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Acórdão 196/2007, de 17 de Maio

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Sumário

Não julga inconstitucional o artigo 24.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase processual subsequente à dedução da acusação, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração previamente junta aos autos

Texto do documento

Acórdão 196/2007

Processo 960/06

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Felismina Dulce Machado Peralta interpôs recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção introduzida pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro (Lei do Tribunal Constitucional), do Acórdão da Relação do Porto de 7 de Junho de 2006, que não se pronunciou no sentido da "inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 24.º [n.º 1, alínea d) ou b)] do Código de Processo Penal no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase processual subsequente à dedução da acusação, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração previamente junta aos autos, por violação das garantias de defesa do arguido em processo penal e do direito de escolha do defensor, previstos no artigo 32.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa". Esse acórdão revogou o despacho do Tribunal da Comarca de Espinho de 14 de Junho de 2005, "no segmento em que afirmou o juízo de inconstitucionalidade que se acabou de não acolher e, consequentemente, naquele outro que determinou a cessação da conexão dos processos, com o respectivo consectário (nulidade da acusação, na parte respeitante à arguida Felismina Dulce Machado Peralta), e o não conhecimento "das demais irregularidades suscitadas pelos arguidos'' (conhecimento que, agora, na medida do ajustado, é necessário)".

A recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade "do artigo 24.º do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase processual subsequente à dedução da acusação, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração previamente junta aos autos, por violação das garantias de defesa do arguido em processo penal e do direito de escolha do defensor (n.os 1 e 3 do artigo 32.º da CRP)".

A recorrente apresentou alegações, nas quais sustenta e conclui o seguinte:

"I - Decidiu o meritíssimo juiz do Tribunal da Comarca de Espinho (processo de inquérito) "[d]eclarar, no entanto, nos termos do artigo 204.º da CRP, inconstitucional esse artigo 24.º do CPP, quando interpretado no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase processual subsequente à dedução de acusação, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração junta aos autos, por violação das garantias de defesa do arguido em processo penal e do direito de escolha do defensor" (artigo 32.º, n.os 1 e 3, da CRP) (v. despacho de 14 de Junho de 2005, a fl. 145).

II - Perante recurso do Ministério Público, o acórdão do venerando Tribunal da Relação do Porto deu provimento ao recurso, não declarando "a inconstitucionalidade do artigo 24.º, n.º 1, alíneas d) ou b) do C. Processo Penal", no sentido exposto no n.º 1, revogando o despacho, quanto ao juízo de inconstitucionalidade, e a decisão que determinava a cessação da conexão dos processos.

III - Foram, no essencial, fundamentos do acórdão a consideração de que "se um arguido não pode ser defensor de si mesmo, também o não pode ser de outro arguido" posto que as normas processuais demarcam o estatuto processual do arguido e defensor considerando a cessação da conexão de processos concluiu o acórdão no sentido de que as garantias de defesa "em tese, não são (ou podem ser) realizadas com segurança bastante, quando alguém confere mandato judicial a advogado que se indiciou ter participado na prática criminosa que se imputa àquele", concluindo que as normas estatutárias demonstram esse aspecto, referindo-se ao Estatuto da Ordem dos Advogado. Concluiu-se por considerar que existe uma compressão do direito contido no artigo 32.º, n.º 3, mas positiva considerando as garantias de defesa. "[N]ão a imposição de qualquer defensor, mas a exclusão de um determinado [...] sob pena de as normas constitucionais, desta natureza, se verem [...] esvaziadas de conteúdo".

IV - Discordando com o sentido da decisão, muito respeitosamente, defende a recorrente que na presente causa se questiona não a cessação da conexão no sentido dos seus efeitos, mas a validade de decisão da conexão, quando esta põe em causa o direito de escolha do defensor, sabendo-se que o mandato foi anterior ao conhecimento dos factos a que se referia o inquérito.

V - Entende-se, neste caso, na modesta opinião da recorrente, que, existindo um preceito constitucional que lhe garante o direito à escolha de um defensor, não lhe pode este ser coarctado por norma inferior que provoque a conflitualização desse direito.

