Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Nos presentes autos em que é recorrente Luís Alberto Vargas Vera e recorrido o Ministério Público, o primeiro vem interpor recurso para este Tribunal do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, invocando a inconstitucionalidade de diversas interpretações normativas, a saber:
i) A resultante do n.º 1 do artigo 187.º do CPP [na redacção anterior à Lei 48/2007], quando interpretada no sentido de que "fossem ordenadas escutas telefónicas através de despachos que não obedecem aos requisitos de fundamentação e consequentemente também não justificada a indispensabilidade e proporcionalidade daquele meio a autorizar" (fls. 416);
ii) A resultante dos n.º s 1 e 3 do artigo 188.º do CPP [na redacção anterior à Lei 48/2007], quando interpretada no sentido de "permitir [que] o Jic tenha conhecimento das interpretações passados mais de 4 meses sobre o início das mesmas (fls. 1417), a fim de poder este decidir sobre a junção daquelas aos autos e ordenar a sua transcrição" (fls. 417);
iii) A resultante dos n.º s 1 e 3 do artigo 188.º do CPP [na redacção anterior à Lei 48/2007], quando interpretada no sentido de "também ordenar novos períodos de escuta e respectiva continuação, sem que o juiz primeiro tome conhecimento das gravações anteriores para decidir da continuação ou não de novos períodos" (fls. 417);
iv) A resultante dos n.º s 3 e 4 do artigo 188.º do CPP, este último conjugado com as normas contidas nos n.º s 2 e 3 do artigo 101.º do CPP [na redacção anterior à Lei 48/2007], quando interpretada no sentido de "não impor que a selecção do material recolhido na intercepção e gravação das comunicações telefónicas, com ordem de transcrição dos elementos considerados relevantes seja efectuada e determinada imediatamente após a correspondente audição, mas possa sê-lo posteriormente (a ordem de transcrição), designadamente passados 40 ou mais dias, após, tal audição ter tido lugar" (fls. 418);
v) A resultante dos n.º s 3 e 4 do artigo 188.º do CPP, este último conjugado com as normas contidas nos n.º s 2 e 3 do artigo 101.º do CPP [na redacção anterior à Lei 48/2007], quando interpretada no sentido de "toda a iniciativa e verificação do interesse da matéria interceptada ficou a cargo exclusivo dos elementos da Polícia Judiciária, a qual não foi de imediato apresentada ao M. Juiz, estando no desconhecimento deste por vezes mais de 30 dias, nem a sua transcrição no mais curto espaço de tempo, foi feita" (fls. 418);
vi) A resultante dos n.º s 3 e 4 do artigo 188.º do CPP, este último conjugado com as normas contidas nos n.º s 2 e 3 do artigo 101.º do CPP [na redacção anterior à Lei 48/2007], quando interpretada no sentido de "autorizar novos períodos de escuta sem que a autorização de prorrogação seja precedida de conhecimento judicial do resultado das escutas anteriores, entende-se que as escutas realizadas aos postos móveis são nulas e consequentemente nulo o valor das provas obtidas mediante o recurso às mesmas, por violação dos preceitos constitucionais" (fls. 418);
vii) A resultante dos n.º s 1 e 2 do artigo 13.º do CPP [na redacção anterior à Lei 48/2007], conjugado com o artigo 51.º do Decreto-Lei 15/93, quando interpretadas no sentido de "que o tribunal de Júri é competente para julgar criminalidade altamente organizada tal como é definida no artigo 1.º-2 do C.P.P." (fls. 418 e 419).
2 - A Relatora ordenou a notificação dos recorrentes para produzirem alegações junto deste Tribunal, nos termos do artigo 79.º, n.º s 1 e 2, da LTC, relativamente à questão de inconstitucionalidade da interpretação normativa dada aos n.º s 1 e 2 do artigo 13.º do CPP [na redacção anterior à Lei 48/2007], conjugado com o artigo 51.º do Decreto-Lei 15/93, tendo ainda convidado o recorrente para:
"2. Se pronunciar, no prazo de 10 (dez) dias, quanto à possibilidade de não conhecimento parcial do objecto do recurso, no que diz respeito às interpretações normativas do artigo 187.º, n.º 1 (conjugado com o 97.º, n.º 4) e do artigo 188.º, n.º s 1 a 4, todos do CPP, pois afigura-se existirem razões para tal, visto que as interpretações normativas reputadas de inconstitucionais pelo recorrente aparentam não ter sido efectivamente aplicadas pela decisão recorrida, conforme imposto pelo artigo 79.º-C da LTC." (fls. 427)
3 - Notificado deste despacho, o recorrente limitou-se a dar entrada nos autos às alegações de recurso, optando por não se pronunciar sobre a possibilidade de não conhecimento parcial do objecto de recurso. Das alegações constam as seguintes conclusões:
«1.ª O artigo 207º n.º 1 da CRP exclui a intervenção do Tribunal de Júri no julgamento de crimes de terrorismo e criminalidade violenta ou altamente organizada.
