Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - Nos presentes autos, em que é recorrente Cláudio da Silva Alves e recorrido o Sindicato Nacional dos Quadros Técnicos e Bancários, o primeiro interpôs recurso do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento na inconstitucionalidade da dimensão interpretativa das normas do artigo 170.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e do artigo 288.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, por ele aplicadas em violação do disposto "no artigo 20.º, n.º s 1 e 4, da Constituição (direito de tutela efectiva, acesso à justiça e aos tribunais, e mediante processo equitativo)".
2 - Notificado para alegar, o recorrente apresentou as seguintes conclusões:
"1.ª No acórdão a quo foi interpretado o disposto no artigo 170.º n.º 1 do CPT no sentido de que o direito de impugnação judicial nele estabelecido só se verifica - ou a decisão nele referida só é impugnável judicialmente - após ter sido confirmada por via de recurso, nos termos do artigo 47.º do Estatutos do Réu. Dito de outro modo, a interpretação dada ao preceito no sentido de que a decisão nele referida só pode ser aquela que resulte confirmada se e quando o órgão dito hierárquico, conforme aquela regra dos Estatutos, assim o entender.
2.ª Tal recurso, contudo, não se configura em si mesmo como obrigatório, não estabelece efeito suspensivo para a execução da decisão impugnada, não tem prazo para ser interposto, nem apresenta prazo para ser proferida a respectiva decisão - o que tudo determina a efectiva possibilidade de estar totalmente cumprida a decisão disciplinar assim atacada, antes de existir decisão judicialmente impugnável (no sentido que o acórdão recorrido deu ao artigo 170.º n.º 1 do CPT).
3.ª Na pretensão de tutela jurisdicional do A., negada pela interpretação que a 1.ª instância e a Relação expressaram quanto à dimensão restritiva do artigo 170.º n.º 1 do CPT, estavam em causa, isto é, solicitava-se a defesa judicial para os direitos fundamentais de ser e manter-se membro de sindicato, e o direito à segurança social - conforme artigos 55.º n.º s 1 e 2 al. b), e 63.º n.º s 1 e 2 da CRP.
4.ª Ora aquela interpretação do artigo 170.º n.º 1 do CPT viola o disposto no artigo 20.º n.º s 1, 4 e 5 da CRP, enquanto preceitos de onde se retira o direito de acesso à tutela jurisdicional, em procedimento equitativo, sem desproporcionados entraves ou obstáculos de ordem processual, e de modo temporalmente adequado à defesa de direitos fundamentais.
5.ª Acresce ainda que, num segundo momento decisório, o acórdão recorrido interpreta o artigo 170.º n.º 1 do CPT, combinado com o disposto no artigo 288.º n.º 3 e artigo 663.º n.º 1 (este ex vi artigos 672.º n.º 1 e 713.º n.º 2 do CPC), no sentido de que o direito naquele conferido já não pode ser utilizado, com vista a uma decisão de mérito, mesmo que se mostre sanado o pressuposto processual dito como previamente exigível, e verificável a necessidade de tutela jurisdicional (dada a manutenção da decisão disciplinar, pela "sentença" dada no recurso do artigo 47.º dos Estatutos da R.)
6.ª Ou, por outras palavras, deve entender-se que o acórdão recorrido interpreta os preceitos acabados de referir no sentido de que a falta do requisito não pode ser sanada na pendência da acção prevista no dito artigo 170.º n.º 1 do CPT.
7.ª Ora, ambos estes sentidos normativos, retirados daqueles preceitos, são violadores, isto é, são proibidos - face ao disposto em artigo 204.º da CRP - perante a constitucionalização do direito de acesso à tutela jurisdicional e a uma decisão com efectiva prevalência da apreciação do fundo e mérito da causa, como artigo 20.º n.º s 1, 4 e 5 da CRP consagram, de modo a impedir que sob a capa de decisão formal se efectue denegação de justiça - como o A. não tem dúvida em assacar à concepção normativa seguida no acórdão em causa."
