Acórdão 672/99/T. Const. - Processo 657/95. - Acordam no Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - O Provedor de Justiça veio requerer, ao abrigo do preceituado no artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 7.º, n.os 1 a 4, do Decreto-Lei 223/85, de 4 de Julho - diploma que, no seguimento e de acordo com o previsto na Lei 30/84, de 5 de Setembro (Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa), regulamenta aspectos comuns da actividade dos serviços integrados nesse Sistema de Informações, bem como as regras de funcionamento do Conselho Superior de Informações e da Comissão Técnica que o integra.
Tais preceitos dispõem como segue:
"1 - Sem prévia autorização do Primeiro-Ministro, nenhum funcionário ou agente dos serviços de informações pode ser chamado a depor ou a prestar declarações perante autoridades judiciais sobre factos de que tenha tomado conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas.
2 - Mesmo nos casos em que a autorização referida no número anterior tenha sido concedida, o funcionário ou agente não pode revelar factos abrangidos pelo segredo de Estado e, no tocante aos factos sobre os quais possa depor, não deve revelar as fontes de informação nem deve ser inquirido sobre as mesmas, bem como sobre o resultado de análises ou sobre elementos contidos nos centros de dados ou nos arquivos.
3 - Se a autoridade judicial considerar injustificada a recusa do funcionário ou agente em depor ou prestar declarações adoptada nos termos do número anterior, comunicará os factos ao Primeiro-Ministro, que confirmará ou não tal recusa.
4 - A violação, pelo funcionário ou agente, do dever previsto no n.º 2 constitui falta disciplinar grave, punível com sanção que pode ir até à pena de demissão ou outra medida que implique a imediata cessação de funções do infractor, sem prejuízo do disposto nos artigos 28.º e 30.º da Lei 30/84, de 5 de Setembro."
2 - O Provedor de Justiça impugna a constitucionalidade das normas transcritas, com base em violação das normas dos artigos 32.º, n.º 1, alínea a), e 168.º, n.º 1, alíneas b), c) e q), da Constituição da República [na versão anterior à quarta revisão constitucional].
Para fundamentar o pedido, o Provedor de Justiça considerou, em síntese:
A norma do n.º 1 do artigo 7.º, salvo na parte em que salvaguarda o segredo de Estado, viola o princípio das garantias de defesa do arguido em processo penal (artigo 32.º, n.º 1, da CR), visto que a sua aplicação pode conduzir a que, num qualquer processo criminal, a defesa do arguido não possa ser levada a cabo de forma completa, caso ele próprio ou alguma das testemunhas sejam funcionários ou agentes dos serviços de segurança. E, sendo inconstitucional o n.º 1, são também inconstitucionais, por via de consequência, os n.os 2, 3 e 4 do mesmo artigo 7.º, na mesma extensão (isto é, excepto no tocante à protecção do segredo de Estado);
As normas impugnadas, salvo na parte em que salvaguardam o segredo de Estado, violam a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da CR], visto que devem ser consideradas normas de processo criminal;
As normas impugnadas, em todo o seu alcance e extensão, violam ainda a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigo 168.º, n.º 1, alíneas b) e q), da CR], visto que, por um lado, versam matéria de direitos, liberdades e garantias e, por outro, dispõem em matéria da competência dos tribunais.
3 - Notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro, depois de afirmar que o Decreto-Lei 223/85 havia sido expressamente revogado pelo artigo 3.º da Lei 4/95, de 21 de Fevereiro, concluiu que o Tribunal não deveria tomar conhecimento do pedido em virtude da "falta de um interesse real e actual na declaração de inconstitucionalidade das normas objecto do requerimento apresentado por S. Ex.ª o Provedor de Justiça".
