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Acórdão 61/2006/T, de 28 de Fevereiro

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Texto do documento

Acórdão 61/2006/T. Const. - Processo 442/2005. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Relatório. - A arguida Carla do Sameiro Afonso Leite interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães contra o acórdão do Tribunal Colectivo do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Fafe que a condenou pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão. Na motivação desse recurso, em que, para além de propugnar a alteração da decisão da matéria de facto e, com base nela, a sua absolvição, foi suscitada a questão da falta de fundamentação da não aplicação do instituto da suspensão da pena, a recorrente formulou as seguintes conclusões:

"1.ª O Tribunal a quo alicerçou a sua convicção nos depoimentos das testemunhas, Dr.ª Maria Amélia Torres (directora da Escola de Cortes - Fafe), Manuel Gonçalves e Agostinho Miranda (ambos soldados da GNR), sendo que a testemunha Dr.ª Maria Amélia Torres diz não saber quem foram os autores do furto nem quando ou de que forma se deram os factos e os soldados da GNR afirmam nada saberem sobre os factos ocorridos na Escola de Cortes - Fafe;

2.ª De facto, analisando os referidos depoimentos, o Tribunal a quo apenas poderia dar como provado que, entre o dia 13 de Junho, à tarde, e o dia 16 de Junho, pela manhã, alguém se introduziu na Escola do 1.º Ciclo de Cortes, sita em Fafe, subtraindo do seu interior os bens encontrados no veículo do arguido José Carlos;

3.ª Aliás, foi realizado um exame lofoscópico ao local do crime, sendo que da recolha das impressões digitais não foi encontrado qualquer vestígio da presença dos arguidos no local do crime;

4.ª Assim, o Tribunal a quo não poderia ter dado como provados os factos constantes dos parágrafos 2.º, 3.º e 5.º do acórdão recorrido, sendo que, fazendo-o, usou erradamente o princípio da livre apreciação da prova, violando o princípio da presunção da inocência - cf. artigo 32.º, n.º 2, da CRP;

5.ª Apesar da insuficiência de prova não se confundir com o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, certo é que cabe no âmbito dos poderes de cognição deste Tribunal a sindicância de toda a matéria de facto vertida no acórdão recorrido, sendo que o entendimento contrário do disposto nos artigos 410.º, n.º 1, 363.º, 364.º, n.os 1 e 3, e 428.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal é inconstitucional por violação do direito ao recurso e das garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da CRP);

6.ª O Tribunal a quo fundou a sua convicção em factos que não constituem objecto do processo e que, como tal, não poderiam ser valorados;

7.ª Com efeito, o Tribunal construiu a sua convicção num raciocínio ilativo que lhe está absolutamente vedado, desde logo porque a única presunção de que o julgador penal pode lançar mão é a da presunção da inocência do arguido;

8.ª Ora, da motivação do acórdão resulta que o Tribunal recorrido considerou inequívoco que os arguidos praticaram um furto ocorrido numa escola em Mesão Frio, Guimarães, para assim concluir que também foram os arguidos os autores do furto ocorrido na Escola de Cortes - Fafe, ou seja, o Tribunal partiu da ilação que fez de um facto conhecido - factos ocorridos na escola de Mesão Frio, Guimarães - para firmar um facto desconhecido - factos ocorridos na Escola de Cortes - Fafe;

9.ª Acontece que, além de tais factos não fazerem parte do objecto do presente processo, estão ainda a ser investigados no âmbito de um outro processo, pelo que o uso que o Tribunal fez dos factos ocorridos em Guimarães é claramente violador do princípio da presunção da inocência, gerador de nulidade, uma vez que o Tribunal conheceu de questões de que não poderia conhecer [artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal];

10.ª Aliás, o entendimento que o Tribunal recorrido retirou do vertido nos artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no sentido de que na fundamentação do acto decisório pode ter em conta factos que estão a ser objecto de investigação noutro processo de índole criminal, é claramente violador das garantias de defesa do arguido, do princípio da presunção da inocência e do princípio do acusatório, consagrados no artigo 32.º, n.os 1, 2 e 5, da CRP;

11.ª Além disso, o Tribunal, ao julgar-se, por exclusão de partes, incompetente para o conhecimento dos factos ocorridos em Guimarães, violou o caso julgado;

12.ª De facto, o Tribunal deveria retirar todas as consequências do seu despacho a fls. ..., abstraindo-se dos factos ocorridos na comarca de Guimarães, sendo que, valorando tais factos, o Tribunal recorrido violou o princípio do caso julgado;

