Acórdão 300/2000/T. Const. - Processo 629/99. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - O Ministério Público veio interpor "recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 280.º, n.os 1, alínea a) e 3, da Constituição e nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.os 1, alínea a), e 3, da Lei Orgânica do citado Tribunal", do despacho do Mm.º Juiz do Tribunal de Círculo e da Comarca de Oeiras de 29 de Junho de 1999 "através do qual se decidiu recusar a aplicação do artigo 1.º da Lei 29/99, de 12 de Maio" (lei de perdão genérico e amnistia de pequenas infracções), e, em consequência, manteve-se "inalterada a pena a cumprir pela arguida Maria Carvalho Mendes".
O despacho recorrido é do seguinte teor:
"1 - Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal colectivo, foi a arguida Maria Carvalho Mendes condenada na pena de 11 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 27.º, alínea g), do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, com referência ao artigo 23.º, n.º 1, do mesmo diploma, e tabela I-A anexa.
Beneficiou a arguida do perdão concedido pela Lei 23/91 (promoção e despacho a fls. 299 v.º e 300); não beneficiou do perdão concedido pela Lei 15/94, de 11 de Maio, atento o disposto no artigo 9.º, n.º 3, alínea e), do mesmo diploma legal (promoção e despacho a fl. 333 v.º).
Perante a entrada em vigor da Lei 29/99, de 12 de Maio, entende o Ministério Público não dever a arguida beneficiar das medidas de clemência ali previstas, porquanto foi condenada pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes (douta promoção que antecede).
2 - A Lei 29/99, de 12 de Maio, estipula no seu artigo 2.º, n.º 2, alínea n), que não beneficiam do perdão previsto no seu artigo 1.º os condenados pela prática dos crimes previstos nos artigos 21.º, 22.º, 23.º, 25.º, 26.º e 28.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro.
Optou o legislador - que se presume ter consagrado as soluções mais acertadas e exprimido o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, ao Código Civil) - por delimitar as situações de exclusão do perdão com referência a certos tipos de crime, ou seja, as situações de exclusão do perdão estão precisamente circunscritas às disposições legais referenciadas: só essas, e não a outras.
Com efeito, conforme se lê no Acórdão 3/94 do plenário das secções criminais [...]
3 - Daqui decorre que o caso dos presentes autos, por não se reportar a qualquer dos preceitos legais mencionados na alínea n) do n.º 2 do artigo 2.º da citada lei, estaria afinal abrangido pelo perdão genérico previsto no também já mencionado artigo 1.º do mesmo diploma, do seguinte teor: "Nas infracções praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, é perdoado um ano de todas as penas de prisão até oito anos, ou um sexto das penas de prisão até oito anos, ou um oitavo ou um ano e seis meses das penas de prisão de oito ou mais anos, consoante resulte mais favorável ao condenado".
Quer isto dizer que beneficiariam do perdão, v. g., os condenados por crime de tráfico de estupefacientes desde que sob o império do hoje revogado Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro.
Poderá dizer-se, é certo, que tal resultado não estaria na mente do legislador, atentos os trabalhos preparatórios da Lei 29/99 citada, largamente publicitados. Simplesmente, se assim era, tal pensamento acabou por não ficar vertido no texto legal, concretamente na alínea n) do n.º 2 do artigo 2.º, dando origem a uma lacuna só passível de integração mediante o recurso à analogia, postergada nestas hipóteses, como se referiu (cf. os artigos 9.º, n.º 2, e 10.º do Código Civil). Ainda que se admitisse o recurso à interpretação extensiva dos normativos que regem sobre amnistia e perdão (o que, parece, não será de aceitar), não se encontraria aí remédio para o caso sub judice, visto que o teor literal da norma em questão não oferece qualquer suporte para o efeito (cf. o artigo 9.º, n.os 1 e 2, do Código Civil).
4 - Parece, porém, que o artigo 1.º da Lei 29/99, de 12 de Maio, assim interpretado [isto é, conjugadamente com o artigo 2.º, n.º 2, alínea n) da mesma lei] no sentido de beneficiar os condenados pela prática do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelos artigos 23.º e 27.º do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, viola o artigo 13.º da Constituição da República.
Na verdade, também as leis de amnistia e de perdão genérico, não obstante a natureza destes institutos, devem ser sindicadas à luz do princípio constitucional da igualdade. Significa isto que eventuais diferenciações devem sustentar-se em justificações razoáveis, recusando-se o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis.
