Acordam, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Por Acórdão do Tribunal Judicial de Arraiolos de 21 de Fevereiro de 2001, a fl. 188, e para o que agora releva, Mário José Garcia foi condenado pela prática de dois crimes de homicídio por negligência, nos termos do disposto nos artigos 10.º, 15.º e 137.º, n.º 1, do Código Penal, em cúmulo jurídico, na pena única de 500 dias de multa, à taxa diária de 2000$, correspondente portanto a um milhão de escudos, bem como na pena acessória de 10 meses de proibição de conduzir veículos motorizados.
Mário José Garcia recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, mas o recurso foi rejeitado pelo Acórdão de 16 de Outubro de 2001, a fl. 251, por não ter conclusões, e, posteriormente, para o Supremo Tribunal de Justiça. Por Acórdão de 7 de Março de 2002, a fl. 283, o recurso foi igualmente rejeitado, por inadmissibilidade.
Mário José Garcia recorreu então para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Évora.
Pelo Acórdão 428/2003 deste Tribunal, de 24 de Setembro, a fl. 330, foi julgada inconstitucional "por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma constante dos artigos 412.º, n.º 1, 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de conclusões da motivação do recurso conduz à rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência".
Por acórdão do Tribunal da Relação de Évora, a fl. 372, foi decidido "conceder provimento ao recurso e, em consequência, anular o julgamento, ordenando o competente reenvio para novo julgamento, a efectuar de acordo com o disposto nos artigos 426.º e 426.º-A, do Código de Processo Penal, a fim de se apurar a situação económica do arguido e quais os seus encargos pessoais", ficando "prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelo recorrente".
A Relação considerou que, tendo o tribunal de 1.ª instância optado por condenar o arguido no pagamento de uma multa, e dependendo o montante da multa das "condições pessoais do agente" e da "sua situação económica" [artigo 71.º, n.º 2, alínea d), do Código Penal], deveria o mesmo Tribunal ter "cumprido o dever de investigar a situação económica e financeira do arguido, bem como os seus encargos pessoais, como se lhe impunha". Não o tendo feito, "fica este Tribunal impedido de, com base nos factos dados como provados, decidir a causa".
2 - Por despacho do juiz do Tribunal Judicial de Arraiolos de 4 de Novembro de 2004, foi determinada a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Avis, para novo julgamento, "a efectuar de acordo com o disposto nos artigos 426.º e 426.º-A do Código de Processo Penal, a fim de se apurar a situação económica do arguido e quais os seus encargos pessoais".
Conforme consta da acta da audiência de discussão e julgamento, realizada em 5 de Janeiro de 2006 após várias vicissitudes, e apenas para o que agora interessa, o mandatário do arguido arguiu a nulidade da constituição do colectivo de juízes por o integrar um juiz que fizera parte do colectivo que julgara a causa no Tribunal de Arraiolos, o que foi indeferido. O Tribunal considerou não ocorrer qualquer nulidade, desde logo por não estar previsto o caso no artigo 123.º do Código de Processo Civil, apenas podendo eventualmente verificar-se uma irregularidade. Julgou, todavia, "indeferida tal irregularidade, ordenando [...] o prosseguimento da audiência para se apurar do ordenado no douto acórdão de fls. 382 e 383 dos autos".
Consta ainda da acta que o arguido prestou declarações mas que, quer o seu mandatário, quer o Ministério Público, prescindiram do depoimento das testemunhas arroladas.
Por Acórdão de 11 de Janeiro de 2006, a fl. 583, o Tribunal Judicial de Avis manteve a condenação pela prática de dois crimes de homicídio por negligência, nos termos dos mesmos artigos 10.º, 15.º e 137.º do Código Penal, manteve a condenação na pena acessória e reduziu a pena de multa para Euro 2500, pelos seguintes motivos:
"No presente caso, não obstante as [...] necessidades de forte prevenção geral que este tipo de casos reclama, cremos, ainda assim, dever privilegiar-se a faceta menos intensa da prevenção especial (o arguido não deixa de ser o que se costuma apelidar de uma pessoa de bem, já com uma avançada idade, à beira de completar os 75 anos, não obstante a falha em causa nestes autos, a qual teve trágicas consequências). Daí que este Tribunal Colectivo, ponderando em todos os aspectos acima explanados, entenda como adequadas ao caso as penas de 300 dias de multa, à taxa diária de Euro 5, para cada um dos crimes de homicídio por negligência e, em cúmulo jurídico, a pena de 500 dias de multa, à mesma taxa diária, que perfaz a quantia global de Euro 2500".
