Acórdão 347/2000/T. Const. - Processo 534/99. - Acordam no Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - José Luís Armada Nunes Sequeira foi julgado e condenado no Tribunal de Círculo da Comarca de Oeiras na pena de 8 anos de prisão e na multa de 400 000$00 pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelos artigos 23.º e 27.º, alínea c), do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, com referência à tabela I-C anexa.
O arguido beneficiou do perdão concedido pela Lei 23/91, de 4 de Julho (fl. 3558), mas não beneficiou do perdão concedido pela Lei 15/94, de 11 de Maio, de acordo com o disposto no artigo 9.º, n.º 3, alínea e), desse diploma (fl. 3719), que expressamente excluía do âmbito da lei "os condenados a pena de prisão superior a 7 anos pela prática do crime de tráfico de estupefacientes".
Porém, ao aplicar a Lei 29/99, de 12 de Maio, que estabelece um "perdão genérico e amnistia pequenas infracções", o juiz da causa decidiu recusar a aplicação do seu artigo 1.º com fundamento em inconstitucionalidade, estruturando da forma seguinte a decisão proferida:
"A Lei 29/99, de 12 de Maio, estipula no seu artigo 2.º, n.º 2, alínea n), que não beneficiam do perdão previsto no seu artigo 1.º os condenados pela prática dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º, 23.º, 25.º, 26.º e 28.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro.
Optou o legislador - que se presume ter consagrado as soluções mais acertadas e exprimido o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil) - por delimitar as situações de exclusão do perdão com referência a certo tipo de crimes, ou seja, as situações de exclusão de perdão estão precisamente circunscritas às disposições legais referenciadas: só essas, e não outras.
[...]
3 - Daqui decorre que o caso dos presentes autos, por não se reportar a qualquer dos preceitos legais mencionados na alínea n) do n.º 2 do artigo 2.º da citada lei, estaria afinal abrangido pelo perdão genérico previsto no também já mencionado artigo 1.º do mesmo diploma, do seguinte teor: 'Nas infracções praticadas até 25 de Março de 1999, é perdoado 1 ano de todas as penas de prisão até 8 anos, ou 1/6 das penas de prisão até 8 anos, ou um 1/8 ou 1 ano e 6 meses das penas de prisão de 8 ou mais anos, consoante resulte mais favorável ao condenado.'
Quer isto dizer que beneficiariam do perdão, v. g., os condenados por crime de tráfico de estupefacientes desde que sob o império do hoje revogado Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro.
Poderá dizer-se, é certo, que tal resultado não estaria na mente do legislador, atentos os trabalhos preparatórios da Lei 29/99, citado, largamente publicitados. Simplesmente, se assim era, tal pensamento acabou por não ficar vertido no texto legal, concretamente na alínea n) do n.º 2 do artigo 2.º, dando origem a uma lacuna só passível de integração mediante o recurso à analogia, postergada nestas hipóteses, como se referiu (artigos 9.º, n.º 2, e 10.º do Código Civil). Ainda que se admitisse o recurso à interpretação extensiva dos normativos que regem sobre a amnistia e o perdão (o que, parece, não será de aceitar), não se encontraria aí o remédio para o caso sub judice, visto que o teor literal da norma em questão não oferece qualquer suporte para o efeito (cf. o artigo 9.º, n.os 1 e 2, do Código Civil).
4 - Parece, porém, que o artigo 1.º da Lei 29/99, de 12 de Maio, assim interpretado [isto é, conjugadamente com o artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da mesma lei], no sentido de beneficiar os condenados pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelos artigos 23.º e 27.º do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, viola o artigo 13.º da Constituição da República.
Na verdade, também as leis de amnistia e do perdão genérico, não obstante a natureza destes institutos, devem ser sindicadas à luz do princípio constitucional da igualdade. Significa isto que eventuais diferenciações devem sustentar-se em justificações razoáveis, recusando-se o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis.