13.ª A interpretação que se faz dos artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no sentido de que podem ser valorados no acto decisório factos pelos quais o arguido é acusado num âmbito de um outro processo criminal, é violadora do princípio ne bis in idem inserto no artigo 29.º, n.º 5, da CRP, uma vez que a recorrente não pode ser julgada duas vezes pelos mesmos factos;

14.ª Devendo, assim, considerar-se não escrita a parte da fundamentação que se refere aos factos ocorridos na escola de Mesão Frio, Guimarães, encontra-se cometida a nulidade de insuficiência do acórdão por falta de fundamentação, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal;

15.ª Sob pena, caso os arguidos (ou só um deles) venham a ser absolvidos de terem praticado os factos ocorridos na escola de Paçô Vieira e constantes no processo a correr termos em Guimarães, estaremos irremediavelmente numa situação que fundamenta o recurso de revisão previsto no artigo 449.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, pondo-se assim em causa a segurança jurídica que a comunidade quer nas decisões dos tribunais;

16.ª Assim, tendo em conta que este Tribunal de recurso se encontra na posse de todos os elementos de prova que lhe servirão de base, a decisão não poderá ser a do reenvio do processo para novo julgamento, mas sim a absolvição da recorrente nos termos do artigo 431.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal;

17.ª Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, o tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a 3 anos, terá sempre de fundamentar especificamente quer a concessão quer a denegação da suspensão - cf. artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal;

18.ª A aplicação do instituto da suspensão da execução da pena é, aliás, um poder-dever, sendo que tal entendimento resulta ainda do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, uma vez que o Tribunal tem o dever de fundamentar a sentença e especificamente fundamentar os critérios que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada;

19.ª Aliás, o entendimento que se retire dos artigos 50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido de que na fundamentação da sentença o Tribunal se pode eximir de fundamentar a não aplicação do instituto da suspensão da execução da pena, deve considerar-se inconstitucional por violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP;

20.ª Ora, verifica-se que o Tribunal a quo omitiu o dever específico de fundamentação da não aplicação do instituto da suspensão da execução da pena, o que, como tem sido orientação maioritária do STJ, gera a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, ou seja, o Tribunal deixou de conhecer de questões das quais deveria tomar conhecimento [cf. artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Outubro de 2003, supracitado];

21.ª O acórdão recorrido violou ou fez uma errada aplicação dos artigos 127.º, 355.º, n.º 1, 374.º, n.º 2, 375.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal, do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal e dos artigos 29.º, n.º 5, 32.º, n.os 1, 2 e 5, e 205.º da CRP, não podendo, pois, manter-se."

Por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de Abril de 2005 foi negado provimento ao recurso. Após apurar não ter existido erro de julgamento da matéria de facto nem violação do princípio inserto no artigo 127.º do Código de Processo Penal (CPP), do princípio da presunção de inocência, das garantias de defesa ou do caso julgado, considerando correcta a subsunção jurídica efectuada pelo tribunal de 1.ª instância, o Tribunal da Relação de Guimarães, quanto à aludida questão da falta de fundamentação da não suspensão da execução da pena de prisão, consignou o seguinte:

"Finalmente, importa conhecer da questão colocada pela recorrente Carla nas conclusões 17.ª a 20.ª, a saber, a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na parte em que não fundamenta a não suspensão da execução da pena de 3 anos que lhe foi aplicada, e da invocada inconstitucionalidade.

Sobre tal questão, dir-se-á que a invocada nulidade não ocorre. O Tribunal recorrido não tinha que se pronunciar sobre as razões da não decretação da suspensão da execução da pena, pois o artigo 50.º do CP não impõe tal pronúncia, como a não impõem os artigos 374.º e 375.º, ambos do CPP. Na verdade, o n.º 4 do citado artigo 50.º apenas exige a especificação dos fundamentos da suspensão e das suas condições. Ou seja, quando seja tomada a decisão de suspensão da execução da pena é que o Tribunal, em obediência ao disposto no citado n.º 4 do artigo 50.º e no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), tem de fundamentar as razões dessa concreta decisão.

E, contrariamente ao alegado pela recorrente (cf. 19.ª conclusão), não se vê por que é que o entendimento ora perfilhado seja inconstitucional, por violador do artigo 205.º, n.º 1, da CRP. O dever de fundamentação imposto neste preceito tem de ser entendido no sentido positivo, isto é, apenas impõe a fundamentação de actos decisórios concretos.

Ora, a concreta decisão tomada pelo tribunal colectivo esgotou-se com a escolha da sanção a aplicar à recorrente e com a respectiva medida, que fundamentou. Ao nível da 'decisão condenatória' nenhuma outra decisão concreta foi tomada pelo colectivo de juízes que carecesse de ser fundamentada pela positiva."

