para que possa ser apreciado recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do art. 70.º da LTC. Pelo que não se encontra cumprido o requisito estabelecido no n.º 1 do art. 25.º do RJAT quando aos pressupostos de admissibilidade do recurso, o que forçosamente tem como implicação o não conhecimento do objeto do mesmo."
A segunda é relativa à suposta extemporaneidade do recurso:
"E ainda que assim não fosse, sempre o presente recurso teria de ser rejeitado face à sua extemporaneidade. Com efeito, e salvo melhor entendimento, tratando-se de recurso direto da decisão arbitral nos termos do n.º 1 do art. 25.º do RJAT, o prazo de 10 dias para a sua interposição, previsto no n.º 1 do art. 75.º da LTC, contar-se-ia a partir da notificação da decisão arbitral. Pelo que à data de interposição do presente recurso (23.05.2014), já estava precludido o respetivo prazo de interposição, atento a que ao caso concreto é aplicável o n.º 1 do art. 75.º."
6 - Sobre estas duas questões concluiu a recorrente nas suas alegações:
"C) A Recorrente, quer em sede de pedido de pronúncia, quer ainda nas respetivas resposta e alegações, suscitou tempestivamente e adequadamente a questão da (in)constitucionalidade da interpretação que vinha a ser seguida pela Autoridade Tributária relativamente ao artigo 54.º do CPPT.
D) A Recorrente alegou expressamente e de forma direta e clara, em sede de resposta e alegações escritas apresentadas no âmbito do pedido de pronúncia, que caso a decisão do tribunal a quo fosse no sentido de configurar a possibilidade de impugnar os atos considerados imediatamente lesivos dos seus direitos como uma obrigação do contribuinte e não como um direito que lhe é conferido, procederia a uma aplicação do artigo em causa manifestamente violadora do princípio da tutela judicial efetiva, ínsito na CRP, permitindo à Autoridade Tributária que através de um comportamento errático consolidasse no ordenamento jurídico uma série de condutas ilegais que se tornariam insindicáveis (artigo 37.º da resposta, pontos 40 e 44 das alegações e a alínea V) das respetivas conclusões).
E) A Recorrente não se limitou, pois, a sustentar a sua interpretação em princípios constitucionais gerais.
F) Nos termos do RJAT não cabe recurso ordinário de uma decisão do Tribunal Arbitral, pelo que a Recorrente não dispôs de momento processual que lhe permitisse analisar de forma detalhada a constitucionalidade da interpretação preconizada pelo Tribunal Arbitral.
G) Contudo, a Recorrente, tal como já se referiu, antecipando que o Tribunal Arbitral poderia ter uma interpretação do artigo 54.º do CPPT, contraria ao princípio constitucional da tutela judicial efetiva, em sede de resposta e alegações, CAUTELAR e atempadamente alegou qual a interpretação que considerava violadora desse princípio.
H) O facto de a sentença recorrida não se ter pronunciado sobre a questão da constitucionalidade da concreta interpretação dada ao artigo 54.º do CPPT é manifestamente alheia à Recorrente, não podendo jamais tal facto ser utilizado em seu desfavor.
l) Nestes termos, considera a Recorrente que se encontram cumpridos os requisitos de admissibilidade do presente recurso, pelo que requer a apreciação da constitucionalidade da aplicação e interpretação dada ao artigo 54.º do CPPT pelo Tribunal Arbitral no processo 79/201 3 por este Venerando Tribunal.
J) Sucede ainda que o n.º 1 e 2 do artigo 25.º do RJAT estabelece que da decisão arbitral de mérito que ponha termo ao processo arbitral apenas compete recurso para: (i) o Tribunal Constitucional na parte que recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que aplique a norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada emitida pelo Tribunal Arbitral em Matéria Tributária ou para (ii) o Supremo Tribunal Administrativo (STA) nos casos em que a decisão proferida esteja em oposição com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo.
K) Ao defender a tese sobre a alegada extemporaneidade, a AT revela, salvo o devido respeito, ignorar de forma flagrante o sistema de recursos de constitucionalidade previstos no RJAT e na LTC.
L) Os Recursos de mérito previstos no referido artigo 25.º do RJAT não podem, desde logo, afastar quaisquer tipos de recursos para o Tribunal Constitucional previstos quer na CRP quer no próprio regime da LTC.