Ora, nesta perspectiva, não se vislumbra qualquer razão para distinguir os condenados por tráfico de estupefacientes à luz dos Decretos-Leis e 430/83, citado, citado, beneficiando os primeiros de perdão, ao contrário dos segundos. Tal representa arbitrária discriminação (eventualmente não querida, mas que veio a perfilhar-se perante o texto legal adoptado), ofensiva, como se adiantou, do princípio da igualdade, proclamado no artigo 13.º da Constituição da República, e até dos princípios da dignidade da pessoa humana e do Estado de direito democrático - artigos 1.º e 2.º da Constituição da República."
A decisão em causa veio, assim, a recusar a aplicação do artigo 1.º da Lei 29/99, de 12 de Maio, que considerou materialmente inconstitucional, por violação do artigo 13.º, com referência aos artigos 1.º e 2.º, da Constituição.
2 - É desta decisão que vem interposto pelo Ministério Público recurso obrigatório de inconstitucionalidade, para apreciação da norma conjugada dos artigos 1.º e 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio, que apenas exclui do perdão da Lei 29/99 os condenados pela prática dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º, 23.º, 25.º, 26.º e 28.º do Decreto-Lei 15/93, beneficiando os condenados ao abrigo do Decreto-Lei 430/83, anteriormente em vigor.
Neste Tribunal, apenas o Ministério Público alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
"1.º A interpretação - hipoteticamente delineada na decisão recorrida - que se traduzisse em coligar o efeito excludente do perdão apenas aos 'artigos de lei' especificados no artigo 2.º, n.º 12, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio, negando idêntica relevância a factos idênticos subsumidos (por virtude de regras de aplicação da lei penal no tempo) aos preceitos legais, de conteúdo análogo, que foram substituídos pelo citado Decreto-Lei 15/93, violaria efectivamente, de forma gravosa e intolerável, o princípio da igualdade.
2.º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida."
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos. - 3 - Nos termos da decisão recorrida, o artigo 1.º da Lei 29/99, de 12 de Maio, interpretado conjugadamente com o artigo 2.º, n.º 2, da mesma lei no sentido de beneficiar os condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelos artigos 23.º e 27.º do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, uma vez que a prática de idênticos crimes previstos e punidos pelo Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, artigos 21.º a 23.º, 25.º, 26.º e 28.º, está expressamente excluída do âmbito da lei.
A Lei 29/99, de 12 de Maio, veio estabelecer um "perdão genérico e amnistia de pequenas infracções", determinando, nas normas recusadas e na parte relevante para o presente processo, o seguinte:
"Artigo 1.º
1 - Nas infracções praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, é perdoado 1 ano de todas as penas de prisão, ou 1/6 das penas de prisão até 8 anos, ou 1/8 ou 1 ano e 6 meses das penas de prisão de 8 ou mais anos, consoante resulte mais favorável ao condenado.
2 - [...]"
Pelo seu lado, o artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da mesma lei estabelece o seguinte:
"Artigo 2.º
Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:
...
n) Os condenados pela prática dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º, 23.º, 25.º, 26.º e 28.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro;
o) [...]"
A questão suscitada nos autos consiste em saber se, não estando expressamente prevista na Lei 29/99 a exclusão dos benefícios concedidos por essa mesma lei aos condenados por crimes praticados ao abrigo do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, devem ou não os condenados por crime de tráfico de estupefacientes previsto naquele diploma e praticado até 25 de Março de 1999 ser abrangidos pelo perdão constante do artigo 1.º da Lei 29/99.
No caso dos autos, o arguido foi condenado por factos praticados em 1991, de acordo com o que se preceituava nos artigo 23.º e 27.º do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, na pena de 10 anos de prisão. Como o crime pelo qual o arguido dos autos foi condenado não consta como sendo dos expressamente referidos nas exclusões da lei em causa (artigo 2.º), deveria beneficiar do perdão mencionado no seu artigo 1.º Porém, o juiz da causa recusou a aplicação da Lei 29/99, com fundamento na sua inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade.
