Acórdão 501/2000/T. Const. - Processo 67/2000. Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - O Tribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto, por decisão do 3.º Juízo, de 25 de Março de 1999, determinou a anulação da taxa de urbanização liquidada pela Câmara Municipal do Porto a Edifícios Europa - Sociedade de Investimentos Imobiliários, Lda., ao abrigo do Regulamento de Obras da Câmara Municipal do Porto. Para tanto considerou o seguinte:
"A primeira das questões que importa decidir nestes autos, por a sua decisão poder prejudicar o conhecimento de todas as demais, é definir se o RMO, no momento em que foi liquidada a taxa de urbanização, continha a indicação da lei habilitante, e, caso negativo, qual a consequência jurídica dessa omissão, para o presente processo.
Pela análise da matéria provada verifica-se que, no momento da liquidação da taxa de urbanização em discussão, se ignora, concretamente quando teve lugar mas, seguramente, é anterior à data em que a recorrente pagou o montante correspondente - 23 de Abril de 1997 - o RMO da CMP não continha indicação expressa da lei habilitante, dado que só posteriormente, em 27 de Maio de 1997, foi aprovada, por unanimidade, a deliberação da Assembleia Municipal da CMP, segundo a qual naquele RMO passaria a constar essa lei habilitante, pelo que a publicação do referido regulamento com a indicação da lei habilitante é ainda posterior a 27 de Maio de 1997.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou inequivocamente que, de acordo com o disposto no artigo 115.º da CRP, os regulamentos - todo e qualquer regulamento, independentemente do órgão ou autoridade donde tiverem emanado - devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão, sob pena de padecerem de inconstitucionalidade formal, por desrespeito do citado preceito constitucional.
Assim, sem necessidade de mais análises, dado tratar-se de uma questão repetidamente afirmada na doutrina e na jurisprudência declaro nos presentes autos a referida inconstitucionalidade formal do referido regulamento, assim se convertendo em ilegal, por inconstitucional, a liquidação nestes autos posta em causa."
2 - O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade da decisão de 25 de Março de 1999, ao abrigo dos artigos 280.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, e 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição "das normas do Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto que criam e dispõem sobre a liquidação da referida taxa, nomeadamente os artigos 97.º a 102.º de tal Regulamento".
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
"1.º Conforme sustentado em parecer junto com a presente alegação, deverá conferir-se eficácia 'retroactiva' à 'rectificação' operada em 27 de Maio de 1997 no Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto, de modo a considerar-se 'convalidada' a inconstitucionalidade formal de que padecia a respectiva versão originária, por não indicar a lei habilitante do dito Regulamento.
2.º Mesmo que assim se não entenda, sempre importará determinar, nas instâncias competentes, se a actividade da Administração, no âmbito da reclamação deduzida pelo particular, não traduzirá, porventura, renovação ou convalidação do acto administrativo de originária liquidação da taxa, realizada já ao abrigo de diploma regulamentar formalmente válido - o que determina a utilidade da apreciação da inconstitucionalidade orgânica imputada ao mesmo Regulamento.
3.º Como se decidiu no Acórdão 639/95 do plenário deste Tribunal Constitucional, é lícito às autarquias locais o estabelecimento e cobrança de taxas de urbanização como contrapartida da efectiva realização de infra-estruturas urbanísticas que visem facultar aos munícipes a normal utilização das obras por eles realizadas, na sequência de anterior licenciamento.
4.º Tais receitas - independentemente do modo presumido como são calculadas, com base em índices estabelecidos em regulamento - têm natureza e estrutura sinalagmática, não se configurando como impostos, cujo estabelecimento está obviamente vedado às autarquias locais.
5.º A eventual não realização efectiva e pontual pela autarquia da contrapartida ou contraprestação que decorre do pagamento da referida taxa de urbanização não a transmuta em imposto, apenas facultando ao particular a via da acção de incumprimento ou de restituição das quantias pagas.
6.º Termos em que deverá proceder o presente recurso."
