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Acórdão 150/2006/T, de 3 de Maio

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Texto do documento

Acórdão 150/2006/T. Const. - Processo 323/2005. - Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente Colombina Maria Oliveira Cristelo Regufe e recorrido o Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do Acórdão daquele Tribunal de 16 de Fevereiro de 2005.

2 - Por despacho do director regional do Ambiente e do Ordenamento do Território do Norte de 7 de Setembro de 2000, foi revogada a licença de utilização do domínio público marítimo n.º 134/2000.

Na sequência desta decisão, foi decidida a reversão gratuita a favor da Administração das instalações fixas correspondentes ao equipamento com função de apoio de praia, com fundamento no disposto no artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 46/94, de 22 de Fevereiro, por despacho da subdirectora regional do Ambiente e do Ordenamento do Território do Norte de 21 de Março de 2001.

Por Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de Fevereiro de 2003 foi negado provimento ao recurso contencioso que a recorrente interpôs do indeferimento tácito do recurso hierárquico então interposto para o Ministro do Ambiente.

Interposto recurso daquele acórdão para o pleno do Supremo Tribunal Administrativo, este Tribunal acordou em negar provimento, com os fundamentos que se seguem:

"3.3 - Vejamos, então, se assiste razão à recorrente.

Neste particular contexto, é de realçar que a recorrente circunscreve a sua censura, no tocante ao acórdão da Secção, à pronúncia nele contida a propósito da por si suscitada questão da inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei 46/94, de 22 de Fevereiro (cf. a sua alegação a fl. 147), preceito que, na sua óptica, estaria em oposição frontal com o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 62.º da CRP, sendo que o acto objecto de impugnação contenciosa ao manter na ordem jurídica o despacho da subdirectora regional do Ambiente, por via do indeferimento tácito do já aludido recurso hierárquico, acaba por enfermar de ilegalidade, por se ter ancorado em norma inconstitucional.

Tal inconstitucionalidade decorreria, em síntese, da circunstância de a questionada norma permitir a reversão, a título gratuito para o Estado, fora do quadro da expropriação e da requisição, de bens pertencentes a particulares.

Como já se viu, o acórdão da Secção não subscreveu a tese defendida pela recorrente, antes concluindo pela constitucionalidade do dito preceito, com a consequente não procedência do vício por si arguido.

Para assim decidir, o referido aresto baseou-se no quadro argumentativo que, seguidamente, se sintetiza:

A licença de utilização para a exploração do 'Diana Bar' tinha sido revogada por despacho de 7 de Setembro de 2000;

Em face da dita revogação teriam de ser removidas do domínio público as instalações desmontáveis e demolidas as obras executadas e as instalações fixas, a menos que, como sucedeu no caso dos autos, a Administração opte pela reversão das obras executadas e das instalações fixas ao abrigo do n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei 46/94;

A recorrente era, apenas, uma das detentoras de uma licença (precária) de utilização do domínio público hídrico, não se podendo, por isso, falar aqui de direito de propriedade, pelo que se não mostra violado o artigo 62.º da CRP.

Ora, efectivamente, é de coonestar o entendimento acolhido no acórdão recorrido, não enfermando o n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei 46/94, de 22 de Fevereiro, da invocada inconstitucionalidade, não afrontando o disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 62.º da CRP.

Em primeiro lugar cumpre salientar que, no caso em apreço, a licença de utilização do domínio público marítimo já não se encontrava vigente na altura em que foi proferido o despacho de 21 de Março de 2001 da subdirectora regional do Ambiente que determinou a já referida reversão dos bens em questão, uma vez que tinha sido revogada por despacho de 7 de Setembro de 2000 do director regional do Ambiente, com fundamento na cessação em Janeiro de 1999 da exploração do 'Café Diana Bar' - cf. o ponto 5 da matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido.

Por outro lado, uma vez revogada a licença, a situação das instalações e das obras executadas ficava sob a alçada do artigo 8.º do Decreto-Lei 46/94, 22 de Fevereiro, dado que, como é óbvio, tudo se passava como se tivesse findado o prazo da licença.