3 - Mário José Garcia, a fl. 602, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, quer do indeferimento de outra nulidade que arguira, quer do acórdão condenatório, quer "do douto acórdão [despacho] que desatendeu a arguição de nulidade consistente no facto de, tratando-se de julgamento no âmbito do 426.º-A do CPP, o tribunal de reenvio ser presidido por juiz que integrara o anterior colectivo".
Quanto a este último ponto, sustentou na motivação (e repetiu nas alegações) do recurso o seguinte:
"1 - Decretado o reenvio do processo para novo julgamento, decorre do artigo 426.º-A do CPP - com o estabelecer que compete ele ao tribunal de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida que se encontrar mais próximo que do tribunal de segundo julgamento não podem fazer parte quaisquer dos juízes que tenham integrado o primeiro.
2 - É essa a interpretação do preceito consentânea com as disposições da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente do seu artigo 6.º, n.º 1, princípios esses que subjazem ao ordenamento judiciário português e à consagração constitucional da regra de que o processo penal assegura todas as garantias de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da CRP), sob pena de violação desses ontológicos princípios.
3 - O juiz presidente do tribunal recorrido, e porque integrara o colectivo do julgamento anulado, estava impedido de intervir, pelo que, tendo, não obstante, intervindo no julgamento e no acórdão recorrido, violadas foram as apontadas regras e preceitos, com a consequência inevitável da declaração de nulidade do julgamento e anulação do acórdão recorrido (por força também do estatuído nos artigos 118.º e segs. do CPP)."
Enviado o processo para o Tribunal da Relação de Évora, foi o mesmo remetido ao Supremo Tribunal de Justiça, na sequência do despacho a fl. 675.
4 - Por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2006, a fl. 705, foi decidido o seguinte:
"III - Recurso do despacho a fl. 581:
No início da audiência, a fl. 580, o arguido levantou as questões da nulidade da realização da mesma sem a presença do seu defensor escolhido e da nulidade da composição do tribunal colectivo, tendo o presidente do tribunal colectivo indeferido o requerimento, ordenando o prosseguimento da audiência.
[...]
Questão da nulidade do julgamento por violação das regras de constituição do tribunal colectivo.
O presente processo foi julgado num primeiro momento pelo tribunal colectivo da comarca de Arraiolos.
Em recurso interposto pelo arguido, o Tribunal da Relação de Évora ordenou o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos artigos 426.º e 426.º-A do Código de Processo Penal.
O julgamento foi repetido pelo tribunal colectivo da comarca de Avis, constituído pelo juiz presidente, que interviera no anterior julgamento como juiz da comarca de Arraiolos, e por outros juízes adjuntos.
No início do mesmo, o arguido suscitou a questão na nulidade da constituição do tribunal, com fundamento na circunstância de o presidente do tribunal ter intervindo no primeiro julgamento.
O presidente do tribunal indeferiu o que considerou ser uma irregularidade e ordenou o prosseguimento dos autos, invocando jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido de que apenas não poderá integrar o tribunal colectivo o juiz que tenha proferido a decisão recorrida.
Está em causa a aplicação do artigo 426.º-A do Código de Processo Penal.
O n.º 1 dispõe que quando for decretado o reenvio do processo, o novo julgamento compete ao tribunal, da categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida, que se encontrar mais próximo.
O n.º 2 preceitua que quando na mesma comarca existirem mais de dois tribunais da mesma categoria e composição, o julgamento compete ao tribunal que resultar da distribuição.
O recorrente sustenta na motivação do recurso que o juiz presidente estava impedido de intervir, pelo que o julgamento deve ser anulado, nos termos dos artigos 118.º e segs. do Código de Processo Penal.
O Ministério Público, tanto na 1.ª instância como neste Supremo Tribunal tomou posição concordante com a pretensão do recorrente.
Trata-se de saber se, no caso de reenvio do processo para novo julgamento a efectuar por outro tribunal colectivo, na constituição deste pode entrar um dos juízes que intervieram no primeiro julgamento.
Sobre esta questão não tem sido uniforme a jurisprudência deste Supremo Tribunal.
Mencionaremos em seguida alguns dos arestos proferidos, com indicação resumida das posições assumidas.
[...] Como revela a diversidade de posições assumidas na jurisprudência deste Supremo Tribunal, a questão não é de fácil solução.
Há que tomar posição.
Temos para nós que, tendo sido o tribunal colectivo de outra comarca que efectuou o segundo julgamento, foi observado o disposto no artigo 426.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal.
