Assento
Acordam, em plenário, no Supremo Tribunal de Justiça:
A Companhia de Seguros Metrópole, E. P., interpôs o presente recurso para tribunal pleno do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Março de 1982, proferido no recurso de revista, em que é recorrida e recorrente Alfredo Carlos da Silva Lourenço, identificados nos autos, por estar em oposição com o proferido também por este Supremo em 21 de Junho de 1979, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 288, p. 387, sobre idêntica questão fundamental de direito-natureza e efeitos do direito de preferência concedido no artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei 420/76, de 28 de Maio, com a alteração do Decreto-Lei 293/77, de 20 de Julho, em conjugação com o Decreto-Lei 445/74, de 12 de Setembro.
Em acórdão preliminar foi decidida por unanimidade essa questão prévia, dando-se por existente essa falada oposição, mandando-se prosseguir o recurso dentro da sua tramitação normal.
Assim, a recorrente apresentou as suas alegações, concluindo:
1 - O direito de preferência estabelecido pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 420/76 é-o no sentido técnico-jurídico, semelhante ao consagrado na lei, maxime artigos 1409.º e 426.º do Código Civil.
2 - E sujeito às regras comuns sobre o ónus da prova - artigos 342.º e seguintes desse Código.
3 - Consequentemente, a sua actuação prática, reconhecimento e exercício dependem da alegação e prova pelo preferente de que possui os requisitos legais e que há ou vai haver de modo certo concorrência entre o seu direito e o de terceiro.
4 - Só alegando e provando estas duas condições poderá haver para si de arrendamento o fogo em litígio.
5 - Não lhe sendo lícito manter a respectiva posse se o não fizer.
6 - Visto que a tanto conduz o artigo 1.º do Decreto-Lei 420/76, de 28 de Maio, interpretado à luz do artigo 9.º do Código Civil, por um lado, e dos artigos 426.º e 1409.º, por outro, e os artigos 342.º e seguintes, todos do Código Civil, neste sentido devendo ser proferido assento.
Contra-alegou o recorrido, rebatendo a argumentação da recorrente, mostrando não se estar perante um direito de preferência coincidente com a noção e regime do Código Civil, mas de conteúdo mais vasto, imposto para proteger as pessoas que habitem casa alheia, face aos problemas habitacionais então existentes, que não podem ser despejadas, desde que se não verifiquem as excepções legais e pretendam exercer o seu direito, não tendo de desocupar o arrendado enquanto aguardarem o exercício do seu direito, ocupando-o a título legítimo, pelo que deverá ser mantido o acórdão recorrido e lavrado acento nesse sentido.
O digno representante do Ministério Público junto deste Supremo, em douto parecer, embora entendendo que o direito de preferência estabelecido no artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei 420/76, de 28 de Maio, não coincide com arrendamento coercivo, afirma que tal direito constitui, todavia, fundamento específico da manutenção da posse, até decisão final ou acordo quanto ao destino da habitação, neste sentido se devendo lavrar o respectivo assento.
Ainda apresentou a recorrente contra-alegação a este parecer, criticando-o e alcunhando-o até de contraditório, mas a mesma foi mandada desentranhar dos autos e entregue à recorrente, por ser acto não permitido na lei processual.
Há agora que apreciar e decidir.
Não obstante o já decidido quanto à existência da referida oposição, há que apreciar de novo esse problema, agora por todo o plenário, visto essa decisão não o vincular - artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
Por nos parecer de aceitar essa decisão, subscrevemos as razões que a fundamentam, pois não há dúvida que enquanto o acórdão recorrido decidiu que o direito de preferência em causa não depende da celebração de novo arrendamento, tendo o senhorio obrigação de arrendar o fogo às pessoas indicadas do artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei 420/76, estando o titular do direito de preferência no uso e fruição do mesmo, com título legítimo, o que impede a procedência da acção de restituição de posse; o Acórdão de 21 de Junho de 1979, ao contrário, decidiu da não obrigatoriedade de o senhorio arrendar o fogo ao titular desse direito de preferência, ficando este dependente da realização de novo arrendamento, não chegando a surgir se o mesmo se não realizar, não justificando esse direito a legítima ocupação do fogo, impondo-se a sua restituição ao senhorio.