2.ª De acordo com as regras de competência material e funcional previstas no artigo 11º e ss do CPP, conjugadas com a previsão do artigo 51º do D.L. 15/93, equiparam-se aos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, as condutas que integram os crimes previstos nos artigo 21 a 24 e 28 do D.L.15/93.
3.ª Caso existisse qualquer dúvida quanto à Lei Constitucional afastar através do seu artigo 207º a competência material e funcional do Tribunal de Júri, no que tange aos crimes previstos nos artigos 21º, 24º e 28º do D.L. 15/93, a actual redacção do artigo 1º do C.P.P., lei adjectiva, veio definir na sua al. m) criminalidade altamente organizada", como as condutas que integrarem crimes de associação criminosa, - . tráfico de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas...
4.ª Caso o artigo 51.º do D. L. 15/93 não concretizasse que as condutas enquadradas nas previsões dos artigos 21º e 28º do aludido diploma não integrassem a definição de criminalidade altamente organizada sempre teríamos actualmente a nova redacção dada ao artigo 1º do C.P.P. na sua ai. m) ao definir aquele tipo de criminalidade.
5.ª Pelo que quer o Tribunal da 1.ª Instância, quer o Tribunal da Relação ao entenderem que é competente para julgar os crimes pelo que o arguido vem pronunciado, o Tribunal de Júri, fizeram errada interpretação e aplicação das normas contidas no artigo 13º n.º 2, conjugado com as normas contidas no artigo 51º do D.L. 15/93 e artigo 1º nº2 e actual alínea m) do artigo lº do C.P.P.
6.ª Em suma é inconstitucional por violação do preceituado nos artigo 204º e 207 da C.R.P. a interpretação dada ao nº 2 do artigo 13º do C.P., conjugado com as normas constantes do artigo 51º do D.L. 15/93, ao permitir que os crimes previstos no artigo 21º, 24º e 28º do D.L. 15/93 e a que faz alusão o artigo 51º do D.L. 15/93, possam ser julgados pelo Tribunal de Júri.»
4 - Por sua vez, o Ministério Público apresentou as seguintes conclusões nas contra-alegações:
«1. Pela Lei Constitucional 1/97, o legislador constituinte alterou as competências do Tribunal de Júri, excluindo - dessas competências - os casos (crimes) de terrorismo e os de criminalidade altamente organizada, pela (nova) redacção ao (actual) artigo 207º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
2 - Os crimes previstos nos artigos 22º a 28º do Decreto-Lei 15/93 são equiparados, por força deste mesmo diploma (ex vi artigo 51º), aos crimes de terrorismo ou de criminalidade altamente organizada, para os "efeitos do Código de Processo Penal", efeitos estes que incluem "a fase de julgamento".
3 - Assim, a interpretação da norma do artigo 13º do Código de Processo Penal, no sentido de que o Tribunal de Júri é competente para julgar os crimes supra referidos viola o disposto no artigo 207º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, e é por isso, inconstitucional.»
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
A) Não conhecimento parcial do objecto do recurso
5 - Antes de avançar, deve afirmar-se que é impossível conhecer do objecto do recurso, no que diz respeito às questões relacionadas com a interpretação de normas processuais penais relativas ao regime de escutas telefónicas (a saber: artigos 187.º, n.º 1, conjugado com o 97.º, n.º 4, e do artigo 188.º, n.º s 1 a 4, todos do CPP), na medida em que as diversas interpretações normativas invocadas pelo recorrente não foram alvo de aplicação efectiva por parte da decisão recorrida. Note-se, aliás, que, notificado para se pronunciar sobre a eventualidade de não conhecimento do objecto do recurso quanto a esta parte, o recorrente nem sequer esboçou uma demonstração de que aquelas interpretações normativas tivessem sido efectivamente aplicadas pela decisão recorrida, optando, antes, por apresentar alegações quanto à alegada inconstitucionalidade da interpretação normativa dos n.º s 1 e 2 do artigo 13.º do CPP [na redacção anterior à Lei 48/2007], conjugado com o artigo 51.º do Decreto-Lei 15/93, quando interpretadas no sentido de "que o tribunal de Júri é competente para julgar criminalidade altamente organizada tal como é definida no artigo 1.º-2 do C.P.P." (fls. 418 e 419).