E obedecendo a sua constituição às normas de organização judiciária aplicáveis, designadamente os artigos 105.º da Lei 3/99, de 13 de Janeiro, e 7.º do Decreto-Lei 186-A/99, de 31 de Maio, não se verifica a nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea a), do mesmo Código: violação das regras legais relativas ao modo de determinar a composição do tribunal.
Embora possa impressionar que um dos juízes intervenha nos dois julgamentos, o certo é que não existe norma legal que estabeleça o impedimento da sua participação no segundo julgamento.
Alguns dos arestos citados que adoptaram solução contrária à que ora se perfilha apoiam-se no artigo 40.º do Código de Processo Penal, que prevê os casos de impedimento por participação em processo.
Estabelece esse artigo que nenhum juiz pode intervir em recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver proferido ou em que tiver participado ou no julgamento de um processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva do arguido.
A anterior intervenção do juiz no caso em apreço não integra qualquer das hipóteses aí previstas, pelo que não se pode lançar mão desse preceito para sustentar o impedimento do juiz no segundo julgamento.
E sempre seria de ter presente que a declaração de impedimento não é feita oficiosamente: terá de ser declarada pelo próprio, ou requerida pelos interessados, nos termos do artigo 41.º do Código de Processo Penal.
O afastamento do juiz só pode ser obtido através dos incidentes de recusa e escusa, regulados nos artigos 43.º e segs. do Código de Processo Penal. No n.º 2 do artigo 43.º prevê-se até expressamente como fundamento de recusa ou escusa a intervenção do juiz em fase anterior do processo fora dos casos do artigo 40.º
Afastado o juiz nesses termos, o seu lugar será preenchido por outro juiz segundo as regras de substituição previstas nas leis de organização judiciária.
Deste modo improcede a arguida nulidade do acórdão do tribunal colectivo."
5 - Mário José Garcia recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça "na medida em que desatendeu o recurso do despacho de fl. 581 - na parte respeitante à arguição de nulidade do julgamento por violação das regras de constituição do tribunal colectivo", pretendendo "a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 426.º-A do Código de Processo Penal quando e se interpretado no sentido de que é permitida a intervenção, no tribunal do reenvio do processo, de um dos juízes que já interviera no anterior e anulado julgamento".
Em seu entender, "o acórdão recorrido violou o princípio constitucional de que o processo penal deve garantir ao arguido todos os idóneos meios de defesa, e que vem consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, na vertente designadamente do direito ao julgamento por um tribunal independente, isento e imparcial, princípio que tem também acolhimento no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem".
Notificadas para o efeito, as partes apresentaram alegações, que o recorrente concluiu da seguinte forma:
"a) Decretado que seja o reenvio do processo para novo julgamento, do artigo 426.º-A do CPP - como o estabelecer que compete ele ao Tribunal de categoria e composição idênticas às do Tribunal que proferiu a decisão recorrida que se encontrar mais próximo se interpretado de acordo com as disposições da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente do seu artigo 6.º, n.º 1, cujos princípios subjazem e foram incorporados no ordenamento judiciário português, e se interpretado de acordo com o princípio constitucional de que o processo penal tem que assegurar todas as garantias de defesa vertido no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, desse artigo 426.º-A do CPP, dizia-se, decorre o corolário irrecusável de que o Tribunal de segundo julgamento não pode fazer parte qualquer dos juízes que tenha integrado o primeiro, sob pena de violação desses ontológicos princípios.
b) Interpretação mais ou menos capciosa ou complacente do preceito implicaria a violação dos princípios constitucionais aludidos.
c) Declarada a inconstitucionalidade de tal interpretação, impor-se-á, em consequência, que, no lugar e momento próprio, seja anulado o julgamento viciado, com o que se fará justiça."
Quanto ao Ministério Público, formulou estas conclusões:
"1 - É inconstitucional a norma do artigo 426.º-A do Código de Processo Penal, na interpretação de que em novo julgamento pelo Tribunal Colectivo pode fazer parte um dos juízes, que integrara o anterior, cuja decisão foi anulada, por violação do disposto nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
2 - Termos em que deverá proceder o presente recurso."
6 - O n.º 1 do artigo 426.º-A do Código de Processo Penal (competência para novo julgamento) - só releva o n.º 1, no âmbito deste recurso - tem a seguinte redacção:
"1 - Quando for decretado o reenvio do processo, o novo julgamento compete ao tribunal, de categoria e composição idênticas às do tribunal que proferiu a decisão recorrida, que se encontrar mais próximo."