A decisão recorrida fundamentou a recusa de aplicação das normas questionadas [artigos 1.º e 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99] por considerar que não era possível fazer quer uma interpretação analógica (que considerou legalmente inadmissível) quer uma interpretação extensiva de tais normas, que afastou por entender que o teor literal da norma em causa não oferecia qualquer suporte para o efeito. De facto, tal decisão, reconhecendo que a formulação literal de tais normas apenas abrangia os tipos legais de crime previstos nas normas expressamente identificadas do Decreto-Lei 15/93, não lhes sendo aplicável o perdão de pena, entendeu que devia ser dado o mesmo tratamento a tipos legais de crime previstos no diploma de 1983 que antecedeu o Decreto-Lei 15/93, pelo que o perdão constante do artigo 1.º da Lei 29/99 também não devia aplicar-se aos condenados por tipos legais de crime, agora previstos no diploma que antecedentemente regulava a matéria do tráfico de estupefacientes - o Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro -, como era o caso dos autos, ainda que, na lei, nenhuma referência fosse feita a tal diploma. Por essa razão, a solução que fizesse beneficiar os condenados ao abrigo do diploma de 1983 pelo crime de tráfico de estupefacientes, do perdão previsto na Lei 29/99 seria manifestamente inconstitucional, pois não se encontrava uma justificação razoável para tal benefício, sendo certo que o diploma de 1983 não foi expressamente referido na lei de amnistia e perdão genérico de 1999.
4 - O Tribunal Constitucional, em princípio, não pode sindicar a aplicação de normas infraconstitucionais. De facto, e em jeito de advertência preliminar, dir-se-á que o Tribunal só tem de se pronunciar sobre a interpretação a que procedeu uma decisão recorrida quando esta tiver extraído de normas de direito ordinário um sentido que lhe permita vir a recusar a aplicação da norma ou normas em questão com fundamento na violação da lei fundamental, independentemente dos casos em que a norma é adequadamente arguida de inconstitucionalidade e, apesar disso, é aplicada.
No caso dos autos, é bem claro que a decisão em apreciação teve por base a recusa de aplicação do sentido atribuído por interpretação a determinada norma, no desenvolvimento de um processo argumentativo em que se fez intervir como parâmetro de validade o princípio constitucional da igualdade. Se a decisão recorrida eventualmente tivesse percorrido outras vias interpretativas, não se teriam colocado questões de constitucionalidade. Mas, porque assim não foi, subsiste no ordenamento um juízo de inconstitucionalidade de uma norma sobre o qual o Tribunal não pode deixar de se pronunciar.
A questão que se suscita nos autos é, pois, a de saber se deverá manter-se o julgamento de inconstitucionalidade das normas objecto do presente recurso.
5 - Nos termos do artigo 161.º, alínea f), da Constituição, compete à Assembleia da República conceder "amnistias e perdões genéricos". Com tal redacção, que vem já da 1.ª revisão constitucional, em que se aditou a expressão "perdões genéricos", ficando assim claro que este poder da Assembleia podia coexistir com o poder do Presidente da República de conceder indultos ou comutação de penas, de carácter individual.
De acordo com o artigo 127.º do Código Penal, "a responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto". Nos termos dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 128.º do mesmo Código, "a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como medida de segurança"; "o perdão genérico extingue pena, no todo ou em parte, ou substitui-a por outra mais favorável prevista na lei".
Tradicionalmente, entendia-se que a amnistia era uma providência que "apaga" o crime, enquanto o indulto é uma medida que extingue ou modifica a pena. Actualmente, entende-se que a amnistia é um pressuposto negativo da punição, com o mesmo regime jurídico (quanto ao efeito principal) do perdão genérico: pretende-se impedir que o agente sofra a sanção a que já foi (ou pode vir a ser) condenado, diferenciando-se do indulto pelo carácter geral da amnistia e do perdão em contraposição com o carácter individual do indulto (veja-se, para maior pormenorização das diferenças e semelhanças, o Acórdão 444/97, in Diário da República, 2.ª série, de 22 de Julho de 1997, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 37.º vol., p. 289; Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pp. 688-689).