Assim, resta aferir da alegada inconstitucionalidade da norma extraída dos n.os 1 e 2 do artigo 13.º do CPP [na redacção anterior à Lei 48/2007], conjugado com o artigo 51.º do Decreto-Lei 15/93, quando interpretada no sentido de que o tribunal de Júri é competente para julgar o crime de tráfico de estupefacientes enquanto criminalidade altamente organizada, tal como é definida no artigo 1.º-2 do C.P.P. (fls. 418 e 419).
B) A questão de constitucionalidade do n.º s 1 e 2 do artigo 13.º do CPP [na redacção anterior à Lei 48/2007], conjugado com o artigo 51.º do Decreto-Lei 15/93
6 - Através da Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro, o legislador constituinte aditou ao actual artigo 207.º da Lei Fundamental a referência aos crimes "de criminalidade altamente organizada", vedando expressamente a constituição de tribunais de júri quanto a tais crimes.
Conforme notado por Alexandre Sousa Pinheiro e Mário João Fernandes (in "Comentário à IV Revisão Constitucional", Lisboa, 1999, p. 465):
"À excepção do crime de terrorismo foi aditada a da «criminalidade altamente organizada». A CRP não fornece elementos quanto a uma definição constitucional deste tipo de criminalidade, porém, pensamos que o critério da sua determinação deve atender ao tipo de crime, e não ao grau de organização dos criminosos. Um caso típico que pode ser encontrado na lei é o das associações no âmbito do tráfico de estupefacientes (artigo 28.º do Decreto-Lei 15/83, de 22 de Janeiro)."
Com efeito, através desta relevante alteração, o legislador constituinte pretendeu garantir que a especial garantia de imparcialidade do tribunal penal que julga crimes de terrorismo fosse estendida a crimes não expressamente tipificados pelo actual artigo 207.º da Constituição como de "criminalidade altamente organizada". Com esta limitação, visa-se garantir a imparcialidade e independência dos jurados não magistrados, evitando que aqueles possam vir a ser pressionados pelos titulares dos interesses que sustentam aquele tipo de criminalidade altamente organizada, designadamente, mediante ameaças à sua vida e integridade física. No mesmo sentido se pronunciaram, mais recentemente, Jorge Miranda e Rui Medeiros (in "Constituição Portuguesa Anotada", Coimbra, 2007, pp. 94 e 95):
"A Constituição determina casos em que a constituição ou mera previsão legal do tribunal de júri está excluída. São os casos de terrorismo ou de criminalidade «altamente organizada». A razão de ser desta exclusão, constitucionalmente imposta, deriva de uma presunção inilidível - à luz da Constituição - de que os juízos leigos não têm, nestes casos, a capacidade para administrar a Justiça, face ao grau de ameaça ou de intimidação que o julgamento de tais casos poderia comportar. Sendo estas razões fundadas, os conceitos restritivos, a que a norma apela, suscitam algumas dificuldades, nomeadamente, no caso de «criminalidade altamente organizada». Com efeito, esta exclusão pressupõe que se determine exactamente o que seja «criminalidade altamente organizada», tal qual estava subjacente à «mente» do legislador constituinte (ou seja, de acordo com o conceito do Código de Processo Penal, entretanto «redefinido» pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, que revê o CPP."
Estando, pois, assente que o artigo 207.º da Constituição impede a previsão legal e a constituição efectiva de tribunais de júri para efeitos de julgamento de crimes "altamente organizados", importa, porém, determinar quais os crimes que, à luz da Constituição, se revestem dessa mesma qualidade.
7 - Bem entendido, a mera circunstância de a recente Lei 48/2007, de 29 de Agosto, ter procedido a uma definição legal de "criminalidade altamente organizada", através do aditamento da alínea m) do artigo 1.º do CPP, não se afigura apta a evidenciar o critério preconizado pelo legislador constitucional. Ainda que a referida alínea m) do artigo 1.º do CPP qualifique os crimes de "tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas" como tal, essa opção legislativa ordinária não é bastante para concluir pela inclusão daqueles crimes no conceito jus-constitucional de "criminalidade altamente organizada". Fazer o contrário seria interpretar a Lei Fundamental à luz da lei ordinária, ao invés daquilo que impõe a Ideia de Garantia da Constituição, enquanto parâmetro de validade das demais normas.