O recorrente requereu ainda a junção aos autos de cópia de um parecer subscrito por Freitas do Amaral (solicitado pela Câmara Municipal do Porto), no qual se sustenta a aplicação retroactiva da deliberação da Assembleia Municipal de 27 de Maio de 1997, que aprovou a rectificação ao edital 11/89, de 14 de Agosto, no sentido de nele ser feita menção da lei habilitante para a aprovação do Regulamento Municipal de Obras, e que ficou sanada a inconstitucionalidade formal do referido Regulamento. Nesse parecer sustenta-se também que o Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto não enferma de inconstitucionalidade orgânica.
A recorrida contra-alegou, sustentando a inconstitucionalidade formal do Regulamento em questão. A recorrida juntou ainda cópia do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 148/2000, assim como da decisão sumária proferida no processo 247/2000.
3 - Cumpre decidir.
II - Fundamentação. - 4 - A decisão ora recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:
Em 26 de Março de 1997 a recorrente foi notificada, pela CMP, de que tinha sido deferido o requerimento que apresentara em 19 de Outubro de 1993, a que foi atribuído o n.º 27 051, e através do qual foi formulado o pedido de concessão de alvará de loteamento;
Com essa notificação levava-se também ao conhecimento da recorrente de que deveria efectuar o pagamento relativo à taxa de urbanização, de acordo com o disposto nos artigos 99.º e 102.º do RMO, alterado pelo edital 1/92, com indicação da fórmula de cálculo da referida taxa, documento a fl. 9;
A recorrente, em 23 de Abril de 1997, procedeu ao pagamento da quantia de 6 884 460$00, referente à taxa de urbanização inerente ao alvará de loteamento n.º 27 051/93, através da guia de receita registada sob o n.º 600;
A recorrente é actual proprietária do alvará de loteamento n.º 4/97, emitido pela CMP, na sequência do processo administrativo acabado de referir, para o prédio sito à Rua de Sá de Albergaria, Nevogilde, Porto, descrito na 2.ª Conservatória do Registo;
O pagamento da referida taxa de urbanização foi pago por ser condição necessária à emissão do alvará de loteamento;
Do despacho de deferimento do alvará de loteamento em referência a CMP exigiu que a recorrente prestasse uma caução bancária no valor de 41 098 378$00, para garantir que todas as infra-estruturas urbanísticas do loteamento serão realizadas pela recorrente;
Em 9 de Maio de 1997 a recorrente reclamou para o presidente da CMP da liquidação da taxa de urbanização, como consta dos documentos a fls. 25 e 26;
Essa reclamação veio a ser indeferida por despacho proferido em 8 de Julho de 1997 pela directora do Departamento de Finanças da CMP no uso de poderes que lhe foram delegados pelo Sr. Director de Finanças e Património, pelas razões constantes do documento de que há cópia a fls. 28 e 29;
O RMO da CMP - que criou a taxa municipal pela realização de infra-estruturas urbanísticas - foi aprovado pela Assembleia Municipal em 9 de Junho de 1989 e tornado público pelo edital 11/89, de 14 de Agosto, e, posteriormente alterado pelos editais n.os 3/91 e 1/92;
No dia 27 de Maio de 1997 foi aprovada, por unanimidade, a deliberação da Assembleia Municipal da CMP, segundo a qual naquele RMO passaria a constar que o Regulamento foi aprovado pela Assembleia Municipal ao abrigo do determinado no artigo 11.º, alínea a), da Lei 1/87, de 6 de Janeiro, artigo 39.º, n.º 2, alínea l), do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março, artigo 43.º, n.º 1, do Decreto-Lei 400/84, de 31 de Dezembro, Decreto-Lei 448/91, de 29 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 334/95, de 28 de Dezembro, e Lei 2696, de 1 de Agosto;
Os Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, através do ofício n.º 6742, de 27 de Junho de 1996 impuseram para o empreendimento o orçamento dos projectos no valor de 2 749 106$00 para a rede de abastecimento de água e de 10 161 314$00 destinados à rede de saneamento sendo fixado o montante de 14 387 958$00 para arruamentos e águas pluviais, quantias a suportar pela recorrente;
Os Serviços de Electricidade do Norte, pelo ofício n.º 5271, de 6 de Junho de 1996, definiram e fixaram o montante das infra-estruturas eléctricas no valor de 13 800 000$00, quantia a suportar pela recorrente;
Não se apurou quais as infra-estruturas urbanísticas a realizar ou realizadas pela CMP em contrapartida do pagamento da taxa de urbanização em referência e por causa do referido empreendimento;
A recorrente deduziu o presente recurso em 15 de Setembro de 1997.