VI - Considerando-se no acórdão que as garantias de defesa "não são (ou podem ser) realizadas com segurança bastante, estando em causa defensor e arguida indiciados no mesmo crime" não se esclarece, no modesto entender da arguida, que o que está em causa é a sua subjectividade e, neste sentido, as suas decisões podem revelar-se positivas ou negativas, "condicionando" dessa forma as suas garantias de defesa.

VII - Nomeadamente, não sendo a justiça gratuita (sendo certo que a recorrente não tem direito ao apoio judiciário), logo na decisão de escolha do seu defensor considera o factor económico que naturalmente interagem com a realização das garantias de defesa.

VIII - É certo que se pode pôr em causa "o agir desapaixonado", mas pode ganhar-se noutras vertentes, certeza absoluta de bom empenho, maior conhecimento da situação real, quer na vertente física, quer das motivações, economia financeira, etc., por outro lado, não se pensa que exista conflito com as normas estatutárias da Ordem dos Advogados, pois em processo civil o advogado pode representar-se a si próprio e ao cônjuge, sendo certo que, virtualmente, pelo menos, existem (ou podem existir) conflitos de interesses.

IX - O que está em causa é saber-se se é possível decidir-se pela conexão de processos, no caso em que um dos arguidos é defensor do outro, desconhecendo-se à data da constituição do mandato que mandante e mandatário eram ou viriam a ser indiciados pela prática de factos idênticos.

X - A arguida logo no seu requerimento a fl. 126 considerou ofendidos os preceitos constitucionais [dos artigos] 32.º, n.º 3, e 18.º

XI - É que, entende-se com modéstia, e a devida reverência por outras interpretações, que ao negar-se o direito à escolha de defensor, no caso de arguidos, no mesmo processo em que um é defensor de outro, por livre escolha, está-se a comprimir o direito de defesa, não estando em causa se essa compressão é positiva ou negativa (entende-se que as decisões subjectivas poderão ser positivas ou negativas reveladas no agir e não postuláveis a anteriori - claro que no campo da subjectividade que constitucionalmente se deixa ao livre arbítrio do interessado), mas, refere-se, que não é esta a situação. Arguido e defensor, embora indiciados pela mesma situação, eram sujeitos de inquéritos autónomos, deixando de existir conflitos entre as normas que definem o estatuto do arguido e do defensor.

XII - Aliás, as garantias de defesa, sendo constitucionalmente garantidas, com toda a carga de subjectividade inerente, não são apanágio exclusivo do nosso direito, mas antes um princípio fundamentante do Estado de direito, que, nesse seu modo de ser, se preocupa, naturalmente, com essas garantias.

XIII - Razão porque vem consagrado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem [v. o artigo 6.º, n.º 3, alínea c)], onde se consideram como mínimo o direito de "[d]efender-se a si próprio ou ter a assistência de um defensor da sua escolha e, se não tiver meios para remunerar um defensor", considerando-se como os direitos mínimos garantidos aos acusados, ora se são mínimos, como admitir uma compressão destes?

XIV - A carga de subjectividade que se quer garantir a qualquer cidadão, quando acusado, não pode e não deve ser impedida, sob pena de se interferir na livre capacidade de o acusado definir a sua estratégia de defesa perante uma acusação que lhe é feita.

XV - Entende-se, com muita modéstia, e, respeitando mais sabidas opiniões, que preceitos como este contêm uma carga, além de jurídica, eminentemente política. O Estado, ou melhor, a comunidade no seu sentido de soberania, enquanto organização de superstrutura vocacionada para a gestão e direcção dos interesses nacionais, ou internacionais, procura garantir que o seu agir seja questionável, precisamente por ser um Estado de direito, que não se permite que resvale para um Estado totalitário, por exemplo. Tal concepção não se compagina com o cerceamento da subjectividade nas garantias de defesa do acusado.

XVI - É claro que limitar o direito à defesa, no caso de arguido e defensor, também arguido no mesmo processo, impedindo a nomeação de defensor arguido, não põe por si em causa o Estado de direito, até porque estão garantidas outras modalidades, mas o que é certo é que é ferida a subjectividade que se quer deixar livre, entendendo-se que estes preceitos pretendem garantir essa mesma subjectividade sem possibilidade de interferência do Estado.