Veio então a referida arguida interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade: i) da "interpretação dada pelo Tribunal a quo aos artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no sentido de que podem ser valorados no acto decisório factos pelos quais a arguida é acusada no âmbito de um outro processo criminal", interpretação que ela reputa "violadora do princípio ne bis in idem inserto no artigo 29.º, n.º 5, da CRP, uma vez que a recorrente não pode ser julgada duas vezes pelos mesmos factos"; e ii) da "interpretação dada aos artigos 50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido de que na fundamentação da sentença o Tribunal se pode eximir de fundamentar a não aplicação do instituto da suspensão da execução da pena", tida por violadora do artigo 205.º, n.º 1, da CRP.

No Tribunal Constitucional, o relator, no despacho em que determinou a apresentação de alegações, consignou que as partes se deveriam pronunciar, querendo, "sobre a eventualidade de não conhecimento do objecto do recurso na parte relativa à questão de inconstitucionalidade suscitada a propósito das normas dos artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do CPP, quer por se poder entender que vem questionada a inconstitucionalidade das decisões judiciais, em si mesmas consideradas, quer por se poder considerar que não existe coincidência entre a dimensão normativa arguida de inconstitucional e a dimensão normativa efectivamente aplicada, como ratio decidendi, pelo acórdão recorrido".

A recorrente apresentou alegações, começando por referir que "quanto à questão de inconstitucionalidade invocada dos artigos 127.º e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e no seguimento do entendimento manifestado no despacho proferido pelo Exmo. Sr. Conselheiro Relator, em 17 de Junho de 2005, desiste-se da sua sujeição a apreciação", culminando as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:

"1.ª O n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal estabelece que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição;

2.ª De acordo com a dogmática que decorre do preâmbulo do actual Código Penal, o nosso sistema penal estabelece como política criminal a orientação de que as penas têm fins meramente preventivos, com especial destaque para a prevenção especial;

3.ª Nesse sentido, consagra como reacção penal o instituto da suspensão da execução da pena de prisão como uma das medidas preferenciais e de alternativa à privação da liberdade;

4.ª Assim sendo, o tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a 3 anos, terá sempre de fundamentar especificamente quer a concessão quer a denegação da suspensão, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal;

5.ª A aplicação do instituto da suspensão da execução da pena é pois um poder-dever, sendo que tal entendimento resulta ainda do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, uma vez que o tribunal tem o dever de fundamentar a sentença e especificamente fundamentar os critérios que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada;

6.ª O entendimento exposto nos números anteriores é actualmente o seguido pela melhor doutrina - cf. o ensinamento do Professor Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 345, e de Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 10.ª ed., p. 230 - bem como pela actual jurisprudência dos tribunais superiores, plasmada nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Dezembro de 2004 e de 2 de Outubro de 2003, ambos publicados in www.dgsi.pt;

7.ª Deve, assim, ser julgada inconstitucional a interpretação dada pelo Tribunal a quo aos artigos 50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, no sentido de que na fundamentação da sentença o tribunal se pode eximir de fundamentar especificadamente a não aplicação do instituto da suspensão da execução da pena, quando esta não é superior a 3 anos de prisão, por violação dos artigos 32.º, n.os 1 e 5, e 205.º, n.º 1, da CRP."

O representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional contra-alegou, concluindo:

"1.º O dever constitucional da fundamentação das decisões jurisdicionais apenas abrange os actos decisórios concretos tomados pelo Tribunal, não lhe cabendo motivar as razões por que não optou por decisão diferente da que tomou;

2.º No caso dos autos, resultando claramente da sentença condenatória que a aplicação de pena efectiva de prisão a certo arguido radica nos respectivos antecedentes criminais, é óbvio que é este o motivo ou razão que preclude a possibilidade, existente em abstracto, da suspensão de tal pena privativa da liberdade - não podendo, neste circunstancialismo, afirmar-se que não decorrem de tal decisão condenatória as razões que levam o Tribunal a não aplicar a suspensão da pena à arguida recorrente;

3.º Termos em que deverá improceder o presente recurso."

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

2 - Fundamentação. - 2.1 - Dispõe o artigo 50.º do Código Penal, na redacção dada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março:

"1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.

3 - Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos cumulativamente.

4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.

5 - O período da suspensão é fixado entre um e cinco anos a contar do trânsito em julgado."

Por seu turno, o n.º 2 do artigo 374.º do CPP estabelece que a sentença, a seguir ao relatório (com as indicações elencadas no n.º 1), deve conter a "fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal", determinando o n.º 1 do subsequente artigo 375.º que "a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada, indicando, nomeadamente, se for caso disso, o início e o regime do seu procedimento, outros deveres que ao condenado sejam impostos e a sua duração, bem como o plano individual de readaptação social".