A amnistia dirige-se à infracção enquanto tal, impedindo a sua punição ou extinguindo-a, determinando mesmo a extinção das penas já aplicadas; pelo seu lado, o perdão genérico atinge apenas a sanção aplicada, determinando a sua extinção total ou parcial.
6 - No Acórdão 444/97 (já citado), tal como no Acórdão 510/98 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 20 de Outubro de 1998), analisaram-se detalhadamente as diferentes perspectivas da sindicabilidade das leis de amnistia e também a questão da eventual violação por tais leis do princípio da igualdade. Aí (Acórdão 444/97) se escreveu, depois de uma apreciação bastante completa dos diversos tipos de amnistia, o seguinte:
"Não é aqui possível, nem necessário para a decisão, discutir a constitucionalidade e, em particular, a conformidade com os princípios da igualdade de todos os tipos de amnistia atrás enunciados. Ela já foi afirmada, em princípio, pelo Acórdão 301/97, da 2.ª Secção (não publicado). Apenas se acentuará que a sua legitimação ou justa causa se mede em vista da totalidade dos fins do Estado, legítimos num Estado de direito, e não se restringe aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado e ainda menos à prevenção dos factos do tipo de infracção visado pela norma amnistiante. Esses fins não se limitam à justiça, no sentido da realização do direito, valem também razões de conveniência pública e a razão de Estado [...]"
Actualmente, a amnistia ou o perdão genérico não pode ser considerado um mero acto de clemência, antes têm de assentar nalguma racionalidade. Tratando-se da definição de direitos individuais perante o Estado, que, pela amnistia como pelo perdão, são dilatados tal como são comprimidos pela aplicação das sanções, a delimitação dos factos abrangidos pela lei de amnistia ou perdão genérico tem de ser feita segundo critérios susceptíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias do ponto de vista do Estado de direito.
De facto, a jurisprudência do Tribunal tem admitido o princípio de que a igualdade em leis de amnistia e de perdão genérico "só recusa o arbítrio a soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis" (Acórdão 42/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º vol., 1995, p. 283, e Diário da República, 2.ª série, de 13 de Abril de 1995, e Acórdão 152/95, in Diário da República, 2.ª série, de 20 de Junho de 1995).
Todavia, na amnistia e ou no perdão genérico avulta a ampla margem de manobra do legislador quanto à delimitação do campo de aplicação das medidas de clemência a tomar, margem de manobra que acresce àquela que à partida assiste ao Estado na opção por punir, não punir ou deixar de punir e, em consequência, por tipificar penalmente determinados ilícitos, com carácter de sistematicidade e de relativa permanência dos pressupostos da punibilidade. Será de censurar o arbítrio, em que não se vislumbra um mínimo de racionalidade, mas, como se disse na transcrição a que acabou de se proceder, nestes domínios da amnistia e do perdão genérico há que ter em conta a totalidade dos fins do Estado, para além dos fins específicos do aparelho sancionatório e de prevenção dos factos do tipo de infracção visado pela norma amnistiante.
O quadro de fins mais genéricos é demasiado aberto, ao contrário do quadro de fins mais específicos referidos ao aparelho sancionatório, para que nele funcione com perfeita adequação um juízo de igualdade que faça apelo a raciocínios analógicos.
7 - Adiante-se desde já que não é possível acompanhar o entendimento em que se estribou a decisão recorrida: ser a distinção entre os condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes ao abrigo do diploma de 1983 e do diploma de 1993, no sentido de beneficiarem do perdão os primeiros em detrimento dos segundos, constitui, em matéria da lei da amnistia e de perdão genérico, uma distinção arbitrária, ofensiva do princípio da igualdade.
Com a Lei 29/99 pretendeu o legislador comemorar os 25 anos do 25 de Abril de 1974, não transparecendo dos trabalhos preparatórios elementos que, de alguma forma, expliquem a razão por que foi aprovada a norma da alínea n) do n.º 2 do artigo 2.º Mas é de admitir, desde logo, a existência de uma distinção de situações, na medida em que entre os dois referidos diplomas sobre o regime penal do tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas se relevam diferenças, ainda que não de essência.