Daí que à Administração assistisse o direito de optar ou pela reversão a título gratuito das obras executadas e das instalações fixas ou pela sua demolição.

Estamos, por isso, na primeira hipótese perante um caso de reversão legal.

Temos, assim, que a situação em análise se reconduz ao exercício do direito de reversão e não a uma qualquer forma de expropriação ou requisição, razão pela qual o mencionado n.º 1 do artigo 8.º não pode, manifestamente, contender com as garantias consignadas no n.º 2 do artigo 62.º da CRP.

E também não contraria o que vem garantido no n.º 1 do artigo 62.º da CRP.

Na verdade, como decorre do já atrás exposto e foi, de resto, devidamente salientado no acórdão recorrido, os bens em causa situam-se no domínio público marítimo, estando a utilização deste sujeita a autorização por parte da Administração, mediante a emissão da pertinente licença.

Sucede que, como já se viu, a dita licença foi revogada, razão pela qual a recorrente deixou de ter qualquer direito de utilização sobre o local em questão, bem como sobre as construções e instalações existentes.

Acresce que, consagrando o n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei 46/94, ao lado do exercício do direito de reversão, a demolição das obras executadas e das instalações fixas, fácil é concluir que, caso a Administração não tivesse optado pela reversão, ainda assim, a recorrente sempre se veria impossibilitada de retirar proveito dos bens em questão, na medida em que estes teriam, então, de ser demolidos.

Refira-se, ainda, que quando a recorrente equacionou a possibilidade de utilizar em bem do domínio público, no caso do domínio público marítimo, necessariamente deveria ter ponderado as diferentes variantes, entre elas os proventos que almejava obter e a situação em que, no quadro do Decreto-Lei 46/94, se encontraria, uma vez finda a licença, sendo esta por natureza precária, devendo, por isso, proceder aos respectivos cálculos da amortização do custo das obras e instalações.

De qualquer maneira, a recorrente era mera detentora de uma licença precária de utilização de um equipamento com função de apoio de praia, situado no domínio público marítimo, não sendo dele proprietária, não se podendo, por isso, falar aqui de enriquecimento do Estado à custa do património dos particulares.

Por último, encontrando-se a dita utilização no domínio público do Estado não podia ser objecto de direitos privados, sendo, por sua natureza, insusceptível de apropriação individual (cf. o n.º 2 do artigo 202.º do C. Civil), ao que acresce a circunstância de a reversão não resultar da existência de um direito de propriedade mas dimanar directamente da lei, carecendo, assim, de sentido aludir, a este propósito, a hipotéticas restrições ao direito de propriedade da recorrente, não estando o exercício do direito de reversão dependente do pagamento de adequada contrapartida económica (indemnização compensatória).

Em suma, bem decidiu o acórdão recorrido ao ter por não desconforme com o n.º 1 do artigo 62.º da CRP e o n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei 46/94, de 22 de Fevereiro."

3 - Desta decisão foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, requerendo a recorrente a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 46/94, de 22 de Fevereiro, por violação do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Notificada para alegar, conclui que:

"1 - Por despacho da Exma. Subdirectora Regional do Ambiente e do Ordenamento do Território do Norte de 21 de Março de 2001, foi decidida a reversão gratuita a favor do Estado das construções e instalações fixas do estabelecimento denominado 'Café Diana Bar', ou seja, do imóvel onde funcionou esse café.

2 - O douto acórdão recorrido considera provado que a recorrente é comproprietária do imóvel inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de Póvoa de Varzim com o artigo matricial n.º 3485, situado na praia de Loulé, na Avenida dos Banhos, da mesma freguesia e concelho - imóvel esse que foi construído em 1940, pelos falecidos sogros da recorrente e pais dos demais comproprietários e é constituído por cave, rés-do-chão e 1.º andar.

