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Desvalorização da Moeda

Acórdão 177/2000/T, de 27 de Outubro

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Texto do documento

Acórdão 177/2000/T. Const. - Processo 627/99. - I - 1 - O Hospital Doutor José Maria Grande instaurou, pelo Tribunal da Comarca de Portalegre e contra o Gabinete Português da Carta Verde, acção executiva com vista ao pagamento coercivo da quantia de 209 780$00 e juros (sendo os já vencidos no montante de 71 709$00), devidos por tratamentos prestados a um cidadão que foi vítima de um acidente de viação do qual, segundo o exequente, seria culpado um condutor de uma viatura automóvel que, por via de um contrato de seguro, tinha "transferido" o pagamento dos quantitativos que lhe fossem exigíveis por danos causados a terceiros para a seguradora Macif, com sede em França, da qual o executado era o representante.

Deprecada em 14 de Maio de 1998 aos juízos cíveis de Lisboa a penhora nos bens e a citação do executado, o juiz do 1.º Juízo Cível, por despacho de 9 de Fevereiro de 1999, indeferiu "o pedido formulado nestes autos pela parte exequente" [(sic) e isto não obstante estar em causa uma mera deprecada], por isso que se recusou a aplicar o artigo 1.º do Decreto-Lei 274/97, de 8 de Outubro, já que descortinou que a norma nele ínsita padecia de inconstitucionalidade por ofensa do "princípio do contraditório".

É desse despacho que, pelo Ministério Público, e fundado na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, vem interposto o vertente recurso.

2 - Finalizou o representante daquela magistratura junto deste Tribunal a sua alegação com as seguintes "conclusões":

"1.º O regime constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 274/97, de 8 de Outubro, ao mandar aplicar à execução para pagamento de quantia certa, de valor não superior a alçada dos tribunais de 1.ª instância, mesmo que fundada em título extrajudicial, e em que não sejam penhorados imóveis ou estabelecimento comercial, o regime estabelecido no Código de Processo Civil para a execução de sentença condenatória não viola, em termos desproporcionados e constitucionalmente ilegítimos, o princípio do contraditório, ínsito no direito de acesso aos tribunais, afirmado pelo artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.

2.º O diferimento do contraditório do executado para momento ulterior à realização da penhora - permanecendo esta como provisória até julgamento da oposição eventualmente deduzida na sequência da notificação pessoal do executado, nos termos do artigo 926.º do Código de Processo Civil - ditado por prementes razões de celeridade e eficácia na efectivação prática e em tempo útil do direito do credor, não viola o referido princípio constitucional, atento o regime globalmente traçado para a tramitação de tal acção executiva.

3.º Na verdade - e para além de o próprio título executivo ser um documento que certifica ou indicia necessariamente, em termos julgados bastantes, a existência do débito - cumpre ao juiz, antes de ordenar a penhora, proferir despacho liminar, nos termos dos artigos 925.º e 811.º-A do Código de Processo Civil, devendo indeferir o requerimento executivo nos casos previstos nesta disposição legal, e sendo subsequentemente facultado ao executado, na sequência de notificação pessoal, nos termos do artigo 926.º, o pleno contraditório, quanto à própria execução, ao despacho determinativo da penhora e à realização desta (artigos 926.º, n.º 3, 863.º-A e 815.º do Código de Processo Civil).

4.º E podendo o credor, que haja instaurado de forma temerária ou negligente execução com base em crédito inexistente ou já extinto, ser responsabilizado por todos os danos que tenha causado ao executado em consequência do desapossamento dos bens penhorados, através da possível condenação como litigante de má fé, nos termos dos artigos 456.º e 457.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

5.º Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um juízo de constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida."

Cumpre decidir.