3 - O recorrido contra-alegou concluindo que "não houve qualquer denegação da justiça, nem foram postos em causa dos direitos do Recorrente" e que não se verificou qualquer interpretação inconstitucional das normas aplicadas nos presentes autos.
4 - Durante a fase de exame preliminar à prolação do presente acórdão, a Relatora detectou fundamentos passíveis de conduzir ao não conhecimento parcial do objecto do recurso, pelo que proferiu o seguinte despacho, em 16 de Janeiro de 2008:
"Nos termos do artigo 704.º CPC, aplicável «ex vi» artigo 69.º LTC, notifique-se o recorrente para, no prazo de 10 dias, se pronunciar sobre a possibilidade de não conhecimento do recurso quanto às interpretações normativas invocadas nos pontos 6 e 7 do requerimento de recurso (fls. 822), por não terem sido aplicadas pela decisão recorrida ou por não terem sido invocadas de modo processualmente adequado." (fls. 936)
Na sequência deste despacho, o recorrente pronunciou-se nestes termos:
"1. A resposta colocada pelo despacho a que ora se responde suscita as seguintes observações prévias:
a) Em primeiro lugar, o Tribunal a quo está sujeito a regras de ofício, cujo cumprimento lhe é imposto, sem que a sua não expressa invocação de aplicação, pelo interessado, acarrete qualquer consequência a este - é o que, assim, se dispõe, p. ex., no artigo 664.º do CPC, mas também no artigo 663.º n.º 1, no caso, aplicável ex vi artigos 762.º e 713.º n.º 2 daquela lei procedimental;
b) Em segundo lugar, "colocar uma questão" em sentido inteligente, ou como se diz, "para bom entendedor", significa apresentar um facto - nu e cru, digamos -, e uma pretensão, tal que, a sua relevância jurídica, mesmo não invocada mas forçosamente apreciada por causa da obrigatoriedade oficiosa acima referida, determine a interpretação/aplicação, bem ou mal, expressa, ou não, do respectivo normativo legal pertinente.
2 - Posto isto, o ónus procedimental para o presente recurso, sob pena de violação do direito ao recurso ao TC - quando não existe na nossa Ordem Jurídica o "recurso de amparo" - não pode ser interpretado em termos tão retoricamente ritualistas, tal que se exija, quase, ou na prática, a obrigação de uso de um expresso formulário, ipsis verbis igual na instância e neste TC. Supõe-se.
3 - Neste sentido, é certo que a matéria em apreço surge nos autos em três momentos:
a) Na própria alegação de agravo;
b) Na parte final da resposta ao parecer do M.ºP.º, já no Tribunal da Relação;
c) Ainda no requerimento em que se arguiu a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.
Com efeito, em todas estas peças se arguiu que a decisão de absolvição do R. se baseava num sentido do artigo 170.º n.º 1 do Cod. Proc. Trabalho violador do direito de acesso à Justiça material, de corrente de artigo 20.º n.º s l e 4 da CRP.
4 - Ora, uma mais minuciosa explicitação desta matéria - e, no fundo, dos requisitos de admissibilidade do recurso, em toda a sua amplitude - surge na própria alegação, nos seus n.º s 1 a 8, como que introdutórios da alegação, e justificantes do recurso, para os quais se remete e aqui dá por integrados.
Assim, como ali se expõe, não se vislumbram razões de forma ou de fundo que, decisivamente, impeçam a apreciação do mérito do recurso, e em toda a sua extensão."