3 - A opção constitucional pela integração sistemática do 'direito de propriedade privada' no título dos 'direitos e deveres económicos, sociais e culturais' não lhe retirou a sua dimensão fundamental de liberdade e, nessa medida, ao direito de propriedade privada é unanimemente reconhecida, pela doutrina e pela jurisprudência constitucional, natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pelo que o direito de propriedade privada goza, nos termos do artigo 17.º da Constituição, do regime dos direitos, liberdades e garantias.

4 - Assim sendo, as restrições ao direito de propriedade privada têm de respeitar os requisitos definidos pelo artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa: além de previsão expressa na Constituição, terão de limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e não poderão diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial do direito fundamental em causa.

5 - Invoca a entidade recorrida que a reversão tem acolhimento legal no disposto no artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 46/94, de 22 de Fevereiro.

6 - Este normativo, ao permitir a reversão a título gratuito para o Estado de um edifício, portanto, sem pagamento de qualquer contrapartida para a entidade particular desapropriada, viola o direito de propriedade consignado no artigo 62.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.

7 - Efectivamente, de acordo com a Constituição, ninguém pode ser privado do seu direito de propriedade sem que ocorra utilidade pública e sem que seja paga a correspondente indemnização.

8 - A norma do artigo artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 46/94 de 22 de Fevereiro, é assim inconstitucional, por estar em oposição frontal com o preceituado no artigo 62.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República."

4 - Notificado o recorrido para alegar, concluiu que:

"a) A recorrente foi detentora de uma licença precária de utilização, logo, não constitutiva de direitos, de 'um equipamento com função de apoio de praia', que, por se encontrar no domínio público do Estado, não pode ser objecto de direitos privados, sendo inapropriável;

b) O direito de propriedade, constitucionalmente consagrado, não é absoluto, estando limitado, no caso dos autos, pelo artigo 84.º da CRP, que elenca os bens que pertencem ao domínio público e outros que a lei possa vir a classificar como tais;

c) É o que sucede com o Decreto-Lei 46/94;

d) Os bens do domínio público podem ser objecto de exploração económica por entidades privadas, em regime de licença ou concessão;

e) Tal foi o caso dos autos;

f) Inexistindo, por força do n.º 2 do artigo 202.º do CC, um direito à propriedade do 'equipamento com função de apoio de praia', o invocado direito de propriedade não goza do regime de tutela dos direitos, liberdades e garantias;

g) A reversão prevista no artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 49/94, não é reconduzível a uma expropriação por utilidade pública;

h) Esta, como medida ablatória que é da propriedade e dos direitos dela decorrentes, para além de pressupor a propriedade do bem a reverter, depende de prévia prolação de um acto de declaração de utilidade pública;

i) Já a aludida reversão não assenta num direito de propriedade e decorre directamente da lei;

j) A reversão a favor da Administração, a título gratuito, da utilização do domínio público hídrico aqui em causa ('equipamento com função de apoio de praia') não está sujeita ao pagamento de uma indemnização;

k) Inexiste a alegada inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei 46/94, por violação do artigo 62.º da CRP."

II - Fundamentação. - 1 - A recorrente pretende a apreciação da inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 46/94, de 22 de Fevereiro, por violação do artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

É o seguinte o teor da norma questionada:

"Artigo 8.º

Decurso do prazo

1 - Findo o prazo da licença, as instalações desmontáveis devem ser removidas pelo respectivo titular no prazo que lhe for fixado; as obras executadas e as instalações fixas devem ser demolidas, salvo se a Administração optar pela reversão a título gratuito a seu favor, sem prejuízo de legislação especial.

2 -..."

2 - Alega a recorrente que tendo o direito de propriedade privada natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, a reversão a título gratuito para o Estado de um edifício (sem pagamento, portanto, de qualquer contrapartida para a entidade particular desapropriada) viola o artigo 62.º, n.os 1 e 2, da CRP. Pois, "de acordo com a Constituição, ninguém pode ser privado do seu direito de propriedade sem que ocorra utilidade pública e sem que seja paga a correspondente indemnização".

