Acórdão 312/2000/T. Const. - Processo 442/99. - Acordam no Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - LOFIL - Veículos, S. A., Luís Jorge Lopes Ribeiro, António Luís Lopes Ribeiro e José Luís Rodrigues Lopes foram acusados no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, imputando-se aos arguidos, pessoas singulares, a prática de vários crimes de abuso de confiança fiscal previstos e punidos no artigo 24.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras - RJIFNA [quatro crimes com referência ao artigo 91.º do CIRS - falta de entrega do IRS relativo aos meses de Fevereiro, Março, Abril e Maio de 1996; um crime com referência aos artigos 40.º, n.º 1, alínea a), e 26.º, n.º 1, do CIVA - relativo à não entrega do IVA do mês de Março de 1996]. À arguida, pessoa colectiva, foi assacada a responsabilidade pelos ilícitos imputados aos demais arguidos, tendo sido deduzido pedido cível de indemnização.
Após o julgamento, foi proferida a seguinte decisão:
"1.º Condenar o arguido Luís Jorge Lopes Ribeiro como autor material de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 24.º, n.os 1, 2 e 5, do RJIFNA, com referência aos artigos 40.º, n.º 1, alínea a), e 26.º, n.º 1, do CIVA e 91.º do CIRS, na pena de 2 anos de prisão;
2.º Condenar o arguido José Luís Rodrigues Lopes como autor do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 24.º, n.os 1, 2 e 5, do RJIFNA, com referência aos artigos 40.º, n.º 1, alínea a), e 26.º, n.º 1, do CIVA e 91.º do CIRS, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
3.º Condenar a arguida sociedade LOFIL - Veículos, S. A., pela prática do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 24.º, n.os 1, 2 e 5, e 11.º, cometido pelos seus representantes, em seu nome e no seu interesse, e por força do disposto no artigo 7.º do RJIFNA, na pena de 200 dias de multa à taxa de 10 000$00 por dia, o que perfaz a multa de 2 000 000$00;
4.º Condenar o arguido António Luís Lopes Ribeiro, como autor do crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 24.º, n.os 1, 2 e 4, do RJIFNA, com referência aos artigos 40.º, n.º 1, alínea a), e 26.º, n.º 1, do CIVA e 91.º, n.º 1, do CIRS, na pena de 30 dias de multa à taxa de 1000$00 por dia, o que perfaz a multa de 30 000$00, a que corresponde a prisão subsidiária pelo período de 20 dias."
Os arguidos Luís Jorge e José Luís e a sociedade LOFIL foram condenados a pagarem solidariamente ao Estado a quantia de 5 658 028$00, acrescida de juros à taxa legal, desde 1 de Julho de 1998 e até efectivo pagamento e ainda na quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença, até ao montante de 8 595 806$00.
A pena de prisão aplicada aos arguidos Luís Jorge e José Luís foi suspensa pelo prazo de três anos, com a condição de reporem ao Estado a quantia de 5 658 028$00, no prazo de seis meses a contar do trânsito em julgado.
2 - Os arguidos, inconformados com a decisão do Tribunal Colectivo da Comarca de Viseu, interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), tendo suscitado na respectiva motivação a questão de constitucionalidade do artigo 24.º do RJIFNA, por violação do n.º 1 do artigo 1.º do Protocolo 4, adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos artigos 8.º, n.º 2, e 27.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República.
O STJ, por Acórdão de 20 de Maio de 1999, decidiu conceder provimento parcial ao recurso, fixando em 18 meses o prazo para que os arguidos Luís Jorge e José Luís reponham ao Estado a quantia em que foram condenados como condição de suspensão das respectivas penas.
Notificados desta decisão, os arguidos vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo que se aprecie a conformidade à lei fundamental do artigo 24.º do RJIFNA, que consideram violar o artigo 1.º do Protocolo 4, adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), e os artigos 8.º, n.º 2, e 27.º, n.os 1 e 2, da Constituição.
Neste Tribunal, os recorrentes apresentaram alegações em que formularam as seguintes conclusões:
"1.º No caso dos autos está-se perante uma obrigação da arguida LOFIL em pagar ao fisco determinado montante de IVA.