Ora, nesta perspectiva, não se vislumbra qualquer razão para distinguir os condenados por tráfico de estupefacientes à luz dos Decretos-Leis n.os 430/83, cit. e 15/93 cit, beneficiando os primeiros de perdão, ao contrário dos segundos. Tal representa arbitrária discriminação (eventualmente não querida, mas que veio a perfilhar-se perante o texto legal adoptado), ofensiva, como se adiantou, do princípio da igualdade, proclamado no artigo 13.º da Constituição da República, e até dos princípios da dignidade da pessoa humana e do Estado de direito democrático - artigos 1.º e 2.º da Constituição da República."
2 - Nas suas alegações. concluiu assim o Ministério Público, recorrente:
"1.º A interpretação - hipoteticamente delineada na decisão recorrida - que se traduzisse em coligar o efeito excludente do perdão apenas aos artigos de lei especificados no artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, de 12 de Maio, negando idêntica relevância a factos idênticos, subsumidos (por virtude das regras de aplicação da lei penal no tempo) aos preceitos legais, de conteúdo análogo, que foram substituídos pelo citado Decreto-Lei 15/93, violaria efectivamente, de forma gravosa e intolerável, o princípio da igualdade.
2.º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida."
3 - Tudo visto, cumpre decidir.
O presente recurso tem por objecto, como claramente transparece do despacho recorrido, a questão da (in)constitucionalidade da norma do artigo 1.º, n.º 1, da citada Lei 29/99, de 12 de Maio, conjugada com o artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da mesma lei - normas transcritas naquele despacho - e na interpretação segundo a qual os condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes, ao abrigo dos artigos 23.º e 27.º do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, beneficiariam do perdão da pena, enquanto os condenados pela prática de igual crime, mas nos termos do disposto no Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, não beneficiariam do mesmo perdão.
Na tese do Mm.º Juiz a quo, "não se vislumbra qualquer razão para distinguir os condenados por tráfico de estupefacientes à luz dos Decretos-Leis n.os 430/83 citado e 15/93 citado, beneficiando os primeiros de perdão, ao contrário dos segundos" e tal "representa arbitrária discriminação (eventualmente não querida, mas que veio a perfilhar-se perante o texto legal adoptado), ofensiva, como se adiantou, do princípio da igualdade, proclamado no artigo 13.º da Constituição da República, e até dos princípios da dignidade da pessoa humana e do Estado de Direito Democrático - artigos 1.º e 2.º da Constituição da República."
Quid juris?
4 - O Decreto Lei 15/93, de 22 de Janeiro, a que se reporta o artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da Lei 29/99, regula o tráfico e consumo de estupefacientes. Revogou, através do seu artigo 75.º, alínea a), o Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, que tipificava ilícitos penais e contravencionais e definia ou modificava penas em matéria de consumo e tráfico ilícito de drogas.
Assim, o Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, nos seus artigos 21.º, 22.º, 23.º, 25.º, 26.º e 28.º, prevê e pune o "tráfico e outras actividades ilícitas", os "precursores", a "conversão, transferência ou dissimulação de bens ou produtos", o "tráfico de menor gravidade", o "traficante-consumidor" e as "associações criminosas".
Por sua vez, o Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, no seu artigo 23.º, previa e punia o "tráfico e actividades ilícitas" e, nas várias alíneas do artigo 27.º estabelecia agravações das penas previstas no artigo 23.º (e no artigo 24.º), sendo que, quanto à moldura da pena, para o mesmo tipo legal de crime, aquele decreto-lei previa um montante do mínimo da pena mais elevado (a pena de prisão de 6 a 12 anos em 1983 passou a 4 a 12 anos em 1993).
No caso dos autos, a arguida Maria Carvalho Mendes, ausente em parte incerta, foi "condenada na pena de 11 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 27.º, alínea g), do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, com referência ao artigo 23, n.º 1, do mesmo diploma, e tabela I-A anexa", e, por isso, a questão a decidir prende-se com o entendimento a que aderiu o despacho recorrido, segundo o qual os condenados pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, nos termos do Decreto-Lei 430/83, já revogado, como é o caso daquela arguida, não beneficiariam do perdão estabelecido no artigo 1.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12 de Maio, porque, a beneficiarem, tal seria ofensivo "do princípio da igualdade, proclamado no artigo 13.º da Constituição da República, e até dos princípios da dignidade da pessoa humana e do Estado de direito democrático - artigos 1.º e 2.º da Constituição da República".
