Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - Realuso - Agência de Câmbios, Lda., e Emerson Marcelo Grandi, arguidos em processo de inquérito que corre termos no Tribunal Central de Instrução Criminal, recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho do juiz de instrução que indeferiu o seu pedido de restituição dos saldos bancários que haviam sido apreendidos à ordem do processo, ao abrigo do disposto no artigo 181.º do Código de Processo Penal, alegando, em síntese, que a manutenção da apreensão de bens para além do prazo máximo da duração do inquérito sem que tenha sido deduzida acusação, é inconstitucional, por violação do direito à propriedade consagrado no artigo 62.º, dos princípios da proporcionalidade e da adequação, a que se refere o artigo 18.º, n.º 2, e ainda do princípio da presunção de inocência do arguido e do direito a um processo célere, consignados no artigo 32.º, n.º 2, todos da Constituição da República.
O recurso foi julgado improcedente por acórdão de 23 de Outubro de 2007, com a seguinte fundamentação:
Por despacho de 9 de Dezembro de 2004, proferido pelo Juiz de Instrução Criminal, foi considerado indiciada a prática de crimes de actividade ilícita de recepção de depósitos (artigo 200.º, do Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro - Regime Geral das Instituições de Crédito), fraude fiscal qualificada (artigos 103.º, n.º 1, alínea b), e 104.º, n.º 1, alínea f), do RGIT), branqueamento de capitais (artigo 361.º-A, n.º s 1 e 2, do CP) e ordenada a colocação sob controlo de determinadas contas bancárias, ao abrigo do disposto no artigo 4, n.º s 2 e 4, da Lei 5/02, de 11 de Janeiro.
Esse controlo permitiu apurar que essas contas, em pouco mais de um mês, registaram transferências para os Estados Unidas da América e para Hong Kong, no valor de USD 5.110.606,00, o que justificou despacho de 28 de Janeiro de 2005, determinando a apreensão do saldo das mesmas, ao abrigo do artigo 181.º, n.º 1, do CPP.
Decorridos mais de dois anos sobre a notificação desse despacho, os arguidos requereram o levantamento dessa apreensão, na sequência do que foi proferido o despacho recorrido.
Alegam os recorrentes que, tendo decorrido o prazo máximo de inquérito sem acusação, deixaram de existir as razões que estiveram na base da apreensão.
Contudo, como é sabido, a nossa lei não atribui qualquer significado ao decurso daquele prazo sem dedução de acusação, não sendo legítimo daí concluir que diminuíram ou deixaram de se verificar os indícios da prática de determinados ilícitos. O excesso daquele prazo apenas pode originar responsabilidade disciplinar ou justificar o recurso a incidente de aceleração processual.
É certo que uma apreensão, representa uma restrição ao direito de propriedade privada (artigo 62.º da CRP).
Porém, essa restrição está justificada, no caso em apreço, pela necessidade de satisfação de um interesse superior- a realização da justiça.
Essa restrição, relativa ao direito de propriedade, não é equiparável às restrições de direitos pessoais, nomeadamente da liberdade, caso em que a Constituição prevê a existência de prazos (artigo 29.º, n.º 4, da CRP), determinados no artigo 215.º do CPP e cujo decurso, só por si, conduz à extinção da medida restritiva da liberdade.
Embora o decurso dos prazos de inquérito não conduzam, automaticamente, ao levantamento das apreensões ordenadas, terão de existir regras que permitam esse levantamento, quando o interesse da realização da justiça deixe de justificar tal restrição de direitos.
Alegam os recorrentes que, não tendo as quantias depositadas em contas bancárias grande interesse para a prova, porque a prova a produzir é essencialmente documental, tornam-se desnecessárias para o exercício da acção penal, devendo ser restituídas nos termos do artigo 186º, n.º 1, do CPP.
Este preceito prescreve "logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito".
O apelo a este preceito não nos parece correcto, em relação à apreensão de depósitos bancários, desde logo porque o termo "objecto" não se adequa a direitos daquela natureza.