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
A) Não conhecimento parcial do objecto do recurso
5 - A título preliminar, para efeitos de clarificação do objecto do presente recurso, cumpre notar que o recorrente não pretende ver apreciada apenas uma interpretação da norma extraída do n.º 1 do artigo 170.º do CPT e do n.º 3 do artigo 288.º do CPC, mas antes três interpretações normativas distintas, a saber:
- Da norma extraída do artigo 170.º, n.º 1, do CPT, conjugado com o artigo 288.º, n.º 3, do CPC, interpretada "no sentido de que, a decisão disciplinar só é impugnável judicialmente se e após o Autor esgotar o recurso interno do artigo 47.º dos Estatutos do R. Sindicato" (fls. 821);
- Da norma extraída do artigo 170.º, n.º 1, do CPT, conjugado com o artigo 288.º, n.º 3, do CPC, interpretada "no sentido e com a dimensão normativa segundo a qual, o direito de impugnação judicial não existe sem que estejam previamente esgotadas as vias internas de recurso, mesmo que esteja executada a decisão, constituindo tal recurso uma excepção dilatória insanável, ainda que ele se verifique antes da decisão do mérito da causa" (fls. 822);
- Da norma extraída do artigo 170.º, n.º 1, do CPT, conjugado com o artigo 288.º, n.º 3, do CPC, interpretada "no sentido de que, o seu teor normativo, decorrente dos direitos à tutela da justiça a uma decisão efectiva e a processo equitativo, se bastam com uma mera decisão de forma, ainda que já se mostre esgotado o recurso «hierárquico» interno e exercitável o direito da sua impugnação" (fls. 822).
5.1 - Quanto à segunda interpretação normativa, relativa à impossibilidade de sanação da excepção dilatória inominada (v.g., a falta de esgotamento de recursos internos para contestação da sanção disciplinar), é notório que o tribunal "a quo" não aplicou expressamente a referida interpretação normativa, nem sequer fez alusão ao n.º 3 do artigo 288.º do CPC, no acórdão proferido em 30 de Outubro de 2006. Note-se ainda que o próprio acórdão que conheceu da arguição de nulidade daqueloutro (fls. 807 e 808) não decidiu qualquer questão relativa à segunda interpretação normativa que o recorrente apelida de inconstitucional, pelo que se conclui que a mesma não foi efectivamente aplicada.
Sucede, porém, que ainda que tal constituísse omissão de pronúncia - conforme defendido pelo recorrente, em sede de arguição de nulidade do acórdão, que foi rejeitada e que este Tribunal não pode alterar - certo é que o recorrente nunca suscitou a inconstitucionalidade da segunda interpretação normativa, de modo processualmente adequado.
É verdade que o recorrente fez uma menção, "ad latere", ao artigo 288.º do CPC, em sede de alegações (cf. fls. 682 e § 6.º das conclusões, a fls. 686), sem que, contudo, individualizasse a norma constante do n.º 3 do mesmo preceito legal ou, muito menos, colocasse qualquer questão de inconstitucionalidade relativa à mesma. Contudo, em sede de resposta ao parecer do Ministério Público, torna-se evidente que o recorrente apenas contrariou o referido parecer, alegando que uma decisão que não permitisse a sanação da excepção dilatória inominada contraria o disposto no n.º 2 do artigo 265.º e no n.º 3 do artigo 288.º do CPC, nunca tendo alegado uma contradição entre uma interpretação concreta destas normas e qualquer norma ou princípio constitucional. Em suma, em sede de resposta ao parecer do Ministério Público, o ora recorrente apenas invocou uma situação de violação de lei processual e não uma violação de qualquer norma ou princípio vertido na Lei Fundamental.
Perante a ausência de tal suscitação processualmente adequada da questão da inconstitucionalidade da segunda interpretação normativa, justifica-se que nem a decisão recorrida (v.g., o acórdão proferido em 30 de Outubro de 2006), nem o acórdão sobre a arguição de nulidade que a complementou (v.g., o acórdão proferido em 11 de Dezembro de 2006) tenham dela conhecido, numa perspectiva estritamente jus-constitucional.