Nestes termos decidindo V. Exas. Venerandos Conselheiros do Tribunal Constitucional em declarar inconstitucional o artigo 24.º do CPP, quando interpretado no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase processual subsequente e anterior à dedução de acusação, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração junta aos autos, por violação das garantias de defesa do arguido em processo penal e do direito de escolha do defensor (artigo 32.º, n.os 1 e 2, da CRP), farão inteira justiça."

O Ministério Público contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso e concluindo nos termos seguintes:

"1 - Não é inconstitucional a norma do artigo 24.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase ulterior e prévia à dedução de acusação, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração junta aos autos.

2 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso."

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentos. - 2 - O presente recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, visando a apreciação da conformidade com a Constituição da República Portuguesa do artigo 24.º do Código de Processo Penal, numa certa interpretação ("quando interpretado no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase processual subsequente à dedução da acusação, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração previamente junta aos autos"), adoptada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto recorrido.

Dispõe esse artigo 24.º, "Casos de conexão", do Código de Processo Penal:

"1 - Há conexão de processos quando:

a) O mesmo agente tiver cometido vários crimes através da mesma acção ou omissão;

b) O mesmo agente tiver cometido vários crimes, na mesma ocasião ou lugar, sendo uns causa ou efeito dos outros, ou destinando-se uns a continuar ou a ocultar os outros;

c) O mesmo crime tiver sido cometido por vários agentes em comparticipação;

d) Vários agentes tiverem cometido diversos crimes em comparticipação, na mesma ocasião ou lugar, sendo uns causa ou efeito dos outros, ou destinando-se uns a continuar ou a ocultar os outros; ou

e) Vários agentes tiverem cometido diversos crimes reciprocamente na mesma ocasião ou lugar.

2 - A conexão só opera relativamente aos processos que se encontrarem simultaneamente na fase de inquérito, de instrução ou de julgamento."

Segundo a recorrente, "o que está em causa não é a cessação da conexão no sentido dos seus efeitos, mas a consideração de que não deveria ter sido ordenada a conexão dos processos, pois tenderiam a conflituar com o direito de escolha de defensor"; e que, "existindo um preceito constitucional que lhe garante o direito à escolha de um defensor, não lhe pode este ser coarctado por norma inferior que provoque a conflitualização desse direito" (n.os 9 e 10 das alegações de recurso).

No acórdão recorrido disse-se a fl. 92 dos autos:

"Mas não será, então, que as coisas se modificam com a separação dos processos, decorrente da cessação da conexão?

Não vemos que assim seja.

É que não podemos esquecer, desde logo, que os arguidos continuam a ser, em relação a uma mesma prática criminosa (cuja configuração em termos de substância é a dos círculos concêntricos, sem que se nos depare, nela, qualquer sentido centrífugo; dito de outro modo, a forma do crime, em relação aos arguidos, permanece rigorosamente igual), os mesmos, somente divergindo, então, uma certa perspectiva formal, qual seja a da inexistência de uma unidade processual.

Mas mesmo nesta hipótese, a realidade não é totalmente cortada [v. o impedimento e seu específico recorte constante do artigo 133.º, n.os 1, alínea a), e 2, do C. de Processo Penal].

Depois, e agora na perspectiva das garantias de defesa de que aquela prescrição, como se disse, é emanação, certamente que se não pode questionar que as mesmas, à partida, e em tese, não são (ou podem ser) realizadas, com segurança bastante, quando alguém confere mandato judicial a advogado que se indiciou ter participado na prática criminosa que se imputa àquele.

E de tal maneira as coisas assim são que não deixamos de ver este aspecto como que demonstrado por normas estatutárias, que, se bem vemos, não aconselhava (impunha, mesmo, que em circunstâncias tais o segundo não se disponibilizasse para que o primeiro lhe conferisse mandato judicial), sendo elas as que regem os impedimentos (artigo 78.º, n.º 1), a independência (artigo 84.º), os deveres para com a comunidade (artigo 85.º, n.º 1), os princípios gerais nas relações com os clientes (artigo 92.º, n.º 2), e os conflitos de interesses (artigo 94.º, n.º 1, este e aqueles do Estatuto da Ordem dos Advogados)."