Essas diferenças registam-se no que se refere às penas cominadas e em menor grau na previsão dos tipos penais. Por outro lado, mais fortemente relevará a consideração de que o desfasamento temporal entre os dois diplomas poderia justificar uma intenção de não interferir na aplicabilidade da legislação mais recente, além de que, pelo menos quanto às infracções julgadas ao abrigo da disciplina de 1983, uma parte da pena proporcionalmente mais elevada já teria sido cumprida.
Se se analisarem mais de perto ambos os diplomas relativamente às normas referidas na Lei 29/99, de 12 de Maio, facilmente sobressaem os seguintes aspectos.
O Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, velo prevenir o tráfico e o consumo de estupefacientes, revogando, pelo seu artigo 75.º, alínea a), o Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, que, por sua vez, tinha como objectivo idêntica finalidade, tipificando ilícitos penais e contravencionais e prevendo penas quanto ao consumo e tráfico de estupefacientes. Todavia, embora sendo similar a estrutura e finalidade de ambos os diplomas, designadamente as infracções previstas nos artigos 21.º, 25.º, 26.º e 28.º do diploma de 1993 (que se referem ao tráfico de droga sob diversas formas e a associações criminosas), a tais normas correspondem idênticas infracções do Decreto-Lei 430/83, agora previstas nos artigos 23.º a 28.º, mas existem algumas diferenças.
Assim, no que se refere às penas cominadas, o artigo 23.º do Decreto-Lei de 1983 prevê uma pena que pode ir de 6 a 12 anos de prisão, enquanto o artigo 21.º do diploma de 1993 prevê, para crime tipificado de forma idêntica, uma pena de 4 a 12 anos de prisão. No n.º 2 de tal preceito prevêem-se também penas diferentes: o diploma de 1983 comina uma pena de 8 a 16 anos de prisão e o de 1993 uma pena de 5 a 15 anos; no caso do n.º 3 do mesmo preceito de 1983, correspondente ao n.º 4 do diploma de 1993, a prisão cominada no primeiro diploma pode ir de 2 a 4 anos e no segundo de 1 a 5 anos.
Os crimes tipificados nos artigos 22.º e 23.º do diploma de 1993 não têm equivalência no diploma de 1983: o artigo 22.º refere-se aos precursores e o artigo 23.º refere-se à conversão, transferência ou dissimulação de bens ou produtos.
No diploma de 1983, o artigo 24.º refere-se ao tráfico de quantidades diminutas, crime que no diploma de 1993 corresponde ao artigo 25.º (tráfico de menor gravidade): no primeiro caso prevêem-se penas de prisão de 1 a 4 anos e até 1 ano, consoante as substâncias ou preparações se compreendem nas tabelas I a III ou na tabela IV, respectivamente; no diploma de 1993, as penas são de prisão de 1 a 5 anos e até 2 anos, consoante as substâncias ou preparações se compreendem nas tabelas I a III, V e VI ou na tabela IV, respectivamente.
Assim, embora se trate de actividades criminosas mais ou menos homogéneas, o certo é que existem diferenças de regulação que poderão ser relevantes. Desde logo, o diploma de 1993 representa uma tomada de posição do legislador muito mais recente sobre a matéria em causa, podendo eventualmente justificar-se, por isso, que os casos de condenação ao abrigo desse diploma não fossem objecto do perdão genérico da lei de 1999.
Por outro lado, as penas cominadas no diploma de 1983 são não só genericamente mais graves do que as fixadas no diploma de 1993 como também os respectivos limites mínimos são mais elevados e, em regra, a amplitude de variação é menor do que no caso das fixadas para correspondentes infracções do diploma de 1993, o que torna o regime de 1983 menos flexível.
Acresce ainda que, dado o tempo já decorrido desde a entrada em vigor do diploma de 1983, compreende-se que o legislador da lei de amnistia e perdão genérico de 1999 não tenha excluído do âmbito da mesma tais crimes: as respectivas condenações estariam na recta final do seu cumprimento e o perdão poderia acelerar a sempre desejável ressocialização dos condenados por tais crimes.