Na verdade, no depósito bancário o que está em causa são direitos, que não se encontram na disponibilidade imediata do titular, mas de um terceiro que os detém com base num contrato, razão por que, com o levantamento da apreensão, não existe uma verdadeira "restituição", mas tão só a cessação de uma limitação aos direitos decorrentes de tal contrato.
A apreensão de depósito bancário tem preceito próprio, o artigo 181.º do CPP, que prevê as razões que a poderão justificar, devendo o levantamento ocorrer quando as mesmas cessam.
E, como decorre deste preceito, a apreensão de valores ou quantias em estabelecimento bancário, deve ser ordenada quando o juiz tiver fundadas razões para crer que estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
Assim, ao contrário do previsto no artigo 186.º, citado pelos recorrentes, não será de ponderar, apenas, a necessidade para efeitos de prova, mas também o interesse para a descoberta da verdade.
Aliás, a aceitar-se a interpretação dos recorrentes, nunca se justificaria a apreensão de quantias monetárias em estabelecimentos bancários, pois bastaria que estes certificassem documentalmente o saldo existente e haveria prova suficiente.
Contudo, outras razões poderão justificar a manutenção da apreensão, que não a simples prova dos respectivos montantes.
Em relação ao caso em apreço, é preciso ter presente que estão em causa crimes abrangidos pela Lei 5/02, de 11de Janeiro (estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira), diploma que alterou, não só as regras processuais, como também algumas regras substantivas, relativas à perda de bens a favor do Estado. O legislador, considerando que nem sempre se afigura fácil a prova de que, os bens patrimoniais dos arguidos em certos crimes organizados ou económico-financeiros, são vantagens provenientes da actividade ilícita e, portanto, sujeitos a perda a favor do Estado, nos termos dos artigos 109.º a 111.º do CP, veio estabelecer algumas regras que impedem os agentes criminosos de se refugiarem, quanto a esse aspecto, numa mera aparência de legalidade, ou de pretenderem prevalecer-se da dúvida, consagrando no artigo 7.º uma presunção sobre a origem das vantagens obtidas pelo agente.
Ora, existindo um regime especial que visa combater este tipo de criminalidade, que em regra usa o sistema financeiro para a sua actividade, não faria sentido levantar as apreensões de depósitos bancários, por existir outra forma de os provar, o que na prática significaria deixar sem utilidade aquele regime especial, na medida em que os agentes facilmente colocariam os meios financeiros relacionados com a actividade ilícita fora do alcance de uma execução, com prejuízo para a descoberta da verdade, ou seja, para a realização da justiça.
A manutenção da apreensão não é desproporcionada, atentos os meios que os agentes deste tipo de crimes colocam ao serviço da sua actividade ilícita, nem desadequada, antes se apresentando como a única susceptível de permitir alcançar os fins pretendidos por legislação aprovada com intenção de combater esta específica criminalidade.
Esta limitação ao direito de propriedade, em nada viola o princípio da presunção de inocência, uma vez que não representa qualquer antecipação da pena e visa, apenas, alcançar outras finalidades relacionadas com a boa administração da justiça, recaindo sobre a acusação o ónus de provar em julgamento os elementos típicos dos crimes que vierem a ser imputados aos arguidos.
Também não se justifica o apelo a violação do direito a um processo célere, pois a manutenção da apreensão em nada prejudica tal celeridade.
Em conclusão, justificando o interesse na descoberta da verdade que se mantenha a apreensão dos depósitos bancários oportunamente ordenada e tendo essa manutenção apoio no artigo 181.º, n.º 1, do CPP, deve ser confirmado o despacho recorrido.
Inconformados com o assim decidido, os arguidos vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da lei do Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação da constitucionalidade da norma contida no artigo 181º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando aplicada e interpretada no sentido de que a apreensão de quantias que se revelem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, pode manter-se indefinidamente, ainda que se encontrem largamente ultrapassados os prazos processuais, maxime o prazo de inquérito, sem que tenha sido proferida acusação.