M) O RJAT nunca pode ou poderá colocar em causa qualquer normativo previsto na LTC que com o mesmo esteja em contradição, precisamente por esta última se tratar de uma Lei de natureza e valor reforçado, - artigo 112.º, n.º 3, da CRP - já que se trata de uma Lei Orgânica - conforme o preveem os artigos 164.º, alínea c), e 166.º, n.º 2, ambos da CRP.
N) É assim evidente que o direito de recorrer inicialmente para o Supremo Tribunal Administrativo com vista a unificação de jurisprudência, não prejudica o direito de interposição posterior de recurso para o Tribunal Constitucional, sendo certo que a Recorrente esgotou todos os meios de recurso ao seu dispor antes de interpor o presente Recurso para este Alto Tribunal.
O) Conforme prevê o n.º 2 do artigo 75.º da LTC o prazo para recorrer para o Tribunal Constitucional conta-se do momento em que se torna definitiva a decisão que não admite recurso.
P) A Recorrente apresentou, em tempo, recurso para o Supremo Tribunal Administrativo para uniformização de jurisprudência, o qual não foi admitido, tendo o Acórdão que confirmou essa não admissão sido notificado à Recorrente em 12 de maio de 2014.
Q) Ora, uma vez que o presente recurso deu entrada no dia 23 de maio de 2014 e tendo já a Recorrente, por cautela de patrocínio, procedido ao pagamento da multa de que foi notificada - conforme documentos comprovativos que se juntam e se requer respeitosamente a V. Exa. a respetiva junção aos autos -, o presente recurso deve indubitavelmente ser considerado tempestivo."
7 - No que respeita à suposta extemporaneidade do recurso, assiste razão à recorrente: a oportunidade da apresentação do mesmo resulta, sem margem para dúvidas, do disposto no n.º 2 do artigo 75.º da LTC.
No que se refere ao requisito da suscitação prévia da questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido, ele encontra-se também preenchido, conforme se comprova através da leitura das alegações produzidas pela recorrente perante o Tribunal Arbitral (fls. 732, e 737 a 739 (cd). De resto, muito embora o acórdão arbitral tenha ignorado a questão, a verdade é que o ponto U. do relatório lhe faz referência (fls. 76 do processo anexado).
Não existe assim qualquer obstáculo de índole processual à apreciação da questão de fundo.
III - Fundamentação
8 - O artigo 54.º da CPPT dispõe o seguinte:
«Salvo quando forem imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte ou disposição expressa em sentido diferente, não são suscetíveis de impugnação contenciosa os atos interlocutórios do procedimento, sem prejuízo de poder ser invocada na impugnação da decisão final qualquer ilegalidade anteriormente cometida.»
A questão essencial reside, como se adiantou, em apurar se a mencionada pré-compreensão do artigo 54.º do CPPT, ao extrair da possibilidade legal de impugnação dos atos administrativos interlocutórios em matéria tributária imediatamente lesivos dos direitos do contribuinte a conclusão de que tal possibilidade constitui uma exceção ao princípio da impugnação unitária - impondo, no caso, regra de sinal oposto (transformando em ónus a faculdade de impugnar tais atos), sob pena de ficar precludida a impugnação do ato final - é conforme aos imperativos da lei fundamental.
9 - Vejamos o que estava em causa.
Simplificando o mais possível e esquecendo detalhes irrelevantes, o essencial da questão pode resumir-se assim:
a) A recorrente gozava de um benefício fiscal, que a AGT entendeu haver cessado, devido à existência de uma dívida tributária cujo processo de execução fiscal não se encontrava, no entender da AGT, suspenso (relativo a uma dívida de 2000);
b) Em fevereiro de 2012, a AGT comunicou à recorrente haver desconsiderado, na declaração de rendimentos relativa ao exercício de 2010, o mencionado benefício fiscal;
c) Ainda no decurso do mesmo ano, a recorrente foi notificada da liquidação adicional de IRC relativa ao ano de 2010;
d) A recorrente não impugnou judicialmente nem o suposto ato de levantamento da suspensão do processo de execução fiscal, nem o ato de cessação do benefício fiscal.
Note-se, ainda, que o Tribunal Arbitral deu como não provada a existência de qualquer ato de levantamento da suspensão do processo de execução fiscal (fls. 97/98 do processo anexado).