São estas um conjunto de possíveis diferenças que poderiam motivar o legislador, no seu largo poder conformador, para não excluir do âmbito da lei de 1999 os condenados por crimes cometidos ao abrigo do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, e excluir desse âmbito os condenados por idênticos crimes cometidos ao abrigo do diploma de 1993.
Assim, não sendo necessário justificar a solução legislativa, mas apenas demonstrar que ela não atenta contra a Constituição, o certo é que não pode considerar-se arbitrário que o legislador tenha excluído do âmbito da lei os condenados pela prática dos crimes ao abrigo da lei mais recente.
Na verdade, será de pressupor que o legislador, em 1993, procedeu a uma apreciação mais actual da tipicidade e da ilicitude e até, porventura, da própria necessidade da pena. A esta luz, não repugnará que a Lei 29/99 tenha vindo a limitar a sua aplicação aos casos de condenação ao abrigo da lei incriminadora de 1983, mais penalizadora e cujas condenações estariam já em fase quase terminal, e que tenha determinado - sem ir mais além, porque nesta parte se tratou de decretar um perdão genérico - apenas a redução do tempo das penas ainda em cumprimento.
De qualquer modo, não se pode concluir pela existência de violação do princípio da igualdade, uma vez que não se trata de uma distinção arbitrária.
Nestes termos, tendo em atenção a larga margem de conformação legislativa da Assembleia da República na escolha dos casos a que se aplica a amnistia e o perdão genérico, cujos limites não foram ultrapassados no caso, o Tribunal Constitucional considera que a norma do artigo 1.º, conjugada com a do artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio, interpretada no sentido de apenas excluir do âmbito de aplicação da referida lei os condenados pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro e não excluir os condenados pela prática de idêntico crime, previsto e punido nos artigos 23.º e 27.º, alíneas c) e g), do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, não viola o princípio da igualdade e, em consequência, não é inconstitucional.
III - Decisão. - Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional o artigo 1.º conjugado com o artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio, interpretado no sentido de apenas excluir do âmbito de aplicação da referida lei os condenados pela prática do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, e não excluir os condenados pela prática de idêntico crime, previsto e punido nos artigos 23.º e 27.º, alíneas c) e g), do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, assim negando provimento ao recurso; e,
b) Em consequência, determinar a reformulação da decisão recorrida na parte impugnada, em consonância com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 4 de Julho de 2000. - Vítor Nunes de Almeida - Artur Maurício - Luís Nunes de Almeida - Maria Helena Brito (vencida, nos termos da declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
1 - No projecto de acórdão que apresentei como primeira relatora deste processo propus que o Tribunal Constitucional decidisse:
Interpretar a norma do artigo 1.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12 de Maio, em conjugação com o artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da mesma lei, no sentido de que os condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes ao abrigo dos artigos 23.º e 27.º, alínea c), do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, não beneficiam do perdão previsto naquele primeiro preceito;
Revogar a decisão recorrida, para que, sendo reformada, aplicasse a norma do artigo 1.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12 de Maio, em conjugação com o artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da mesma lei, com a interpretação indicada.
Apurada a decisão do Tribunal em sentido diferente, mantenho o meu entendimento e, por isso, votei vencida, pelos fundamentos seguintes.
2 - Como se diz no Acórdão deste Tribunal n.º 25/00 (Diário da República, 2.ª série, n.º 71, de 24 de Março de 2000, pp. 5609 e segs.), "de acordo com a jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional, as soluções normativas relativas às chamadas medidas de graça ou de clemência não estão subtraídas ao crivo do princípio da igualdade". Essa orientação encontra-se também espelhada, designadamente, no Acórdão 444/97 (Diário da República, 2.ª série, n.º 167, de 22 de Julho de 1997, p. 8780), embora a propósito da Lei 9/96, de 23 de Março (Lei de Amnistia), bem como no Acórdão 160/96 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 454, de Março de 1996, p. 267).