II - 1 - O âmbito do presente recurso circunscreve-se à questão de saber se é, ou não, conforme à Constituição a norma constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 274/97, de 8 de Outubro, que dispõe:

"Artigo 1.º

Execução para pagamento de quantia certa

A execução para pagamento de quantia certa, baseada em título que não seja decisão judicial condenatória, segue, com as necessárias adaptações, os termos do processo sumário, desde que se verifiquem os seguintes requisitos:

a) Ser a execução de valor não superior ao fixado para a alçada do tribunal de 1.ª instância;

b) Recair a penhora sobre bens móveis ou direitos que não tenham sido dados de penhor, com excepção do estabelecimento comercial."

Como já se viu, a recusa de aplicação de tal normativo fundamentou-se numa pretensa violação do princípio do contraditório, sendo certo que, não obstante as referências ao direito de propriedade privada consagrado no artigo 62.º da Constituição, nenhuma consequência se lobriga no despacho sub iudicio quanto a um eventual vício de que a transcrita norma padecesse e esteado na ofensa de tal direito.

Vejamos, pois.

2 - Tem este Tribunal vindo a defender que no âmbito do direito à propriedade privada se insere o direito do credor (cf., entre outros, o Acórdão 451/95, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31.º vol., p. 129), de modo que um sacrifício deste implica uma restrição àquele e que, nomeadamente, "este sacrifício será legítimo na medida em que for necessário para assegurar a sobrevivência condigna do devedor", conclusão que é de extrair "do princípio da dignidade da pessoa humana" (cf., também, o Acórdão 411/93, idem, 25.º vol., p. 615).

Todavia, no vertente caso, não se pode, sequer, falar numa violação do direito de propriedade do executado levada a efeito de forma intolerável e desproporcionada confrontadamente com o direito do credor, já que a norma sobre a qual recaiu o juízo de desaplicação não comanda, ela mesma, a exequibilidade de determinado título ou a satisfação coerciva do crédito.

3 - O que se torna, assim, necessário enfrentar é a questão de saber se a norma ínsita no artigo 1.º do Decreto-Lei 274/97 vai ofender um princípio do contraditório que supostamente deflui da Constituição relativamente ao foro cível ou, dizendo com maior propriedade, se por ela são postergados de forma acentuada e intolerável os direitos de defesa do devedor perspectivados estes numa vertente do próprio acesso aos tribunais.

No processo executivo, se for seguida a forma de processo sumário, o direito de nomear bens à penhora pertence exclusivamente ao exequente, que os nomeará logo no requerimento executivo (artigo 924.º do Código de Processo Civil) e só depois de feita a penhora é que o executado citado, sendo notificado simultaneamente do requerimento executivo, do despacho determinativo da penhora e da realização desta, para deduzir, querendo, no prazo de 10 dias, embargos de executado ou oposição à penhora (cf. artigo 926.º do Código de Processo Civil).

Por outro lado, no domínio do artigo 465.º daquele corpo de leis, e como sabido é, a forma ordinária daquele processo será a seguida se, independentemente do valor, o título executivo não for uma decisão judicial ou, sendo-o, se o cumprimento da obrigação carecer de liquidação em execução de sentença. Nos demais casos, é seguida a forma de processo sumário.

Ora, o que se veio a consagrar na norma em apreciação foi que, estando em causa uma execução de valor não superior ao fixado para a alçada do tribunal de 1.ª instância (500 000$00 à data da propositura da acção executiva em questão) baseada em título executivo representativo de uma obrigação que não seja uma decisão judicial, e desde que a penhora não recaia sobre bens imóveis ou estabelecimento comercial ou sobre bens móveis ou direitos que não tenham sido dados em penhor, se seguirá a forma de processo sumário.

Vale isto por dizer que tal norma, nos referidos casos, o que veio a prescrever foi uma alteração na forma do processo.

Só que essa alteração implicou que, com base no título executivo, venha, desde logo, a ocorrer a preempção dos bens que servirão para satisfazer o crédito em dívida.