Vejamos, então, enquanto mero instrumento auxiliar interpretativo, os trabalhos preparatórios das sucessivas revisões constitucionais que delimitaram o conceito de "criminalidade altamente organizada".
No âmbito da Comissão Eventual de Revisão Constitucional [CERC] de 1997, foi proposta a revisão do actual artigo 207.º da Constituição, mediante proposta de Deputados do Partido Social Democrata [PSD], que foi alvo de adesão por parte dos Deputados do Partido Socialista, no sentido de estender a proibição constitucional de formação de tribunal de júri - que até então se dirigia exclusivamente aos casos de "terrorismo" - aos casos de "criminalidade altamente organizada" (cf. in «Diário da Assembleia da República - IV Revisão Constitucional», 7.ª legislatura, 2.ª sessão legislativa, n.º 102, 26 de Julho de 1997, p. 3851). Durante os referidos trabalhos de discussão na especialidade, foi suscitada a dúvida acerca do conceito relativamente indeterminado de "criminalidade altamente organizada", tendo os proponentes daquela alteração invocado os seguintes argumentos:
"O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Luís Marques Guedes, no uso do meu direito de pedir esclarecimentos, gostava de perguntar qual é o significado da expressão "pelo menos quando a acusação ou a defesa o requeiram", ou seja, o que é que acontece quando não o requererem? Fica para a lei? Nesse caso, talvez se devesse explicitar.
Por outro lado, suponho que o conceito de criminalidade altamente organizada está fixado internacionalmente; mas também gostava de saber onde está a fronteira entre o altamente e o mediamente organizado. Para responder, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, é com muito gosto que tentarei responder a algumas das dúvidas que V. Ex.ª agora formulou. O conceito de criminalidade altamente organizada está hoje, passe o pleonasmo, conceptualizado no artigo 1.º do Código de Processo Penal português. Portanto, existe já uma densificação exacta deste conceito: ele não foi inventado mas, sim, transposto de outro lugar da ordem jurídica portuguesa, em sede de lei ordinária." (cf. in «Diário da Assembleia da República - IV Revisão Constitucional», 7.ª legislatura, 2.ª sessão legislativa, n.º 102, 26 de Julho de 1997, p. 3851);
"O Sr. José Magalhães (PS): (...) Quanto ao conceito relativamente indeterminado utilizado na primeira parte da norma, o de "criminalidade altamente organizada", ele resultou de uma reflexão que tem vindo à ser feita no âmbito da Assembleia da República, tanto em sede de legislação ordinária como de instrumentos de direito internacional, tendente a isolar um conceito que recorte certos tipos de criminalidade de especial gravidade, em que os elementos de organização e, logo, de eficácia e perigosidade são elementos relevantes. O Código de Processo Penal, no seu artigo 1.º n.º 2, recortou esse conceito como integrando aqueles crimes que dolosamente se dirigem contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas e sejam puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos. Mas, obviamente, não estamos a constitucionalizar este segmento normativo do Código de Processo Penal, não estamos a importar para a Constituição este exacto recorte normativo. O legislador ordinário é livre de desenhar noutros termos o que seja a criminalidade altamente organizada e pode fazê-lo, com uma limitação: é que o que prima aqui são precisamente os elementos da organização e da especial gravidade das infracções que essa organização visa perpetrar." (cf. in «Diário da Assembleia da República - IV Revisão Constitucional», 7.ª legislatura, 2.ª sessão legislativa, n.º 102, 26 de Julho de 1997, p. 3852).
Daqui decorre que o conceito de "criminalidade altamente organizada", aditado ao então artigo 210.º da Constituição (actual artigo 207.º), assentou no conceito jus-penal decorrente do Direito Internacional e do conceito (então) fixado pela lei processual penal, ainda que não haja uma identidade absoluta entre este último e o conceito constitucional. Este conceito constitucional de "criminalidade altamente organizada" pressupõe: i) um elevado grau de organização do processo criminoso; ii) uma especial lesividade e perigosidade das condutas criminosas.