10 - Concentrando, também por isso, a nossa atenção no ato de cessação do benefício fiscal, a tese que prevaleceu na decisão arbitral (sustentada pela AGT) - é a de que (a) a sua impugnabilidade judicial resultaria do seu caráter imediatamente lesivo; e (b) esta impugnabilidade não constituiria faculdade mas ónus da recorrente, uma vez que tal ato não se inseria em procedimento conducente à liquidação de um tributo. Consequentemente, uma vez transcorrido o prazo de impugnação judicial sem que a esta se tivesse procedido, por via de ação administrativa especial, formar-se-ia "caso decidido", que obstaria a qualquer reapreciação judicial do ato de liquidação adicional do IRC, pelo menos enquanto assente em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal.
Naturalmente que outro é o entendimento da recorrente. Esta sublinha que o princípio geral em processo tributário é o da impugnação unitária, inscrito na epígrafe do próprio artigo 54.º do CPPT. A possibilidade de impugnar outros atos que não os atos finais do procedimento - os chamados atos interlocutórios - constitui exceção, encontrando-se condicionada à sua lesividade. Esta possibilidade não passa disso mesmo, de uma mera possibilidade, como evidencia a redação do último troço da disposição legal, ao prever que a impugnação da decisão final pode incidir também sobre «qualquer ilegalidade anteriormente cometida». E, a confirmá-lo, estaria a previsão inscrita no n.º 2 do artigo 66.º da lei geral tributária (doravante, "LGT") de que os interessados «podem recorrer ou impugnar a decisão final com fundamento em qualquer ilegalidade».
A conclusão lógica desta linha de argumentação é de que a impugnação autónoma do ato de cessação do benefício fiscal corresponderia a uma verdadeira faculdade do contribuinte, que poderia ou não utilizá-la, sem quaisquer repercussões futuras, isto é, sem que a sua não utilização, por não contrariar ónus algum, inviabilizasse a impugnação da decisão final do procedimento, com base em vícios próprios daquele ato.
Como se afirma no parecer junto pela recorrente aos autos, o objetivo da norma do artigo 54.º do CPPT seria «única exclusivamente conferir direitos acrescidos de impugnação» ao contribuinte (fls. 116).
11 - O Tribunal Constitucional nunca teve oportunidade de se pronunciar sobre a norma sujeita a apreciação, não existindo, pois, apoio jurisprudencial para a solução do problema. Far-se-á, por isso, uma incursão pela - pouca - doutrina e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (doravante, "STA"), que produziu diversos arestos sobre a questão.
Na quinta edição da sua obra Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Áreas Editora, Volume I, 2006, anotação 3 ao artigo 54.º, p. 424, Jorge Lopes de Sousa escreve:
«Nos procedimentos tributários que conduzem a um ato de liquidação de um tributo, a esfera jurídica dos interessados apenas é atingida por esse ato e, por isso, em regra, será ele e apenas ele o ato lesivo e contenciosamente impugnável.
No entanto, como se referiu, no presente artigo ressalvam-se situações em que haja "disposição expressa em sentido diferente",
E, com efeito, por vezes, a lei prevê a impugnabilidade contenciosa imediata de atos anteriores ao ato final de procedimento, que têm especial relevo para condicionar a decisão final.
Esses atos preparatórios da decisão final, que são direta e imediatamente impugnáveis por via contenciosa, assumem a natureza de atos destacáveis.
Os atos destacáveis são atos que, embora inseridos no procedimento tributário, e anteriores à decisão final, a condicionam irremediavelmente, justificando-se que sejam impugnados por forma autónoma, principalmente nos casos em que são praticados por entidades distintas da que deve proferir a decisão final.
No entanto, a sua impugnação contenciosa autónoma só ocorrerá quando esteja prevista na lei, por forma expressa, como se exige neste artigo, só havendo impugnabilidade imediata de atos procedimentais independentemente de norma expressa quando tais atos procedimentais sejam imediatamente lesivos.»
A jurisprudência do STA não se afasta desta linha. Assim, no Acórdão de 23 de junho de 2010 (Processo 1032/09) pode ler-se:
«[...] II - Por força do princípio da impugnação unitária, plasmado no artigo 54.º do CPPT, só é possível, em princípio, impugnar o ato final do procedimento tributário, dado que só esse ato atinge ou lesa, imediatamente, a esfera jurídica do contribuinte, sendo que no contencioso tributário o critério da impugnabilidade dos atos é o da sua lesividade objetiva, atual e não meramente potencial.