Com base nesta matéria de facto e ainda na circunstância de o acto de liquidação ter ocorrido antes de 23 de Abril de 1997, e considerando que só em 27 de Maio de 1997 fora aprovada a deliberação da Assembleia Municipal segundo a qual do Regulamento Municipal de Obras passaria a constar a lei habilitante, a sentença impugnada recusou a aplicação do mencionado Regulamento por violação do artigo 115.º da Constituição.
O recorrente, nas alegações de recurso apresentadas junto do Tribunal Constitucional, reconhece que a versão do Regulamento em causa, constante de fls. 101 e segs., não contém a indicação da respectiva lei habilitante. Contudo, coloca a questão da aplicação retroactiva da deliberação rectificativa, aprovada em 27 de Maio de 1997, de modo a sanar os efeitos da inconstitucionalidade formal que inquinava a versão originária do Regulamento. No que respeita à fundamentação de tal entendimento, o recorrente remete para o supramencionado parecer subscrito por Freitas do Amaral.
O recorrente suscita, ainda, a questão da eventual renovação ou convalidação do acto administrativo de liquidação originariamente praticado pela autarquia através de outras decisões dos órgãos cama rários que reiteraram o débito decorrente da taxa em questão, praticadas num momento em que já não subsistia o vício de inconstitucionalidade formal imputado à versão originária do Regulamento Municipal de Obras. Por esta via, e no entendimento do Ministério Público, estariam "sanados" os efeitos de tal inconstitucionalidade formal.
5 - O Tribunal Constitucional, no Acórdão 148/2000, de 21 de Março, apreciou uma questão em tudo idêntica à que constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade.
No que respeita à eventual sanação dos efeitos do vício de inconstitucionalidade no acto inicial de liquidação da taxa de urbanização, em virtude de terem sido praticados actos reiterando o débito em causa, já em data posterior à aprovação da deliberação rectificativa de 27 de Maio de 1997, o Tribunal Constitucional, no aresto citado, ponderou que não se deve ignorar que o recurso então interposto integra um processo de fiscalização concreta de constitucionalidade e que o Tribunal Constitucional não pode substituir-se ao tribunal a quo na aplicação do direito infra-constitucional. Nessa medida, o Tribunal entendeu que a circunstância de o tribunal tributário de 1.ª instância ter fixado, como objecto de impugnação, um acto tributário de liquidação de taxa, praticado em data incerta, mas anterior à deliberação de rectificação, constitui obstáculo intransponível à tese admitida pelo recorrente, segundo a qual os actos posteriores sanaram o vício do acto inicial.
O Tribunal prosseguiu, admitindo que, posteriormente à deliberação de 27 de Maio de 1997 e antes da impugnação judicial, outros actos podem ter sido praticados, constituindo a "renovação do primeiro acto de liquidação". Contudo, o Tribunal sublinhou que não foram esses actos os que a sentença impugnanda apreciou, nem lhes deu relevância como actos que substituíssem o acto impugnado. Referindo que extravasaria os poderes de cognição do Tribunal proceder a uma apreciação de tais actos (o que contenderia com a própria fixação do objecto da impugnação judicial), o Tribunal Constitucional concluiu pela inconstitucionalidade formal do Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto, tal como foi apreciado na decisão então recorrida.
Dada a identidade entre o objecto do presente recurso e o objecto do recurso decidido pelo Acórdão 148/2000, nada mais se acrescentará ao entendimento e aos respectivos fundamentos a que se acaba de fazer referência e que se adoptam agora integralmente. Nessa medida, conclui-se pela improcedência da tese admitida pelo Ministério Público.
6 - Subsiste, porém, o entendimento elencado em primeiro lugar, segundo o qual a deliberação de 27 de Maio de 1997, de acordo com a qual passou a constar do Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto a respectiva lei habilitante, teria eficácia retroactiva, sanando assim os efeitos da inconstitucionalidade formal originária do Regulamento em questão.