Vê-se, pois, que o Tribunal a quo adoptou o sentido impugnado pela recorrente, não só devido à decisão de permitir a conexão de processos, nos termos do disposto no artigo 24.º do Código de Processo Penal, mas pelo que considerou ser uma afectação das garantias de defesa resultante de um arguido conferir "mandato judicial a advogado que se indiciou ter participado na prática criminosa que se imputa àquele". Quer dizer, é a circunstância de os arguidos (representado e representante) o serem em relação a uma mesma prática criminosa que, nos termos da decisão recorrida, obsta, em fase processual subsequente à dedução da acusação, também em virtude do disposto no artigo 133.º, n.os 1, alínea a), e 2, do Código de Processo Penal, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração previamente junta aos autos.

Nestes termos, a questão em causa consiste, então, em apurar se a dimensão normativa questionada afecta, em termos inconstitucionais, o direito do arguido de escolher defensor e de ser por ele assistido em todos os actos do processo, que constitui umas das vertentes das garantias de defesa do arguido constitucionalmente reconhecidas, nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 32.º da Constituição.

3 - O Tribunal Constitucional não se pronunciou ainda sobre a questão de constitucionalidade referida. Todavia, já teve ocasião de se pronunciar sobre o problema de saber se são inconstitucionais normas que limitam a escolha do defensor, a propósito da possibilidade de o arguido que seja advogado pretender, nesta última qualidade, assumir a sua própria defesa. Fê-lo através do Acórdão 578/2001 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 51.º vol., pp. 655 e segs., e disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que não julgou inconstitucionais as normas constantes dos artigos 61.º, 62.º e 64.º do Código de Processo Penal, que vedam a autodefesa do arguido, mesmo que advogado. Disse-se então, entre o mais:

"5 - Significará isto que os direitos fundamentais consistentes no asseguramento da totalidade das garantias de defesa em processo penal e na liberdade de escolha de defensor por parte do arguido impõem que este (naquele tipo de processo), ao menos sendo advogado, se o desejar, possa defender-se a si mesmo?

A esta questão responde o Tribunal negativamente.

Efectivamente, a tese do recorrente só seria de aceitar se se partisse de uma posição de harmonia com a qual, sendo o arguido um advogado (regularmente inscrito na respectiva Ordem), a sua "auto-representação" no processo criminal contra si instaurado representasse, de modo objectivo, um melhor meio de se alcançar a sua defesa e se a lei processual penal não reconhecesse ao arguido um conjunto de direitos processuais estatuídos, verbi gratia, nos artigos 61.º, n.º 1, e 63.º, n.º 2, quanto a este último avultando o de poder, pelo mesmo arguido, ser retirada eficácia a actos processuais praticados pelo seu defensor em seu nome, se assim o declarar antes da decisão a tomar sobre tal acto.

E é justamente dessa posição que se não pode partir.

Não se nega que, na óptica (naturalmente subjectiva) do recorrente, este possa entender que a sua defesa em processo criminal seria melhor conseguida se fosse prosseguida pelo próprio na qualidade de "advogado de si mesmo", do que se fosse confiada a um outro advogado.

Só que, como este Tribunal já teve oportunidade de salientar (cf. o citado Acórdão 252/97), "há respeitáveis interesses do próprio interessado, a apontar para a intervenção do advogado, mormente no processo penal", sendo certo que, "mesmo no caso de licenciados em Direito, com reconhecida categoria técnico-jurídica, a sua representação em tribunal através de advogado, em vez da auto-representação, tem a inegável vantagem de permitir que a defesa dos seus interesses seja feita de modo desapaixonada", ou, como se disse no Acórdão 497/89 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14.º vol., pp. 227 a 247), "mesmo relativamente aos licenciados em Direito (enquanto parte) se pode afirmar, com Manuel de Andrade (in Noções Elementares de Processo Civil, p. 85), que 'às partes faltaria a serenidade desinteressada (fundamento psicológico) [...] que se fazem mister à boa condução do pleito'".