III - Os atos interlocutórios do procedimento não são, em princípio, imediatamente lesivos, razão pela qual a sua ilegalidade só pode ser suscitada aquando da eventual impugnação deduzida contra o ato final lesivo, a menos que se trate de atos interlocutórios cujo escrutínio judicial imediato e autónomo se encontre expressamente previsto na lei (são os chamados "atos destacáveis", que na falta de imediata impugnação se fixam na ordem jurídica, ficando precludido o direito ou a faculdade de processual de posteriormente discutir a sua legalidade) ou de atos que, embora inseridos no procedimento, tributário e anteriores à decisão final, sejam imediatamente lesivos, abrindo-se então a possibilidade da sua impugnação imediata, sem prejuízo de a sua ilegalidade poder, ainda, ser suscitada na impugnação que venha a ser deduzida contra o ato final.»
No acórdão de 20 de outubro de 2013 (Processo 1361/13) o STA manteve-se fiel a esta orientação, aprofundando o conceito de ato destacável:
«[...] Tendo sido utilizado esse procedimento [referência ao procedimento tributário de inspeção], os respetivos atos interlocutórios, ainda que ilegais e com eficácia externa, não são, em princípio, lesivos, pelo que a sua ilegalidade só pode ser suscitada aquando da impugnação deduzida contra o ato final, exceto se se tratar de um dos seguintes atos suscetíveis de impugnação imediata: (i) atos interlocutórios cujo escrutínio imediato e autónomo se encontre expressamente previsto na lei ("atos destacáveis"); (ii) atos que, embora inseridos no procedimento e anteriores à decisão final, sejam imediatamente lesivos; (iii) atos trâmite que ponham um ponto final na relação da administração com o interessado, já que nestes casos, muito embora o ato continue a ser, na economia geral do procedimento, um ato preparatório, preordenado ao ato final, é para o seu destinatário o ato que define a posição da Administração e, por isso, o ato lesivo dos seus direitos ou interesses legítimos.»
Sumariando os traços essenciais destes elementos doutrinários e jurisprudenciais, parece poder assentar-se no seguinte:
a) Dúvidas não existem de que o princípio vigente na matéria é o da impugnação unitária (da decisão final do procedimento tributário);
b) Excetua-se a impugnação autónoma imediata (i) dos atos lesivos [primeiro troço da previsão do n.º 1 do artigo 54.º do CPPT] e (ii) dos atos interlocutórios cuja impugnação autónoma a lei expressamente preveja [segundo troço da previsão daquele mesmo preceito].
c) Apenas relativamente a estes últimos se pode admitir o efeito preclusivo da sua não impugnação.
12 - Chegados a este ponto, há que deixar claro que a tarefa deste Tribunal é verificar se o sentido que foi atribuído ao artigo 54.º do CPPT pela decisão arbitral recorrida lesa os valores constitucionais apontados no pedido da recorrente, isto é, o princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, ínsitos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP. Não se trata, pois, de apreciar e valorar, qua tale, a interpretação e aplicação do direito infraconstitucional, nem de emitir um juízo sobre o modo como este foi aplicado na decisão recorrida; mas tais apreciação e valoração são da maior utilidade, enquanto instrumento capaz de iluminar as questões de constitucionalidade.
Para esclarecer o exato sentido e alcance do artigo 54.º do CPPT poderá ter de se proceder a três operações sucessivas.
Em primeiro lugar, haverá que verificar se o ato de cessação do benefício fiscal tem natureza interlocutória, isto é, se se insere verdadeiramente no âmbito do procedimento administrativo visando a prática do ato tributário final, a liquidação do imposto. Se tal não ocorrer, se o procedimento relativo ao benefício fiscal se houver de considerar um procedimento administrativo autónomo, logicamente distinto daquele outro que culmina com a liquidação do imposto, então a não impugnação da decisão (final) de cessação do benefício inviabiliza a impugnação da decisão liquidatária, enquanto fundada em vício relativo ao ato que determinou tal cessação.
Em segundo lugar, se o ato que determinou a cessação do benefício fiscal, ao contrário, tiver natureza interlocutória, por referência ao procedimento de liquidação do imposto, então haverá que apurar se é um ato lesivo - caso em que poderia ter sido objeto de impugnação judicial autónoma, mas esta teria natureza facultativa, no sentido (caro ao tradicional direito administrativo português) de que seria legítimo ao contribuinte optar pela impugnação do ato liquidação imposto, ainda que com fundamento em vícios próprios do ato que determinou a cessação do benefício.