Tal entendimento assenta, naturalmente, numa dada interpretação das regras relativas à aplicação da lei no tempo (como resulta, aliás, do parecer junto aos autos) articuladas com o conteúdo da deliberação de 27 de Maio de 1997, de acordo com a qual tal deliberação teria eficácia ex tunc, retroagindo à data do início de vigência do Regulamento rectificado.
No entanto, não foi esta a interpretação que o juiz do tribunal tributário de 1.ª instância efectuou. Na verdade, a decisão que concluiu pela inconstitucionalidade formal do Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto, por não conter a menção à respectiva lei habilitante, pressupõe, ainda que implicitamente, uma interpretação das regras relativas à aplicação da lei no tempo articuladas com a deliberação de 27 de Maio de 1997, segundo a qual esta deliberação tem eficácia ex nunc (note-se que a decisão impugnada é posterior à deliberação referida, tendo o juiz ponderado expressamente a sua existência, como resulta da transcrição realizada supra).
Ora, tal interpretação (cujo resultado é a não aplicação retroactiva da deliberação rectificativa) apesar de nunca ter sido directamente questionada na perspectiva da constitucionalidade nos presentes autos (refira-se que o autor do parecer junto aos autos sustenta que não viola a Constituição a aplicação retroactiva da deliberação de 27 de Maio de 1997, nunca colocando, porém, a questão de saber se a sua não aplicação retroactiva violará algum preceito ou princípio constitucional), é, na realidade, o fundamento do julgamento de não inconstitucionalidade.
No entanto, o argumento de sanação retroactiva de inconstitucionalidade formal que afectaria a decisão de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal não pode ser procedente, por ser incompatível com a razão de ser da exigência constitucional da menção de lei habilitante, que é, no que se refere aos destinatários do direito, a segurança e a transparência do Estado de direito democrático (cf. Acórdão 110/95, Diário da República, 2.ª série, de 21 de Abril de 1995). Com efeito, o regulamento sem menção de lei habilitante foi conhecido pelos destinatários e produziu os seus efeitos relativamente aos actos já praticados, no momento em que a sanação retroactiva não poderia operar (sobre o sentido da inconstitucionalidade formal, cf., entre outros, citando jurisprudência anterior, o Acórdão 188/2000, Diário da República, 2.ª série, de 30 de Outubro de 2000).
7 - Por último, refira-se que a possibilidade de a decisão da questão relativa à aplicação no tempo da deliberação rectificativa se poder repercutir na utilidade do juízo agora a formular não impede o conhecimento do objecto do presente recurso. Com efeito, o sentido de tal decisão é, nesta fase processual, incerto e, por outro lado, o presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (pelo que não é exigida a exaustão dos recursos ordinários - cf. n.º 2 do mencionado artigo). Assim, tomar-se-á conhecimento do objecto do recurso, que é constituído pelas normas do Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto que cria a taxa de urbanização.
8 - Nos presentes autos é inquestionável (o próprio recorrente o admite) que o Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto, na versão originária, não continha a referência à respectiva lei habilitante. Nessa medida, violava o artigo 115.º, n.º 7, da Constituição, na redacção então em vigor, enfermando de inconstitucionalidade formal.
9 - O recorrente, nas alegações apresentadas, pronuncia-se sobre a eventual inconstitucionalidade orgânica das normas do regulamento em apreciação, concluindo no sentido da não inconstitucionalidade.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão 410/2000, de 3 de Outubro, tirado em Plenário, pronunciou-se sobre a conformidade à Constituição do Regulamento de Taxa Municipal de Urbanização da Póvoa do Varzim. Nesse aresto, o Tribunal decidiu não julgar organicamente inconstitucional o mencionado regulamento.
Dada a semelhança entre a questão então decidida e a que constitui objecto do presente recurso de constitucionalidade, verifica-se que os fundamentos e a decisão do Acórdão 410/2000 são, mutatis mutandis, transponíveis para os presentes autos.
Nessa medida, remete-se agora para a fundamentação desse aresto (do qual se junta cópia), concluindo-se também pela não inconstitucionalidade orgânica do Regulamento Municipal de Obras da Câmara Municipal do Porto.
III - Decisão. - 10 - Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.
Lisboa, 28 de Novembro de 2000. - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - Guilherme da Fonseca - Bravo Serra - Luís Nunes de Almeida.