3.1 - Seguindo o processo executivo a forma ordinária, comanda o artigo 811.º do Código de Processo Civil que [n]ão havendo fundamento para indeferir liminarmente ou determinar o aperfeiçoamento do requerimento executivo, o juiz determina a citação do executado para, no prazo de 20 dias, pagar ou nomear bens à penhora, podendo, desde logo, opor-se à execução por embargos, enquanto que, se se seguir a forma de processo sumário, só após a efectivação da penhora é que o executado é notificado simultaneamente do requerimento executivo, do despacho determinativo da penhora e da realização desta, para deduzir, querendo ..., embargos de executado ou oposição à penhora.

Se é compreensível o que se contém no despacho impugnado, o mesmo surpreendeu a inconstitucionalidade do normativo sub specie na circunstância de a citação ter lugar apenas após a penhora.

Será assim?

Adianta-se desde já que não.

4 - No âmbito do Código de Processo Civil, o princípio do contraditório encontra-se consagrado no seu artigo 3.º, o qual dispõe no seu n.º 3 que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

E, tomando como parâmetro a lei fundamental, a verdade é que este Tribunal tem vindo a considerar a consagração do princípio do contraditório como algo integrado no direito de acesso aos tribunais, consagrado no seu artigo 20.º

Neste sentido veja-se, nomeadamente, o Acórdão 249/97 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 17 de Maio de 1997), de onde se destaca:

"[...]

O direito de acesso aos tribunais é o 'direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e perante o qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista' (cf. Acórdão 346/92, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., pp. 451 e segs.).

O direito de acesso aos tribunais é, na verdade, dominado por uma ideia de igualdade, uma vez que - como se sublinhou no Acórdão 147/92, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., pp. 623 e segs., o princípio da igualdade vincula todas as funções estaduais, jurisdição incluída.

A vinculação da jurisdição ao princípio da igualdade, a mais do que significar igualdade de acesso à via judiciária, significa igualdade perante os tribunais, donde decorre que 'as partes têm que dispor de idênticos meios processuais para litigar, de idênticos direitos processuais' (cf. Acórdão 223/95, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 27 de Junho de 1995). É o princípio da igualdade de armas ou da igualdade das partes no processo que constitui uma das essentialia do direito a um processo equitativo (cf. citado Acórdão 147/92).

O processo civil tem estrutura dialéctica ou polémica, pois que assume a natureza de um debate ou discussão entre as partes. E estas - repete-se - devem ser tratadas com igualdade. Para além do princípio do dispositivo ou da livre iniciativa e do ditame da livre apreciação das provas pelo julgador, constituem, assim, traves mestras do processo o princípio do contraditório e o da igualdade das partes (igualdade de armas).

O princípio do contraditório (audiatur et altera pars), enquanto princípio reitor do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade de 'deduzir as suas razões (de facto e de direito)', de 'oferecer as suas provas', de 'controlar as provas do adversário' e de 'discretear sobre o valor e resultados de umas e outras' (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1956, p. 364).

Tal princípio só está constitucionalmente consagrado, de forma expressa, para o processo criminal (cf. artigo 32.º, n.º 5, da Constituição). Ele vale, no entanto, também para o processo civil, como exigência que é do princípio do Estado de direito, que - insiste-se - reclama igualmente que, no processo, as partes sejam tratadas com igualdade (princípio da igualdade de armas).

De facto, também este processo tem de ser, como se disse, um due process of law, um processo equitativo e leal. E isso exige não apenas um juiz independente e imparcial - um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça mantendo-se alheio e acima de influências exteriores, a nada mais obedecendo do que à lei e aos ditames da sua consciência - como também que as partes sejam colocadas 'em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes é devida' (cf. Manuel de Andrade, ob. cit., p. 365).

Cada uma das partes há-de, pois, poder expor as suas razões perante o Tribunal (princípio do contraditório). E deve poder fazê-lo em condições que a não desfavoreçam em confronto com a parte contrária (princípio da igualdade de armas).

[...]".

4.1 - Entende-se que o princípio do contraditório, na óptica delineada, não se deve considerar como beliscado de forma intolerável e desproporcionada pelo simples facto de o processamento da execução se iniciar com a nomeação de bens à penhora e só depois se seguir a citação do executado.