Ora, não encontro qualquer justificação para que os condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes ao abrigo do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, beneficiem do perdão, contrariamente aos condenados por idêntico crime ao abrigo do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro.
Desde logo, a singela circunstância de o diploma de 1993 representar uma "tomada de posição do legislador muito mais recente" sobre o crime de tráfico de estupefacientes não constitui justificação para um tratamento diferenciado dos condenados por esse crime, em matéria de concessão de perdão. Caberia demonstrar por que motivo a antiguidade de um diploma legal impõe a concessão do perdão e por que motivo a novidade de um diploma legal exclui esse mesmo perdão, demonstração que não me parece possível.
Em segundo lugar, a circunstância de as penas cominadas no diploma de 1983 poderem ser genericamente mais graves do que as fixadas no diploma de 1993 e a de os respectivos limites poderem ser mais elevados e com menor variação de amplitude não justificam uma como que compensação dos condenados ao abrigo do diploma de 1983, através da concessão do perdão. Caberia também demonstrar que os condenados ao abrigo da lei antiga o foram sempre com penas mais graves do que os condenados ao abrigo da lei nova e, sobretudo, explicar o motivo pelo qual aqueles condenados não beneficiaram da aplicação da lei nova, se concretamente ela lhes era mais favorável (artigo 29.º, n.º 4, parte final, da Constituição).
Em terceiro lugar, a concessão do perdão aos condenados ao abrigo do diploma de 1983 e a exclusão do perdão quanto aos condenados ao abrigo do diploma de 1993 não pode justificar-se pela desejável ressocialização dos primeiros. A ressocialização é objecto de regulamentação em sede própria, nomeadamente nas disposições relativas à concessão de liberdade condicional pelo tribunal de execução das penas, não se percebendo por que motivo a presente Lei 29/99, de 12 de Maio, teria tido tal preocupação relativamente aos condenados por tráfico de estupefacientes ao abrigo do diploma de 1983. A isto acresce que não está demonstrada a impossibilidade ou improbabilidade de haver condenações recentes pelo crime de tráfico de estupefacientes, ao abrigo do diploma de 1983 (relativamente às quais, portanto, inexiste o apontado objectivo ressocializador): pode ter sido recente o julgamento e o crime punido ao abrigo da lei antiga, para tanto bastando que tivesse sido cometido durante a vigência desta e a aplicação da mesma lhe fosse concretamente mais favorável.
3 - Ao exposto acresce que fazer depender a concessão do perdão da circunstância de o crime de tráfico de estupefacientes ter sido ou não punido ao abrigo do diploma de 1993 - estabelecendo-se, portanto, o ano de 1993 como referência temporal para a menor ou maior benevolência do legislador do perdão e da amnistia - suscita o problema de saber por que motivo não se adoptou idêntico critério na concessão do perdão aos condenados por outros crimes. Percorrendo as várias alíneas do n.º 2 do artigo 2.º da Lei 29/99, de 12 de Maio, e adoptando a lógica interpretativa da decisão recorrida, confirmada pelo presente acórdão, chega-se às seguintes conclusões: em relação aos condenados por determinados crimes contra as pessoas, contra a economia e fiscais, por burla e por abuso de confiança [alíneas b) e e)], a concessão de perdão não depende da circunstância de o crime ter sido praticado ao abrigo de um diploma mais antigo ou mais recente, já que nos correspondentes preceitos não se faz qualquer referência a um diploma legal em concreto; em relação a outros crimes, a concessão de perdão depende da circunstância de a condenação ter ou não ocorrido ao abrigo de um diploma de 1984 [alínea i)]; em relação a outros, de ter ou não ocorrido ao abrigo de um diploma de 1986, de 1987, de 1991 ou de 1995 [alíneas j), l), m) e o)]; em relação aos crimes previstos no Código Penal, parece que a concessão do perdão depende da circunstância de o crime ter sido ou não punido nos termos da redacção introduzida pela última revisão desse Código (1998), já que esta alterou a numeração dos respectivos preceitos.