II - Fundamentos. - 4 - O Tribunal Constitucional já apreciou, em fiscalização concreta, a questão da constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei 223/85: fê-lo no Acórdão 278/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22.º vol.), tendo então concluído no sentido da inconstitucionalidade orgânica desse preceito. O processo em que o correspondente recurso foi interposto para este Tribunal respeitava ao conhecido "caso GAL".
5 - Da inutilidade ou falta do interesse processual do pedido, em geral.
5.1 - O Primeiro-Ministro, como se disse, suscita a questão do não conhecimento do pedido por falta de "interesse real e actual" da declaração de inconstitucionalidade das normas que são dele objecto - falta de interesse esse decorrente da sua revogação. Efectivamente, o diploma onde se integram as normas sub judice - o Decreto-Lei 223/85 - foi expressamente revogado pelo artigo 3.º da Lei 4/95, de 21 de Fevereiro (Lei Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa).
Uma simples conferência de datas permite concluir que tal diploma já se encontrava revogado à data do pedido. Com efeito, a revogação do diploma em apreciação ocorreu em 21 de Fevereiro de 1995, enquanto o presente pedido deu entrada neste Tribunal em 14 de Novembro de 1995. Daí que, a concluir-se efectivamente pela inutilidade do seu conhecimento, a qualificação processual da situação suscitará desde logo a questão de saber se não existirá falta de interesse processual na apresentação do pedido.
5.2 - Entretanto, a mesma Lei 4/95 estabeleceu, ela própria, um novo e diferente regime para a matéria versada nas normas sub judicio, através da nova redacção que deu ao artigo 33.º da Lei 30/84, a qual passou a ser a seguinte:
"Prestação de depoimento ou de declarações
1 - Nenhum funcionário ou agente dos serviços de informação chamado a depor ou a prestar declarações perante autoridades judiciais pode revelar factos abrangidos pelo segredo de Estado e, no tocante aos factos sobre os quais possa depor ou prestar declarações, não deve revelar as fontes de informação nem deve ser inquirido sobre as mesmas, bem como sobre o resultado de análises ou sobre elementos contidos nos centros de dados ou nos arquivos.
2 - Se a autoridade judicial considerar injustificada a recusa do funcionário ou agente em depor ou prestar declarações adoptada nos termos do número anterior, comunicará os factos ao Primeiro-Ministro, que confirmará ou não tal recusa.
3 - A violação pelo funcionário ou agente do dever previsto no n.º 1 constitui falta disciplinar grave, punível com sanção que pode ir até à pena de demissão ou outra medida que implique a imediata cessação de funções do infractor, sem prejuízo do disposto nos artigos 28.º e 30.º"
5.3 - De harmonia com reiterada jurisprudência do Tribunal, a circunstância de a norma sub judice se encontrar revogada não é suficiente, por si só, para deixar de conhecer do pedido de fiscalização sucessiva de constitucionalidade e, nomeadamente, para se concluir pela inutilidade do pedido (cf., desde logo, o Acórdão 17/83, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1.º vol., pp. 93 e segs.).
Esta doutrina, porém, tem sido basicamente afirmada e aplicada em casos de revogação da norma, subsequente à apresentação do pedido - o que não é o caso agora.
Não deverá, pois, deixar de começar por perguntar-se se tal doutrina mantém validade - e, portanto, haverá igualmente de acolher-se - quanto a normas já revogadas à data da apresentação de pedido.
O problema - já se vê - é o de saber se não deveria considerar-se excluída, por princípio, a faculdade de requerer a fiscalização abstracta da constitucionalidade de normas já revogadas; ou, ao menos, se, em tal caso, o correspondente requerimento não deverá obedecer a acrescidas exigências.
Ora, não será possivelmente de excluir que, neste outro tipo de situação, ocorram tópicos ou circunstâncias argumentativas que levem, na verdade, a considerá-la em termos diferentes dos da hipótese de revogação superveniente.