A opção legislativa decorrente da interpretação normativa em causa, que exige que o arguido, mesmo que advogado, seja defendido por um advogado que não ele, não se vê que seja contraditada pela Constituição.

O agir desapaixonado torna-se, desta arte e de modo objectivo, uma garantia mais acrescida no processo criminal, o que só poderá redundar numa mais-valia para as garantias que devem ser prosseguidas pelo mesmo processo, sendo certo que, como se viu acima, ao se não poder silenciar a corte de outros direitos consagrados ao arguido pela lei adjectiva criminal, isso redunda na conclusão de que se não descortina uma diminuição constitucionalmente censurável das garantias que o processo criminal deve assegurar.

De outro lado, como resulta da transcrição do acima citado comentador da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o preceituado na alínea c) do n.º 3 do artigo 6.º não impede os Estados aderentes de imporem, por via legislativa, a obrigação da representação dos arguidos por intermédio de advogado.

Sequentemente, não se vislumbra que a interpretação normativa em causa seja colidente com qualquer preceito ou princípio constante da lei fundamental."

4 - Ora, é incontestável que se não pode confundir a proibição de autodefesa com a limitação de escolha de um advogado que se vem a indiciar, posteriormente ao mandato, ter também participado na prática criminosa que se imputa ao arguido, e que, por isso, é constituído arguido. Mas isso não significa que as considerações transcritas não possam também ter aplicabilidade neste último caso, quando está em causa a posição de advogado que posteriormente vem a ocupar a posição de co-arguido no mesmo processo.

Com efeito, e como se assinalou, o desinteresse ou independência do advogado em relação à questão a decidir no processo penal podem ser considerados - desde logo, pelo legislador - como exigências do efectivo direito de defesa, e constituem para o advogado simultaneamente um direito e um dever. Hoje, o dever de independência, que se encontrava estabelecido no artigo 76.º, n.º 2, do antigo Estatuto da Ordem dos Advogados, além de constar de norma própria, tem uma formulação mais ampla que a anterior, afirmando-se no artigo 84.º do actual Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei 15/2005, de 26 de Janeiro, que o advogado, "no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros". Justamente por isso, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Ed., 2007, p. 520), não deixam de notar que, "do ponto de vista institucional, [o defensor] é uma parte no processo e um "órgão independente da justiça", o que aponta para uma posição jurídica materialmente independente, quer perante o tribunal quer perante o constituinte".

As reflexões da recorrente, no sentido de que "o que está em causa é a sua subjectividade, e, neste sentido, as suas decisões podem revelar-se positivas ou negativas, "condicionando" dessa forma as suas garantias de defesa" (conclusão VI das alegações de recurso), colocadas apenas no plano subjectivo do arguido, não logram infirmar a circunstância de a independência do defensor relativamente ao arguido ser condição de salvaguarda da credibilidade da defesa (neste sentido, Karl-Heinz Gössel, A Posição do Defensor no Processo Penal de Um Estado de Direito, BFD, vol. LIX, pp. 275 e 283). A circunstância de o advogado ser co-arguido no mesmo processo pode, com efeito, ter repercussões negativas na sua própria estratégia de defesa. E, na perspectiva do apuramento da verdade material, o facto de o defensor ser igualmente arguido no mesmo processo pode também influir sobre a defesa, mesmo que não esteja já delineado no caso concreto um claro conflito de "estratégias" de defesa entre os dois arguidos (um dos quais é defensor do outro). Assim, o defensor co-arguido no mesmo processo pode, por exemplo, vir a sentir-se tentado a esconder ou destruir elementos probatórios ou outros, ou, simplesmente, a acentuar ou diminuir aspectos relevantes para a sua defesa, mas que podem contender também com o interesse do arguido.