Por último, se tal caráter lesivo não ocorrer, haverá que apurar se o ato que determinou a cessação do benefício fiscal é tratado por lei expressa como um ato destacável, não só suscetível de imediata impugnação judicial, mas também fazendo a lei recair sobre o contribuinte o ónus de a tal proceder, sob cominação de efeito preclusivo da possibilidade de impugnar judicialmente o ato de liquidação do imposto com fundamento em vícios do ato de cessação do benefício.
13 - Comecemos, pois, pela natureza interlocutória, ou não, do ato que determinou a cessação do benefício fiscal.
A expressão benefício fiscal designa, em geral, uma circunstância que afasta a aplicação do regime tributário normal, afastamento esse que consubstancia uma vantagem para o contribuinte, seja esta uma isenção, a redução de uma taxa, uma dedução à matéria coletável ou outra medida fiscal equivalente. Nestas condições, o reconhecimento do benefício opera como condição da aplicação de um regime tributário mais favorável ao contribuinte, influenciando decisivamente o montante do imposto a liquidar pela administração tributária, em sentido favorável àquele. Inversamente, a cessação do benefício, tornando (re)aplicável o regime geral, é desvantajosa para o contribuinte.
Esta ligação umbilical entre o reconhecimento ou a cessação de um benefício fiscal e a liquidação do imposto devido é evidenciada pela leitura do primeiro normativo que a LGT dedica ao procedimento tributário, o artigo 54.º, sob a epígrafe Âmbito e forma do procedimento tributário, que dispõe:
«O procedimento tributário compreende toda a sucessão de atos dirigidos à declaração de direitos tributários, designadamente:
[...]
d) O reconhecimento ou revogação dos benefícios fiscais.»
Nas palavras singelas de Lima Guerreiro, «o preceito assinala expressamente como fim do procedimento tributário a declaração dos direitos tributários» (Lei Geral Tributária Anotada, Lisboa, 2001, p. 249).
Por outras palavras: o ato de reconhecimento ou cessação do benefício fiscal apenas faz pleno sentido no iter procedimental que culmina com a decisão de liquidação do tributo. É, pois, um ato interlocutório do (deste) procedimento. A autonomização de tal ato para efeitos de impugnação judicial dependerá, assim, da verificação das circunstâncias de que a lei faz depender a possibilidade de tal impugnação. A não se verificarem estas, regressar-se-á ao princípio geral da impugnação unitária do ato final, o ato de liquidação.
14 - Assim sendo, há agora que verificar a natureza lesiva daquele ato. Tarefa muito facilitada, uma vez que tanto a decisão recorrida (fls. 100), como a própria AGT, reconhecem expressamente tal natureza: vejam-se as alegações que esta apresentou neste Tribunal (fls. 147). É, de resto, a posição sustentada pela generalidade da doutrina e da jurisprudência tributárias.
Nestas condições, comprovada a natureza interlocutória e lesiva do ato de cessação do benefício fiscal, concluída estaria a apreciação do direito infraconstitucional, sem necessidade de indagação da derradeira questão, a eventual qualificação daquele ato como ato destacável. Sucede, porém, que a decisão recorrida considerou que este ato preencheria, em simultâneo, as duas exceções inscritas na previsão do n.º 1 do artigo 54.º do CPPT: seria, por um lado, um ato lesivo - portanto suscetível de impugnação judicial autónoma imediata (facultativa); por outro, um ato destacável, sujeito a impugnação judicial autónoma imediata necessária (fls. 100).
Sublinhe-se que a redação da norma revela alguma insipiência dogmática, uma vez que as categorias do ato lesivo e do ato destacável assentam em critérios classificativos bem distintos: enquanto a qualificação como lesivo assenta na ponderação dos efeitos desvantajosos produzidos na esfera jurídica do particular, já a qualificação como destacável depende simplesmente de uma opção do legislador, ditada por razões processuais, quais sejam as de possibilitar que um ato administrativo sem características de decisão final do procedimento constitua objeto autónomo de um processo próprio da jurisdição administrativa.
Acresce que, ao contrário do que sucede com os atos administrativos lesivos - cobertos pela cláusula de proteção jurisdicional efetiva inscrita no n.º 4 do artigo 268.º da CRP -, a garantia jurisdicional contra atos destacáveis - obviamente não lesivos - decorre das leis e de construção jurisprudencial.