Como se escreveu no Acórdão 353/2004 (Diário da República, II série, de 28 de Junho de 2004):

"O Tribunal Constitucional tem, na verdade, salientado repetidamente, já desde 1984, que o direito de propriedade, garantido pela Constituição, é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, beneficiando, nessa medida, nos termos do artigo 17.º da Constituição, da força jurídica conferida pelo artigo 18.º e estando o respectivo regime sujeito a reserva de lei parlamentar [...]

Importa, porém, discernir, dentro do direito de propriedade privada, o núcleo ou conjunto de faculdades que revestem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, uma vez que nem todas elas se podem considerar como tal [...]

Desse núcleo, dessa dimensão que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, faz, seguramente, parte [...] o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública - e, ainda assim, tão-só com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização (artigo 62.º, n.os 1 e 2, da Constituição). Trata-se, aqui, justamente de um aspecto verdadeiramente significativo do direito de propriedade e determinante da sua caracterização também como garantia constitucional - a garantia contra a privação -, autonomizada no n.º 2 do artigo 62.º"

Porém, no caso em apreço, não está em causa este aspecto do direito de propriedade privada e a garantia constitucional que lhe está associada, por via do disposto no n.º 2 do artigo 62.º da CRP, já que lhe é aplicável o regime geral dos bens do domínio público [artigo 84.º, n.º 1, alínea a), da CRP] e, em especial, o preceituado no Decreto-Lei 46/94. Diploma que estabelece o regime da utilização do domínio hídrico, sob jurisdição do Instituto da Água (do domínio público hídrico e do domínio hídrico privado estabelecido no artigo 1385.º e seguintes do Código Civil), ao qual sucederá a Lei da Água, aprovada pela Lei 58/2005, de 29 de Dezembro [cf. a alínea c) do n.º 2 do artigo 98.º].

3 - Como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 103/99 (Diário da República, 2.ª série, de 1 de Abril de 1999), "a característica essencial do regime dos bens do domínio público é o facto de, enquanto se mantiverem aí integrados, estarem submetidos a um regime de direito público, que o mesmo é dizer terem um estatuto jurídico de dominialidade. Encontram-se, por isso, fora do comércio jurídico privado - o que significa que não podem ser objecto de propriedade privada ou de posse civil, nem de contratos de direito civil, designadamente de venda ou de permuta. Mais: tais coisas são imprescritíveis e inalienáveis.

Dispõe, na verdade, o artigo 202.º, n.º 2, do Código Civil que se consideram fora do comércio jurídico (recte, do comércio jurídico privado) 'as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram do domínio público e as que, por sua natureza, são insusceptíveis de apropriação individual'".

Da caracterização do regime jurídico da dominialidade através da noção de "extracomercialidade de direito privado", nomeadamente por via da nota da "inalienabilidade", decorre, pois, que "relativamente aos bens submetidos ao mesmo encontra-se subtraída qualquer possibilidade de alienação a favor de particulares, ou, mais genericamente, da constituição iure privato de direitos subjectivos privados sobre bens do domínio público", tendo vindo a ser associada à regra da inalienabilidade "a impossibilidade de constituir direitos reais privados a favor de particulares sobre bens do domínio público" (Ana Raquel Moniz, O Domínio Público. O Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, Almedina, 2005, pp. 416 e 423 e segs.).

Como salientam Gomes Canotilho/Vital Moreira, "o direito à propriedade, enquanto direito de acesso a ela (i. e., de não ser impedido de adquiri-la), não implica que todos os bens devam ser susceptíveis de apropriação privada. Seguramente que não é ilegítimo colocar fora do alcance da propriedade privada certos tipos ou classes de bens e é a própria Constituição que desde logo assim procede em relação aos bens do domínio público (artigos 84.º e 168.º, n.º 1/x), categoria esta cujo sentido pré-constitucional - seguramente acolhido na Constituição - importa precisamente a impossibilidade de apropriação privada" (Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, anotação ao artigo 62.º, ponto VI).