Em suma, num caso existe uma obrigação deste à celebração de um novo arrendamento com o titular desse direito de preferência, mantendo-se este no uso e fruição legítimos do fogo até essa celebração; noutro, o titular desse direito tem de entregar o fogo e aguardar que o senhorio celebre um novo arrendamento para então exercer esse seu direito de preferência.
Temos, pois, que a oposição é manifesta, como se julgou na secção, o que agora se mantém.
Decidida esta questão prévia, importa julgar a questão de fundo, averiguando qual das soluções é a mais consentânea com uma interpretação correcta da lei, na investigação do pensamento do legislador, dentro do ambiente sócio-económico em que foi elaborada e aplicada e da unidade do sistema jurídico pós-25 de Abril, sem esquecer o seu mínimo de correspondência verbal na letra da lei, mesmo que imperfeita.
E para o fazermos, não podemos olvidar, antes temos de realçar, todo o circunstancialismo que imperou nesse período, em que se legislou à pressa em situações de emergência, sem uma preocupação de uso de rígidos e definidos conceitos jurídicos, mas apenas com vista à solução rápida de carências prementes em vários casos pontuais, sempre na mira de favorecer aquelas classes que, pelo menos aparentemente, se julgavam mais desfavorecidas.
Não se cuidou de um perfeito e correcto rigor jurídico do uso de conceitos com significado próprio e preciso na ciência jurídica, mas antes de atender e resolver imediatamente casos urgentes, como foi patente e notório, empregando termos e expressões sem se preocuparem com o seu verdadeiro e assente significado jurídico, exprimindo-se o legislador incorrecta e confusamente, sem conhecimentos jurídicos e sem experiência legislativa.
Foi assim que se publicaram inúmeras leis, até contraditórias, com duração curta, mal elaboradas, sem um mínimo de rigor jurídico e legislativo e de terminologia incorrecta e imperfeita.
Foi neste ambiente de confusão e conturbação social, económica e política que os diplomas legais acima vieram à luz do mundo do direito positivo, feridos dos males que deixamos evidenciados.
Ora, se atentarmos no relatório desse Decreto-Lei 420/76 e em todo o seu articulado, vemos que foi propósito do legislador evitar que aquelas pessoas a quem atribuiu o direito que imperfeitamente alcunhou de preferência fossem obrigadas a sair do fogo sem ter para onde ir, vindo depois novamente a ocupá-lo, ao exercer o seu direito de preferência, quando o senhorio celebrasse novo arrendamento, o que seria um verdadeiro paradoxo.
Ora, evitar tais situações era um dever não só de humanidade mas de elementar justiça, pois seria uma violência inadmissível pôr no meio da rua pessoas que tinham o direito de continuar a habitar o fogo quando o senhorio, obrigado a arrendá-lo - artigo 5.º do Decreto-Lei 445/74, de 12 de Setembro -, celebrasse novo arrendamento. Pretendeu-se com esse Decreto-Lei 420/76 regular esse hiato entre a caducidade do arrendamento e a celebração de um novo contrato com as pessoas nas condições do seu artigo 1.º, n.º 1.
Simplesmente, sem cuidar de averiguar do verdadeiro conceito e significado das expressões usadas, alcunhou o direito concedido a essas pessoas de direito de preferência, quando o que pretendia era impor ao senhorio a celebração imediata de um contrato de arrendamento com essas pessoas, não ficando, portanto, o exercício do seu direito dependente da celebração de futuro contrato com terceiro.
E na verdade, como já acima dissemos, isso resulta não só do relatório desse diploma legal mas também do seu próprio articulado. De facto, se assim não fosse, não se compreenderia o disposto no seu artigo 2.º, que ordenava a suspensão das acções e execuções onde o despejo ainda não estivesse efectuado, a fim de no próprio processo, e não em novo contrato de arrendamento a celebrar pelo senhorio com terceiro, o titular do direito conferido pelo artigo 1.º, n.º 1, desse Decreto-Lei 420/76 exercesse esse seu direito. Isto mostra à evidência que o legislador teve o propósito, dentro do espírito e em conjugação com o Decreto-Lei 445/74, de obrigar o senhorio a celebrar imediatamente contrato de arrendamento com o titular desse direito, não tendo este que esperar que ele celebrasse novo contrato com terceiro para vir exercer o seu direito, que a lei alcunhou, mas imperfeitamente, de preferência.