Dito isto, a qualificação simultânea como ato lesivo e como ato destacável nada teria de perturbador, não fora o caso de, relativamente aos «atos interlocutórios cujo escrutínio imediato e autónomo se encontre expressamente previsto na lei ("atos destacáveis")», ser abstratamente possível configurar a sua impugnação como um ónus, daí podendo resultar, como se disse, que o respetivo incumprimento inviabilizaria a impugnação judicial futura do ato de liquidação com invocação de fundamentos relativos ao ato destacável.
E foi esta a conclusão da decisão arbitral, que considerou também que «a disposição expressa em sentido diferente», de que fala o segundo troço da previsão do artigo 54.º do CPPT, seria a alínea h) do n.º 2 do artigo 95.º da LGT. Aqui se dispõe:
[...]
«2 - Podem ser lesivos, nomeadamente:
[...]
h) Outros atos administrativos em matéria tributária.»
15 - Temos dificuldade em compreender, nesta parte, o raciocínio subjacente à decisão recorrida.
Aquilo que esta última disposição legal contém é uma enumeração exemplificativa de atos lesivos. Ora, esta enumeração, integrada num normativo que apresenta como epígrafe «Direito de impugnação ou recurso», parece ter a clara intenção de ampliar este direito, num contexto em que a regra geral é, recorde-se, a da impugnação unitária da decisão final
Não se vê como se possa considerar a disposição legal em causa «a disposição expressa em sentido diferente» de que fala o segundo troço da previsão do artigo 54.º do CPPT. A referência a um sentido diferente apenas se compreende se o legislador estivesse a pensar em eventuais disposições legais prevendo a impugnação judicial autónoma e imediata de atos não lesivos.
A desconstrução plausível do discurso normativo conduz ao seguinte resultado:
1.º Em procedimento administrativo tributário impugnam-se, em regra, as decisões finais;
2.º Tal regra cede perante a prática de atos interlocutórios lesivos, que os interessados podem (têm o direito de) imediatamente impugnar;
3.º A lei pode alargar expressamente esta impugnabilidade a outros atos interlocutórios.
4.º Quando o contribuinte opte por reservar a impugnação para a decisão final do procedimento pode invocar qualquer ilegalidade cometida durante o procedimento.
O propósito do n.º 2 do artigo 95.º da LGT, com recurso à conhecida técnica da enumeração exemplificativa, foi a densificação do conceito de ato lesivo, constante do artigo 54.º do CPPT.
Ora, uma vez operada esta densificação, ficou claro e incontroverso que o ato de cessação do benefício fiscal é um ato lesivo. A sua pretendida inclusão também no segundo troço da previsão do artigo 54.º do CPPT, de duas uma:
a) Ou pretende (re)consagrar a faculdade de impugnação autónoma, que já resulta do primeiro troço da mesma previsão;
b) Ou pretende legitimar a conversão daquela faculdade em ónus de impugnação autónoma.
Na primeira hipótese, a operação é redundante, mas inofensiva; na segunda, pode colocar problemas de constitucionalidade - aos quais somos, finalmente, chegados.
16 - Esses problemas de constitucionalidade podem equacionar-se assim: o efeito preclusivo da não impugnação do ato de cessação do benefício relativamente à impugnação do ato de liquidação tributária, inviabilizando a invocação nesta de vícios daquele outro, reconhecido na decisão recorrida, é compatível com os direitos assegurados nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP?
Esclareça-se que não se trata de apreciar se a existência de uma qualquer norma legal determinando a necessidade de impugnação autónoma imediata de um ato interlocutório praticado no âmbito de um procedimento tributário ofende os parâmetros constitucionais apontados.
O que está em causa é, mais precisamente, apurar se o respeito por tais parâmetros constitucionais é compatível com a imposição, sem base legal adequada, do ónus de impugnação judicial autónoma e imediata de um ato interlocutório lesivo (ou simplesmente destacável), em termos de a invocação dos vícios próprios de tal ato se tornar impossível no âmbito da impugnação da decisão final do procedimento tributário.
Isto, claro, tendo presente, por um lado, que o artigo 54.º do CPPT é, literalmente, uma regra sobre a possibilidade excecional de impugnar atos interlocutórios lesivos ou destacáveis; e, por outro, que n.º 2 do artigo 95.º da LGT não pode constituir «a lei expressa» a que se refere o segundo troço da previsão do artigo daquela norma, não se encontrando outra.