2.º A entender-se que na previsão do artigo 24.º do RJIFNA se quis incluir este tipo de dívida, então tal norma viola frontalmente o disposto no artigo 1.º do Protocolo 4 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que prescreve que ninguém pode ser privado da sua liberdade por não poder cumprir uma obrigação ou não pagar uma dívida.
3.º Tal norma vigora na ordem jurídica portuguesa (cf. n.º 2 do artigo 8.º da CRP) e não se encontra inquinada ou confrontada sequer com outros princípios constitucionais da CRP, nomeadamente com os referidos no acórdão recorrido, que nada tem a ver, de resto, com a questão dos autos.
4.º Terá, pois, de considerar-se (materialmente) inconstitucional a aludida norma, por ofensa do prescrito naquele protocolo e violação do n.º 2 do citado artigo 8.º da CRP.
5.º Consequentemente, terá de ser dado provimento ao recurso, declarando-se aquela inconstitucionalidade, com as demais consequências legais."
Também o Ministério Público apresentou alegações que conclui do seguinte modo:
"O artigo 24.º do RJIFNA não viola o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual (direito à liberdade e à segurança, do artigo 27.º, n.º 1, da Constituição)."
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos. - 3 - A questão que vem suscitada nos autos reporta-se ao entendimento dos recorrentes que consideram a norma do artigo 24.º do RJIFNA inconstitucional se nela se contiver a previsão de que meros devedores fiscais podem ser sancionados criminalmente, o que implicaria prisão por dívidas, em violação do preceituado no artigo 1.º do Protocolo 4, adicional à CEDH.
É o seguinte o teor da norma em questão:
"Artigo 24 .º
Abuso de confiança fiscal
1 - Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Se no caso previsto nos números anteriores a entrega não efectuada for inferior a 250 000$00, o agente será punido com multa até 120 dias.
5 - Se nos casos previstos nos números anteriores a entrega não efectuada for superior a 5 000 000$00, o crime será punido com prisão de um até cinco anos.
6 - Para instauração do procedimento criminal pelos factos previstos nos números anteriores é necessário que tenham decorrido 90 dias sobre o termo do prazo legal da entrega da prestação."
Os devedores de rendimentos de trabalho dependente e os devedores de rendimentos de trabalho independente quando disponham ou devam dispor de contabilidade organizada ou de rendimentos de capitais ou de rendimentos prediais são obrigados a deduzir o imposto segundo as percentagens legais, colocando os quantitativos assim deduzidos ao dispor do credor tributário - o fisco - em prazos prefixados.
No caso do IVA, o apuramento do imposto devido é feito pela dedução do imposto suportado nas aquisições ao imposto liquidado nas transmissões que efectuam, devendo entregar nos cofres do Estado a diferença apurada.
De acordo com a norma do artigo 24.º do RJIFNA, são elementos constitutivos do crime de abuso de confiança fiscal a apropriação de prestação tributária, total ou parcial, pelo responsável pela entrega dos rendimentos tributários deduzidos e a não entrega do respectivo montante ao credor tributário, considerando-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de liquidar, nos casos em que a lei o preveja. Não estando expressamente prevista a punição por negligência, os factos integradores do crime só podem ser punidos se praticados com dolo (artigo 13.º do Código Penal); se não se provar o dolo mas apenas a negligência pode praticar-se a contra-ordenação do artigo 29.º, n.º 2, do RJIFNA.
Pelo seu lado, o crime de abuso de confiança no Código Penal (CP) - artigos 205.º a 207.º - é um crime contra o património, cuja consumação ocorre com a apropriação ilegítima de coisa móvel alheia entregue por título não translativo de propriedade.
Segundo o entendimento defendido pelos recorrentes, a norma do artigo 24.º do RJIFNA, se interpretada como abrangendo a obrigação de pagamento de dívidas por impostos ao fisco, violaria o disposto no artigo 1.º do Protocolo 4, adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), enquanto estabelece que ninguém pode ser privado da sua liberdade por não poder cumprir uma obrigação ou pagar uma dívida.