Na verdade, o executado continua a ter ao seu alcance todos os meios de defesa que lhe permitam pôr em causa o despacho que ordenou a penhora, opor-se à execução ou colocar em crise as próprias existência ou exequibilidade do título, as incerteza, exigibilidade, liquidez, extinção ou não modificação obrigação, e a existência de qualquer pressuposto processual de que dependa a regularidade da instância executiva (cf. artigo 926.º do Código de Processo Civil) e, de uma outra banda, quer se trate de um processo que siga os termos do processo sumário, quer se trate de um processo que siga os do processo ordinário, impedirá a efectivação da penhora o despacho de indeferimento liminar, que tem lugar em qualquer dessas formas de processo (cf. artigo 811.º-A desse diploma).

Para além disso, e decisivamente, o que se não pode passar em claro é que a oposição à penhora ou à execução, esta por meio de embargos, continuam ao alcance do executado, numa e noutra forma de processo, pelo que, se ele utilizar esse meio, sempre desfrutará de meios bastantes para expor as suas razões, contraditar as do exequente e discretear, assim, sobre a questão (cf., para o que ora releva, e relativamente à dedução de embargos à execução não fundada em sentença, o n.º 1 do artigo 815.º do aludido Código, que possibilita a adução de fundamentos de oposição sobremaneira mais amplos do que os permitidos quando o título é uma decisão judicial).

E, de todo o modo, a própria dedução de embargos, levados a cabo logo após a citação tal como se prescreve no processo executivo que siga a forma ordinária, não basta, só por si, para suspender a execução (cf. artigo 818.º).

Pode, desta arte, concluir-se que o conteúdo do direito de defesa do executado se mantém, não sendo, por isso, afectado em termos constitucionalmente inadmissíveis pela circunstância de a norma em análise ter vindo apenas, em direitas contas, a diferir o momento em que ele se exercita, devendo realçar-se, por um lado, que, não obstante haver desde logo penhora dos bens, a oposição à execução ou dedução de embargos tem por efeito não se passar à fase da venda que, essa sim, se viesse a ser realizada, poderia, como assinala o ora recorrente na sua alegação, "configurar-se como irremediável para a frustração dos legítimos direitos do executado", e, por outro, que o artigo 1.º do Decreto-Lei 274/97 tem por âmbito, afinal, execuções de baixo valor, devendo a penhora recair apenas sobre bens móveis ou direitos não dados em penhor, excepcionando-se ainda o estabelecimento comercial.

Conclui-se, desta sorte, não padecer do vício de inconstitucionalidade a norma sub specie, designadamente por ofensa do princípio do contraditório que deflui do direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º do diploma básico.

III - Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, em consequência determinando-se a reforma da decisão impugnada de harmonia com o juízo ora efectuado sobre a questão de constitucionalidade.

Lisboa, 22 de Março de 2000. - Bravo Serra - Guilherme da Fonseca - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - José Manuel Cardoso da Costa.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1832576.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1995-08-03 - Acórdão 451/95 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da primeira parte do nº 1 do artigo 300º (impenhorabilidade de bens penhorados em execução fiscal), do Código de Processo Tributário (aprovado pelo Decreto Lei 154/91, de 23 de Abril), na parte em que estabelece o regime de impenhorabilidade total dos bens anteriormente penhorados pelas repartições de finanças em execuções fiscais, - por violação da garantia do direito do credor a satisfação do seu crédito (que se extrai do nº (...)

  • Tem documento Em vigor 1997-10-08 - Decreto-Lei 274/97 - Ministério da Justiça

    Torna extensivo o regime do processo sumário de execução às acções executivas para pagamento de quantia certa baseadas em título diverso de decisões judicial, desde que o seu valor não exceda o da alçada do tribunal de primeira instância e que a penhora recaia sobre bens móveis ou direitos que não tenham sido dados de penhor (com excepção do estabelecimento comercial)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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