Acórdão 162/2002/T. Const. - Processo 602/2001. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Nos autos n.º 2584/01.7 TDLSB do 1.º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, requereu a Imobiliária Construtora Grão Pará, S. A., (ora recorrente) a sua constituição como assistente, com referência aos crimes de "manipulação de mercado" e de "infidelidade", integrados pelos factos relatados na queixa que deu origem ao processo.
2 - Aquele Tribunal, por decisão de 19 de Fevereiro de 2001, indeferiu o pedido de constituição como assistente, na parte relativa ao crime de "manipulação de mercado", decisão que fundamentou nos seguintes termos:
"Ao tempo dos factos incriminados, vigorava o Código do Mercado de Valores Mobiliários aprovado pelo Decreto-Lei 142-A/91, de 10 de Abril, cujo artigo 667.º, n.º 1, definia o crime de manipulação de mercado nos seguintes termos:
'Quem divulgue informações falsas ou enganosas, realize operações fictícias ou execute outras manobras fraudulentas tendo em vista alterar artificialmente o regular funcionamento dos mercados de valores mobiliários, designadamente através da modificação das condições normais da oferta ou da procura de quaisquer valores mobiliários no mercado secundário e, por esse ou por outro modo, das condições de formação das respectivas cotações ou preços, com o fim de obter um benefício para si próprio ou para outrem ou de causar um dano a terceiros, será punido com prisão até dois anos e multa até 180 dias.'
Resulta da tipificação exposta que o objecto imediato da tutela penal dispensado pela disposição legal transcrita não é constituído pelo interesse deste ou daquele operador de mercado de valores mobiliários, já que não é necessária à perfeição do crime e produção de qualquer prejuízo a um particular, mas sim pelo regular funcionamento e pela transparência daquele mercado. Trata-se de um valor de natureza eminentemente social e pública, insusceptível de ser encabeçado por entidade diversa do próprio Estado.
Assim sendo, não pode a requerente assumir, relativamente a tal crime a qualidade de ofendida, no sentido técnico jurídico acima explicitado.
Por conseguinte, verifica-se que a requerente carece de legitimidade ad causam para constituir-se como assistente, pelo denunciado crime de manipulação de mercado, possuindo-a no tocante ao crime de infidelidade."
3 - Inconformada com esta decisão dela recorreu a requerente, tendo, nessa altura, suscitado a inconstitucionalidade do artigo 68.º, n.º1, alínea a), do Código de Processo Penal, em articulação com o artigo 667.º do Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei 142-A/91, de 10 de Abril, "quando interpretados e aplicados em termos de o prejudicado pela acção do autor da acção típica não deter legitimidade para integrar o estatuto de ofendido e não poder ter no processo intervenção como assistente", por violação do artigo 32.º, n.º 7 da Constituição.
4 - O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 28 de Junho de 2001, decidiu negar provimento ao recurso, decisão que fundamentou, em síntese, nos seguintes termos:
"[...]
Importa desde logo atentar no facto de não serem coincidentes os conceitos de ofendido e de lesado.
São ofendidos os titulares dos interesses que a lei visa especialmente proteger com a incriminação e lesados aqueles que sofrem danos ocasionados pelo crime.
Como logo se conclui, o conceito de ofendido é agora restrito, enquanto o de lesado é mais abrangente. Tanto assim que o artigo 74.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, abarca na sua noção de lesado mesmo aquele que não possa constituir-se como assistente.
Não pode considerar-se ofendido qualquer pessoa prejudicada com a comissão do crime, mas, unicamente, o titular do interesse que constitui o objecto imediato do crime.
No crime de manipulação de mercado previsto no artigo 677.º do Código MVM (Decreto-Lei 142/91, de 10 de Abril, hoje artigo 379.º do Código MVM) protege-se o regular funcionamento do mercado de valores mobiliários.