5.2 - Por outro lado, através do ataque processual a uma pretensa terceira interpretação normativa dos artigos 170.º, n.º 1, do CPT e 288.º, n.º 3, do CPC, o recorrente visa apenas manifestar a sua discordância sobre o mérito da decisão recorrida, apelidando-a de "mera decisão de forma". Contudo, percorrida a decisão recorrida não se detecta uma só passagem através da qual o tribunal "a quo" tivesse interpretado aquelas normas no sentido de que fosse bastante a prolação de uma "mera decisão de forma" (conceito, aliás, não precisado pelo recorrente, nem acolhido pela lei processual laboral).
Assim, não tendo sido efectivamente aplicada aquela dimensão normativa, não pode o Tribunal dela conhecer.
Acresce ainda que, tendo sido interposto recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o recorrente teria que ter suscitado previamente a inconstitucionalidade daquela precisa interpretação normativa, nos termos do n.º 2 do artigo 72.º da LTC. Ora, percorridas as alegações de recurso e a resposta ao Ministério Público, constata-se que o recorrente nunca colocou em causa a inconstitucionalidade daquela precisa interpretação normativa.
Com efeito, nada na decisão recorrida aponta no sentido de que a sua ratio decidendi se tenha fundamentado numa interpretação dos preceitos mencionados no sentido aqui indicado pelo recorrente. Ora, de acordo com a jurisprudência firme e consolidada deste Tribunal, não se pode conhecer de recursos sobre uma alegada inconstitucionalidade de uma norma ou de uma interpretação normativa que não haja sido alvo de uma aplicação efectiva pela decisão recorrida (a mero título de exemplo, vejam-se os Acórdãos n.º 168/2007, de 08 de Março de 2007, disponível in www.tribunalconstitucional.pt e n.º 366/96, de 06 de Março de 1996, disponível in «Diário da República», 2.ª série, n.º 109, de 10 de Maio de 1996).
Em conclusão, não é possível conhecer das segunda e terceira interpretações normativas, quer porque não foram efectivamente aplicadas, quer porque o recorrente não suscitou tais questões de modo processualmente adequado.
B) A questão de (in)constitucionalidade
6 - A questão de constitucionalidade que vai ser tratada é a de saber se uma interpretação do artigo 170.º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho e do artigo 288.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, no sentido de que a decisão disciplinar só é impugnável judicialmente se, e após, o Autor ter esgotado um recurso interno previsto num preceito (in casu, o artigo 47.º) dos Estatutos de um Sindicato é constitucionalmente admissível, tendo em conta o direito à justiça efectiva e de acesso aos tribunais, mediante processo justo e equitativo, densificados no artigo 20.º, n.os 1 e 4, da CRP.
Como questões prévias à boa decisão da causa, deve precisar-se o seguinte:
1.º Apesar de a norma em crise resultar de uma interpretação conjugada do artigo 170.º do Código de Processo do Trabalho, aprovado por Decreto-lei, com o artigo 47.º dos Estatutos do Sindicato, o objecto da fiscalização da constitucionalidade, tal como o definiu o recorrente, é apenas a interpretação das normas do Código de Processo de Trabalho - o artigo 170.º, n.º 1 - e do Código de Processo de Civil - o artigo 288.º, n.º 3 - no sentido acima mencionado e não qualquer interpretação da norma constante dos Estatutos do Sindicato.
2.º Apesar de uma grande parte das alegações do recorrente (11 páginas) incidirem sobre o "sentido do Direito Ordinário", bem como sobre as "erradas pré-compreensões jurídicas da decisão recorrida" (sic), estas questões extravasam dos poderes de cognição deste Tribunal, uma vez que ele apenas está constitucionalmente encarregue da garantia da aplicação do Direito em sentido conforme às normas e preceitos constitucionais. Em consequência, a aplicação estrita do Direito infra-constitucional compete aos tribunais comuns e não ao Tribunal Constitucional.