Constitui, assim, o objecto deste recurso, segundo a definição feita pelo recorrente no requerimento de interposição, a norma do n.º 1 do artigo 426.º do Código de Processo Penal enquanto interpretada "no sentido de que é permitida a intervenção, no tribunal do reenvio do processo, de um dos juízes que já interviera no anterior e anulado julgamento".
A verdade, todavia, é que esta norma apenas foi aplicada a um caso de anulação meramente parcial do julgamento, e em que o reenvio para novo julgamento se destinou, somente, a que o tribunal de 1.ª instância "apura(sse) a situação económica do arguido e quais os seus encargos pessoais", a fim de ser possível fixar o montante da pena de multa, não se questionando, sequer, a opção por esse tipo de pena.
O objecto do recurso tem, assim, de ser restringido em conformidade, já que o Tribunal Constitucional apenas pode apreciar a alegada inconstitucionalidade de normas efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido suscitada oportunamente a respectiva inconstitucionalidade [nos casos dos recursos ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, como agora sucede].
Assim, o Tribunal Constitucional vai apreciar a norma do n.º 1 do artigo 426.º do Código de Processo Penal enquanto interpretada "no sentido de que é permitida a intervenção, no tribunal do reenvio do processo, de um dos juízes que já interviera no anterior e anulado julgamento" quando a anulação apenas teve por objectivo que se apurasse a situação económica e os encargos pessoais do arguido, de forma a ser possível tomar tais elementos em consideração para efeitos da fixação do montante da multa a aplicar.
7 - Como este Tribunal já teve ocasião de escrever no seu Acórdão 324/2006 (Diário da República, 2.ª série, de 30 de Agosto de 2006), foi a Lei 59/98, de 25 de Agosto, que, tendo em conta as alterações então introduzidas no sistema de recursos, acrescentou ao Código de Processo Penal o artigo 426.º-A, relativo à determinação do tribunal competente para o novo julgamento em caso de reenvio do processo para o efeito. Veio, por aquele motivo, substituir o "disposto anteriormente nos artigos 436.º (reenvio determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça) e 431.º (reenvio determinado pelas Relações)".
Também ali se escreveu que esta alteração não foi acompanhada de uma qualquer regra que considerasse motivo de "impedimento [...] que eventualmente venha a intervir no novo julgamento um juiz que participou no primeiro. Os impedimentos, em Processo Penal, constam dos artigos 39.º e 40.º do mesmo Código, não figurando entre eles esta hipótese (diferentemente do que sucede com a intervenção em recurso, prevista no artigo 40.º)".
Acrescenta-se agora que, além do mais, as regras da organização judiciária, como se sabe, também não foram modificadas por forma a evitar coincidência de juízes nos dois julgamentos; trata-se, aliás, de um problema por diversas vezes colocado nos tribunais, como se pode verificar pela jurisprudência indicada no próprio acórdão recorrido.
Torna-se, assim, difícil ao sistema respeitar o objectivo com que a regra da repetição do julgamento anulado pelo tribunal que o proferiu, que vigorava até 1987, foi substituída, e que foi o de que "sendo a repetição do julgamento um mal necessário, pareceu que o reexame da causa poderia ser feito em melhores condições por tribunal diferente" (Cunha Rodrigues, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, o Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, pp. 379 e segs., p. 397). Aparentemente, fica sujeita ao regime definido pelo n.º 2 do artigo 43.º a possibilidade de o próprio juiz pedir escusa ou de ser recusado, caso se ponha a hipótese de intervenção nos dois julgamentos.
8 - O problema colocado ao Tribunal Constitucional não é, todavia, o de saber qual é a solução decorrente das normas de direito ordinário; consiste, apenas, em determinar se, tal como foi interpretada e aplicada ao caso, a norma retirada do n.º 1 do artigo 426.º-A do Código de Processo Penal viola ou não as garantias de defesa do arguido, consagradas no n.º 1 do artigo 32.º, como sustenta o recorrente, ou, ainda, as "garantias de um processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa", como também afirma o Ministério Público.
Em qualquer caso, e independentemente da norma constitucional em concreto violada, o problema colocado por ambas as partes traduz-se em saber se a norma põe ou não em causa a independência e a imparcialidade do julgador de forma constitucionalmente insuportável.
9 - O Tribunal Constitucional já por diversas vezes se debruçou sobre a questão da independência e da imparcialidade do julgador, nomeadamente no âmbito do Processo Penal.