Ora, sucede que a redacção do (então) n.º 2 do artigo 1.º do CPP dispunha que, "para efeitos do disposto no presente Código, apenas podem considerar-se como casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que: a) Integrarem os crimes previstos nos artigos 299.º, 300.º e 301.º do Código Penal; ou b) Dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a cinco anos". Significaria isto que, à data do aditamento do conceito de "criminalidade altamente organizada" ao actual artigo 207.º da Constituição, o legislador constituinte aparentou não querer abranger - pelo menos de modo expresso - os crimes de tráfico de estupefacientes, atenta a dificuldade em qualificá-los como crimes cujo bem jurídico especialmente tutelado é a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas.
Sucede, porém, que - ainda que não expressamente referido no decurso dos trabalhos parlamentares de revisão constitucional - , àquela data, já vigorava o n.º 1 do artigo 53.º do Decreto-Lei 15/93, de 2 de Janeiro, que dispunha o seguinte:
"1 - Para efeitos do disposto no Código de Processo Penal, e em conformidade com o n.º 2 do artigo 1.º do mesmo Código, consideram-se equiparadas a casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada as condutas que integrem os crimes previstos no artigos 22.º a 25.º e 28.º desta lei."
Significa isto que, quando os membros da CERC de 1997 pretenderam remeter o conceito de "criminalidade altamente organizada" para aquele adoptado pela lei processual penal não podiam ter deixado de ter em conta a circunstância de o regime processual penal não decorrer exclusivamente das normas incluídas no CPP, mas igualmente daquelas normas processuais penais incluídas em diplomas avulsos, designadamente, o n.º 1 do artigo 53.º do Decreto-Lei 15/93. Ou seja, quando pretenderam retirar o conceito de "criminalidade altamente organizada" daquele adoptado pela lei processual penal, não podem ter deixado de nele incluir os crimes de tráfico de estupefacientes, visto que estes já naquele eram incluídos deste a entrada em vigor do Decreto-Lei 15/93.
E, ainda que assim não fosse, o elemento meramente histórico (v. g., a referência exclusiva ao então n.º 2 do artigo 1.º do CPP, em sede de trabalhos preparatórios) não pode afigurar-se como determinante da vontade do legislador constituinte, na medida em que tal implicaria uma cristalização no tempo dos conceitos jurídicos plasmados na Lei Fundamental. Cristalização essa que impediria uma interpretação actualista da Constituição que garantisse a sua permanente vivificação e adaptação ao devir social e político.
Ciente dessa mesma evolução permanente, o legislador constituinte - ainda que sem alterar expressamente o artigo 207.º da Constituição - veio a renovar a sua intenção legislativa quanto ao conceito de "criminalidade altamente organizada", por altura das reuniões da CERC que deram lugar à aprovação da Lei Constitucional 1/2001. Dessa feita, a revisão constitucional de 2001 introduziu uma profunda alteração ao n.º 3 do artigo 34.º da Constituição, autorizando a entrada durante a noite no domicílio de qualquer pessoa, ainda que sem o seu consentimento, "em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes".
Então, a alteração do n.º 3 do artigo 34.º da Constituição decorreu de um projecto inicial de revisão apresentado por Deputados do Centro Democrático Social - Partido Popular [CDS-PP], que visava - originariamente - permitir apenas a entrada no domicílio, de noite e sem consentimento, mas com autorização judicial, precisamente em casos de tráfico de estupefacientes. Aliás, a expressa referência aos crimes de tráfico de estupefacientes resultou, segundo os próprios proponentes, das dúvidas quanto à inserção daquele tipo de crimes no conceito de "criminalidade altamente organizada" (cf. in «Diário da Assembleia da República - V Revisão Constitucional», 8.ª legislatura, 3.ª sessão legislativa, n.º 3, 30 de Maio de 2001, p. 45).