O interesse no bom funcionamento desse mercado é do Estado, pois com ele beneficia a economia nacional e, indirectamente, os investidores particulares. Mas o principal lesado, por muito elevados que sejam os prejuízos privados com a criminosa manipulação do mercado de valores mobiliários, é sempre o Estado.
Assim o tem entendido a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que por acórdão de 20 de Janeiro de 1998, in Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, vol. VI, t. I, p. 163, decidiu: 'Para efeitos de constituição como assistente não pode ser considerado ofendido qualquer pessoa prejudicada com a comissão do crime, mas unicamente o titular do interesse que constitui o objecto imediato do crime.'
Se assim não se entendesse teria de se admitir como assistentes todas as pessoas lesadas nos seus investimentos mobiliários com a manipulação do mercado de valores.
[...]".
5 - É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o presente recurso, para apreciação da constitucionalidade do artigos 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, em articulação com o artigo 667.º do Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei 142-A/91, de 10 de Abril, "quando interpretados e aplicados em termos de o prejudicado pela acção do autor da acção típica não deter legitimidade para integrar o estatuto de ofendido e não poder ter no processo intervenção como assistente", por alegada violação do artigo 32.º, n.º 7, da Constituição.
6 - Já neste Tribunal foi a recorrente notificada para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
"1.ª O artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, em articulação com o artigo 667.º do Código do Mercado de Valores Mobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei 142-A/91, de 10 de Abril, quando interpretados e aplicados como o foram no caso em termos de a vítima da acção do autor da acção típica não deter legitimidade para integrar o estatuto de ofendido e não poder ser investido no estatuto de assistente no que se refere ao crime de manipulação de mercado, são materialmente inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.º 7, da Constituição da República Portuguesa, o qual garante meios de acção processual aos ofendidos, seja aos titulares dos interesse directamente protegidos com a incriminação.
2.ª Mas são igualmente inconstitucionais por violação do artigo 62.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, na parte em que esta norma da lei fundamental assegura a protecção da propriedade privada, à qual o crime em causa visa gerar dano, como decorre do seu enunciado típico, sendo que tal interpretação desguarnece os proprietários dos valores mobiliários em causa de meios de acção penal adestrados à tutela dos seus interesses.
3.ª Finalmente, as normas legais citadas são igualmente inconstitucionais, por violação do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, pois que sendo elemento típico essencial à incriminação, o fito de causar danos aos titulares das acções sobre cujas cotações incide a manipulação, a orientação em causa desconsidera esse segmento típico essencial, para apenas dar tutela ao mercado em si e aos seus valores e preços."
7 - Notificado para responder, querendo, às alegações dos recorrentes, disse o Ministério Público a concluir:
"1.º Não viola qualquer preceito ou princípio constitucional o entendimento, expresso na decisão recorrida, acerca do interesse ou bem jurídico tutelado pelo crime de 'manipulação do mercado de valores', de modo a concluir que tal bem jurídico é apenas o interesse público e social no regular funcionamento e transparência daquele mercado, exclusivamente subjectiva do no Estado.
2.º Não competindo ao Tribunal Constitucional determinar se a leitura do tipo penal traduz, porventura, interpretação judicial errónea - na perspectiva do princípio da legalidade - da fattispecie normativa.
3.º Não traduz solução inconstitucional - como se decidiu no Acórdão 647/98 - a que se traduz em, por força do estatuído no artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, entender não ser legítima a constituição de assistente referentemente a crimes públicos que visam proteger interesses específicos do Estado.
4.º Termos em que deverá improceder o presente recurso."
Dispensados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação. - 8 - A decisão recorrida, depois de demonstrar que a recorrente não era titular do interesse público (o regular e transparente funcionamento dos mercados de valores mobiliários) que a lei especial a directamente quis proteger com o crime de "manipulação de mercado", previsto e punido, à data da prática dos factos, pelo artigo 667.º, n.º 1, do Código do Mercado de Valores Mobiliários (Código MVM), aprovado pelo Decreto-Lei 142-A/91, de 10 de Abril, decidiu-se pelo indeferimento do seu pedido de constituição como assistente no que ao crime de manipulação do mercado dizia respeito.