5 - Cabendo apenas ao Tribunal Constitucional analisar a conformidade com a Constituição, e fundamentalmente na óptica do princípio da igualdade aí consagrada no artigo 13.º, daquele entendimento - e não há por controlar a interpretação legal feita no despacho recorrido da norma questionada do artigo 1.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da citada Lei 29/99, podendo ser essa ou outra a interpretação entendida mais correcta -, pode desde já adiantar-se que não acolhe a apontada violação daquele princípio da igualdade.
Com efeito, como ressalta do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 25/00, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 71, de 24 de Março de 2000:
"De acordo com a jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional, as soluções normativas relativas às chamadas medidas de graça ou de clemência não estão subtraídas ao crivo do princípio da igualdade. Como se afirmou no Acórdão 444/97 (Diário da República, 2.ª série, de 22 de Julho de 1997, sobre a Lei 9/96, de 23 de Março, 'o princípio de igualdade, tratando-se aqui da definição de direitos individuais perante o Estado, que, pela amnistia, como pelo perdão, são alargados - como são restringidos pela aplicação das sanções -, impede desigualdades de tratamento'. A diferenciação de tratamento que por elas seja estabelecida não deve ser arbitrária, materialmente infundada ou irrazoável (cf. o Acórdão 42/95, in Diário da República, 2.ª série, de 27 de Abril de 1995, a propósito da exclusão de certas infracções do âmbito do perdão de penas concedido pela Lei 15/94; v. também os Acórdãos n.os 152/95, in Diário da República, 2.ª série, de 20 de Junho de 1995, e 160/96, não publicado, ambos sobre normas extraídas da mesma lei).
Por outro lado, situações substancialmente diferentes exigem um regime diverso. A desigualdade de tratamento para diferentes situações é ainda uma dimensão essencial do princípio da igualdade."
Só que, in casu, a diferenciação de tratamento entre os condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes ao abrigo do Decreto-Lei 430/83, podendo beneficiar do perdão de pena, e os condenados por idêntico crime, mas ao abrigo do novo Decreto-Lei 15/93, expressamente excluídos do perdão, independentemente de saber se corresponde à melhor interpretação da lei, não terá de considerar-se uma diferenciação arbitrária. Sem esquecer que, neste campo da aplicação do perdão genérico, se o legislador "pode demarcar esse campo em função de quaisquer fins admissíveis do Estado de direito, então também a sua discricionariedade é máxima", valendo qualquer fim racional do Estado, para usar a linguagem do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 510/98, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 242, de 20 de Outubro de 1998, em matéria de amnistia.
É que, mesmo assumindo identidade a conduta de todos os condenados, seja ao abrigo da lei antiga ou da lei nova, tratando-se sempre da matéria do consumo e tráfico ilícito de drogas, e dentro do quadro de uma moldura penal sensivelmente igual, pode compreender-se que se tivesse querido favorecer com a concessão do perdão os condenados ao abrigo de uma lei mais antiga, quando dela são expressamente excluídos os condenados ao abrigo da lei nova e vigente. Com efeito, o legislador de 1999, concedendo o perdão genérico, poderá ter querido favorecer aqueles condenados, exactamente porque a condenação já se esvaiu no tempo, optando pela reintegração social dos agentes do crime de consumo e tráfico ilícito de drogas (o perdão genérico ainda se poderá justificar racionalmente como a política criminal possível, ou do mal menor. Favorecendo com o perdão os casos de mais duvidosa necessidade da pena cf. o citado Acórdão 510/98).
Tanto basta para não dar como violado o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
6 - Termos em que, decidindo:
a) Não se julga inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, a norma do artigo 1.º, n.º 1, da Lei 29/99, de 12 de Maio, conjugada com a do artigo 2.º, n.º 2, alínea n), da mesma lei, na interpretação segundo a qual os condenados ao abrigo dos artigos 23.º e 27.º do Decreto-Lei 430/83, de 13 de Dezembro, poderiam beneficiar do perdão genérico estabelecido naquele artigo 1.º, n.º 1, da Lei 29/99;
b) Concede-se, em consequência, provimento ao recurso, devendo ser reformado o despacho recorrido, em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 31 de Maio de 2000. - Guilherme da Fonseca (relator) - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - Bravo Serra - José Manuel Cardoso da Costa.