O acórdão recorrido entendeu que destas disposições legais não resulta a imposição do dever de fundamentação da decisão de não suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos, pois o n.º 4 do artigo 50.º do Código Penal apenas exige a especificação dos fundamentos da suspensão e das suas condições, e que tal interpretação não viola o disposto no artigo 205.º, n.º 1, da CRP, porquanto o dever de fundamentação das decisões judiciais, consagrado nessa norma constitucional, "tem de ser entendido no sentido positivo, isto é, apenas impõe a fundamentação de actos decisórios concretos"; ora, no caso, "a concreta decisão tomada pelo tribunal colectivo esgotou-se com a escolha da sanção a aplicar à recorrente e com a respectiva medida, que fundamentou", não existindo, "ao nível da 'decisão condenatória', nenhuma outra decisão concreta [...] que carecesse de ser fundamentada pela positiva".

Como é sabido, não cabe ao Tribunal Constitucional, no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade normativa que lhe está confiada, apreciar a correcção da interpretação e da aplicação do direito ordinário feitas pelo Tribunal recorrido, mas tão-só apurar se as interpretações normativas aplicadas, que recebe como um dado, se mostram, ou não, conformes com as normas e princípios constitucionais.

No entanto, não pode deixar de se assinalar que o critério seguido pelo acórdão recorrido - de que só tem de ser fundamentada a decisão que suspende e não a que não suspende a execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos - não corresponde ao preconizado pela doutrina e ao que ultimamente tem sido seguido, de modo uniforme, pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ).

Jorge de Figueiredo Dias - mesmo face à redacção originária do Código Penal, que, no correspondente artigo 48.º, n.º 1, se limitava a dizer que "o tribunal pode suspender", enquanto o actual artigo 50.º, n.º 1, vincando tratar-se de um poder-dever, estatui que "o tribunal suspende" - sustentava (Direito Penal Português - Parte Geral: II - As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, p. 345):

"§ 523. Desde logo, num caso como no outro [suspensão simples ou suspensão com imposição de deveres], o tribunal tem de especificar na sentença os fundamentos da suspensão (artigo 48.º, n.º 3). O texto deste comando - sugerindo que a fundamentação (específica, é claro, e que em nada contende com o dever geral de fundamentação de toda e qualquer decisão judicial: CRP, artigo 210.º, n.º 1, e CPP, artigos 97.º, n.º 4, e 374.º, n.º 2) só se torna necessária quando o tribunal se decida pela suspensão - deve ser interpretado em termos amplos e os únicos correctos. O tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a 3 anos, terá sempre de fundamentar especificamente quer a concessão quer a denegação da suspensão, nomeadamente no que toca ao carácter favorável ou desfavorável da prognose e (eventualmente) às exigências de defesa do ordenamento jurídico. Outro procedimento configuraria um verdadeiro erro de direito, como tal controlável mesmo em revista, por violação, para além do mais, do disposto no artigo 71.º Só assim não terá de proceder o tribunal quando, sendo a medida determinada da pena de prisão inferior a 6 ou a 3 meses, ele se decida logo (fundadamente) por outra pena de substituição aplicável (multa, prestação de trabalho a favor da comunidade, admoestação)."

Este entendimento tem sido sufragado pelas Secções Criminais do STJ, só tendo sido localizado, em pesquisa efectuada quer na base de dados do Ministério da Justiça relativa à jurisprudência do STJ (www.dgsi.pt/jstj) quer em "Sumários do Boletim Interno do STJ", disponíveis em www.stj.pt, nos últimos anos, um acórdão (de 11 de Outubro de 2001, processo 2761/01), que decidiu que "o tribunal não tem de se pronunciar sobre as razões da não decretação da suspensão da execução da pena, pois o artigo 50.º do Código Penal não impõe tal pronúncia; como aliás não o impõem os artigos 374.º e 375.º do CPP" e que "o n.º 4 daquele artigo 50.º exige, apenas, a especificação dos fundamentos da suspensão e das suas condições".

Mas já anteriormente, no Acórdão de 14 de Dezembro de 2000, processo 2769/00, o STJ decidira que: "A fundamentação da decisão de suspender ou não a execução da pena, nos casos em que formalmente ela é possível, é uma fundamentação específica, que é como quem diz, mais exigente que a decorrente do dever geral de fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente, postulado, nomeadamente, no artigo 205.º, n.º 1, da CRP. Decorre do exposto o dever de o juiz assentar o incontornável 'juízo de prognose', favorável ou desfavorável, em bases de facto capazes de o suportarem com alguma firmeza, sem que, todavia, se exija uma certeza quanto ao desenrolar futuro do comportamento do arguido."