A independência do defensor constitui um imprescindível ponto de referência na estratégia de defesa do arguido (a opção por determinadas provas em vez de outras, o sublinhar de certos aspectos e não de outros, etc.), e pode influir também sobre o resultado do processo na perspectiva do apuramento da verdade material, não estando, pois, vinculada apenas a um fundamento subjectivo, inteiramente disponível ou prescindível pelo arguido, mas constituindo também uma exigência objectiva desse interveniente no processo. Compreende-se, por isso, que o legislador exclua a possibilidade de pessoas com ligação tão forte com o tema do processo que são igualmente arguidas, e que podem assim vir a ser igualmente condenadas pelos factos discutidos no processo penal, assumirem, ou manterem, o papel de defensor dos seus co-arguidos.

5 - Invoca ainda a recorrente que "não sendo a justiça gratuita (sendo certo que a recorrente não tem direito ao apoio judiciário), logo na decisão de escolha do seu defensor considera o factor económico que naturalmente interagem com a realização das garantias de defesa" (sic, conclusão VII das alegações de recurso).

Este argumento não é, porém, procedente no sentido da inconstitucionalidade, não sendo o interesse na gratuitidade, ou na obtenção de uma defesa menos dispendiosa, aquele que é prosseguido com o direito de escolha do defensor pelo arguido.

Com efeito, não só é a própria Constituição da República, ao garantir o acesso ao direito e aos tribunais, que proíbe a denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, como os requisitos exigidos para o recurso ao instituto do apoio judiciário não se afiguram excessivos.

No caso concreto, apesar de a recorrente não beneficiar de apoio judiciário, nenhum indício existe, aliás, de que a limitação decorrente da dimensão normativa em apreciação - devida à qualidade de co-arguido do defensor escolhido - importa uma inadmissível dificuldade na prossecução da defesa dos interesses do arguido em processo penal, pela escolha de outro defensor, que não seja arguido (ou, muito menos, de que a constituição como arguido do defensor nomeado tenha sido de algum modo pré-ordenada à sua exclusão do papel de defensor, numa actuação que seria claramente "patológica" do titular da acção penal, e que - repete-se - nada indicia).

Por outro lado, a circunstância de, como alega a recorrente, o Estatuto da Ordem dos Advogados consagrar a regra geral segundo a qual os inscritos podem advogar em causa própria e representar os seus cônjuges, o mesmo sucedendo no tocante às normas processuais civis, não implica que se venha a concluir que, não sucedendo isso especificamente para o domínio processual penal, se verifica só por isso a violação do princípio constitucional da igualdade. De facto, como este Tribunal teve já ocasião de afirmar (v. Acórdão 325/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), são diversos os interesses prosseguidos e defendidos num e noutro daqueles processos e a defesa deles não tem de ser prosseguida em termos idênticos, contendendo o processo criminal, as mais das vezes, com a defesa de direitos fundamentais de maior relevância directa e expressamente consagrados até na denominada "constituição penal e processual penal". No processo penal, é característica essencial o distanciamento pessoal da questão e a pureza de entendimento essencial quer à defesa do arguido quer à descoberta da verdade. E compreende-se, assim, que se exija ao defensor uma posição que dificilmente daria tão seguras garantias de independência se não houvesse dissociação pessoal entre o representante, por um lado, e o co-arguido no mesmo processo, por outro.

Pelo que se encontra justificação para a solução plasmada na dimensão normativa em causa nos presentes autos, a qual se não mostra, do ponto de vista de "constrição" de um mais amplo direito de escolha de advogado, como desprovida de razoabilidade ou justeza.

Concluindo-se, assim, que a dimensão normativa impugnada, tal como foi interpretada e aplicada pelo Tribunal a quo, não é incompatível nem com as garantias de defesa do arguido nem com o direito à escolha de defensor, há que negar provimento ao presente recurso.

III - Decisão. - Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucional o artigo 24.º do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de permitir a conexão de processos que obste, em fase processual subsequente à dedução da acusação, à escolha de um arguido, advogado, como defensor de outro arguido, através de procuração previamente junta aos autos;

b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita;

c) Condenar a recorrente em custas, fixando em 20 UC a taxa de justiça.

Lisboa, 14 de Março de 2007. - Paulo Mota Pinto - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - Maria Fernanda Palma - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1566822.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2005-01-26 - Lei 15/2005 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto da Ordem dos Advogados.

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NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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