Assim sendo, não compete a este Tribunal pronunciar-se sobre a questão de saber se a ausência de recurso interno para o Conselho Geral do Sindicato constitui ou não uma excepção dilatória insanável, mesmo que ele se verifique antes da decisão do mérito da causa, mas tão-somente apreciar se a consideração de tal recurso como uma excepção dilatória insanável é contrária à Constituição, designadamente, ao direito de acesso à justiça, aos tribunais e ao processo equitativo.
7 - O Tribunal Constitucional já teve ocasião de afirmar que "o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de acção no sentido do direito subjectivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos pré-estabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas" (Ver, por exemplo, Acórdão 363/2004, de 19 de Maio, disponível em http://www.tribconstitucional.pt).
Porém, a plenitude do direito de acesso aos tribunais não é necessariamente posta em causa pela imposição às partes, antes do início de um processo jurisdicional, de uma tentativa de conciliação extrajudicial (Acórdão 491/97, de 2 de Julho, disponível em http://www.tribconstitucional.pt) nem pelo estabelecimento de prazos legais de caducidade para a propositura da acção, a menos que estes prazos sejam desadequados ou desproporcionados, inviabilizando ou dificultando excessivamente a propositura da acção (Acórdão 299/95, de 7 de Junho, disponível em http://www.tribconstitucional.pt).
Além disso, o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, apesar de se encontrar sistematicamente na Parte I referente a direitos e deveres fundamentais, deve ser entendido como uma norma-princípio estruturante do Estado de Direito democrático (José Joaquim Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol. I, Coimbra, 2007, p. 409).
Acresce ainda que o direito de acesso ao direito e aos tribunais se deve configurar como um direito de agir com eficácia imediata, que permite a sua concretização minimamente adequada a partir da própria Constituição, pelo que deve ser qualificado como um direito fundamental de natureza análoga a direitos, liberdades e garantias, aplicando-se-lhe, pois, nos termos do artigo 17.º da CRP, o mesmo regime jurídico (neste sentido, Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 144).
Assim sendo, no caso de regimes jurídicos de excepção à plenitude do direito de acesso aos tribunais, ou, dito de outro modo, no caso de restrições, elas terão de respeitar os limites constitucionais impostos, designadamente, pelo artigo 18.º da CRP. Mas tal pressupõe, naturalmente, a existência de uma restrição.
8 - Vejamos então se, no caso em apreço, estamos perante uma restrição ao conteúdo do direito de acesso à justiça, ou se, pelo contrário, estamos perante um limite ao exercício do direito que se traduz num mero condicionamento.
A distinção entre a restrição de um direito e as suas figuras afins revela-se controversa tanto nos seus contornos teóricos como na sua aplicação prática (na doutrina portuguesa, v., entre outros, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 328 e segs; José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2001, p. 275 e segs; Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 155 e segs).
Parafraseando este último Autor, "entendemos por restrição a acção ou omissão estatal que afecta desvantajosamente o conteúdo de um direito fundamental, seja porque se eliminam, reduzem ou dificultam as vias de acesso ao bem nele protegido e as possibilidades da sua fruição por parte dos titulares reais ou potenciais do direito fundamental seja porque se enfraquecem os deveres e obrigações, em sentido lato, que da necessidade da sua garantia e promoção resultam para o Estado" (in Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais, cit., p. 157).
Para o mesmo Autor, "[...] A regulamentação do exercício de um direito fundamental [...] [é] a regulação dos pormenores práticos do exercício de um direito em ordem a facilitar ou adequar a sua efectivação nas condições complexas das relações da vida[...] (Ibidem, p. 177).
Na lição de Jorge Miranda, enquanto "a restrição tem que ver com o direito em si, com a sua extensão objectiva; o limite ao exercício de direitos, com a sua manifestação, com o modo de se exteriorizar através da prática do seu titular[...]