Considera a recorrente que tal solução assenta numa interpretação normativa restritiva dos artigos 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, e 667.º, n.º 1, do anterior Código MVM, que a recorrente contesta, designadamente por a considerar violadora do preceituado nos artigos 32.º, n.º 7, 62.º e 29.º, n.º 1, da Constituição.
Porém, como vai ver-se, sem razão.
9 - A questão, aliás, não é inteiramente nova na jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Efectivamente, o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar, por mais de uma vez, sobre a compatibilidade com a Constituição - designadamente com o seu artigo 32.º, n.º 7, agora também invocado pela recorrente - da interpretação normativa do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, que agora, mais uma vez, vem questionada, sempre tendo concluído pela sua não inconstitucionalidade.
Assim, logo no Acórdão 647/98 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 41.º, pp. 423 e segs.) - numa questão no essencial idêntica à dos autos, embora reportada ao crime de "desobediência" - decidiu o Tribunal que a norma em causa não era inconstitucional, quando interpretada em termos de não permitir a constituição como assistente quando está em causa o crime público de desobediência.
Ponderou-se, então, naquele aresto:
"A norma em causa atribui a qualidade de ofendidos aos 'titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação', reconhecendo a estes a legitimidade para agir, que é pressuposto processual geral. Não se reconhecem aqui específicos interesses particulares directamente decorrentes da actuação delituosa.
Ora, o crime de desobediência visa proteger interesses específicos do Estado, mais concretamente, como refere o Ministério Público nas suas alegações, 'no acatamento pelos particulares de certas decisões das autoridades públicas que os vinculam'. Assim, é o Estado o ofendido, porque legítimo titular do interesse ofendido pela prática do crime de desobediência.
E tal interpretação em nada briga com o disposto no artigo 202.º, n.º 2, da Constituição - correspondente, na versão, anterior à Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro, ao artigo 205.º, n.º 2 -, que determina que 'na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados', norma em que se não descortina qualquer imposição do reconhecimento de legitimidade a particulares para a constituição como assistentes em processo penal, em crimes como o de desobediência, em que o único titular do interesse protegido é o próprio Estado."
Esta fundamentação foi depois reafirmada no Acórdão 579/2001 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Fevereiro de 2002), a propósito de crime de "violação de segredo de justiça", previsto a punido pelo artigo 371.º do Código Penal e, mais recentemente, pelo acórdão desta secção n.º 76/02 - ainda inédito - tendo conduzido, embora com um voto de vencido, a que não se tivesse considerado inconstitucional aquela interpretação normativa do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), quando conduz à impossibilidade de constituição como assistente no que se refere aos crimes de "falsificação de documento praticada por funcionário" (previsto e punido, actualmente, pelo artigo 257.º do Código Penal) e de "denegação de justiça" (previsto e punido, actualmente, no artigo 369.º do Código Penal), por se ter considerado que, também nestes casos, os bens jurídicos protegidos (a segurança e a credibilidade no tráfico jurídico probatório relacionada com documentos no primeiro caso e a realização da justiça no segundo caso) tem claramente uma natureza supra-individual, residindo a sua titularidade no Estado.
Acrescentou-se, porém, neste acórdão, com particular interesse para os presentes autos, que:
"É certo que, embora os crimes de falsificação praticada por funcionário e de denegação de justiça visem directamente a protecção ou mesmo a satisfação (no caso de denegação de justiça) de interesses colectivos, e de não incluírem por consequência como seu pressuposto, a violação de interesses particulares, a verdade é que tais interesses são em muitos casos ofendidos através da sua comissão. Alguns destes casos haverá, porventura, concurso de crimes, como quando a falsificação servir para a prática de burla, caso em que o ofendido se poderá constituir como assistente. E genericamente, pode dizer-se que tais incriminações visam indirectamente proteger também interesses particulares, como resulta de o tipo subjectivo de ilícito de crime de falsificação do artigo 257.º incluir a 'intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado' e de o crime de denegação de justiça, sempre que a justiça é pedida pelos particulares, ter como consequência necessária a insatisfação do interesse particular nessa administração.