Recorrendo, por exemplo, ao seu Acórdão 124/90 (Diário da República, 2.ª série, de 8 de Fevereiro de 1991), verificamos que sempre o Tribunal Constitucional observou que "num Estado de Direito, a solução jurídica dos conflitos há-de, com efeito, fazer-se sempre com observância de regras de independência e de imparcialidade, pois tal é uma exigência do próprio direito de acesso aos tribunais, que a Constituição consagra no artigo 20.º, n.º 1 (cf., neste sentido, o Acórdão 86/88 deste Tribunal, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Agosto de 1988). A garantia de um julgamento independente e imparcial é, de resto, também uma dimensão - e dimensão importante - do princípio das garantias de defesa, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, para o processo criminal, pois este tem que ser sempre a due process of law.
Para que haja um julgamento independente e imparcial, necessário é que o juiz que a ele proceda possa julgar com independência e imparcialidade.
[...] não pode, porém, esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que "promova" e facilite aquela "independência vocacional".
Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de "administrar justiça". Nesse caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado iudex inhabilis.
Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência e imparcialidade. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que, a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais, ao "administrar a justiça", actuem, de facto, "em nome do povo" (cf. artigo 205.º, n.º 1, da Constituição)".
É com este objectivo de garantir a imparcialidade do julgador que a lei prevê, no caso do Processo Penal, o regime dos "impedimentos, recusas e escusas" (artigos 39.º e segs. do respectivo Código); e foi justamente a propósito das normas respectivas, sobretudo, que se desenvolveu a jurisprudência constitucional relevante (cf., por exemplo, para a história da jurisprudência relativa ao artigo 40.º do Código de Processo Penal, que prevê o "impedimento por participação em processo", o Acórdão 297/2003, Diário da República, 2.ª série, de 3 de Outubro de 2003).
No presente recurso, a alegação de inconstitucionalidade por violação do direito a um julgamento por um tribunal independente e imparcial não é dirigida às normas sobre impedimentos, recusas ou escusas; como se viu, antes é colocada relativamente ao preceito que fixa o modo de determinar qual é o tribunal que, em caso de reenvio do processo para novo julgamento na sequência de anulação do primeiro pelo tribunal de recurso, deve efectuar a repetição.
Isto não significa, naturalmente, que não tenham plena aplicação as considerações atrás transcritas, uma vez que é justamente a quebra da independência e da imparcialidade que o recorrente aponta como justificativa da inconstitucionalidade que suscitou.
10 - Mais concretamente, o recorrente suscita a questão a propósito da constituição do tribunal colectivo que procedeu ao segundo julgamento, constituição essa que, em seu entender, resultou da aplicação de uma interpretação inconstitucional do disposto no artigo 426.º-A do Código de Processo Penal.
O Tribunal Constitucional já analisou a questão da constitucionalidade de normas relativas a participação de juízes que, tendo intervindo em julgamentos anulados em recurso, voltaram a participar no segundo julgamento, por exemplo, nos seus Acórdãos n.os 399/2003 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) e 393/2004 (Diário da República, 2.ª série, de 8 de Julho de 2004).
Assim, no Acórdão 399/2003 negou provimento a um recurso cujo objecto era constituído pelas "normas dos artigos 40.º e 43.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, 'no segmento que permite que os arguidos possam ser julgados por juízes que antes já haviam participado num primeiro julgamento, do qual houve sentença, anulado com a finalidade de se proceder à documentação das declarações prestadas em audiência'".
No Acórdão 393/2004 decidiu "não julgar inconstitucionais as normas dos n.os 1 e 2 do artigo 43.º do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de não constituir, por si só, motivo de recusa da intervenção de juízes em novo julgamento a sua participação em anterior julgamento, que veio a ser considerado consequentemente inválido por força da revogação, em recurso, de despacho que determinara o desentranhamento da contestação e do requerimento de produção de prova apresentados pelo arguido".
Tratava-se, nos dois casos, de anulações não decorrentes da verificação de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, tendo a repetição sido efectuada no mesmo tribunal que julgara pela primeira vez e não nos termos do disposto no artigo 426.º do Código de Processo Penal.