Nada tendo obstado ao prosseguimento do recurso, no Tribunal Constitucional, os arguidos apresentaram as suas alegações, formulando as seguintes conclusões:
a) No caso em apreço a apreensão dos bens teve por base salvaguardar os elementos de prova, permitir que o Ministério Público investigasse e que proferisse, caso fossem recolhidos indícios suficientes, uma acusação contra os arguidos - vide artigo 181.º, n.º 1, e artigo 283, n.ºs 1 e 2, do CPP;
b) Encontra-se largamente ultrapassado o prazo máximo de duração do inquérito sem que tenha sido proferido qualquer despacho de acusação ou arquivamento pelo Ministério Público - artigo 276.º do CPP;
c) O Ministério Público não conseguiu obter indícios suficientes da verificação de um crime, caso contrário teria acusado como é sua obrigação - artigo 279.º, n.º 1, e 283.º, n.º 2, do CPP;
d) A apreensão de bens consubstancia uma restrição ao direito constitucional de propriedade privada - cf. artigo 62.º da CRP - e deve limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente consagrados, nomeadamente a realização da justiça - cf. artigo 18.º, n.º 2, da CRP;
e) Decorrido o prazo máximo de inquérito sem que tenha sido proferida uma acusação não se poderá manter a restrição ao direito de propriedade dos arguidos nos termos do artigo l81.º, n.º 1, do CPP, porque deixou de existir o fundamento para a restrição do direito constitucional à propriedade privada plena, devendo-se, para o efeito, mandar restituir as quantias apreendidas;
f) O entendimento defendido no douto acórdão recorrido é inconstitucional porque viola o direito de propriedade privada dos arguidos, o princípio da proporcionalidade ou mais concretamente o princípio da adequação, porque a restrição ao direito de propriedade, depois de excedido o prazo de inquérito, não é adequada a prossecução dos fins visados na lei - violando o preceituado nos artigos l8.º e 62.º da CRP;
g) A decisão recorrida é inconstitucional porque consubstancia uma violação do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2. da CRP, nomeadamente porque mantém por tempo indefinido a apreensão de bens o que consubstancia uma pena a título de medida cautelar;
h) O atraso do inquérito não é, nem pode ser imputado ao arguido, pelo que a manutenção da apreensão nos termos do douto acórdão recorrido consubstancia uma violação do direito ao processo célere consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da CRP, nomeadamente porque os prazos de inquérito não foram observados pelo Ministério Público;
i) O douto despacho recorrido ao admitir a manutenção da apreensão das quantias depositadas nos termos do artigo l8l.º, n.º 1, do CPP, depois de decorridos todos os prazos de inquérito, viola os direitos constitucionais dos arguidos, nomeadamente o direito a um processo célere e o direito à presunção de inocência, porque, sobre a capa da manutenção da prova impõe uma verdadeira pena;
j) É inconstitucional a interpretação de que ao abrigo do artigo 181.º, n.º 1, do CPP se pode manter a apreensão dos depósitos bancários dos arguidos, por tempo indeterminado, decorrido que estejam os prazos de inquérito consagrados no artigo 276.º do CPP, sem que o Ministério Público tenha deduzido acusação nos termos do artigo 283.º do mesmo Código, por violação dos princípios da adequação, proporcionalidade, do principio da presunção da inocência e do direito constitucional da propriedade privada, tal como se encontram consagrados nos artigos 18º, n.º 2, 32.º, n.º 2, e 62.º da CRP.
O Exmo Magistrado do Ministério Público, na sua contra-alegação, chama a atenção para o facto de o tribunal recorrido ter aplicado a norma do artigo 181.º do CPP em função de uma dada uma situação processual concreta (quando não tinham ainda decorrido três anos sobre a data em que as apreensões se efectuaram), considerando não ser lícito afirmar que esse preceito tenha sido interpretado no sentido de que é constitucionalmente admissível a apreensão de bens por tempo indeterminado ou até ao termo do prazo prescricional do procedimento criminal, e conclui, neste contexto, que a norma do n.º 1 do artigo 181.º do CPP não é inconstitucional, quando entendida no sentido de poder ser mantida a apreensão de depósitos bancários, ainda que não tenha sido proferida acusação no prazo estabelecido 276.º do mesmo diploma.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação. - Os recorrentes impugnaram perante o Tribunal da Relação o despacho do juiz de instrução que indeferiu o seu pedido de restituição dos saldos bancários que haviam sido apreendidos à ordem do processo, em aplicação do disposto no artigo 181.º do Código de Processo Penal.
O recurso assentava essencialmente no entendimento de que é inconstitucional a manutenção da apreensão de bens para além do prazo máximo da duração do inquérito sem que tenha sido deduzida acusação.
O acórdão recorrido analisou a questão de constitucionalidade que lhe foi colocada à luz da situação processual então existente e de acordo com a delimitação feita pelos recorrentes na própria alegação de recurso e julgou este improcedente por considerar que a apreensão constitui uma restrição ao direito de propriedade justificada pelo superior interesse da realização da justiça, que poderá manter-se enquanto subsistir o interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, e que não envolve qualquer violação do princípio da presunção da inocência do arguido nem representa uma antecipação da pena. Em nenhum momento tendo declarado que entendia como constitucionalmente válida uma interpretação do citado preceito que permitisse que a apreensão de bens pudesse manter-se indefinidamente.
Sendo estes os termos em que a questão se coloca, passemos à sua análise.
Conforme resulta dos elementos dos autos, o juiz de instrução criminal, por despacho de 9 de Dezembro de 2004, ordenou a colocação sob controlo de determinadas contas bancárias, ao abrigo do disposto no artigo 4.º, n.º s 2 e 4, da Lei 5/02, de 11 de Janeiro, por considerar indiciada a prática de crimes de actividade ilícita de recepção de depósitos, previsto e punido pelo artigo 200.º do Regime Geral das Instituições de Crédito, de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103º, n.º 1, alínea b), e 104.º, n.º 1, alínea f), do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), e de branqueamento de capitais, previsto e punido pelo artigo 368.º-A, n.º s 1 e 2, do Código Penal.
Por despacho de 28 de Janeiro de 2005, o mesmo magistrado, com invocação do disposto no artigo 181.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), determinou a apreensão dos saldos bancários referentes às mesmas contas.
Por requerimento entrado em 11 de Junho de 2007, os arguidos, ora recorrentes, vieram pedir a restituição das quantias apreendidas à ordem do processo, alegando que se encontrava já ultrapassado o prazo máximo da duração do inquérito sem que tenha sido deduzida acusação, o que seria revelador da inexistência de índicios suficientes da prática de crime que pudesse justificar a apreensão.
Por despacho de 18 de Junho seguinte, o juiz de intrução criminal indeferiu o requerido, por considerar que, havendo indícios de que as importâncias apreendidas resultaram da actividade ilícita de recepção de depósitos e dos lucros auferidos com essa actividade, e de que tais importâncias poderiam destinar-se a ser transferidas para o estrangeiro, a manutenção da apreensão constitui um relevante elemento de prova da prática de crime, independentemente do tempo de duração do inquérito, encontrando-se, por isso, preenchidos os pressupostos a que se refere o artigo 181.º do CPP.
Em sede de recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa, através da decisão ora recorrrida, nos termos que há pouco se deixaram transcritos, confirmou o despacho do juiz de instrução criminal, julgando improcedentes as já identificadas questões de constitucionalidade, que cabe agora dilucidar.
O artigo 181.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe «Apreensão em estabelecimento bancário», na redacção anterior à Lei 48/2007, de 29 de Agosto (vigente à data em que teve lugar a apreensão), determina o seguinte:
1 - O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome.
2 - O juiz pode examinar a correspondência e qualquer documentação bancárias para descoberta dos objectos a apreender nos termos do número anterior. O exame é feito pessoalmente pelo juiz, coadjuvado, quando necessário, por órgãos de polícia criminal e por técnicos qualificados, ficando ligados por dever de segredo relativamente a tudo aquilo de que tiverem tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.
É o subsequente artigo 186.º que, por sua vez, regula os termos em que se efectua a restituição dos objectos apreendidos, dispondo do seguinte modo:
1 - Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito.
2 - Logo que transitar em julgado a sentença, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.
3 - Ressalva-se do disposto nos números anteriores o caso em que a apreensão de objectos pertencentes ao arguido ou ao responsável civil deva ser mantida a título de arresto preventivo, nos termos do artigo 228.º
Estando em causa a investigação, entre outros, de um crime de branqueamento de capitais, tem aplicação o disposto na Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, que estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra de segredo profissional e perda de bens a favor do Estado relativo a esse tipo de ilícitos (artigo 1.º).
Tem especial relevo, a presunção - estabelecida no artigo 7.º -, de que constitui vantagem criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito, para efeito de perda de bens a favor do Estado, em caso de condenação pela prática de qualquer dos crimes mencionados no artigo 1.º Definindo o artigo 12.º os termos em que se processa, na sentença condenatória, a declaração de perda de valores a favor do Estado e o seu montante.
Paralelamente, o artigo 10.º da mesma lei prevê o arresto dos bens do arguido para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, sendo declarados perdidos a favor do Estado os bens arrestados quando não tenha sido prestada caução económica ou não tenha sido efectuado o pagamento voluntário pelo arguido do valor que se considere corresponder à vantagem patrimonial decorrente da actividade ilícita.
Para além disso, também o Código Penal prevê a perda a favor do Estado de instrumentos ou de produtos do crime, ainda que se trate de objectos pertencentes a terceiros (quando estes tenham concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou tiverem retirado vantagem do facto ilícito), bem como de direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido directamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes do crime ou representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie (artigos 109.º, 110.º e 111.º).
A apreensão de saldos bancários em aplicação do disposto no artigo 181.º do CPP, como logo de depreende da inserção sistemática dessa disposição na Título III do Livro III desse diploma, é um meio de obtenção prova, mas que poderá simultaneamente funcionar como meio de prova e como medida cautelar destinada a assegurar o cumprimento de certos efeitos de direito substantivo que estão associados à prática do ilícito penal, como seja a perda desses valores a favor do Estado (Germano Marques da Silva, curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, 1999, pág. 197) .
No sentido da sua caracterização como meio de prova aponta o facto de o artigo 181.º, n.º 1, permitir a apreensão de valores depositados em estabelecimentos bancários, não apenas quando se encontrem relacionados com o crime, mas também cumulativamente quando se revelem de «grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova», o que faz supor que as quantias apreendidas podem apresentar um valor probatório específico que deva ser tido em consideração na fase de julgamento.
Por outro lado, a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objectos apreendidos à ordem do processo até à decisão final.
Assim se compreende que o artigo 186.º, ao referir-se aos termos em que se processa a restituição dos bens apreendidos, admita que essa restituição apenas venha a ter lugar após o trânsito em julgado da sentença, mediante a entrega ao seu legítimo proprietário ou a declaração de perda a favor do Estado, o que pressupõe que, nessa circunstância, os bens ou valores apreendidos devam ter o destino que for fixado na própria decisão final do processo (n.º s 2 e 3).
A que acresce, no que especificamente se refere à investigação dos crimes de catálogo mencionados no artigo 1.º da Lei 5/2002, que os bens do arguido, incluindo os valores depositados em instituições bancárias, podem ser arrestados, não com a finalidade de garantia patrimonial do pagamento de pena pecuniária, de custas do processo ou de qualquer outra dívida relacionada com o crime (como prevê o artigo 228.º do CPP), mas como garantia do pagamento do valor que se presuma constituir uma vantagem da actividade criminosa (cf. artigo 10º desse diploma).
Podendo manter-se o seu interesse quer para efeitos probatórios quer para garantia do cumprimento de certas consequências jurídicas da prática do crime, a manutenção da apreensão de bens ou valores não está, por isso, necessariamente dependente da observância dos prazos de duração do inquérito, aparecendo antes interligada com as finalidades do processo penal (referindo-se à natureza híbrida da perda do produto do crime, que poderá revestir um carácter quase penal ou a feição de uma medida de segurança, Simas Santos/Leal-Henriques, Noções Elementares de Direito Penal, Vislis Editores, 1999, pág. 239).
O artigo 276.º do CPP determina, na verdade, a fixação de prazos de duração máxima do inquérito, de acordo com a situação do arguido, o tipo legal de crime e a complexidade da respectiva investigação, podendo o Procurador-Geral da República determinar, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, a aplicação do regime de aceleração processual, nos termos do artigo 109.º, quando tenham sido ultrapassados esses prazos. Todavia, a única consequência que decorre do incumprimento desses prazos, ou daqueles que forem fixados em aplicação do mecanismo previsto no artigo 109.º, é a agora estabelecida no artigo 89.º, n.º 6, do CPP, na redacção da Lei 47/2007, de 27 de Agosto (que se entende ser imediatamente aplicável), que se traduz na possibilidade de levantamento do segredo de justiça, a requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido.
Nada permite, por outro lado, concluir que a ausência de libelo acusatório, no termo do prazo máximo definido para a duração do inquérito, representa a inexistência de índicios da prática de crime, já que esse prazo é meramente ordenador e a sua ultrapassagem, para além da consequência processual há pouco mencionada, não tem quaisquer efeitos preclusivos.
É certo que o n.º 1 do citado artigo 186.º também admite que os objectos apreendidos possam ser restituídos a quem de direito «logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova»; mas isso apenas demonstra que não há lugar à restituição quando tenham terminado os prazos de duração do inquérito, mas apenas quando deixem de se verificar os requisitos de que a lei faz depender a utilização desse meio de obtenção de prova, e, designadamente, quando não haja motivos para levar o processo a julgamento por não haver indícios bastantes da prática de crime ou quando a apreensão deixe de ter interesse para a prova ainda que o processo deva prosseguir.
Alegam, no entanto, os recorrentes que a norma do artigo 181.º, n.º 1, do CPP é inconstitucional, quando interpretada no sentido de que pode manter-se a apreensão dos bens quando tenha já sido ultrapassado o prazo máximo de duração do inquérito sem que tenha sido proferido qualquer despacho de acusação ou arquivamento pelo Ministério Público, por considerarem que deixa então de haver fundamento para a restrição ao direito de propriedade dos arguidos e são, além disso, postos em causa o princípio da presunção de inocência do arguido e o direito ao processo célere, consagrados no n.º 2 do artigo 32.º da CRP.
Conforme o Tribunal Constitucional tem sublinhado noutras ocasiões e constitui entendimento doutrinário assente, o direito de propriedade, tal como previsto no artigo 62.º, n.º 1, da Constituição, não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições definidas noutros lugares do texto constitucional ou na lei, quando a Constituição para ela remeter, ainda que possa tratar-se de limitações constitucionalmente implícitas (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4.ª edição revista, Coimbra, pág. 801; Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, Coimbra, pág. 628).
Referindo-se especialmente às apreensões em processo penal (estando então em causa a norma do artigo 178.º, n.º 3, do CPP de 1987, na sua redacção originária), o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87 (publicado no Diário da República n.º 33, 1.ª série, de 9 de Fevereiro de 1987), afirmou que as apreensões, quando autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária, nos casos referidos nesse preceito, não podem deixar de considerar-se um limite imanente ao direito de propriedade, daí se extraindo a sua completa conformidade com a garantia constitucional. E, na mesma linha de orientação, o acórdão 340/87 (publicado no Diário da República n.º 220, 2.ª série, de 24 de Setembro de 1987) entendeu que o artigo 108.º do Código Penal de 1982 (também na sua redacção originária), quando prevê a perda a favor do Estado de objectos de terceiro, não é inconstitucional, por violação do direito de propriedade, por ser de considerar que esse direito constitucional pode ser sacrificado em homenagem aos valores da segurança das pessoas, da moral ou da ordem pública enquanto elementos constitutivos do Estado de Direito democrático.
No caso vertente, não se vê que a manutenção da aprensão de quantias para além dos prazos legalmente fixados para o termo do inquérito, represente uma restrição ilegítima do direito de propriedade por violação do princípio da proporcionalidade, designadamente na sua dimensão de adequação aos fins visados pela lei.