4 - A referida extracomercialidade de direito privado não obsta, contudo, à comercialidade de direito público. "Isso significa que os bens dominiais constituem objecto de actos e negócios jurídicos sob a égide do direito administrativo entre os quais [...] [a] utilização privativa dos bens dominiais, explorações do domínio público e mutações dominiais a ponto de se poder falar já de uma 'exploração do domínio público' [...] na qual convergem as ideias de fruição, utilização e valorização dos bens" (Ana Raquel Moniz, ob. cit., pp. 441 e segs.). E daí que o Decreto-Lei 46/94 preveja, com limites temporais, a utilização privativa do domínio hídrico (marítimo ou hidráulico), titulada por licença ou por contrato de concessão (artigos 5.º, 6.º e 9.º, n.º 1), e que, mais recentemente, vá no mesmo sentido a Lei 58/2005 (artigos 59.º, 67.º, n.º 2, e 68.º, n.º 6).

No âmbito dos poderes desta utilização privativa do domínio hídrico, é admissível que o titular da licença de utilização (ou do contrato de concessão) coloque sobre a parte dominial que é objecto de tal licença (ou contrato) instalações fixas ou desmontáveis ou que sobre ela execute obras, o que levanta a questão de saber se tais instalações ou obras passam a integrar o domínio público, designadamente através da invocação do princípio da acessão, ou se sobre elas incide o direito de propriedade privada daquele titular (sobre isto, cf. Ana Raquel Moniz, A Concessão de Uso Privativo do Domínio Público: Um Instrumento de Dinamização dos Bens Dominiais, em curso de publicação, ponto 3.1.1).

Com Freitas do Amaral podemos afirmar "que ao utente do domínio pertence o direito de propriedade sobre as construções e instalações é ponto que não resulta expressamente, por via de regra, da lei ou dos títulos constitutivos. Mas deduz-se com muita segurança do facto de neles se dispor que, findo aquele prazo, tais obras e instalações reverterão gratuitamente para a Administração. Por maioria de razão se há-de concluir no mesmo sentido, quanto à aparelhagem móvel e às instalações desmontáveis, se acaso se estabelecer que o particular pode retirá-las a final" (A Utilização do Domínio Público pelos Particulares, Lisboa, 1965, p. 211 e seg., no mesmo sentido, Ana Raquel Moniz, A Concessão..., ponto 3.1.1., dando como exemplo a instalação de um restaurante sobre uma praia, e, particularmente, nota 98).

Ora, resulta, precisamente, do artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 46/94 que, findo o prazo da licença, as instalações desmontáveis devem ser removidas pelo respectivo titular no prazo que lhe for fixado e que as obras executadas e as instalações fixas devem ser demolidas, salvo se a Administração optar pela reversão a título gratuito a seu favor (cf. o artigo 11.º do mesmo diploma para os casos de contrato de concessão), dispondo neste mesmo sentido o artigo 69.º, n.º 2, alínea b), da Lei 58/2005.

5 - No caso em apreço, os titulares da licença de utilização colocaram sobre o domínio público marítimo instalações fixas correspondentes a equipamento com função de apoio de praia, tendo sido decidida a reversão gratuita de tais instalações a favor da Administração (em 21 de Março de 2001), por aplicação do disposto no artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei 46/94, na sequência da revogação daquela licença (em 7 de Setembro de 2000), por comportamento imputável aos titulares ("cessação em Janeiro de 1999 da exploração do 'Café Diana Bar'").

Posta a questão de saber se a norma ao abrigo da qual foi decidida a reversão gratuita daquele equipamento, a favor da Administração, desrespeita o artigo 62.º da CRP, importa concluir pela negativa, ainda que se defenda que as instalações fixas em causa pertenciam em propriedade privada aos então titulares da licença de utilização do domínio público marítimo. Ainda que se aceite a existência de uma sobreposição de estatutos - de domínio público sobre a parte do domínio hídrico objecto da licença de utilização e de domínio privado sobre as instalações fixas colocadas sobre esta parte dominial -, quando esteja em causa uma licença de utilização do domínio público marítimo, atribuída nos termos do Decreto-Lei 46/94.