Não existindo qualquer motivo sério para discriminar positivamente, ou beneficiar, os condenados por tráfico de estupefacientes ao abrigo do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, face aos condenados ao abrigo do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, só àqueles concedendo perdão, a adopção da interpretação dada pelo tribunal recorrido ao artigo 1.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12 de Maio, em conjugação com o seu artigo 2.º, n.º 2, alínea n), viola efectivamente o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
4 - É outra porém a interpretação que sustento e que não encontra obstáculo na letra da lei.
Contrariamente ao que pretende a decisão recorrida, o artigo 1.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12 de Maio, em conjugação com o artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da mesma lei, não concede o perdão aos condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes ao abrigo do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro: mais concretamente, aos condenados ao abrigo ("à luz", na expressão da decisão recorrida) dos seus artigos 23.º e 27.º, alínea c), como é o caso do recorrido no presente processo.
Com efeito, o artigo 2.º, n.º 2, alínea n), daquela lei, ao referir que não beneficiam do perdão os "condenados pela prática dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º, 23.º, 25.º, 26.º e 28.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro", não abrange apenas os condenados ao abrigo (ou à luz) destes preceitos.
Também os condenados ao abrigo (ou à luz) de preceitos de lei anterior, por crime ainda previsto nos mencionados preceitos do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, estão abrangidos pela letra do artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio.
Se bem se reparar - e é neste aspecto que a decisão recorrida não atenta suficientemente -, o artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio, não determina que não beneficiam do perdão os condenados ao abrigo (ou à luz) de certos preceitos da lei nova (o Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro), mas que não beneficiam do perdão os condenados pela prática dos crimes previstos em certos preceitos dessa lei nova.
Um dos crimes previstos nos preceitos do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, a que o artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio, faz referência, é justamente o crime de tráfico de estupefacientes. Assim sendo, o crime pelo qual o recorrido foi condenado ainda está contemplado pelo teor literal do artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio, pois que a ele se referem os preceitos para os quais esta lei remete.
Diga-se, aliás, que se os crimes de tráfico de estupefacientes praticados ao abrigo do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro (como foi o caso do crime praticado pelo recorrido), não continuassem a ser punidos pelo Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, ter-se-ia operado a respectiva despenalização, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 4, parte final, da Constituição. Nesta medida, pode entender-se não só que esses crimes são abrangidos pelo teor literal do artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio - com a já mencionada referência a "crimes previstos" e não a "crimes praticados ao abrigo de" -, como também que esses crimes são punidos pelo próprio Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, a eles ainda se reportando directamente os preceitos deste diploma [situação que, na perspectiva do tribunal recorrido, já permitiria a aplicação do artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio].
A identificação dos crimes excluídos do âmbito material de aplicação das medidas de clemência previstas na Lei 29/99, de 12 de Maio, é portanto feita, na parte que aqui interessa considerar, por referência a preceitos contidos no Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro. Por isso, a norma do artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio, deve ser interpretada no sentido de que através da remissão para aqueles preceitos legais se pretendeu referir o crime de tráfico de estupefacientes.
Interpretando assim a norma constante do artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio, não se extrai de tal norma, em conjugação com o artigo 1.º, n.º 1, da mesma lei, a atribuição de perdão aos condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes nos termos do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, como se sustentou na decisão recorrida.
5 - Concluindo que o artigo 1.º, n.º 1, da Lei 29/99 não contempla com o benefício do perdão os condenados por tal crime, deixa de colocar-se o problema de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, tratado na decisão recorrida.
O mesmo é dizer que, assim interpretada, a norma sub iudicio já não é inconstitucional e que, sendo esta uma interpretação que a norma consente, é ela que o intérprete deve preferir.
Por estas razões, nos termos do artigo 80.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, entendo que se devia determinar que a decisão recorrida fosse reformada, para que aplicasse a norma questionada com a interpretação que considero constitucionalmente irrepreensível e que é a seguinte: os condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes ao abrigo dos artigos 23.º e 27.º, alínea c), do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, não beneficiam do perdão previsto no artigo 1.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12 de Maio. - Maria Helena Brito.