Será assim?
4 - O artigo 1.º do Protocolo 4, adicional à CEDH, estabelece o seguinte: "ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual".
Dos trabalhos preparatórios do referido protocolo resulta que o que se proíbe no artigo 1.º é a "prisão por dívidas", porque uma tal situação é contrária à noção de liberdade e de dignidade humanas. Com efeito, privar um indivíduo da liberdade só porque ele não dispõe de meios materiais de cumprir as suas obrigações contratuais contende com o respeito pela dignidade da pessoa humana.
Porém, como se escreveu no Acórdão 663/98 (Diário da República, 2.ª série, de 15 de Janeiro de 1999), que aqui se acompanha de perto, "a privação da liberdade não é proibida se outros factos se vêm juntar à incapacidade de cumprir uma obrigação contratual".
Nestes casos e no caso de a impossibilidade de cumprir não ser devida a negligência, o direito penal pode prever tipos de crimes puníveis com prisão.
Contudo, aceite a existência de uma norma ou princípio que proíba a prisão pela simples razão da incapacidade de pagar uma dívida contratual, tal implica a proibição da existência de uma lei penal que, apenas com esse pressuposto, determine a prisão do devedor.
De facto, a tutela das obrigações contratuais do cidadão faz-se através das adequadas sanções no âmbito do direito privado. Na verdade, uma eventual prisão por dívidas viola os princípios da necessidade das restrições dos direitos fundamentais, designadamente da pena (artigo 18.º, n.º 2) e da culpa (decorrente da dignidade da pessoa humana).
Mas, sempre que há violação de bens ou valores que, na perspectiva da culpa, mereçam uma especial reprovação, provocando mesmo justificado alarme social, então a prevenção de tais infracções exige o recurso às sanções penais. A tutela penal, no âmbito de um Estado de direito material, de natureza social e democrático, deve intervir com os instrumentos próprios da sua actuação apenas quando se verifiquem lesões insuportáveis ou intoleráveis da vida em comunidade, por forma a não se permitir o livre desenvolvimento da pessoa.
Tem, pois, de considerar-se que a proibição de "prisão por dívidas" é princípio decorrente da Constituição da República Portuguesa (cf. o Acórdão 440/87, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 10, 1987, p. 521), sendo, porém, certo que entre nós sempre se entendeu que o princípio só se aplicava aos "devedores de boa fé", dele se excluindo os casos de provocação dolosa de incumprimento (cf. o Acórdão 663/98, já citado).
Por outro lado, as razões aduzidas para a proibição da "prisão por dívidas" não se aplicam quando a obrigação não deriva de contrato mas da lei (v., neste sentido e desenvolvidamente, o citado Acórdão 663/98).
5 - No caso em apreço nos presentes autos, deve entender-se que a norma penal incriminadora do crime de abuso de confiança fiscal não viola o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, princípio implicado no direito à liberdade e segurança (artigo 27.º, n.º 1, da Constituição).
Antes de mais, importa analisar os valores e os bens jurídicos em causa na criminalização das infracções fiscais.
O entendimento tradicional do nosso direito penal é o de que só certas formas de ofensas aos bens jurídicos tutelados que se revestem de particular gravidade, pelo alarme social que a sua prática justificadamente causa, necessitam da intervenção do direito penal, assim realizando o princípio constitucional da necessidade da pena.
No caso das infracções fiscais, a publicação em 1988 e 1989 dos regimes jurídicos do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), da contribuição autárquica (CA) e do estatuto dos benefícios fiscais induziu a reforma do tratamento normativo das infracções fiscais não aduaneiras, tendo o Governo pedido e obtido autorização da Assembleia da República para legislar em tal matéria, relativamente a todos os impostos, contribuições parafiscais e demais prestações tributárias e, bem assim, quanto aos benefícios fiscais.