Em todo o caso - tendo em conta o princípio do artigo 282.º, n.º 1, da Constituição, e mesmo a excepção do n.º 3 do mesmo artigo, quanto aos efeitos da declaração da inconstitucionalidade -, poderá admitir-se que, na sua formulação mais radical, a pergunta antes enunciada deva receber uma resposta negativa. Mas já não será de exigir aos requerentes, ao menos, que aleguem razões demonstrativas do interesse e utilidade da apreciação da norma revogada?
Com efeito, poderia desde logo sustentar-se - e há, decerto, quem sustente - que, tratando-se de uma norma já revogada e que, por isso, já não há que eliminar do ordenamento jurídico, o requerente da declaração de inconstitucionalidade tem o ónus de "alegar" factos donde decorra a necessidade de tal declaração de inconstitucionalidade com vista a eliminar os efeitos produzidos durante o período da sua vigência. De fora ficariam as hipóteses em que é manifesta a necessidade de uma tal declaração de inconstitucionalidade: basta pensar na existência de numerosos processos tendo por objecto a questão da constitucionalidade dessa norma.
Numa tal impostação da questão vai, sem dúvida, implícita a ideia de que todo o processo judicial há-de assentar num interesse processual real.
Mas, ainda que se entenda que sobre o requerente não impende um tal ónus, a verdade é que, no caso, não se conhecem, nem o requerente os indicou, quaisquer factos ou situações donde decorra a necessidade da declaração de inconstitucionalidade que vem pedida.
Assim, para quem defenda um tal entendimento, face a tal circunstancialismo, a conclusão a tirar não poderá deixar de ser a do não conhecimento do pedido formulado pelo Provedor de Justiça.
5.4 - Admitindo, por hipótese, que a doutrina estabelecida pelo Tribunal, em matéria de fiscalização abstracta de normas revogadas, deverá ter-se por aplicável, sem quaisquer modificações, em situações como a sub judicio, o certo é que mesmo assim deverá concluir-se pelo não conhecimento do pedido.
Com efeito, importa lembrar que - de harmonia com jurisprudência também conhecida do Tribunal - não basta que a norma já revogada haja produzido um qualquer efeito para que tenha de entrar-se na apreciação do pedido da sua declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (neste sentido, cf., entre outros, o Acórdão 116/97, Diário da República, 2.ª série, de 21 de Março de 1997). Para tanto é necessário que tal apreciação se revista de um interesse jurídico relevante.
Como se escreveu, a este propósito, no Acórdão 238/88 (Diário da República, 2.ª série, de 21 de Dezembro de 1988): "há-de [...] tratar-se de um interesse com conteúdo prático apreciável, pois, sendo razoável que se observe aqui um princípio de adequação e proporcionalidade, 'seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta, como é a declaração de inconstitucionalidade' [...] para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes ou que possam facilmente ser removidos de outro modo". "Por conseguinte, estando em causa normas revogadas, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, só deverá ter lugar - ao menos em princípio quando for evidente a sua indispensabilidade" - afirmou-se ainda nesse acórdão (no mesmo sentido, cf., por exemplo, o Acórdão 465/91, Diário da República, 2.ª série, de 2 de Abril de 1992).
Ora, não existe um interesse jurídico relevante - um interesse prático apreciável - no conhecimento do pedido quando os meios individuais e concretos de defesa postos à disposição dos interessados são suficientes para acautelar os seus direitos ou interesses, impedindo a aplicação da norma inconstitucional (ou ilegal): assim, nos casos versados nos Acórdãos n.os 308/93, 397/93, 188/94, 580/95 e 117/97 (Diário da República, 2.ª série, de 22 de Julho de 1993, 14 de Setembro de 1993, 19 de Maio de 1994, 30 de Dezembro de 1995 e 26 de Março de 1997, respectivamente).