Não estamos, portanto, perante um simples direito desta natureza, tal como vem definido e regulado na lei, mas de um direito mais complexo, com regulação própria, impondo ao senhorio a celebração com o titular desse direito de um novo contrato de arrendamento; daí que a ocupação do fogo pelo titular desse direito fosse legítima até à celebração desse contrato ou decisão final do destino do fogo.
Mas, claro está, que esta obrigação do senhorio não é absoluta, pois tem as suas excepções, como resulta do n.º 4 do artigo 5.º do Decreto-Lei 445/74. Mas, para tanto, o senhorio tem de alegar e provar, ao pretender a desocupação do fogo, qualquer dessas excepções, a definir por acordo ou decisão judicial.
Ora, como resulta dos autos, a recorrente não alegou, e menos provou, a existência de qualquer excepção das referidas nesse n.º 4 do artigo 5.º do Decreto-Lei 445/74, pelo que não há que as apreciar.
Aliás, a interpretação que vimos dando ao direito concedido pelo artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei 420/76 é a que se colhe do relatório do Decreto-Lei 328/81, de 4 de Dezembro, que revogou e alterou esse decreto-lei, onde se escreve: "Procurou-se ainda regular de modo diferente o direito ao novo arrendamento em casos de caducidade do contrato, ao qual o Decreto-Lei 420/76, de 28 de Maio, apelidava de direito de preferência. Deixou de se lhe chamar preferência, por não corresponder rigorosamente a essa figura jurídica, e ...» Há, assim, uma reconstituição oficial do pensamento legislativo do legislador do Decreto-Lei 420/76.
Deste modo, o titular do direito de "preferência» do artigo 1.º, n.º 1, deste decreto-lei, com as alterações do Decreto-Lei 293/77, de 20 de Julho, em caso de caducidade do antigo contrato de arrendamento, tem o direito de obrigar o senhorio a celebrar com ele novo contrato, se aquele não alegar e provar qualquer das excepções do artigo 5.º, n.º 4, do Decreto-Lei 445/74, de 12 de Setembro, ocupando, por isso, o fogo a título legítimo até à celebração desse contrato ou decisão final do seu destino, não tendo, portanto, de o restituir e só vir a exercer esse direito de "preferência» quando o senhorio celebrar novo contrato com terceiro.
E como se foca no douto acórdão recorrido, nenhuma influência tem aqui a revogação dos Decretos-Leis n.os 445/74 e 420/76, visto que os factos discutidos nestes autos ocorreram na sua vigência, sendo, portanto, esses diplomas legais os aplicáveis - artigo 12.º do Código Civil.
Depois, tem sido esta a orientação quase unânime deste Supremo, como se pode ver, além do acórdão recorrido, dos seus Acórdãos de 12 de Fevereiro de 1981, Boletim, n.º 304, p. 418, de 14 de Janeiro de 1982, Boletim, n.º 313, p. 314, de 27 de Julho de 1982 (tirado pelas duas secções cíveis), Boletim, n.º 319, p. 286, de 15 de Novembro de 1982, Boletim, n.º 321, p. 398, de 14 de Dezembro de 1982, Boletim, n.º 322, p. 328, de 5 de Maio de 1983, Boletim, n.º 327, p. 629, de 29 de Maio de 1984, recurso de revista n.º 71869, ainda inédito.
Pelo que se deixa exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o douto acórdão recorrido, com as custas a cargo da recorrente, lavrando-se o seguinte assento:
Na vigência do Decreto-Lei 420/76, de 28 de Maio, com as alterações do Decreto-Lei 293/77, de 20 de Julho, em caso de caducidade do contrato de arrendamento ou morte do locatário, o titular do direito referido no artigo 1.º, n.º 1, daquele decreto, aí apelidado de preferência, podia obrigar o senhorio a celebrar com ele novo contrato de arrendamento, se aquele não alegasse e provasse qualquer das excepções do artigo 5.º, n.º 4, do Decreto-Lei 445/74, de 12 de Setembro, sendo legítima a sua ocupação do fogo até à celebração desse contrato ou decisão final sobre o destino do fogo.
Lisboa, 16 de Outubro de 1984. - Ruy Corte Real - Melo Franco - Quesada Pastor - Vasconcelos de Carvalho - José Luís Pereira - Silvino Villa Nova - Antero Pereira Leitão - Flamino Martins - Magalhães Baião - Dias da Fonseca - Leite de Campos - Almeida Ribeiro - Alves Cortez - Miguel Caeiro - Lima Cluny (votei a decisão e os fundamentos, não subscrevendo inteiramente as críticas à técnica legislativa) - Moreira da Silva (votei os acórdão e assento com a declaração do colega Cluny) - Joaquim Figueiredo (com igual declaração) - Amaral Aguiar (entendi que as excepções do artigo 5.º, n.º 4, do Decreto-Lei 445/74 só funcionavam nos casos em que o senhorio tivesse cumprido o disposto no artigo 12.º do mesmo diploma, não podendo a obrigação aí imposta ser substituída por declaração ou alegação posteriormente feita no processo em que o inquilino pretendesse ver reconhecido o seu direito ao novo arrendamento) - Solano Viana (vencido, pois entendo que, como se decidiu no acórdão em oposição, o titular do direito de preferência referido no artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei 420/74, de 28 de Maio, apenas goza da faculdade de preterir outros contraentes em novo contrato de arrendamento que se venha a realizar, não existindo a obrigatoriedade de celebração de tal contrato com esse titular, pelo que, quando não há novo arrendamento para habitação, esse direito não chega a surgir, não sendo legítima a ocupação do local arrendado pelo citado titular antes da celebração do contrato) - Campos Costa (vencido pelos motivos constantes da declaração de voto que se junta) - Santos Carvalho (vencido nos termos e pelos fundamentos das declarações de voto que antecedem, como sempre tenho defendido e decidido, e, sobretudo, porque em parte alguma o legislador concedeu, expressa ou tacitamente, título legítimo de ocupação ao ocupante nas circunstâncias em que lhe concedeu o direito de preferência ou estabeleceu a obrigação de o senhorio arrendar o prédio após a verificação da caducidade do arrendamento ao antigo inquilino. O legislador, independentemente da técnica legislativa que usou - deficiente ou não -, não ousou contrariar os princípios que dominam a matéria, não obstante as circunstâncias de ordem social a que atendeu para atribuir o direito de preferência ao ocupante sem título).
Declaração de voto
1 - Quanto à questão preliminar, embora aceite existir oposição entre os acórdãos, discordo da passagem segundo a qual o disposto no n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil obriga o plenário a apreciar de novo o problema da oposição. Na verdade, a despeito de ser essa a prática dominante neste Tribunal (da qual me afastei deliberadamente no acórdão de que resultou o assento de 14 de Janeiro de 1982, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 313, p. 159) e de ter sido esse o regime consagrado no artigo 66.º do Decreto 12353, de 22 de Setembro de 1926 (que mandava conhecer da existência ou não de oposição só na própria sessão de julgamento em tribunal pleno), entendo que o plenário não precisa de se pronunciar de novo sobre a questão preliminar quando nada tenha a opor ao decidido pela secção (cf., neste sentido, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, VI, p. 311).
2 - No que toca ao fundo, votei doutrina oposta à que fez vencimento, sendo até de opinião que, apesar de deficientíssimas as leis sobre arrendamento publicadas a partir de 1974, o artigo 1.º do Decreto-Lei 420/76 constitui uma norma tecnicamente perfeita, ao atribuir a certas pessoas um direito de preferência relativamente ao novo arrendamento, no caso de caducidade do anterior contrato por morte do respectivo titular. A falha da lei foi de outra natureza: o legislador esqueceu-se de criar adequados mecanismos processuais, tendentes a obrigar o senhorio a declarar se desejava ou não proceder a novo arrendamento e a permitir que, antes da efectivação do despejo, o titular da preferência pudesse exercitar o seu direito.