A questão, porém, é a de saber se, em face de disposições constitucionais que não só garantem a administração da justiça, com o artigo 202.º, n.º 2, como especialmente garantem o direito do ofendido 'de intervir no processo nos termos de lei', nas palavras do n.º 7 do artigo 32.º, aditado na revisão constitucional de 1997, a norma do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, que delimita a constituição de assistente através do conceito de ofendido, na interpretação que não considera ofendidos os particulares possivelmente afectados pelos crimes de falsificação praticada por funcionário do artigo 257.º do Código Penal e de denegação de justiça prevista no artigo 369.º do Código Penal, excede o espaço de configuração deixado ao legislador pela Constituição.
A resposta deve ser negativa. A revisão constitucional de 1997 faz-se no contexto da vigência do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal e nada indica que tenha querido outra coisa senão dar dignidade constitucional ao que aí se estabelece. A constituição de assistente em crimes que não visam directamente proteger interesses privados, mas sim interesses colectivos, em que nem sempre há lesão adicional de interesses privados, e em que a lesão desses interesses não é um elemento constitutivo do tipo de crime - por outras palavras, em crimes em que nem sempre há ofendido - não é certamente uma exigência constitucional."
Esta jurisprudência, que mantém inteira validade, conduz não apenas a que não se considere inconstitucional aquela interpretação "restritiva" do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, em termos de não permitir a constituição como assistente no que se refere aos crimes de "desobediência", de "violação de segredo de justiça" de "falsificação praticada por funcionário" ou de "denegação de justiça", como estava em causa naqueles processos, mas igualmente a que não se considere inconstitucional a mesma interpretação quando conduz à impossibilidade de constituição como assistente no que se refere ao crime de "manipulação de mercado", em causa nos presentes autos, na medida em que também neste caso, os bens jurídicos directa e imediatamente protegidos (o regular e transparente funcionamento dos mercados de valores mobiliários) tem uma natureza supra-individual, residindo a sua titularidade no Estado.
Agora apenas se acrescenta, porque a recorrente coloca expressamente a questão nessa perspectiva, que a interpretação normativa que vem questionada também não viola artigo 62.º da Constituição. Para o demonstrar basta recordar - de forma análoga ao que se fez no Acórdão 76/02 para a eventualidade de um concurso entre o crime de "falsificação praticada por funcionário" e de "burla" que nos casos em que da "manipulação do mercado" resulte igualmente uma ofensa à propriedade privada ou ao património em geral de qualquer dos agentes de mercado, haverá, porventura, concurso de crimes, caso em que o ofendido se poderá constituir como assistente no que se refere ao crime onde se tipifique o facto em que essa ofensa se traduza - o que, no caso dos autos, aconteceu efectivamente, tendo o tribunal admitido a constituição da ora recorrente como assistente no que se refere ao crime de "infidelidade".
Finalmente, cumpre referir que é totalmente deslocada a invocação no contexto os presentes autos de uma alegada violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, que manifestamente não é ofendido pelo facto de se considerar, como se fez na decisão recorrida - e, como bem nota o Ministério Público, não compete sequer ao Tribunal Constitucional verificar se as instâncias fizeram a melhor interpretação do direito infraconstitucional, mas apenas se aquela que fizeram está ou não em conformidade com a Constituição - serem o regular e o transparente funcionamento dos mercados de valores mobiliários os bens jurídicos directa a imediatamente protegidos pelo artigo 667.º, n.º 1, do anterior Código MVM.
III - Decisão. - Por tudo o exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UC.
17 de Abril de 2002. - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de voto junta ao Acórdão 76/2002).