A autorização concedida permitia ao Governo, em matéria penal, adaptar os princípios gerais, os pressupostos da punição, as formas do crime e as causas de suspensão do procedimento e da extinção da responsabilidade criminal, podendo tipificar novos ilícitos penais e definir novas penas, tomando como referência o Código Penal, mas podendo alargar ou restringir a respectiva dosimetria. Define-se, em seguida, o sentido da autorização através da definição dos tipos de ilícito e dos respectivos elementos do tipo, bem como dos valores máximos e mínimos das penas e coimas. Seguidamente, prevê-se na lei de autorização legislativa a adequação do processo penal aos novos tipos de ilícito (penal e contra-ordenacional) criados.
A Lei 89/89, de 11 de Setembro, de autorização, veio a dar origem ao Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, posteriormente alterado, na parte agora em causa, pelo Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, aprovado na sequência da Lei 61/93, de 20 de Agosto.
Este tratamento sistemático da punição das infracções fiscais não aduaneiras mostra bem o relevo que o legislador pretendeu atribuir à defesa dos interesses subjacentes a tal normação e cuja violação a mesma pretende evitar - os interesses da Fazenda Nacional.
Num Estado de direito, social e democrático, a assunção pelo Estado da realização do bem estar social, através da concretização de uma democracia económica, social e cultural, com respeito pelos direitos e liberdade fundamentais, legitima-se pela necessidade de garantir a todos uma existência em condições de dignidade.
A realização destas exigências não só confere ao imposto um carácter de meio privilegiado ao dispor de um Estado de direito para assegurar as necessárias prestações sociais como também alarga o âmbito do que é digno de tutela penal. A este respeito escreve Roxin: "A garantia das prestações necessária à existência (daseinsnotwendiger Leistungen) constitui tarefa tão legítima do direito penal como a tutela de bens jurídicos." (Sinn und Grenzen staatlicher Strafe, Juristishe Schulung, 1966, p. 381, citado por Jorge Figueiredo Dias e Manuel Costa Andrade, in O crime de fraude fiscal no novo direito penal tributário português, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6.º, 1.º, p. 76.)
De facto, um Estado, para poder cumprir as tarefas que lhe incumbem, tem de recorrer a meios que só pode exigir dos seus cidadãos. Esses meios ou instrumentos de realização das suas finalidades são os impostos, cuja cobrança é condição da posterior satisfação das prestações sociais. Compreende-se, assim, que o dever de pagar impostos seja um dever fundamental (cf. Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar impostos, Livraria Almedina, 1998, pp. 186 e segs.) e que a violação deste dever, essencial para a realização dos fins do Estado, possa ser assegurado através da cominação de sanções criminais.
No caso em apreço, a obrigação em causa não é meramente contratual, mas antes deriva da lei - que estabelece a obrigação de pagamento dos impostos em questão. Por outro lado, nestas situações, o devedor tributário encontra-se instituído em posição que poderemos aproximar da do fiel depositário. Na verdade, no IVA e no imposto sobre os rendimentos singulares (IRS), os respectivos valores são deduzidos nos termos legais, devendo depois o respectivo montante ser entregue ao credor tributário, que é o Estado.
Perante a norma em questão, há, assim, que levar em conta este aspecto peculiar da posição dos responsáveis tributários, que não comporta uma pura obrigação contratual, porque decorre da lei fiscal.
Finalmente, relevar-se-á que a impossibilidade do cumprimento não é elemento do crime de abuso de confiança fiscal; a não entrega atempada da prestação torna possível a instauração do procedimento criminal, nos termos do n.º 5 do artigo 24.º, mas o que importa para a punibilidade do comportamento, como se referiu, é a apropriação dolosa da referida prestação.
Tem assim de se concluir que a norma constante do artigo 24.º do RJIFNA não viola o princípio de que ninguém pode ser privado da sua liberdade pela única razão de não poder cumprir uma obrigação contratual, implicado pelo direito à liberdade e segurança, consagrado no artigo 27.º, n.º 1, da Constituição, em consonância com o previsto no artigo 1.º do Protocolo 4, adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
III - Decisão. - Pelo exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido na parte impugnada.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta para cada recorrente.
Lisboa, 20 de Junho de 2000. - Vítor Nunes de Almeida (relator) - Artur Maurício - Luís Nunes de Almeida - Maria Helena Brito - José Manuel Cardoso da Costa.