5.5 - De facto, à parte o processo do chamado "caso GAL" - em que este Tribunal veio a proferir, como se referiu já, o Acórdão 278/92: v. supra, II, n.º 4 -, não existe notícia de que a norma do artigo 7.º haja sido alguma vez aplicada. Ora, os processos judiciais em que poderia ocorrer a sua aplicação (isto é, os processos em que são chamados a depor ou a prestar declarações funcionários dos serviços de informações) terão geralmente uma grande projecção pública. Por isso, não existindo dados nesse sentido, pode legitimamente duvidar-se de que a norma do artigo 7.º haja sido efectivamente aplicada, para além do caso referido.
Mas, se o foi, e se a sua aplicação se consolidou - seja porque foi pedida e obtida autorização do Primeiro-Ministro para a prestação de depoimento ou declarações, seja porque, não tendo sido dada essa autorização, o interessado (entidade policial ou judiciária, arguido, assistente) prescindiu, sem reagir, do declarante ou da testemunha - não se vê que efeito sobre tal situação poderia vir a ter agora uma eventual declaração da inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 7.º em apreço.
Porém, na hipótese remota de ainda se encontrar em aberto em algum processo a questão da aplicação dessa norma, os interessados sempre disporão do meio da fiscalização concreta, isto é, do recurso de constitucionalidade, para impugnarem e impedirem essa aplicação - tal como justamente sucedeu no âmbito do processo que deu lugar ao citado Acórdão 278/92.
Assim - mesmo considerando essa hipótese remota de a questão estar em aberto nalgum processo -, sempre deverá concluir-se pela inutilidade do conhecimento do pedido, na esteira do que o Tribunal deixou afirmado no Acórdão 397/93: "[...] sempre seria excessivo ou desproporcionado continuar o presente processo até à eventual declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, apenas para contemplar os litígios em que as normas revogadas tivessem sido aplicadas ou objecto de recurso de aplicação por decisão judicial. Para tais situações, basta que se aguarde pelos respectivos recursos de constitucionalidade, de forma a vir a ser proferida decisão pelo Tribunal Constitucional, não sendo, para tal, indispensável a prossecução do processo de fiscalização abstracta, mais complexo, por não se mostrar que tal seja aconselhado por quaisquer 'valores jurídico-constitucionais relevantes' (formulação retirada do já citado Acórdão 238/88)". Ou, como se disse no Acórdão 453/95:
"[...] nestes termos, para o caso - equacionável para a hipótese remota - de se encontrarem ainda em aberto situações de efectiva lesão de direitos e interesses legítimos de médicos abrangidos pela aplicação das normas questionadas nos presentes autos, essas situações sempre poderão ser, através dos referidos meios jurisdicionais concretos de protecção dos administrados, com suscitação da questão de constitucionalidade, objecto de ponderação caso por caso, na exacta medida das lesões sofridas, devendo considerar-se que, no caso em apreço, tais meios são suficientes para a tutela de tais situações". E acrescentou-se: "[...] estando assegurada a possibilidade de recurso ao sistema de fiscalização concreta para obviar a casos pontuais, não pode deixar de se concluir que não se vislumbra qualquer interesse jurídico relevante para justificar que se tome conhecimento dos pedidos de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, que vêm formulados".
III - Decisão. - Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido formulado.
Lisboa, 15 de Dezembro de 1999. - Vítor Nunes de Almeida (relator) - José de Sousa e Brito - Paulo Mota Pinto - Alberto Tavares da Costa - Bravo Serra - Maria dos Prazeres Beleza - Maria Helena Brito - Messias Bento - Maria Fernanda Palma - Artur Maurício (com a declaração de que o pedido de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade quando a norma ou normas em causa não vigorem já à data daquela pretensão, carece de objecto - não se trata, pois, de uma questão de inutilidade com reporte aos efeitos de uma eventual declaração de inconstitucionalidade -, razão, para mim, suficiente para in casu se não conhecer do pedido) - Guilherme da Fonseca (acompanhando a declaração do Exmo. Conselheiro Artur Maurício) - Luís Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa.