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Acórdão 274/2007, de 18 de Junho

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Sumário

Não julga inconstitucional a interpretação dos artigos 174.º, n.º 5, e 177.º, n.º 2, no sentido de admitir a tempestividade da comunicação de uma busca realizada a coberto do disposto no artigo 174.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal, dentro do prazo de apresentação dos arguidos detidos para 1.º interrogatório judicial; não julga inconstitucional a norma resultante dos artigos 174.º, n.º 4, alínea a), e 177.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada "no sentido de que para efeitos de apreciação e validação de busca domiciliária realizada é suficiente que o juiz de instrução valide as detenções dos arguidos e aprecie os indícios existentes nos autos em ordem à fixação de uma medida de coacção, sem expressa e ou inequivocamente declarar que valida a busca realizada"

Texto do documento

Acórdão 274/2007

Processo 360/2007

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A - Relatório. - 1 - Alan Patrick Sullivan e Brian Thomas Murphy, melhor identificados nos autos, recorrem para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na redacção actual (LTC), do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12 de Dezembro de 2006, pretendendo ver sindicada a constitucionalidade da norma do artigo 174.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a comunicação da realização de uma busca, realizada a coberto dos "artigos 174.º, n.º 4, alínea a), e 177.º, n.º 2, do mesmo diploma, pode ser efectuada conjuntamente com a apresentação dos arguidos detidos, no prazo de quarenta e oito horas", e da norma resultante dos artigos 174.º, n.º 4, alínea a), e 177.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada "no sentido de que para efeitos de apreciação e validação de busca domiciliária realizada, é suficiente que o juiz de instrução valide as detenções dos arguidos e aprecie os indícios existentes nos autos em ordem à fixação de uma medida de coacção, sem expressa e ou inequivocamente declarar que valida a busca realizada", em ambos os casos por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.

2 - Na parte ora relevante, a decisão recorrida tem o seguinte teor:

"7.2 - 2.ª questão (a nulidade da busca):

Suscitam os recorrentes a nulidade da busca invocando dois fundamentos:

A ausência da comunicação imediata da realização da busca ao juiz;

A não validação dessa busca.

7.2.1 - As buscas domiciliárias podem ser efectuadas pelos órgãos de polícia criminal, designadamente, nos casos 'de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou integridade física de qualquer pessoa' [artigos 177.º, n.º 2, e 174.º, n.º 4, alínea a), ambos do CPP].

Nesse caso, 'a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação' (artigo 174.º, n.º 5, do CPP).

A lei não diz o que deve entender-se pela expressão 'imediatamente comunicada ...', mas não pode deixar de se entender, por um lado, ao sentido atribuído a tal expressão na linguagem comum, pois 'o intérprete presumirá que o legislador ... soube exprimir o seu pensamento em termos adequados' (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), por outro, aos fins visados com tal comunicação imediata da realização da diligência ao juiz de instrução.

Imediatamente significa, em suma, 'de modo imediato, sem demora', 'urgentemente', 'o mais rapidamente possível'; por outro lado, com aquela comunicação imediata visa o legislador assegurar um controlo efectivo da legalidade da diligência (e da legalidade das provas assim obtidas), de modo a garantir que a mesma - enquanto intromissão na vida privada de alguém - se revelava necessária e proporcionada aos fins visados, sem deixar de ter em conta, também, as circunstâncias concretas em que ela se realiza, muitas vezes integrada numa complexidade de factos e diligências que não permitem a sua imediata comunicação ao juiz de instrução, sob pena de se frustrarem os fins visados com a investigação, que não se circunscrevem àquela diligência.

Pretende-se, em suma, procurar uma situação de equilíbrio entre os fins visados com a busca e a investigação dos ilícitos que justificam a sua realização, por um lado, e o respeito pelos direitos dos cidadãos, maxime dos arguidos, que se visam acautelar com um controlo efectivo da legalidade da busca pelo juiz de instrução.

Ora, tendo em conta, por um lado, a complexidade (e gravidade) dos factos em investigação, que resulta, quer dos crimes em causa (pelos quais os arguidos vieram a ser pronunciados: um crime de sequestro, um crime de homicídio qualificado, um crime de profanação/ocultação de cadáver e um crime de detenção ilegal de arma de defesa) quer da quantidade dos arguidos envolvidos (cinco), por outro, a complexa organização do processo/expediente - que se infere daqueles factos, mas que resulta de outras diligências documentadas nos autos e referenciadas no despacho de pronúncia - para ser presente com os arguidos (detidos) ao juiz de instrução, temos de considerar:

Que a apresentação do expediente (relativo à busca) ao juiz de instrução, juntamente com os arguidos (detidos) para 1.º interrogatório judicial (no dia 17 de Setembro de 2005), foi efectuada num prazo razoável, ou seja, o mais rapidamente possível, atentas as circunstâncias do caso, apreciadas de acordo com os critérios da razoabilidade e do bom senso (não faria sentido, contrariamente ao alegado, que nesse complexo de diligências de investigação, em que está a ser preparado/organizado todo o expediente para apresentar ao juiz de instrução, juntamente com os arguidos, detidos, para 1.º interrogatório judicial, que a comunicação da busca merecesse tratamento privilegiado e isolado em relação à apresentação dos arguidos, quando é certo que os elementos de prova nela recolhidos eram essenciais para o interrogatório e seriam necessariamente aí considerados);

Que - como se argumentou no despacho recorrido - não seria razoável (e não resulta que essa fosse a sua intenção) que o legislador pretendesse impor um prazo mais curto para a comunicação da busca ao juiz de instrução do que o imposto para a apresentação do arguido detido para 1.º interrogatório judicial, sendo certo que a privação da liberdade se apresenta como uma restrição mais grave aos direitos dos cidadãos do que a restrição de quaisquer outros direitos;

Que a apresentação desse expediente ao juiz de instrução (que o manuseia, com ele contacta materialmente e aprecia), juntamente com os arguidos detidos para 1.º interrogatório judicial, vale como comunicação da busca (comunicar não é mais do que levar ao conhecimento de ...), pois o juiz de instrução - com tal formalidade e com o interrogatório dos arguidos - tomou necessariamente conhecimento da busca, circunstâncias em que foi realizada e dos elementos de prova recolhidos na mesma, como se demonstra pelo interrogatório efectuado (que incidiu sobre os elementos de prova recolhidos na casa onde foi efectuada a busca) e da necessária referência a tais elementos, designadamente ao cadáver da vítima encontrado na busca.

7.2.2 - Relativamente à validação da busca dir-se-á apenas:

Por um lado, que a nulidade (da diligência) prevista no artigo 174.º, n.º 5, do CPP não resulta da não validação da mesma pelo juiz, mas da sua não comunicação (o que aí se escreve é que 'a realização da diligência é, sob pena de nulidade, comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada ...') - e esta, em face do que se deixa dito, considera-se efectuada com a apresentação do expediente ao juiz juntamente com os arguidos detidos para serem interrogados, designadamente, sobre os indícios recolhidos na busca.

Por outro lado, e mesmo que assim não se entenda, a busca e os elementos de prova nela recolhidos foram apreciados pelo juiz de instrução, como se vê do despacho que validou e manteve a detenção dos arguidos, concretamente porque, em face dos elementos de prova recolhidos e que lhe foram presentes (designadamente os indícios de prova recolhidos na busca), se mostrava fortemente indiciada a prática, por todos os arguidos, em co-autoria material, de um crime de homicídio qualificado, de um crime de ocultação de cadáver e de posse e detenção de arma proibida; tendo o cadáver da vítima e as armas apreendidas sido encontrados no interior da casa onde foi efectuada a busca, não pode deixar de se concluir que o juiz de instrução, fundamentando a sua decisão nessas provas, não só tomou conhecimento da busca e dos elementos de prova nela recolhidos, como a considerou, implicitamente, válida, aceitando e valorando as provas nela recolhidas para validar a detenção dos arguidos e manter os mesmos em prisão preventiva.

Neste sentido podem ver-se, entre outros, os acórdãos da RL de 2 de Outubro de 1994 e de 23 de Junho de 1994, in www.dgsi.pt.

Em sentido idêntico pode ver-se também o acórdão do STJ de 15 de Dezembro de 1998, in www.dgsi.pt, onde se escreveu, em sumário: 'Quanto à validação da busca ... ela resulta inequivocamente do despacho do M.mº Juiz de Instrução Criminal, proferido no dia imediato ao da realização da busca e que validou a detenção do arguido recorrente e lhe aplicou a medida de coacção de prisão preventiva expressamente com base nas quantidades de produtos estupefacientes apreendidos quando o arguido lhe foi presente para interrogatório, acompanhado do auto de notícia - no qual é relatada a detenção do arguido e subsequente busca domiciliária ... - e auto de apreensão da droga ...'."

3 - Notificados para o efeito, os recorrentes apresentaram as suas alegações, tendo concluído a sua argumentação dizendo que:

" - O douto acórdão recorrido interpretou a expressão 'imediatamente comunicada ...', ínsita no artigo 174.º, n.º 5, do CPP, com o sentido de que o OPC pode comunicar a realização de uma busca, realizada a coberto dos artigos 177.º, n.º 2, e 174.º, n.º 4, alínea a), do CPP, no tempo em que apresenta o expediente para audição de arguido detido para 1.º interrogatório, ou seja, quarenta horas após a realização daquela diligência, ainda que o tribunal se encontrasse aberto para expediente.

2 - Tal impõem os interesses constitucionais em causa, tendo em conta que foi feita uma busca domiciliária sem qualquer despacho prévio de qualquer autoridade judiciária.

3 - A Constituição Portuguesa considera o direito ao domicílio como um direito inviolável.

4 - Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (*), 'O direito à inviolabilidade de domicílio é ainda um direito à liberdade da pessoa pois está relacionado, tal como o direito à inviolabilidade de correspondência, com o direito à inviolabilidade pessoal (esfera privada espacial, previsto no artigo 20.º), considerando-se o domicílio como projecção espacial da pessoa e a correspondência como exteriorização da própria pessoa.'.

5 - É assim, desde logo, por força de pertinentes e incontornáveis imperativos constitucionais, nomeadamente do artigo 34.º da CRP, que faz depender a validade e admissibilidade destas medidas da observância das pertinentes normas de autorização constantes da lei processual penal.

6 - Estão em causa direitos tão nucleares como a privacidade, o sigilo da correspondência e das telecomunicações, a inviolabilidade do domicílio e dos espaços vedados ao público.

7 - Na verdade, como já explanado, entendemos que tais normais deverão ser interpretadas com o sentido de que é excessivo um prazo superior às vinte e quatro horas seguintes à prática do acto processual - uma busca -, em horário de funcionamento normal dos serviços do Tribunal e dos OPC, atendendo à simplicidade do acto em si, para a comunicação imediata exigida pela lei.

8 - O douto acórdão também interpretou a norma constante dos artigos 177.º, n.º 2, e 174.º, n.º 4, alínea a), e n.º 5, do CPP com o sentido de que a nulidade aí prevista não resulta da não validação da busca pelo juiz mas da sua não comunicação. De todo o modo, entende o douto acórdão recorrido que a circunstância de o juiz ter apreciado os elementos resultantes dessa busca, implicitamente a validou.

9 - O n.º 5 do artigo 174.º do CPP configura um pressuposto complementar e irrenunciável do específico regime legal das buscas.

10 - Com tal clareza, contra o qual só à custa de frontal violação da lei se pode invocar uma validação tácita, decorrente de decisão posterior a decretar a prisão preventiva.

11 - Dúvidas não existem, que é imposto ao juiz de instrução (juiz das liberdades), uma apreciação em concreto de uma busca domiciliária sem autorização judicial.

12 - Até porque, só existindo um despacho judicial que aprecie em concreto a validade da busca, é que é possível ao arguido exercer o seu direito de recurso.

13 - A busca realizada deverá ser expressamente apreciada e validada pelo juiz de instrução, debruçando-se este, concretamente, sobre a validade do meio de obtenção de prova: ou de outra forma, tais normas devem ser interpretadas com o sentido de que, por ser formal e substancialmente diferente, o juiz de instrução deve apreciar a regularidade de realização de uma busca e assim validá-la, não o fazendo com a mera actividade de validar a detenção ou de sopesar, para fins completamente diferentes (para fixação de uma medida de coacção), o resultado indiciário deste meio de obtenção de prova.

14 - Consideramos, pois, que a interpretação dada pelo tribunal a quo ao artigo 174.º, n.º 4, alínea a), e n.º 5, e ao artigo 177.º, n.º 2, do CPP, com o sentido de que para efeitos de apreciação e validação (nos termos do n.º 5 já citado) de busca domiciliária realizada (ao abrigo das citadas normas), basta e é suficiente (encontrando-se o M.mº JIC a realizar essa operação de apreciação e validação da busca), que este valide as detenções dos arguidos e aprecie os indícios existentes nos autos em ordem à fixação de uma medida de coacção, sem expressa e ou inequivocamente declarar que valida a busca realizada, inquina de inconstitucionalidade aquelas normas, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.

(*) Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., 2007."

4 - Por sua vez, o procurador-geral-adjunto, no Tribunal Constitucional, contra-alegou, concluindo que:

"1.º Não constitui restrição desproporcionada à tutela constitucional do domicílio o entendimento segundo o qual é tempestiva a comunicação ao juiz da realização de uma busca domiciliária dentro do prazo de 48 horas, procedendo-se à apresentação conjunta do expediente que a corporiza e do próprio arguido detido.

2.º Não viola qualquer princípio constitucional o entendimento segundo o qual é passível de interpretação o despacho judicial subsequente a tal comunicação, tendo-se a busca domiciliária por validada quando o juízo de validação, embora não expresso, constitua antecedente lógico indispensável, implícito no acto que considerou inquestionavelmente válida a aquisição processual dos meios probatórios facultados por tal diligência."

B - Fundamentação. - 5 - Como se referiu, as questões de constitucionalidade colocadas no presente recurso surgem delimitadas por referência aos artigos 174.º, n.º 4, alínea a), e 177.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Tais normas, sistematicamente inseridas no capítulo II ("Das revistas e buscas") do título III ("Dos meios de obtenção da prova") do livro III ("Da prova") do Código de Processo Penal, têm o seguinte teor literal:

"Artigo 174.º

Pressupostos

1 - Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista.

2 - Quando houver indícios de que os objectos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca.

3 - As revistas e buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela entidade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência.

4 - Ressalvam-se das exigências contidas no número anterior as revistas e as buscas efectuadas por órgão de polícia criminal nos casos:

a) De terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática de iminente crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;

b) Em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou

c) Aquando da detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.

5 - Nos casos referidos na alínea a) do número anterior, a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação.

Artigo 177.º

Busca domiciliária

1 - A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade.

2 - Nos casos referidos no artigo 174.º, n.º 4, alíneas a) e b), as buscas domiciliárias podem também ser ordenadas por órgão de polícia criminal. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 174.º, n.º 5.

3 - ...

4 - ...

Por sua vez, os preceitos constitucionais tidos por violados - artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.os 1 e 2, da CRP - têm a seguinte redacção:

"Artigo 32.º

Garantias de processo criminal

1 - ...

2 - ...

3 - ...

4 - ...

5 - ...

6 - ...

7 - ...

8 - São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

9 - ...

10 - ...

"Artigo 34.º

Inviolabilidade do domicílio e da correspondência

1 - O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis.

2 - A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei.

3 - ...

4 - ..."

Passemos, então, a considerar as questões postas pelos recorrentes.

6 - Como é consabido, a axiologia fundamentante do processo penal surge, hodiernamente, entretecida com o direito constitucional, em termos que permitem desvelar uma "estrita ligação" entre estes dois âmbitos jurídicos dogmáticos - cf. Acórdão 7/87 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 9 de Fevereiro de 1987 e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9.º vol., pp. 7 e segs.) -, bem ilustrada no entendimento de que aquele direito adjectivo corporiza, em substância, verdadeiro "direito constitucional aplicado".

Essa relação de interferência normativa fundamentante está na base da afirmação, no artigo 32.º da Constituição, "[d]os mais importantes princípios materiais do processo criminal - [condensados n]a constituição processual criminal" (v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., vol. I, Coimbra, 2007, p. 515).

Nesse mesmo preceito constitucional - no seu n.º 8 - consta uma referência ineliminável ao problema da obtenção da prova, claramente elucidativa de que o nosso legislador constituinte ponderou e valorou os interesses subjacentes ao processo penal, modelando esse horizonte jurídico em referência ao princípio suprapositivo da tutela da dignidade humana, daí resultando, como se disse no Acórdão 7/87, 'uma estrutura processual que permita, eficazmente, tanto averiguar e condenar os culpados criminalmente, como defender e salvaguardar os inocentes de perseguições injustas', tendo em conta, por outro lado, a 'válida conciliação de dois princípios ético-jurídicos fundamentais: o princípio da reafirmação, defesa e reintegração da comunidade ético-jurídica - i. e., do sistema de valores ético-jurídicos que informam a ordem jurídica, e que encontra a sua tutela normativa no direito material criminal -, e o princípio do respeito e garantia da liberdade e dignidade dos cidadãos, i. e., os direitos irredutíveis da pessoa humana' (A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967-1968, I, citado no acórdão supra-referido).

Na mesma linha, escreve-se no referido aresto, reproduzindo Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974), que:

"O processo penal constitui um dos lugares por excelência em que tem de encontrar-se a solução do conflito entre as exigências comunitárias e a liberdade de realização da personalidade individual. Aquelas podem postular, em verdade, uma 'agressão' na esfera desta; agressão a que não falta a utilização de meios coercivos (prisão preventiva, exames, buscas, apreensões) e que mais difícil se torna de justificar e suportar por se dirigir a meros 'suspeitos' - tantas vezes inocentes - ou mesmo a 'terceiros' [...].

Daí que ao interesse comunitário na prevenção e repressão da criminalidade tenha de pôr-se limites - inultrapassáveis quando aquele interesse ponha em jogo a dignitas humana que pertence mesmo ao mais brutal delinquente; ultrapassáveis, mas só depois de cuidadosa ponderação da situação, quando conflitue com o legítimo interesse das pessoas em não serem afectadas na esfera das suas liberdades pessoais para além do que seja absolutamente indispensável à consecução do interesse comunitário. É através desta ponderação e justa decisão do conflito que se exclui a possibilidade de abuso do poder [...] e se põe a força da sociedade ao serviço e sob controlo do direito; o que traduz só, afinal, aquela limitação do poder do Estado pela possibilidade de livre realização da personalidade ética do homem que constitui o mais autêntico critério de um verdadeiro Estado de direito [...].

Daqui resultam, entre outras, as exigências correntes: de uma estrita e minuciosa regulamentação legal de qualquer indispensável intromissão, no decurso do processo, na esfera dos direitos do cidadão constitucionalmente garantidos; de que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial de tais direitos, mesmo quando a Constituição concede àquela liberdade para os regulamentar; de estrito controlo judicial da actividade de todos os órgãos do Estado [...]; de proibição de provas obtidas com violação da autonomia ética da pessoa, mesmo quando esta consinta naquela [...]"

Assim, do mesmo passo que numa certa perspectiva se tem realçado, como o fez o Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht - BVerfG; v. Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts - BverfGE -, 33, 383), que "na medida em que o princípio do Estado de Direito contém uma ideia de justiça como componente essencial [...], ele exige também a manutenção de uma administração de justiça capaz de funcionar, sem o que não se pode ajudar a justiça a vingar [...], [devendo reconhecer-se] as necessidades irrenunciáveis de uma acção penal eficaz [...], acentuado o interesse público numa investigação da verdade, o mais completa possível, no processo penal, indicando o esclarecimento dos crimes graves como tarefa essencial de uma comunidade orientada pelo princípio do Estado de Direito", também a doutrina tem recordado a existência de "limites intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal" (Manuel da Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, p. 117) que decorrem do reconhecimento de que "quando em qualquer ponto do sistema ou da regulamentação processual penal, esteja em causa a garantia da dignidade da pessoa - em regra do arguido, mas também de outra pessoa, inclusive da vítima -, nenhuma transacção é possível. A uma tal garantia deve ser conferida predominância absoluta em qualquer conflito com o interesse - se bem que, também ele legítimo e relevante do ponto de vista do Estado de direito - no eficaz funcionamento do sistema de justiça penal" (Figueiredo Dias, "Para uma reforma global do processo penal português. Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais", in Para Uma Nova Justiça Penal, Coimbra, 1983, p. 207).

E também este Tribunal, abordando, no seu Acórdão 578/98 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Fevereiro de 1999), o tema da prova em processo penal, não deixou igualmente de lembrar que:

"[...] no processo penal, vigora o princípio da liberdade de prova, no sentido de que, em regra, todos os meios de prova são igualmente aptos e admissíveis para o apuramento da verdade material, pois nenhum facto tem a sua prova ligada à utilização de um certo meio de prova preestabelecido pela lei. E recorda-se que também a busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico.

É que o Estado, como titular que é do ius puniendi, está interessado em que os culpados de actos criminosos sejam punidos; só tem, porém, interesse em punir os verdadeiros culpados: satius esse nocetem absolvi innocentem damnari sentenciavam os latinos.

O Estado está, por isso, igualmente interessado em garantir aos indivíduos a sua liberdade contra o perigo de injustiças. Está interessado, desde logo, em defendê-los 'contra agressões excessivas da actividade encarregada de realizar a justiça penal' (cf. Eduardo Correia, 'Les preuves en droit pénal portugais', in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, 1967, p. 8).

Existe um dever ético e jurídico de procurar a verdade material. Mas também existe um outro dever ético e jurídico que leva a excluir a possibilidade de empregar certos meios na investigação criminal.

A verdade material não pode conseguir-se a qualquer preço: há limites decorrentes do respeito pela integridade moral e física das pessoas; há limites impostos pela inviolabilidade da vida privada, do domicílio, da correspondência e das telecomunicações, que só nas condições previstas na lei podem ser transpostos. E existem também regras de lealdade que têm de ser observadas.

Numa síntese aproximativa, pode dizer-se, com Eduardo Correia, que determinada prova é inadmissível 'quando a violação das formas da sua obtenção ou da sua produção entra em conflito com os princípios cuja importância ultrapassa o valor da prova livre' (cf. ob. cit., p. 40); numa palavra: quando aqueles valores e princípios são lesados 'a um tal ponto que as razões éticas que impõem precisamente a verdade material não podem deixar de a proibir) (ob. cit., p. 35)'."

Ora, se nestas considerações se denota a tensão particular que está subjacente ao nódulo problemático que as presentes questões de constitucionalidade densificam, ilustrando o referente axiológico-normativo aqui presente, importará agora, projectando tal pressuposto dogmático, reflectir sobre os termos em que a tutela jusfundamental do domicílio surge constitucionalmente configurada, em articulação com o regime processual das buscas domiciliárias, principaliter na parte controvertida no presente recurso.

6.1 - O direito à inviolabilidade do domicílio, com assento no artigo 34.º da CRP - bem como, para além de muitos outros ordenamentos jurídicos, no artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e no artigo 17.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos -, pode entender-se, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição ..., cit., p. 541), como "um direito à liberdade da pessoa pois está relacionado [...] com o direito à inviolabilidade pessoal (esfera privada espacial, previsto no artigo 26.º), considerando-se o domicílio como projecção espacial da pessoa".

Tal entendimento vem sendo também acolhido por este Tribunal cf., inter alia, os Acórdãos n.os 507/94 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28.º vol., 1994, p. 463) e 364/2006 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) -, que vem tratando este direito fundamental "dimensionado e moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de intimidade da vida privada" (Acórdão 67/97, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol., p. 247).

Concretizando o sentido emergente dessa jurisprudência, dir-se-á agora, apenas, que a inviolabilidade do domicílio densifica um direito fundamental que garante à pessoa, numa precipitação que traduz o reconhecimento da sua dignidade ética e concretiza "a tutela jusfundamental do seu livre desenvolvimento (cf. artigo 26.º), um elementar espaço de vida" - elementaren Lebensraum -, ou uma "esfera privada espacial" - räumliche Privatsphäre (cf. BverfGE 51, 97 e BverfGE 109, 279), colocada na livre disponibilidade do seu titular.

Formulação esta que acompanha de perto as considerações vertidas no recente Acórdão de 4 de Março de 2004 do Bundesverfassunsgericht (BverfGE 109, 279 e igualmente disponível em www.bundesvefassungsgericht.de/entscheidungen/rs20040303-1bvr237898.html), onde se considerou que "a inviolabilidade do domicílio (Unverletzlichkeit der Wohnung) está intimamente relacionada com a dignidade humana e, ao mesmo tempo, com o mandamento constitucional de respeito incondicional por uma esfera do cidadão para um exclusivamente privado - 'personalíssimo' - desenvolvimento (eine ausschließlich private - eine 'höchstpersönliche' - Entfaltung)", daí decorrendo a necessidade de garantir o "direito de ser deixado em paz", maxime no que concerne às "dependências domiciliares" onde a pessoa desenvolve, em reserva, a sua vida privada.

Em todo o caso, se não se duvida de que o respeito pela inviolabilidade do domicílio constitui "uma condição de integridade da pessoa e a sua protecção deve ser considerada actualmente como um aspecto da protecção da 'dignidade humana'" (mutatis mutandis, assumem-se aqui as reflexões tecidas a propósito da protecção da vida privada por Paulo Mota Pinto, in "A protecção da vida privada e a constituição", Boletim da Faculdade de Direito - BFDUC -, Coimbra, 2000, p. 164), importará igualmente reconhecer que tal direito não pode configurar-se, em absoluto, como um direito de conteúdo ou âmbito material ilimitado em face de outros direitos ou interesses tutelados sub species constitutionis.

Nessa linha e como refere Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª ed., Coimbra, 2001, p. 79), pode afirmar-se que a "autonomia dos direitos fundamentais como instituto jurídico-constitucional é, afinal, o reflexo da autonomia ética da pessoa, enquanto ser simultaneamente livre e responsável. E, como esta, é ao mesmo tempo irrecusável e limitada. [§] Irrecusável, porque a liberdade dos homens não pode confundir-se com a justiça social ou com a democracia política, nem ser-lhes sacrificada [...] [§] Limitada, porque o homem individual, destinado ou condenado a viver em comunidade, tem também deveres fundamentais de solidariedade para com os outros e para com a sociedade, obrigando-se a respeitar as restrições e as compressões indispensáveis à acomodação dos direitos dos outros e à realização dos valores comunitários, ordenados à felicidade de todos [...]".

E um reflexo imediato dessa ponderação encontra-se logo nos termos com que a própria Constituição define a tutela da "inviolabilidade do domicílio", autorizando, no n.º 2 do artigo 34.º, a "entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade" quando ordenada pela "autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei", e, no n.º 3 do mesmo preceito, que "em situação de flagrante delito ou mediante autorização judicial em casos de criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo o terrorismo e o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes, nos termos previstos na lei", o acesso não consentido ao domicílio de uma pessoa possa ser realizado mesmo durante a noite.

Do mesmo passo, ainda em idêntico plano, importará também acentuar que a própria Constituição, no artigo 32.º, n.º 8, apenas sanciona com nulidade as provas obtidas mediante intromissão na vida privada que deva ser considerada abusiva.

Como este Tribunal já afirmou, ainda que noutro contexto problemático (cf. Acórdão 137/2002 - publicado no Diário da República, 2.ª série, de 3 de Abril de 2002), "não há dúvida de que o princípio da investigação ou da verdade material, sem prejuízo da estrutura acusatória do processo penal português, tem valor constitucional. Quer os fins do direito penal, quer os do processo penal, que são instrumentais daqueles, implicam que as sanções penais, as penas e as medidas de segurança apenas sejam aplicadas aos verdadeiros agentes de crimes, pelo que a prossecução desses fins, isto é, a realização do direito penal e a própria existência do processo penal só são constitucionalmente legítimas se aquele princípio for respeitado), acaba por admitir uma intromissão na intimidade da vida privada ao ressalvar da inviolabilidade do domicílio e da correspondência a ingerência das autoridades públicas nos casos previstos na lei em matéria de processo penal (cf. artigo 34.º, n.º 2 - 'A entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei' - e n.º 4 - 'É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal')".

Por sua vez, e quanto ao carácter não ilimitado da inviolabilidade do domicílio, e mesmo perante a redacção vigente do artigo 34.º da Constituição, refira-se que o Acórdão 7/87 considerou que, mesmo sem autorização judiciária, as buscas domiciliárias efectuadas no âmbito da investigação de criminalidade violenta ou organizada não atentariam contra a Constituição, desde que existisse perigo iminente da prática de um crime com grave risco para a vida ou para a integridade de uma pessoa, porquanto "o direito à inviolabilidade do domicílio [...] deve[r] compatibilizar-se com o direito à vida e à integridade pessoal, consignados respectivamente nos artigos 24.º e 25.º da lei fundamental [...], direitos que hão-de entender-se como limites imanentes do direito em causa" (cf., também, João Conde Correia, "Qual o significado de abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações (artigo 32.º, n.º 8, 2.ª parte da CRP)?", in Revista do Ministério Público, n.º 79, 1999, pp. 55 e segs.).

E tal contextualização permite compreender e enquadrar, num plano axiológico-normativo, a admissibilidade das buscas domiciliárias, enquanto meio de obtenção da prova em processo penal e, do mesmo passo, a justificação material do seu regime, maxime no que concerne com a intervenção garantística do juiz de instrução, exigida, como se deu conta no Acórdão 114/95 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Abril de 1995), "pela preocupação de controlar a legalidade e, bem assim, garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, no caso, a inviolabilidade do domicílio".

Já no que concerne aos termos em que essa intervenção é exigida e concretizada, importa notar que a nossa lei processual penal estabelece, como regime-regra, a necessidade da realização de uma busca domiciliária ser precedida, sob pena de nulidade, de autorização judicial (artigo 177.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

Admite-se, porém, que, em certas circunstâncias (tipificadas no artigo 174.º, n.º 4, ex vi artigo 177.º, n.º 2), essa busca possa ser "ordenada pelo Ministério Público ou efectuada por órgãos de polícia criminal", sem depender dessa autorização prévia, sendo que, quando a busca for justificada pela ocorrência de "terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade física de qualquer pessoa", a realização da diligência deve ser imediatamente comunicada ao juiz de instrução para que este a aprecie em ordem a uma validação a posteriori (artigos 177.º, n.º 2, e 174.º, n.º 5, do Código de Processo Penal).

Regime este que, em termos de direito "comparado", não se afasta dos caracteres fundamentais presentes noutras experiências jurídicas.

De facto, mesmo existindo algum polimorfismo no modo como a matéria é regulamentada noutros ordenamentos jurídicos, não será inapropriado referir que o regime pátrio não diverge essencialmente da regulamentação processual penal além-fronteiras no que diz respeito à necessidade de ponderar algumas situações de facto onde a urgência na realização da diligência, em confronto com a tutela de bens jurídicos fundamentais, justifica um tratamento diferenciado ao nível dos pressupostos definidos para a sua concretização (cf. Mario Chiavario e outros, Procedure penali d'Europa, 2.ª ed., Milão, 2001), seja mediante a previsão de formas de autorização não escritas, seja prescindindo de autorização prévia para a realização da diligência.

Assim sucede, inter alia, na Bélgica (op. cit., p. 76), na França (op. cit., p. 141), na Alemanha (op. cit., p. 205), na Inglaterra (op. cit., p. 259), na Espanha (cf. Francisco Javier Matia Portilla, "Delito flagrante e inviolabilidad del domicilio", in Revista española de derecho constitucional, n.º 42, 1994, pp. 197 e segs., e Marcos Francisco Massó Garrote, "Nota jurisprudencial sobre los aspectos constitucionales de la inviolabilidad del domicilio a la luz de la nueva regulacion procesal y material", in Revista de las Cortes generales, n.º 29, 1993, pp. 147 e segs.) e na Itália (op. cit., p. 320), sendo que, neste último ordenamento, admitindo-se, nas hipóteses tipificadas no artigo 352.º, n.º 1, do Códice di Procedura Penale, a realização de uma busca pelo ufficiale di polizia giudiziaria sem prévia autorização, estabelece-se um prazo de quarenta e oito horas para que tenha lugar a comunicação da realização da diligência, devendo a autoridade judiciária competente proceder à sua validação no prazo de quarenta e oito horas após a referida comunicação.

6.2 - No caso dos autos, questiona-se, em face dos parâmetros constitucionais considerados, uma dimensão normativa do artigo 174.º, n.º 5, por referência ao disposto no artigo 177.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que contende, precisamente, com a tramitação processual subsequente à realização de uma busca domiciliária realizada sem prévia autorização judicial.

Anote-se que os recorrentes não questionam a constitucionalidade dos referidos preceitos enquanto deles se extrai a admissibilidade da busca domiciliária não judicialmente autorizada, mas apenas numa dimensão normativa que admita que a comunicação ao juiz da realização da diligência, nos termos do referido artigo 174.º, n.º 5, possa ter lugar no prazo de quarenta e oito horas após a sua realização.

Atentos os limites decorrentes do quadro constitucional suprabalizado, a nossa Constituição endossa ao legislador o estabelecimento de critérios susceptíveis de autorizar a "entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade", não definindo, recta via, qualquer prazo para a comunicação ao órgão judicial competente da realização de uma busca domiciliária.

Compreende-se que, sendo a comunicação da busca um pressuposto material da emissão de um juízo cometido à função jurisdicional (artigo 202.º, n.º 2, da Constituição) e, nessa medida, uma conditio sine qua non do controlo jurisdicional da legalidade da sua realização, aquela comunicação - e este controlo - deva ser cumprida, tendo em conta a especificidade/complexidade de cada problema concreto, sem delongas injustificadas, como resulta do sentido emprestado pelo advérbio "imediatamente" à imposição posta no artigo 174.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.

Na ausência de uma delimitação temporal precisa, como sucede, por exemplo, com o prazo de apresentação do arguido detido para 1.º interrogatório judicial (v. artigo 28.º da Constituição e 141.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), o acórdão recorrido considerou tempestiva a comunicação ao juiz da realização da busca domiciliária no prazo de quarenta e oito horas, tendo aquela ocorrido conjuntamente com a apresentação dos arguidos detidos.

Ora, este entendimento não merece qualquer censura, não densificando, contrariamente ao alegado, qualquer restrição desproporcionada ao direito à inviolabilidade do domicílio.

Desde logo, não pode olvidar-se que, estando a comunicação da busca preordenada, como se disse, à apreciação da sua legalidade, o expediente que é remetido ao juiz para esse efeito não deve noticiar apenas a realização da diligência, mas toda a contextualização que materialmente a justificou e os termos em que a mesma se concretizou, o que, por sua vez, poderá acarretar a exposição de uma complexidade de factos e anteriores diligências que impossibilite a sua adequada comunicação num momento anterior ao que o tribunal a quo teve como razoável e justificado.

Aliás, perscrutando os fundamentos da decisão recorrida, denota-se, com meridiana clareza, que o tribunal justificou o critério normativo aplicado com base no facto da comunicação da busca ter sido realizada "o mais rapidamente possível", tendo em conta "por um lado, a complexidade (e gravidade) dos factos em investigação, que resulta, quer dos crimes em causa (pelos quais os arguidos vieram a ser pronunciados: um crime de sequestro, um crime de homicídio qualificado, um crime de profanação/ocultação de cadáver e um crime de detenção ilegal de arma de defesa) quer da quantidade dos arguidos envolvidos (cinco), por outro, a complexa organização do processo/expediente - que se infere daqueles factos, mas que resulta de outras diligências documentadas nos autos e referenciadas no despacho de pronúncia - para ser presente com os arguidos (detidos) ao juiz de instrução".

Por outro lado, cumpre igualmente notar que o prazo de quarenta e oito horas foi igualmente justificado com base no argumento de que "não seria razoável (e não resulta que essa fosse a sua intenção) que o legislador pretendesse impor um prazo mais curto para a comunicação da busca ao juiz de instrução do que o imposto para a apresentação do arguido detido para 1.º interrogatório judicial, sendo certo que a privação da liberdade se apresenta como uma restrição mais grave aos direitos dos cidadãos do que a restrição de quaisquer outros direitos".

Ora, a interferência deste argumento sistemático, mas também valorativo, na determinação do sentido jurídico-normativo do critério aplicado pelo tribunal é claramente pertinente.

De facto, o prazo constante do artigo 28.º, n.º 1, da Constituição da República (onde se dispõe que "a detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa"), traduz, relativamente ao direito e garantia fundamental da liberdade, precisamente um reflexo da ponderação de interesses supra-referida (n.º 6.1), pela mão do legislador constituinte, norteada por um critério de necessidade, adequação e estrita proporcionalidade e traduzida numa autorizada compressão do direito à liberdade (artigo 27.º do diploma fundamental) em face do interesse associado à prossecução da justiça penal.

Ora, mutatis mutandis, igual ponderação, pelo menos, será de admitir também em face de uma compressão da esfera de reserva delimitada pelo domicílio.

E, in casu, essa ponderação não pode ser indiferente ao facto de o domicílio já ter sido objecto de realização de uma busca, materialmente justificada por outros valores ou bens jurídicos constitucionalmente tutelados, e não apenas os decorrentes do ius puniendi estatal, susceptíveis de "prevalecer sobre a garantia constitucional de reserva de juiz" (cf. Acórdão 7/87 e Ana Luísa Pinto, "Aspectos problemáticos do regime das buscas domiciliárias", in Separata da Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2005, p. 435), estando no momento em causa a sua comunicação para efeito da sua validação a posteriori, sendo que no referente à questão do momento oportuno para essa validação da diligência, este Tribunal já considerou (cf. Acórdão 192/2001, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 17 de Julho de 2001, e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50.º vol., p. 295), que a própria "sanação a posteriori da nulidade consubstanciada na omissão de validação imediata de buscas não domiciliárias" não atenta contra as garantias de defesa dos arguidos tipificadas no artigo 32.º, n.os 1 e 8, da Constituição.

Tal entendimento, aqui reiterado, estribou-se na consideração de que apesar de ser "certo que, até à validação da busca e podendo, entretanto, prosseguir a investigação com base nos resultados dessa diligência, existe um momento de incerteza sobre a verificação dos pressupostos legais da mesma diligência, com o aparente risco de vir a ser proferida uma decisão de não validação quando aqueles resultados já proporcionaram a obtenção de outras provas", a verdade é que "mesmo neste caso - de hipotética não validação - o [...] regime estabelecido no artigo 122.º do CPP assegura que os actos subsequentes sejam declarados inválidos se dependerem do acto que não obtém a necessária validação".

Com isto fica acautelado o direito dos arguidos de não verem valoradas jurisdicionalmente as provas obtidas por uma busca domiciliária cuja legalidade não foi jurisdicionalmente sindicada.

Em conclusão: não se afigura desrazoável, arbitrária ou desproporcionada uma interpretação dos artigos 174.º, n.º 5, e 177.º, n.º 2, no sentido de admitir a tempestividade da comunicação de uma busca realizada a coberto do disposto no artigo 174.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal, dentro do prazo de apresentação dos arguidos detidos para 1.º interrogatório judicial.

6.3 - Os recorrentes controvertem também a constitucionalidade da norma resultante dos artigos 174.º, n.º 4, alínea a), e 177.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada "no sentido de que para efeitos de apreciação e validação de busca domiciliária realizada, é suficiente que o juiz de instrução valide as detenções dos arguidos e aprecie os indícios existentes nos autos em ordem à fixação de uma medida de coacção, sem expressa e ou inequivocamente declarar que valida a busca realizada", em ambos os casos por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.

Mas ao recorte da questão de constitucionalidade emergente da dimensão normativa destes preceitos, tal qual foi definida pelos recorrentes mais em função dos termos em que se mostra expressado o concreto juízo judicativo-decisório do que em face da enunciação em abstracto do critério legal aplicando, importa precisar que foi, também, entendimento do acórdão recorrido que, ocorrendo apresentação dos arguidos para o 1.º interrogatório judicial acompanhada dos elementos em que se traduzira e resultaram da busca, o interrogatório foi também sobre os indícios nela recolhidos e que o juiz, efectivamente, fez uma apreciação desta e desses elementos de prova "em face dos elementos de prova recolhidos e que lhe foram presentes", para, com base na sua implícita e necessariamente pressuposta validade, concluir pela validação da detenção dos arguidos e manutenção dos mesmos em prisão preventiva.

A questão agora colocada passa por ponderar se os referidos parâmetros constitucionais autorizam, no contexto normativo circunstancialmente em causa, um juízo de validação implícita do acto que determinou a aquisição dos elementos probatórios concretamente apreciados pelo juiz, como foi admitido, como ratio decidendi, pelo Acórdão recorrido, onde se deixou consignado que "a busca e os elementos de prova nela recolhidos foram apreciados pelo juiz de instrução, como se vê do despacho que validou e manteve a detenção dos arguidos, concretamente porque, em face dos elementos de prova recolhidos e que lhe foram presentes (designadamente os indícios de prova recolhidos na busca), se mostrava fortemente indiciada a prática, por todos os arguidos, em co-autoria material, de um crime de homicídio qualificado, de um crime de ocultação de cadáver e de posse e detenção de arma proibida; tendo o cadáver da vítima e as armas apreendidas sido encontrados no interior da casa onde foi efectuada a busca, não pode deixar de se concluir que o juiz de instrução, fundamentando a sua decisão nessas provas, não só tomou conhecimento da busca e dos elementos de prova nela recolhidos, como a considerou, implicitamente, válida, aceitando e valorando as provas nela recolhidas para validar a detenção dos arguidos e manter os mesmos em prisão preventiva".

Como já se disse, a intervenção judicial em sede de autorização e validação das buscas domiciliárias configura uma dimensão essencialmente garantística direccionada a legitimar uma intervenção estatal num domínio de reserva constitucionalmente garantido como direito fundamental.

Nessa medida, será essencial que a autoridade judicial, tomando conhecimento da realização de uma busca domiciliária realizada com base no regime vertido no artigo 174.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal, formule um juízo sobre a legalidade da diligência, sendo essa decisão, como não se discutirá, uma conditio sine qua non de valoração dos elementos probatórios adquiridos nessa diligência.

Ora, podendo reconhecer-se que estes dois momentos podem diferenciar-se de modo cortante quando considerados em termos estáticos, deverá também aceitar-se que, em termos dinâmicos, um juízo que tenha por válidos os elementos probatórios decorrentes de uma busca que está a ser sujeita a apreciação judicial, traduz em si, de forma inequívoca, uma decisão - necessariamente pressuposta - quanto à validação da diligência e à possibilidade de valoração desses elementos, sendo certo que, existindo esse juízo de validação, permanecerão intocáveis os direitos do arguido no sentido de se haver por legitimada a intervenção dos órgãos de polícia no seu domicílio.

E, nesse quadro, é certo que, como bem nota o representante do Ministério Público junto deste Tribunal, "mais do que os termos literais ou verbais do despacho, o que releva é que, da interpretação da decisão em causa, se possa deduzir, de forma incontroversa e inquestionável, que o juiz teve por válidos os elementos probatórios obtidos através da busca submetida a apreciação jurisdicional", sendo indubitável, face ao teor da decisão recorrida, que o Tribunal assentou num critério normativo concretizado na exigência de um juízo relativo à legalidade da busca em causa.

Por outro lado, e independentemente de saber-se se a validação tácita corresponde à melhor interpretação do direito infraconstitucional, não poderá, também, deixar de mencionar-se que, na óptica dos direitos invocados pelos recorrentes - traduzidos na inviolabilidade do domicílio e na nulidade das provas obtidas mediante abusiva intromissão naquele -, fundamental será apenas que o tribunal tenha por válida a obtenção da prova materializada numa busca domiciliária: existindo essa validação, expressa ou implícita, ficará sempre sancionada, legitimada, a realização da diligência.

E idêntica conclusão é imposta quando, para lá daqueles parâmetros jusfundamentais, se invoquem as garantias de defesa e o direito ao recurso dos arguidos.

De facto, tendo os arguidos conhecimento da realização da busca e dos pressupostos que a justificaram, e, para além disso, tendo sido concretamente confrontados com os elementos probatórios recolhidos, encontram-se em plenas condições para sindicar jurisdicionalmente - como, aliás, vieram a fazer - a realização da diligência e a valoração dos elementos probatórios nela colhidos.

C - Decisão. - 7 - Destarte, atento o exposto, decide-se negar provimento ao recurso.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.

2 de Maio de 2007. - Benjamim Rodrigues - João Cura Mariano - Rui Pereira - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1574407.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1987-02-09 - Acórdão 7/87 - Tribunal Constitucional

    Declara não se pronunciar pela inconstitucionalidade dos artigos 108.º, n.º 2, alínea b); 135.º, n.os 2 e 3; 174.º, n.os 3 e 4; 177.º, n.º 2, com referência ao artigo 174.º, n.º 4, alíneas a) e b); 178.º, n.º 3; 187.º, n.º 1; 190.º; 200.º; 250.º, n.º 3; 251.º, n.º 1; 252.º, n.º 3; 263.º; 270.º, n.º 1; 281.º, n.os 3 e 5, salvo, quanto a este último número, consequencialmente, na parte em que ele remete para o n.º 4; 286.º, e 337.º n.os 1, alínea a), e 3, e pronunciar-se pela inconstitucionalidade dos artigos (...)

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