Sucede que, durante os trabalhos de discussão na especialidade, foi obtido um acordo entre os grupos parlamentares do PSD, PS e CDS-PP, na sequência de propostas das diversas personalidades que participaram nas audições públicas, no sentido de ampliar a aplicação daquele n.º 3 do artigo 34.º da Constituição a todos os crimes especialmente violentos ou altamente organizados, seguindo-se um elenco de tipos de crime que - segundo a Constituição - podem ser qualificados como tal:
"O Senhor Jorge Lacão (PS): (...) Como sabem, a proposta inicial apresentada pelo CDS-PP fazia uma delimitação material extremamente restritiva, no sentido em que a admitia tão-só para o tráfico de droga. Do conjunto de impressões aqui trocadas em Comissão, e também nas audições que tiveram lugar, de alguma maneira foi-se criando entre nós um consenso no sentido de alargar o seu âmbito de aplicação. O problema põe-se agora em termos de tecnicidade jurídico-constitucional: ou alargar o âmbito de aplicação segundo uma cláusula aberta, de tal maneira que o legislador ordinário possa conformá-la como entender, segundo o seu critério, ou, em todo o caso, tentar uma delimitação material um pouco mais trabalhada em sede constitucional. É neste sentido que mais nos inclinamos. Portanto, sem embargo de estarmos disponíveis para considerar uma formulação definitiva, entendemos que devem ser aqui ressalvados, pela natureza dos crimes em causa e como critério material, aqueles casos que envolvam criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo como tipos materiais, necessariamente, o terrorismo, o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes." (cf. in «Diário da Assembleia da República - V Revisão Constitucional», 8.ª legislatura, 3.ª sessão legislativa, n.º 3, 30 de Maio de 2001, p. 45).
Ainda que aquele elenco de crimes não exclua a possibilidade de qualificação de outros crimes como "criminalidade altamente organizada", afigura-se incontroverso que, pelo menos desde a revisão constitucional de 2001, o conceito jus-constitucional de "criminalidade altamente organizada" abrange, necessariamente, os crimes de tráfico de estupefacientes.
Diga-se, aliás, que o facto de essa qualificação ter sido operada para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 34.º da Constituição não pode deixar de produzir as necessárias consequências interpretativas quanto aos demais preceitos constitucionais que acolhem a noção jus-penal de "criminalidade altamente organizada", sob pena de completo desrespeito pela necessidade de interpretação sistemática das normas e princípios constitucionais. Apresenta-se, assim, incontroverso que o legislador constituinte acolheu uma actualização do conceito de "criminalidade altamente organizada", de modo a que este passasse a abranger não só os crimes tipificados na redacção do n.º 2 do artigo 1.º do CPP, tal como vigente no momento da aprovação da Lei Constitucional 1/1997, mas igualmente crimes que, entretanto, passaram a justificar uma especial intervenção punitiva do Estado, atenta a sua particular lesividade e capacidade de organização dos respectivos agentes.
Retirando as necessárias consequências para o caso em apreço nos presentes autos, resta reforçar que a circunstância de o artigo 13.º do CPP não excluir expressamente a possibilidade de formação de tribunais de júri para efeitos de julgamento de crimes de tráfico de estupefacientes não permite uma interpretação normativa que autorize tal formação. Por força do artigo 207.º da Constituição, que prevalece necessariamente sobre as normas ordinárias, incluindo as processuais penais, enquanto parâmetro decisivo de validade, não é permitido nem ao legislador autorizar a formação de tribunal de júri, nem ao julgador dar execução àquela formação, sempre que estejam em causa "crimes altamente organizados", entre os quais se inserem os crimes de tráfico de estupefacientes.
Em suma, o artigo 207.º da Constituição impede a formação de tribunais de júri para julgamento dos crimes de tráfico de estupefacientes previstos nos artigos 22.º a 25.º e 28.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na medida em que aqueles se inserem no conceito jurídico-constitucional de "criminalidade altamente organizada".
III. Decisão
Pelos fundamentos supra expostos, decide-se:
i) Não conhecer do objecto do presente recurso, relativamente às interpretações normativas extraídas dos artigos 187.º, n.º 1, conjugado com o 97.º, n.º 4, e do artigo 188.º, n.º s 1 a 4, todos do Código de Processo Penal [na redacção anterior à Lei 48/2007], tal como configuradas pelo recorrente no requerimento de interposição de recurso;
ii) Conceder provimento ao recurso, quanto ao mais, julgando inconstitucional a norma extraída dos n.º s 1 e 2 do artigo 13.º do Código de Processo Penal [na redacção anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto], conjugado com o artigo 51.º do Decreto-Lei 15/93, de 2 de Janeiro, quando interpretada no sentido de que o tribunal de Júri é competente para julgar o crime de tráfico de estupefacientes enquanto criminalidade altamente organizada, tal como é definida no artigo 1.º-2 do C.P.P. [na redacção anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto].
Sem custas, por não serem devidas.
Lisboa, 24 de Setembro de 2008. - Ana Maria Guerra Martins - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Gil Galvão.