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Acórdão 587/2000/T, de 1 de Fevereiro

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Texto do documento

Acórdão 587/2000/T. Const. - Processo 325/96. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - A freguesia de Lever, do concelho de Vila Nova de Gaia, instaurou no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, contra a freguesia de Crestuma, do mesmo concelho, uma acção, com processo ordinário, destinada a obter a demarcação entre as duas freguesias. Para o efeito, juntou fotocópia de um "documento existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Ordem de Cristo, Tombo da Comenda de Santo André de Lever - Cod. 283)", alegando "que ambas as autarquias sempre aceitaram a demarcação [dele] constante".

O Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, acolhendo a oposição deduzida pela ré na contestação, julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer deste pedido e absolveu-a da instância, por considerar que decorre do disposto no artigo 1.º da Lei 11/82, de 2 de Junho, que é à Assembleia da República que cabe a competência para fixar os limites das circunscrições territoriais.

Inconformada, a freguesia de Lever recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por Acórdão de 23 de Janeiro de 1996, julgou improcedente o recurso. Conforme decidiu, "A única questão posta à cognição deste Supremo Tribunal pela agravante, freguesia de Lever, é a de 'saber [como ela própria se exprime] se a competência para dirimir conflitos quanto à linha divisória da circunscrição territorial de duas freguesias compete aos tribunais ou à Assembleia da República'."

"A posição da recorrente, alicerçada, aliás, em douto parecer que fez juntar aos autos, parte, salvo o devido respeito, de um pressuposto errado, que haveria de inquinar toda a sua argumentação jurídica, qual é o de que agravante e agravada pretendem uma definição dos respectivos direitos e interesses legalmente protegidos (através da definição concreta dos respectivos limites territoriais) tanto quanto se encontrariam em conflito sobre eles pois se arrogam, respectivamente, território uma à outra. Ora, a composição de conflitos de interesses cabe aos tribunais, nos termos do n.º 2 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, sendo que, porque tais interesses são públicos, é aos tribunais administrativos que compete a resolução, nos termos do artigo 3.º do ETAF, por se tratar de uma questão emergente de uma relação jurídica administrativa não confiada a outro tribunal e porque o contencioso administrativo comporta, a título subsidiário, os meios do processo civil, a acção de demarcação regulada no CPC é um meio idóneo e mais apto para resolver o presente conflito.

Se estivesse correcta, juridicamente, esta enunciação do problema, nada teríamos a opor à intervenção de um tribunal para resolver o conflito das partes em confronto, freguesias de Lever e de Crestuma. Efectivamente, só um tribunal poderia exercer a função de o compor, independentemente e acima dos contendores, pois se trataria claramente do exercício da junção judicial.

Porém, salvo o devido respeito, não é assim.

As freguesias de Lever e de Crestuma, independentemente das justas dúvidas que tenham acerca dos respectivos limites territoriais, e da boa fé em as resolver, por mais razões históricas ou legais que invoquem para honestamente se arrogarem fronteiras, a verdade é que [...] não detêm direitos sobre elas, como não detêm um direito sobre a sua própria existência ou sobre os seus limites territoriais.

[...] hoje [...] compete à AR o regime de criação, extinção e modificação territorial das autarquias locais, nos termos da alínea n) do artigo 167.º da CRP, inclusivamente fixação dos limites quando forem duvidosos, igualmente de acordo com a Lei 11/82 citada [...]

O poder adequado a exercitar não é o jurisdicional claramente pela inexistência de direitos ou obrigações a conferir ou interesses a ressalvar, pois os pretensos não existem na esfera jurídica das autarquias, mas o político e o legislativo, pois só destes é apanágio a definição do interesse nacional.

[...] Ora, nos termos do artigo 4.º do ETAF, estão excluídas da jurisdição administrativa, além do mais, as acções que tenham por objecto actos políticos ou legislativos: alíneas a) e b) do n.º 1; por maioria de razão isto significa que os tribunais administrativos não têm atribuições sequer para julgar, definindo, o conteúdo de um acto de tais naturezas."

2 - Recorreu então a freguesia de Lever para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo a "fiscalização concreta de constitucionalidade" da norma "contida no artigo 1.º (na parte ainda em vigor, após a revogação parcial decorrente do estatuído no artigo 14.º da Lei 8/93, de 5 de Março) da Lei 11/82, de 2 de Junho, a qual, interpretada nos termos constantes do douto aresto recorrido, padece de inconstitucionalidade, por violação dos preceitos dos artigos 20.º, n.º 1, 167.º, alínea n), e 205.º, n.º 1, da CRP, como a recorrente sustentou na alegação" para o Supremo Tribunal Administrativo.

Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as suas alegações.

A recorrente, em resumo, sustentando a inconstitucionalidade da interpretação da "norma do artigo 1.º da Lei 11/82, com o sentido que lhe deu o aresto sub judice [...], por violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP", em primeiro lugar, porque a demarcação pretendida se traduz num acto jurisdicional, da competência dos tribunais, e não da Assembleia da República; em segundo lugar, porque, tendo já a Assembleia da República manifestado "não ter vontade de se ocupar, por via legislativa, do caso que se discute [...] a falada negação de competência traduz-se numa verdadeira denegação de justiça, violadora do preceito do artigo 20.º, n.º 1" e do n.º 4 do artigo 268.º da Constituição; finalmente, porque "tal interpretação dá origem a que duas freguesias exerçam as suas atribuições e competências sobre uma mesma faixa territorial, infringindo o próprio conceito de autarquia local, vertido no artigo 237.º, n.º 2, da CRP".

Explicitou, então, que a "interpretação desconforme com a Constituição da República" que o Supremo Tribunal Administrativo fez da norma contida no artigo 1.º da Lei 11/82 consistiu em "sustentar que a expressão 'fixação dos limites' se reporta, também, a 'fixação dos limites quando forem duvidosos'".

A freguesia de Crestuma contra-alegou, pronunciando-se no sentido da não verificação de qualquer inconstitucionalidade.

3 - Corridos os vistos e substituído o relator, que cessou funções neste Tribunal, cumpre decidir, começando por verificar se estão reunidos os pressupostos para que se possa conhecer do objecto do recurso.

A norma cuja inconstitucionalidade a recorrente pretende que o Tribunal Constitucional declare é, como consta do requerimento de interposição do presente recurso, a norma "contida no artigo 1.º [...] da Lei 11/82, de 2 de Junho [...], interpretada nos termos constantes do douto aresto recorrido [...] como a recorrente sustentou na sua alegação" no recurso interposto para o Supremo Tribunal Administrativo.

Há, pois, que recorrer a essas alegações para determinar a norma que constitui o objecto do presente recurso, uma vez que, no requerimento de interposição, essa identificação só é feita por remissão.

Interpretando as referidas alegações, concluímos que a recorrente afirma que seria inconstitucional interpretar o artigo 1.º citado no sentido de que "atribui à Assembleia da República competência para dirimir conflitos de dúvidas (ou de certezas incompatíveis) na delimitação de autarquias locais - nomeadamente de freguesias", porque se lhe estaria a atribuir competência para a prática de um acto próprio da função jurisdicional, constitucionalmente reservada aos tribunais.

Note-se que a recorrente refere "delimitação" no sentido de "demarcação" no terreno.

4 - A razão determinante da rejeição do recurso no Supremo Tribunal Administrativo foi a aplicação do regime estatuído no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei 129/84, de 27 de Abril, em que o Supremo Tribunal Administrativo se baseou para julgar incompetentes os tribunais administrativos. É, todavia, inegável que há uma relação lógica necessária entre a interpretação atribuída por este Tribunal ao artigo 1.º da Lei 11/82, no sentido de caber à Assembleia da República a competência para decidir a questão, e a consequente exclusão da competência dos tribunais administrativos, determinada pelo artigo 4.º do Estatuto.

Tem, assim, utilidade o conhecimento da norma que foi extraída pelo Supremo Tribunal Administrativo do artigo 1.º da Lei 11/82 e por ele aplicada; mas já não pode o Tribunal Constitucional pronunciar-se nem sobre a correcção do meio processual escolhido nem sobre a competência dos tribunais administrativos, uma vez que o objecto do presente recurso se circunscreve à apreciação da eventual inconstitucionalidade da norma identificada.

5 - Coloca-se a questão de saber se o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de que foi interposto o recurso de constitucionalidade, aplicou a norma do artigo 1.º da Lei 11/82 com o sentido que a recorrente acusou de ser inconstitucional.

Com efeito, o Supremo Tribunal Administrativo, considerando não ser, sequer, possível um conflito de direitos em matéria de fronteiras autárquicas a resolver pelos tribunais, interpretou e aplicou a norma contida no artigo 1.º da Lei 11/82 no sentido de atribuir competência à Assembleia da República para delimitar autarquias, definindo - teoricamente - as respectivas fronteiras, mesmo na hipótese de serem duvidosos -teoricamente - os limites.

A recorrente, por seu lado, acusa de ser inconstitucional a norma do artigo 1.º da referida Lei 11/82 quando interpretada no sentido de atribuir competência à Assembleia da República para, no terreno, proceder à demarcação (à delimitação concreta) da fronteira das duas autarquias, demarcação que, na prática, levanta dúvidas.

Entende o Tribunal Constitucional que o Supremo Tribunal Administrativo, ao julgar-se incompetente nos termos descritos, aplicou, ainda que implicitamente, a norma impugnada pela recorrente, cabendo, portanto, conhecer do objecto do presente recurso.

6 - E a verdade é que é materialmente inconstitucional essa norma, segundo a qual cabe à Assembleia da República proceder à demarcação (delimitação no terreno) de duas freguesias, por ofensa do princípio da tipicidade das competências constitucionais dos órgãos de soberania.

Com efeito, da simples leitura do artigo 11.º, n.º 2, conjugado com os artigos 161.º a 163.º da Constituição (no seu texto actual, correspondente aos artigos 113.º, n.º 2, e 164.º a 166.º vigentes à data da propositura da acção e das decisões entretanto proferidas; note-se que, para o que agora interessa, é irrelevante a versão tomada como aplicável), máxime do artigo 161.º, decorre claramente a impossibilidade de reconduzir a competência para demarcar a qualquer das competências constitucionalmente atribuídas à Assembleia da República. Ora, como se sabe, "pelo menos em relação aos órgãos de soberania, as competências legais, ou seja, as competências atribuídas por via de lei, devem ter fundamento legal expresso. E o que se passa, por exemplo, com as competências legais da Assembleia da República [artigo 161.º, alínea o)] [...]" (J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, 1998, p. 491).

Não é, pois, constitucionalmente admissível que a Lei 11/82, de 2 de Junho, sem permissão constitucional expressa, venha atribuir à Assembleia da República a competência que neste recurso está em apreciação.

Nestes termos, decide-se:

a) Julgar inconstitucional a norma constante do n.º 1 do artigo 1.º da Lei 11/82, de 2 de Junho, na interpretação segundo a qual cabe à Assembleia da República a competência para proceder a demarcação da fronteira de duas freguesias, por violação do princípio da tipicidade das competências constitucionais da Assembleia da República, decorrente da conjugação dos artigos 110.º, n.º 2, e 161.º a 163.º da Constituição;

b) Em consequência, julgar procedente o recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformulado no que respeita à questão de constitucionalidade.

Lisboa, 20 de Dezembro de 2000. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com declaração de voto) - Guilherme da Fonseca - Bravo Serra (com declaração de voto idêntica à aposta pela Exm.ª Relatora) - José de Sousa e Brito - Luís Nunes de Almeida - Messias Bento - José Manuel Cardoso da Costa.

Declaração de voto

Pronunciei-me no sentido do não conhecimento do objecto do recurso, por entender que a norma que foi impugnada pela recorrente, com o sentido que considera inconstitucional, não foi, nem sequer implicitamente, aplicada pelo Supremo Tribunal Administrativo no acórdão recorrido, o que retira utilidade ao julgamento do presente recurso. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1864975.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-06-02 - Lei 11/82 - Assembleia da República

    Estabelece o regime de criação e extinção das autarquias locais e de designação e determinação da categoria das povoações.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1984-04-27 - Decreto-Lei 129/84 - Ministérios da Justiça e das Finanças e do Plano

    Aprova o estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (no uso da autorização conferida ao Governo pela Lei n.º 29/83, de 8 de Setembro).

  • Tem documento Em vigor 1993-03-05 - Lei 8/93 - Assembleia da República

    Define o regime jurídico de criação de freguesias.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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