Ambos os acórdãos, aliás, dão relevo a essa diferença. Assim, no Acórdão 399/2003 chama-se a atenção para as duas hipóteses, nestes termos:
"Convém salientar, como refere o Ministério Público nas suas alegações, que, no caso concreto, não está em causa a aplicação dos artigos 426.º e 426.º-A do Código de Processo Penal - que só são convocadas quando o tribunal ad quem julgue verificados vícios intrínsecos quanto ao conteúdo da decisão tomada sobre a matéria de facto pelo tribunal recorrido, tipificados no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal -, mas tão só a mera anulação do processado a partir de determinado acto - no caso, o despacho que indeferir a gravação da prova -, em consequência de ter ocorrido uma nulidade processual, susceptível de reflexamente se repercutir nos ulteriores termos da causa, incluindo o próprio julgamento.
Os vícios tipificados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, reportam-se a vícios intrínsecos quanto ao conteúdo da decisão tomada sobre a matéria de facto - insuficiência ou contradição dos factos e razões que suportam a própria decisão -, ou de erros ostensivos ou patentes na valoração da prova, que pela sua natureza e gravidade constituem verdadeira nulidade de sentença, justificando o reenvio para julgamento noutro tribunal.
Já assim não é quando a anulação do julgamento decorre, não por vícios intrínsecos e lógicos do conteúdo da própria decisão, mas quando a mesma é ditada reflexamente por via da anulação dos actos posteriores em consequência do cometimento de uma nulidade decorrente da tramitação da causa.
Tanto basta, por serem diferentes as situações contempladas no artigo 426.º do Código de Processo Penal, para os casos de reenvio, e a dos presentes autos, para que não se mostre violado o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, existindo um fundamento material bastante que justifica a diferença de tratamento."
Também no Acórdão 393/2004 se escreveu que "no presente caso, não tendo a necessidade de repetição do julgamento resultado da verificação de qualquer dos vícios referidos no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, mas antes surgindo como indirecta e exclusiva consequência do provimento de recurso de despacho proferido no decurso da audiência [...], que havia ordenado o desentranhamento da contestação e do requerimento de produção de prova apresentados pelo arguido, implicitamente entendeu-se - entendimento que, respeitando a interpretação do direito ordinário, não compete ao Tribunal Constitucional censurar - não ser aplicável a regra de o novo julgamento caber a tribunal diferente. E, por outro lado, agora de forma expressa, entendeu-se não ocorrer, no caso, 'risco de ser considerada suspeita' a intervenção no novo julgamento de juízes que haviam participado no anterior, por não 'existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade', justificador da sua recusa."
E entendeu-se que "os fundamentos desenvolvidos para alicerçar o juízo de não inconstitucionalidade, contido no Acórdão 399/2003, são transponíveis para o presente caso [...] Nestes dois casos, diferentemente do que sucede quando a causa do reenvio é a procedência dos vícios elencados no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, não foi posto em causa - nem chegou a ser apreciado - o conteúdo da decisão condenatória, quer em sede de matéria de facto, quer em sede de matéria de direito, nem sequer a coerência lógica da sentença, mas aspectos exteriores à mesma (embora com possibilidade de nela se repercutirem), como a documentação da prova ou a atendibilidade da contestação e a produção de prova requerida pelo arguido, o que terá estado na base do entendimento do legislador de que, nestas hipóteses, nada obsta a que a repetição do julgamento seja feita pelo mesmo tribunal. E, na mesma linha, há que concluir não ser de considerar como desrespeitadora do princípio da imparcialidade do julgador a possibilidade de intervenção dos mesmos juízes (ou de parte deles) que participaram no primeiro julgamento".
11 - Ora, no presente recurso está precisamente em apreciação uma norma aplicável à hipótese de reenvio para novo julgamento, decorrente da ocorrência de um dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
A verdade, todavia, é que, num caso de uma anulação meramente parcial, determinada com o objectivo de ampliar a base factual para permitir a quantificação da pena de multa - não visando, nem eliminar contradições, nem corrigir erros de apreciação da prova -, dificilmente se encontrará motivo para crer que a participação de um juiz que interveio no julgamento anulado implique receio de quebra objectiva da independência ou da imparcialidade do colectivo do segundo julgamento.
Não se quer com isto afirmar que, para as outras hipóteses de reenvio, ocorra ou não um tal receio; apenas se pretende concluir que não infringe, nem o n.º 1 do artigo 32.º, nem o n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, uma norma que permita que, em caso de reenvio para novo julgamento em consequência de uma anulação parcial do julgamento, com o estrito objectivo de determinar a situação económica do arguido, por tal averiguação ter sido omitida, integre o colectivo que realizar o segundo julgamento um dos juízes que participou no primeiro.
12 - Nestes termos, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 7 de Março de 2007. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Vítor Gomes - Bravo Serra - Gil Galvão - Artur Maurício.