A razão da não violação do disposto no artigo 62.º da CRP está na circunstância de a propriedade daquelas instalações ser uma propriedade temporária, por força de uma licença de utilização do domínio hídrico conferida a título precário (artigo 6.º daquele diploma), que faz coincidir o termo da propriedade privada com o da licença de utilização dominial (no sentido desta coincidência, Freitas do Amaral, ob. cit., p. 211). Trata-se aqui de um desvio, especialmente previsto na lei (artigo 1307.º, n.º 2, do Código Civil), a uma das facetas mais características da propriedade privada - a sua perpetuidade (assim, Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra Editora, 2000, p. 458 e segs., autor que dá como exemplo de "propriedade temporária" os casos em que, "nos termos de uma concessão, se estipula que os imóveis construídos pelo particular revertem para a Administração findo o prazo da concessão").

Nos presentes autos, na medida em que a propriedade das instalações fixas correspondentes a equipamento com função de apoio de praia terminou com a revogação da licença de utilização de domínio público marítimo, não houve, por conseguinte, qualquer privação do direito de propriedade privada, consagrado no artigo 62.º da CRP, quando foi decidida a reversão gratuita de tais instalações a favor da Administração. A garantia constitucional contra a privação da propriedade privada existiu apenas até à revogação daquela licença.

6 - Para além de, no limite, se poder ver na gratuitidade da reversão uma contrapartida pela utilização privativa do domínio público (que acresceria ao pagamento da taxa que a lei prevê expressamente no artigo 5.º, n.º 3, do Decreto-Lei 46/94), importa ter presente, por um lado, que, muito embora a atribuição de licença de utilização privativa do domínio hídrico seja temporalmente limitada (artigo 6.º do Decreto-Lei 46/94), tais limites têm também em conta o período que se considera ser necessário para amortizar os investimentos associados (assim, Freitas do Amaral, ob. cit., p. 235). Expressamente no sentido de dever ter em conta tal período vai o disposto no artigo 67.º, n.º 2, da Lei 58/2005); e, por outro, que é juridicamente aceitável que haja reversão gratuita, quando o termo da licença de utilização do domínio hídrico ocorra antes de findar o prazo inicialmente fixado, por revogação motivada por comportamento do titular (cf. artigos 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei 46/94 e 69.º, n.º 4, da Lei 58/2005).

Em face do exposto, importa concluir que não há razões, do ponto de vista jurídico-constitucional, para conceder provimento ao presente recurso.

III - Decisão. - Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, fixando-se em 20 unidades de conta a taxa de justiça.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2006. - Maria João Antunes (relatora) - Rui Moura Ramos - Pamplona de Oliveira - Maria Helena de Brito - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1486630.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1994-02-22 - Decreto-Lei 46/94 - Ministério do Ambiente e Recursos Naturais

    Estabelece o regime de utilização do domínio público hídrico, sob jurisdição do Instituto da Água (INAG).

  • Tem documento Em vigor 1994-02-24 - Decreto-Lei 49/94 - Ministério dos Negócios Estrangeiros

    APROVA A LEI ORGÂNICA DA SECRETARIA-GERAL DO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS, DEFININDO A SUA NATUREZA, ÓRGÃOS E SERVIÇOS E RESPECTIVO FUNCIONAMENTO, COMPOSIÇÃO E COMPETÊNCIAS. A SECRETARIA-GERAL COMPREENDE OS SEGUINTES ÓRGÃOS E SERVIÇOS: SECRETÁRIO-GERAL, CONSELHO ADMINISTRATIVO, DEPARTAMENTO GERAL DE ADMINISTRAÇÃO, PROTOCOLO DO ESTADO, GABINETE DE ORGANIZAÇÃO, PLANEAMENTO E AVALIAÇÃO, SERVIÇO DA CIFRA, CENTRO DE INFORMÁTICA E SERVIÇO DE ARQUIVO E EXPEDIENTE. ESTABELECE COMO ÓRGÃOS DE COORDENAÇÃO A FU (...)

  • Tem documento Em vigor 2005-12-29 - Lei 58/2005 - Assembleia da República

    Aprova a Lei da Água, transpondo para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2000/60/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro, e estabelecendo as bases e o quadro institucional para a gestão sustentável das águas.

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NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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