O limite pode desembocar ou traduzir-se qualitativamente em condicionamento, ou seja, num requisito de natureza cautelar de que se faz depender o exercício de algum direito, como a prescrição de um prazo (para o seu exercício) (...)" (in Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, cit., p. 329)
Este Tribunal tem entendido que a fixação de prazos de caducidade do exercício de um direito fundamental não constitui, por si só, uma "restrição", apenas condicionando o gozo do direito, mediante regulamentação do respectivo exercício, sem que tal diminua as faculdades que o integram (neste sentido, ver, entre outros, Acórdãos n.º 247/02, de 4 de Junho, e n.º 467/03, de 14 de Outubro de 2003, todos disponíveis in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Assim, no Acórdão 247/02:
"[...] Só as normas restritivas dos direitos fundamentais (normas que encurtam o seu conteúdo e alcance) e não meramente condicionadoras (as que se limitam a definir pressupostos ou condições do seu exercício) têm que responder ao conjunto de exigências e cautelas consignado no artigo 18.º, n.º s 2 e 3 da Lei Fundamental (cf. acórdão 413/89, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Setembro de 1989).
Mas, não basta que o referido prazo se não apresente prima facie como uma restrição ao direito, e tão-só como uma sua regulamentação ou condicionamento, para que daqui se conclua pela não inconstitucionalidade da norma, ao fixar esse prazo.
Importante é que não redunde efectivamente numa restrição, ou seja, tal prazo também não se mostre desadequado e desproporcionado, ou, como se referiu no já aludido acórdão 70/00, torna-se necessário ver as coisas de um ponto de vista material ou substantivo.
A violação só existirá se o prazo, por desadequado e desproporcionado, dificultasse gravemente o exercício concreto do direito, uma vez que, em tal caso, estar-se-ia perante uma restrição a esse direito e não em face de um simples condicionamento ao exercício do mesmo [...]".
9 - Partindo deste entendimento, que ora se perfilha e reitera, importa verificar se a interpretação normativa que vem reputada de inconstitucional, a qual entendeu que a impugnação, por parte do associado de um sindicato, de decisão disciplinar perante os tribunais laborais apenas é admissível quando se encontrem esgotados os recursos internos previstos no estatutos da referida associação sindical, se afigura como uma verdadeira "restrição" do direito de acesso à Justiça ou antes como um mero "condicionamento" desse direito.
O n.º 1 do artigo 170.º do CPT, inserido no Capítulo III daquele Código, subordinado à epígrafe "Processo do contencioso das instituições de previdência, abono de família e associações sindicais", dispõe o seguinte:
"1 - O arguido em processo disciplinar que pretenda impugnar a respectiva decisão deve apresentar no tribunal o seu requerimento no prazo de 15 dias, contados da notificação da decisão."
Daqui decorre que aquela norma contém - efectiva e incontroversamente - um verdadeiro condicionamento expresso do direito fundamental de acesso à Justiça. Ou seja, a fixação de um prazo de 15 dias a contar da decisão que condena o arguido por acto gerador de responsabilidade disciplinar. Sucede, porém, que a constitucionalidade de tal condicionamento expresso não veio posta em crise, tendo antes a decisão recorrida entendido que aquela norma pode ser interpretada no sentido de admitir um condicionamento implícito que decorra de norma estatutária - mas não legislativa - de uma associação sindical.
A título meramente informativo, refira-se que o referido artigo 47.º (actual artigo 51.º) dos Estatutos do Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários, originariamente publicado no «Diário da República», 2.ª série, n.º 11, de 13 de Janeiro de 2004 (e actualmente vigente com a redacção publicada no «Boletim de Trabalho e Emprego», 1.ª série, n.º 24, de 29 de Junho de 2006), dispõe o seguinte:
"O poder disciplinar é normalmente exercido pela Direcção, sob proposta do Conselho de Disciplina, cabendo recurso das suas decisões para o Conselho Geral."
Como já se disse supra, não se curará nestes autos de apreciar qualquer questão relativa a eventual inconstitucionalidade de norma estatutária de associação sindical, e como tal de fonte jurídico-privada.