Parte este entendimento da constatação de que, sendo aplicada uma pena de prisão não superior a 3 anos, o tribunal tem o dever de suspender a execução da pena se se verificarem as restantes condições elencadas no n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal: "se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição". Para isso, "o tribunal deve ordenar, mesmo oficiosamente, a produção dos meios de prova necessários à descoberta, também, da factualidade relevante para a apreciação e decisão dessa questão da suspensão, especificando-a, depois, como provada ou não provada, sob pena de, não o fazendo, se verificar insuficiência não só da matéria de facto para a decisão como também da própria fundamentação de facto e, em consequência desta, da própria decisão de direito relativa à suspensão" (Acórdão do STJ de 27 de Junho de 2001, processo 767/2001).

Nos termos dos Acórdãos do STJ de 8 de Novembro de 2001, processo 3130/2001, e de 29 de Novembro de 2001, processo 1919/2001, "o tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a 3 anos, terá sempre de fundamentar especificamente a denegação da suspensão da execução da pena de prisão (artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal), nomeadamente no que toca: a) ao carácter desfavorável da prognose (de que a censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição), e b) às exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (na base de considerações de prevenção geral)", pois "outro procedimento configurará um verdadeiro erro de direito, como tal controlável mesmo em revista, por violação, além do mais, do disposto no artigo 70.º do Código Penal", pelo que se concluiu ser "nula a sentença, por 'deixar de se pronunciar sobre questões que devia apreciar' [artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP], quando o tribunal, colocado 'perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a 3 anos', não só não fundamentar especificamente a 'negação da suspensão' (a pretexto, quiçá, do 'carácter desfavorável da prognose' ou, eventualmente, de especiais 'exigências de defesa do ordenamento jurídico') como nem sequer considerar, apertis verbis, a questão da suspensão da pena", sendo "tal nulidade, mesmo que não arguida [...] oficiosamente cognoscível pelo tribunal de recurso (artigo 379.º, n.º 2, do CPP)".

É que, como se sublinhou no Acórdão de 14 de Novembro de 2001, processo 3097/2001: "a suspensão da pena de prisão contemplada no artigo 50.º do Código Penal constitui um substitutivo das penas privativas da liberdade, aceite pelo legislador como instrumento capaz de sanar o mal produzido à comunidade pela acção do delinquente, sem outras consequências mais drásticas" e, por isso, "foi arquitectada para situações criminosas menos graves (censuradas com prisão até 3 anos) e quando seja de perspectivar, através de uma prognose favorável, assente em factores conhecidos (personalidade do agente, condições da sua vida, conduta anterior e posterior ao crime, circunstâncias deste), que é possível, mantendo o agente no seio da vida comunitária, recompor o tecido social afectado pelo seu comportamento (protecção de bens jurídicos) e recuperar o infractor (reintegração do agente na sociedade) - artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal". Daqui retira o dito acórdão que "assumindo-se [...] como medida pedagógica inscrita nas finalidades da punição e apresentando-se como uma das mais gratas apostas do legislador, tinha de revestir-se, como se reveste, das características de um 'poder-dever', o que significa que o julgador, perante uma situação que formalmente viabiliza o seu uso, tem de equacionar sempre a possibilidade de a ela recorrer, fundamentando a sua opção quando o não faça".

Esta orientação - designadamente enquanto afirma o dever de o tribunal, perante a determinação de uma medida da pena de prisão não superior a 3 anos, ter sempre de fundamentar especificamente, quer a concessão quer a denegação da suspensão - foi reiterada, entre outros, nos Acórdãos do STJ de 20 de Fevereiro de 2003, processo 373/2003, publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2003, t. I, p. 206, de 2 de Outubro de 2003, processo 2615/2003, de 2 de Dezembro de 2004, processo 4219/2004, de 19 de Janeiro de 2005, processo 4000/2004, de 20 de Janeiro de 2005, processo 123/2005, de 25 de Maio de 2005, processo 1939/2005, e de 9 de Junho de 2005, processo 1678/2005 - cf. "Sumários...", cit.