17 - Os parâmetros constitucionais invocados no recurso de constitucionalidade já foram, por várias vezes, analisados em arestos deste Tribunal.
No Acórdão 386/2005, confrontado com a questão de saber se a administração tributária poderia, por sua iniciativa, promover a compensação de créditos fiscais desde o momento em que a dívida se torne exigível, não obstante ainda não se encontrar precludido o prazo para o exercício do direito de impugnação daquela, o Tribunal esclareceu:
«Como tem sido concretizado pela jurisprudência deste Tribunal, o sentido tutelar emergente do parâmetro constitucional concretamente em causa impõe que se tenha por vedada "a criação de obstáculos que dificultem ou prejudiquem sem fundamento e de forma desproporcionada o direito de acesso dos particulares aos tribunais em geral" (Acórdão 1144/96, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 35.º Volume, pág. 349), daí decorrendo justamente, a proscrição, constitucionalmente determinada, de qualquer regra que possa "diminuir intoleravelmente as garantias processuais do recorrente, ou implicar um cerceamento das suas possibilidades de defesa que se tenha de considerar desproporcionado ou intolerável [...]" (cf. Acórdão 266/2000, disponível em www.tribunal constitucional.pt)»
No Acórdão 646/2006, o Tribunal Constitucional foi colocado perante uma situação em que o contribuinte considerava indispensável para a defesa dos seus interesses a produção de prova documental, algo que a lei, invocada pela Diretor-Geral dos Impostos, não permitia (artigo 146.º-B, n.º 3, do Código de Procedimento e Processo Tributário). Disse então o Tribunal:
«Também Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 190, referem que, muito embora disponha o legislador de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, não sendo incompatível com a tutela jurisdicional a imposição de determinados ónus às «partes», o que é certo é que o direito ao processo inculca que"os regimes adjetivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando, portanto, o legislador autorizado, nos termos dos artigos 13.º e 18.º, n.os 2 e 3, a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.»
18 - No caso presente, a posição sustentada pela AGT tem como consequência, com o se assinalou já, que o contribuinte que não impugnou autonomamente o ato de cessação do benefício fiscal, como podia ter feito, deixa de poder impugnar a liquidação do imposto com fundamento em vícios daquele ato.
Não pode deixar de se reconhecer que se trata de uma consequência muito onerosa para o contribuinte, permitindo a consolidação na ordem jurídica de atos que o prejudicam gravemente, como sucedeu no caso, com a impossibilidade de impugnar o ato de cessação do benefício fiscal, no âmbito do processo de impugnação do ato de liquidação do imposto.
Este prejuízo causado ao contribuinte ocorreu num contexto legal em que vigora inquestionavelmente o princípio da impugnação unitária e em que a impugnação autónoma de atos lesivos ou interlocutórios praticados no âmbito do procedimento administrativo tributário é configurada pela lei como uma faculdade do contribuinte, apenas justificada no quadro do reforço das suas garantias.
O contribuinte poderia ter impugnado autonomamente a cessação do benefício fiscal. A sua escolha em não o fazer, porém, foi, naquele quadro legal, perfeitamente legítima: não só não se encontra qualquer norma legal que tenha operado a transformação da faculdade de impugnar em ónus de impugnar, como, tratando-se, como se tratou, de ato lesivo, nem sequer seria admissível a existência de tal norma.
A conclusão a extrair somente pode ser uma: ao impedir que a impugnação do ato de liquidação do imposto se funde em vícios próprios do ato de cessação do benefício fiscal, a interpretação que a decisão recorrida fez do artigo 54.º do CPPT desprotege gravemente os direitos do contribuinte, assim ofendendo princípio da tutela judicial efetiva e o princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da CRP.
IV - Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a interpretação do artigo 54.º do Código de Procedimento e Processo Tributário que, qualificando como um ónus e não como uma faculdade do contribuinte a impugnação judicial dos atos interlocutórios imediatamente lesivos dos seus direitos, impede a impugnação judicial das decisões finais de liquidação do imposto com fundamento em vícios daqueles, por violação do princípio da tutela judicial efetiva e do princípio da justiça, inscritos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa; e, em consequência,
b) Conceder provimento ao recurso, ordenando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 29 de setembro de 2015. - João Pedro Caupers - Maria Lúcia Amaral - Maria de Fátima Mata-Mouros - Joaquim de Sousa Ribeiro.
209100085