A circunstância de o referido processo de impugnação correr perante os tribunais laborais também não deve confundir o intérprete. É que, no caso em apreço nos presentes autos, o procedimento disciplinar instaurado não opera na pura relação trabalhador/empregador - antes tendo sido instaurado pelos corpos directivos de uma associação sindical contra um outro associado desse mesmo sindicato. Porventura, outros problemas se levantariam se estivesse em causa saber se uma decisão disciplinar tomada por entidade empregadora contra trabalhador carecia de ter sido definitivamente decidida por aquela para que fosse admissível a respectiva impugnação jurisdicional.
Estando em causa procedimento disciplinar movido por órgãos directivos de uma associação - neste caso, de natureza sindical - contra um dos seus associados, parece poder estabelecer-se um certo paralelismo com o regime aplicável à impugnação de sanções disciplinares a associados de partidos políticos. Nesses casos, é o próprio n.º 3 do artigo 103.º-C da LTC, aplicável "ex vi" n.º 3 do artigo 103.º-D da LTC, que condiciona a impugnação de tais sanções disciplinares perante o Tribunal Constitucional ao prévio esgotamento de "todos os meios internos previstos nos estatutos".
E este Tribunal já teve ocasião de não conhecer de tais pedidos de impugnação "por não terem sido esgotados todos os meios internos de impugnação previstos nos estatutos para apreciação da validade e regularidade da decisão punitiva, como exige o artigo 103.º-C, aplicável por força do disposto no artigo 103.º-D n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional." (Acórdão 361/02, de 21/8/02, reiterado no Acórdão 421/02, de 15/10/2002, ambos disponíveis em http://www.tribconstitucional.pt).
Ora, se, tal como os partidos políticos, as associações sindicais são qualificáveis como associações de natureza privada que assumem uma função constitucional relevante, o paralelismo de situações parece evidente.
10 - Além disso, o condicionamento ao exercício do direito de acesso ao direito e aos tribunais que resulta da interpretação normativa levada a cabo em face do n.º 1 do artigo 170.º do CPT encontra-se perfeitamente justificado do ponto de vista constitucional, uma vez que se destina a salvaguardar outros direitos constitucionalmente consagrados ou outros bens jurídicos constitucionalmente tutelados, como sejam a liberdade sindical (artigo 55.º), bem como a resolução extrajudicial dos conflitos (artigo 202.º CRP).
Com efeito, a Constituição reconhece a liberdade sindical aos trabalhadores (artigo 55.º, n.º 1), sendo que uma das liberdades que é garantida aos trabalhadores no exercício da liberdade sindical é precisamente a de organização e regulamentação interna das associações sindicais [artigo 55.º, n.º 2, al. c)].
Acresce ainda que a própria Constituição admite que a lei institucionalize instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos (artigo 202.º, n.º 4, CRP).
Daqui decorre que a interpretação do artigo 170.º, n.º 1, do CPT no sentido de que a decisão disciplinar só é impugnável judicialmente se, e após, o Autor ter esgotado um recurso interno previsto nos estatutos de uma associação sindical, embora possa não ser aquela que concede uma maior amplitude ao âmbito de aplicação ao direito de acesso aos tribunais, uma vez que pode protelar no tempo o exercício deste direito, respeita outros valores constitucionais, igualmente importantes num Estado de Direito democrático, quais sejam o da liberdade de auto-organização das associações sindicais e da resolução extrajudicial dos conflitos, com o consequente descongestionamento dos tribunais.
III - Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 170.º, n.º 1, do CPT, conjugado com o artigo 288.º, n.º 3, do CPC, quando interpretada no sentido de que a decisão disciplinar só é impugnável judicialmente se, e após, o Autor ter esgotado o recurso interno previsto nos Estatutos do Sindicato;
b) não conhecer do objecto do recurso quanto às restantes dimensões normativas questionadas.
E, em consequência, não conceder provimento ao recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC's, nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do Decreto-Lei 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 30 de Abril de 2008. - Ana Maria Guerra Martins - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Gil Galvão.