2.2 - A recorrente, quer na suscitação da questão de inconstitucionalidade na motivação apresentada perante o Tribunal recorrido quer no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, indicou como norma constitucional violada a do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, e só nas alegações apresentadas neste Tribunal é que, para além desta, invocou as dos n.os 1 e 5 do artigo 32.º da CRP. No entanto, o n.º 5 deste artigo 32.º, que estabelece a estrutura acusatória do processo criminal e a sujeição, quer da audiência de julgamento quer dos actos instrutórios que a lei determinar, ao princípio do contraditório, não surge como especialmente pertinente para a questão ora em apreço. E a violação do n.º 1 do mesmo artigo 32.º surge como mera decorrência da violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, encarado este dever na perspectiva de elemento útil, ou mesmo necessário, para a defesa do destinatário da decisão, que só conhecendo os respectivos fundamentos ficará em condições de a atacar consciente e eficazmente.

É, pois, o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais que está essencialmente em causa na apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.

Foi a primeira revisão constitucional (1982) que, com a inserção do novo n.º 1 do então artigo 210.º da CRP, veio proclamar que "[a]s decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei", formulação que, sem alteração de redacção, transitou, com a segunda revisão constitucional (1989), para o n.º 2 do artigo 208.º A remissão para a lei, não apenas da modulação dos termos mas também da definição dos casos em que a fundamentação das decisões dos tribunais era devida [muito embora sempre se entendesse que "a discricionariedade legislativa nesta matéria não [era total], visto o dever de fundamentação [ser] uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático (cf. artigo 2.º), ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso"], representando "a falta de consagração constitucional de um dever geral de fundamentação das decisões judiciais", surgia como "pouco congruente com o princípio do Estado de direito", para além de não se compreender que "a garantia de fundamentação seja constitucionalmente menos exigente quanto às decisões judiciais do que quanto aos actos administrativos (artigo 268.º, n.º 3)" (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 798-799) - preceito este último que impunha a "fundamentação expressa" dos "actos administrativos [...] quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos".

Foi a revisão constitucional de 1997 que deu à norma em causa a sua localização (artigo 205.º, n.º 1) e formulação ("as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei") actuais. Estabeleceu-se, assim, com dignidade constitucional, a regra geral do dever de fundamentação de todas as decisões judiciais, com a única excepção das de mero expediente, remetendo-se para a lei ordinária a definição já não dos casos em que a fundamentação é devida mas tão-só da forma de que se pode revestir.

O alcance desta alteração foi salientado por este Tribunal no Acórdão 680/98, nos seguintes termos:

"7 - Dispõe a Constituição, no n.º 1 do artigo 205.º, que 'as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei'. Este texto, resultante da revisão constitucional de 1997, veio substituir o n.º 1 do artigo 208.º, que determinava que 'as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei'. A Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas nos termos previstos na lei para o serem na forma prevista na lei. A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação."

Também o Acórdão 147/2000 salientou que a "actual redacção do artigo 205.º, n.º 1, imprimiu contornos mais precisos ao dever de fundamentação, pois, onde a Constituição remetia para a lei os 'casos' em que a fundamentação era exigível, passou a concretizar-se que ela se impõe em todas as decisões 'que não sejam de mero expediente', mantendo-se apenas a remissão para a lei quanto à 'forma' que ela deve revestir", acrescentando:

"Este aprofundamento do dever de fundamentação das decisões judiciais reforça os direitos dos cidadãos a um processo justo e equitativo, assegurando a melhor ponderação dos juízos que afectam as partes, do mesmo passo que a elas permite um controlo mais perfeito da legalidade desses juízos com vista, designadamente, à adopção, com melhor ciência, das estratégias de impugnação que julguem adequadas.

De todo o modo, a persistência daquela remessa para a lei faz com que o mandado constitucional de fundamentação continue a ser um mandado aberto à actuação constitutiva do legislador, a quem incumbirá definir a 'forma' em que a fundamentação se deve traduzir, sem que, contudo, ele possa esvaziar o sentido útil daquele mandado (cf. Acórdão 59/97, in Diário da República, 2.ª série, n.º 65, de 18 de Março de 1997) - qualquer que seja essa forma, ela terá sempre de permitir o conhecimento das razões que motivam a decisão.

[...]

Mas se a relevância da fundamentação das decisões judiciais é incontestável como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático, ela assume, no domínio do processo penal, uma função estruturante das garantias de defesa dos arguidos, muito embora o texto constitucional não contenha qualquer norma que disponha especificamente sobre a fundamentação das decisões judiciais naquele domínio.

O Código de Processo Penal vigente expressa no artigo 97.º, n.º 4, na redacção dada pela Lei 59/98, o princípio geral que vigora sobre a fundamentação dos actos decisórios: 'os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão' (sublinhado nosso)."