Vimos que a apreensão tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado (cf. Damião da Cunha, Perda de bens a favor do Estado, Centro de Estudos Judiciários, 2002, pág. 26), e, nesse sentido, tem pleno cabimento que enquanto providência processual instrutória ela possa manter-se até à fase de julgamento e venha apenas a ser declarada extinta com a sentença final (absolutória ou condenatória), quando nela tenha sido entretanto fixado o destino a dar aos bens apreendidos.
A apreensão de bens ou valores que constituam o produto do crime não está relacionada, por isso, com quaisquer vicissitudes processuais, mas unicamente com os próprios fins do processo penal, e é justificada à luz do interesse da realização da justiça, nas suas componentes de interesse na descoberta da verdade e de interesse na execução das consequências legais do ilícito penal.
E neste plano de compreensão tem relevo chamar a atenção para o facto de estarmos perante formas de criminalidade económica-financeira organizada que é de muito difícil prova e relativamente à qual o legislador sentiu necessidade, através da mencionada Lei 5/2002, de adoptar medidas especiais de controlo e repressão, mediante a derrogação do segredo fiscal e bancário, para facilitar a investigação criminal (artigos 2.º a 5.º), a permissão do registo de voz e de imagem, como específico meio de produção de prova (artigo 6.º), e a previsão de um mecanismo especial de perda de bens a favor do Estado tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através da actividade criminosa (artigo 7.º) sobre estes aspectos, Damião da Cunha, ob. cit., págs. 7-10).
Num outro plano, os recorrentes invocam ainda a violação do princípio da presunção da inocência do arguido e do direito ao processo célere, tal como consagrados no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição.
Não existindo dúvidas, no âmbito do processo, quanto ao alcance do primeiro dos princípios enunciados, e aceitando que este possa representar, no ponto em que mais releva para o caso, a proibição de antecipação de uma pena, haverá de convir-se que a manutenção da apreensão de valores, destinando-se a funcionar como elemento de prova a ser considerado nas fases ulteriores do processo e como garantia patrimonial de uma eventual medida de perda de bens a favor do Estado, não põe em causa esse parâmetro constitucional. Desde logo, porque não fica de nenhum modo excluído que, nos precisos termos do artigo 186.º, se venha a determinar a restituição dos bens apreendidos ao seu titular, quer porque se reconheça, no decurso do processo, a desnecessidade da apreensão para efeitos probatórios, quer porque, na decisão final, se considere não verificada a prática dos factos ilícitos que eram imputados aos arguidos.
Não é, por conseguinte, a circunstância de a apreensão subsistir para além dos prazos legalmente fixados para a conclusão do inquérito, como vem alegado, que poderá implicar uma violação do princípio da presunção da inocência do arguido, visto que nada fica decidido quanto ao destino a dar às quantias apreendidas e é a própria natureza da medida processual (meio de obtenção de prova e medida cautelar) que justifica que possa manter-se até ao termo do processo.
Por identidade de razão, não é o prolongamento da situação de apreensão de bens que pode pôr em causa o direito ao processo célere, enquanto garantia de defesa do arguido. Esta pode considerar-se afectada, de algum modo, pelo esgotamento dos prazos de conclusão do inquérito - caso tenha efectivamente ocorrido -, visto que, por si, essa eventualidade é determinante de um atraso na resolução final do processo (ainda que possa discutir-se se é suficiente para que se considere violado o princípio constitucional).
Não há, no entanto, uma directa correlação entre a manutenção da apreensão e a possível violação do direito ao processo célere, porquanto não é a pretendida restituição dos quantias apreendidas que poderá obstar a que processo prossiga e impedir a consequência processual negativa que advenha da demora na ultimação do processo do inquérito.
Nenhum motivo existe, por conseguinte, para que se considerem verificados os invocados vícios de inconstitucionalidade.
III - Decisão. - Termos em que se decide negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC para cada um deles.
Lisboa, 29 de Maio de 2008. - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Gil Galvão.