2.3 - Na presente situação, assente, como se viu (supra, n.º 2.1), que, em caso de condenação em pena de prisão não superior a 3 anos, o tribunal tem o poder-dever - e não a mera faculdade - de suspender a sua execução, sempre que a ponderação global da personalidade do agente (incluindo as condições da sua vida e a sua conduta anterior e posterior ao crime) e das circunstâncias do caso conduzam à formulação de um prognóstico favorável de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, a decisão que a esse respeito venha a ser tomada - seja no sentido da suspensão seja no sentido da não suspensão - não pode ser considerada como de mero expediente e muito menos como uma não decisão, como parece ter sido considerada pelo acórdão recorrido, quando refere que não estava em causa um acto decisório concreto, por "a concreta decisão tomada pelo tribunal colectivo" se ter esgotado "com a escolha da sanção a aplicar à recorrente e com a respectiva medida, que fundamentou", pelo que, "ao nível da 'decisão condenatória' nenhuma outra decisão concreta foi tomada pelo colectivo de juízes que carecesse de ser fundamentada pela positiva".

Não é assim.

Determinada, de acordo com os critérios estabelecidos pelo artigo 71.º do Código Penal, qual a medida da pena que se considera adequada, se esta for de prisão de duração não superior a 3 anos, o Tribunal tem de, por força do artigo 50.º, n.º 1, do mesmo Código, decidir, num segundo momento, se suspende, ou não, a sua execução, realizando oficiosamente as diligências de prova necessárias para o efeito. Trata-se, na verdade, de situação substancialmente diversa daquelas em que está em causa uma mera faculdade do tribunal, como na dispensa de pena (artigo 74.º do Código Penal). E a decisão concreta que vier a ser adoptada quanto à suspensão da execução da pena de prisão não pode deixar de ser fundamentada, por imposição do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, quer seja no sentido da suspensão quer no sentido da não suspensão, sendo, aliás, de salientar que esta última solução, porque contrária à preferência do legislador pelas penas não privativas de liberdade (artigo 70.º do Código Penal), surge como a decisão mais desfavorável para o arguido, pelo que o dever da sua fundamentação até se pode considerar mais premente.

2.4 - Nas contra-alegações do Ministério Público tenta-se salvar a conformidade constitucional do critério normativo seguido no acórdão recorrido, com o argumento de que, "no caso dos autos, resultando claramente da sentença condenatória que a aplicação de pena efectiva de prisão a certo arguido radica nos respectivos antecedentes criminais, é óbvio que é este o motivo ou razão que preclude a possibilidade, existente em abstracto, da suspensão de tal pena privativa da liberdade - não podendo, neste circunstancialismo, afirmar-se que não decorrem de tal decisão condenatória as razões que levam o Tribunal a não aplicar a suspensão da pena à arguida recorrente".

Salvo o devido respeito, não se pode acolher este entendimento.

Como se assinalou, a fundamentação da decisão de suspender ou não suspender a execução de uma pena de prisão que anteriormente se entendeu fixar em medida não superior a 3 anos deve ser uma fundamentação específica, pois respeita a decisão logicamente subsequente à da determinação da medida concreta da pena. Só depois de o Tribunal considerar ajustada ao caso, em princípio, uma pena de prisão não superior a 3 anos é que tem o dever de ponderar se se justifica, ou não, a suspensão da sua execução e motivar, através de adequada fundamentação, a opção tomada. Essa opção, como a doutrina e a jurisprudência têm sistematicamente sublinhado, assenta na formulação de um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente [no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena, acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta, bastarão para afastar o delinquente da criminalidade], que se reporta "ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto", e para o qual releva um conjunto de factores, a ponderar globalmente, não bastando nunca "a consideração ou só da personalidade ou só das circunstâncias do facto" (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., p. 343). Um desses factores será, certamente, o que respeita à "conduta anterior" do condenado, para o qual releva a existência, ou não, de antecedentes criminais, mas não é nem o único factor nem o factor decisivo, pelo que não se pode afirmar que a existência desses antecedentes criminais "preclude" a possibilidade de suspensão da pena.

No presente caso, após concluir que os factos provados sustentavam a imputação a ambos os arguidos da autoria de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, o acórdão condenatório da 1.ª instância expendeu o seguinte, quer quanto à medida concreta da pena a aplicar quer quanto à eventual suspensão da execução da pena de prisão, ponderação esta última que, porém, limitou ao caso do arguido José Carlos da Silva Sousa, nada dizendo quanto à arguida Carla do Sameiro Afonso Leite, ora recorrente:

"Medida concreta da pena.

O crime de furto qualificado cometido pelos arguidos é punido pelo artigo 204.º, n.º 2, com uma pena abstracta de prisão de 2 a 8 anos.

Aplicando agora o critério geral de determinação da medida da pena, contido no artigo 71.º, n.º 1, segundo o qual 'a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção'.

Em sede de medida da culpa - por via da qual releva, para a medida da pena, a consideração do ilícito-típico - há que considerar, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente.

Se bem que seja considerável o grau de violação dos deveres impostos ao agente, não podemos deixar de considerar que, em virtude das circunstâncias que rodearam a prática do crime e se reflectem no grau de ilicitude do facto e no modo de execução deste - o furto foi praticado por meios relativamente rudimentares e terá sido cometido como forma de financiar a toxicodependência da arguida Carla, sendo bem sabido que, nestas circunstâncias, é particularmente diminuta a capacidade de conformação destes agentes com as normas jurídico-sociais -, esta ilicitude global se deve ter por mediana. Não revestindo o dolo qualquer especialidade digna de relevo, entendemos dever colocar a culpa dos agentes, relativamente à moldura abstracta, num grau médio.

Quanto à necessidade de tutela dos bens jurídicos, que fornecerá uma moldura de prevenção, há que aferir em que medida tais exigências resultam no caso concreto, no complexo da forma de actuação do agente, das consequências que dele resultaram, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois do facto, etc.

Neste âmbito, há que considerar as prementes necessidades de prevenção de crimes desta natureza.

Há que ter em conta a moderada gravidade das consequências dos factos, nomeadamente na situação da lesada, já que os bens furtados foram restituídos.

Tudo isto implica que o mínimo de pena imprescindível, no caso, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias se situe num grau baixo.

Dentro destes limites podem e devem actuar agora pontos de vista de prevenção especial de socialização, que irão determinar, em último termo, a medida da pena.

Esta deve evitar a quebra da inserção social do arguido e servir a sua reintegração na comunidade, e ainda, eventualmente, uma função subordinada de advertência do agente.

A arguida Carla tem antecedentes criminais de relevo.

O arguido José parece estar inserido socialmente, desempenhando funções de carácter produtivo que garantem a sua subsistência e do seu agregado familiar.

Atentos todos estes parâmetros, consideram-se adequadas as seguintes penas:

2 anos e 3 meses de prisão para o arguido José;

3 anos de prisão para a arguida Carla.

Suspensão da pena de prisão.

Atendendo à ausência de antecedentes criminais do arguido José e à sua inserção sócio-familiar, julga-se possível formular um prognóstico favorável relativamente à sua conduta futura.

Entende-se e espera-se, assim, que a simples censura do facto e a ameaça da pena poderão bastar para o afastar da criminalidade.

Nesta conformidade, ao abrigo do disposto no artigo 50.º, n.º 1, suspende-se a execução da pena de prisão aplicada a este arguido pelo período de dois anos.

Decisão.

Pelo exposto, decidem:

a) Condenar o arguido José Carlos da Silva Sousa pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão;

b) Suspender esta pena na sua execução pelo período de dois anos;

c) Condenar a arguida Carla do Sameiro Afonso Leite pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 204.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão;

d) [...]"

É óbvio que qualquer leitor desta decisão pode tentar determinar, até por contraposição à decisão de suspensão da execução da pena tomada quanto ao arguido, quais as razões que terão levado o Tribunal a não adoptar idêntica medida relativamente à arguida. O Ministério Público entende que tal se deveu aos antecedentes criminais desta. Outros acharão que terá antes sido devido à "inserção sócio-familiar" daquele, não apurada relativamente à arguida. Outros ainda que terá sido decisiva a conjugação dos dois factores.

É bom de ver que a exigência constitucional da fundamentação das decisões judiciais não fica satisfeita com a mera possibilidade destas tentativas de "adivinhação" das razões que terão conduzido o Tribunal a, tendo o dever de ponderar a determinação da suspensão da pena de prisão, decidir não a decretar relativamente à recorrente. A imposição constitucional só fica satisfeita com formulação expressa das razões específicas dessa decisão, feita pelo seu próprio autor, em termos de habilitar o seu destinatário a, ciente dessas razões, se conformar com a decisão ou impugná-la de forma consciente e eficiente.

3 - Decisão. - Em face do exposto, acordam em:

a) Julgar inconstitucionais, por violação do artigo 205.º, n.º 1, da CRP, as normas dos artigos 50.º, n.º 1, do Código Penal e 374.º, n.º 2, e 375.º, n.º 1, do CPP, interpretados no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos; e, consequentemente,

b) Conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade.

Sem custas.

Lisboa, 18 de Janeiro de 2006. - Mário José de Araújo Torres (relator) - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - Benjamim Rodrigues - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1471026.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1995-03-15 - Decreto-Lei 48/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, e procede à sua republicação.

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

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