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Acórdão 586/2005/T, de 4 de Janeiro

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Texto do documento

Acórdão 586/2005/T. Const. - Processo 642/2005. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - 1 - No Tribunal Central de Instrução Criminal foi decretada a prisão preventiva de Jorge Manuel Barbas dos Santos Costa, ora recorrente, indiciado pela prática de um crime de associação criminosa e de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido nos termos das disposições conjugadas do artigo 299.º do Código Penal, do artigo 23.º, n.os 1, 2, alíneas a), b) e c), 3, alíneas a), e) e f), e 4, do Decreto-Lei 20-A/90, de 25 de Janeiro, e dos artigos 89.º, 103.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), e 104.º, n.os 1, alíneas d) e e), e 2, da Lei 15/2001, de 5 de Junho (despacho de 23 de Dezembro de 2004, conforme certidão a fls. 66 e seguintes dos presentes autos).

Tendo em vista preparar o recurso do despacho que decretou a prisão preventiva, o arguido requereu cópias das seguintes peças processuais: auto do seu interrogatório perante o juiz de instrução, despacho que decretou a sua prisão preventiva e meios de prova (ou súmula dos mesmos que permita apreender o seu sentido e a apresentação da defesa respectiva) em que se funda o despacho que determinou a sua prisão preventiva (requerimento que consta a fl. 71).

O Procurador da República, no Departamento Central de Investigação e Acção Penal, pronunciou-se nos seguintes termos (fl. 73):

"Nos termos do artigo 89.º, n.º 2, do CPP, não tendo ainda sido deduzida acusação, como é o caso, o arguido só pode ter acesso a essas peças através de fotocópias que ficam avulsas na Secretaria.

Assim, defere-se ao requerido, determinando-se que fiquem avulsas na Secretaria fotocópias de fl. 1867 a fl. 1870, na parte que se refere ao despacho que determinou a detenção do arguido, de fl. 2339 a fl. 2343 e de fl. 2346 a fl. 2352."

Jorge Manuel Barbas dos Santos Costa, considerando que "tais elementos são manifestamente insuficientes para preparar a defesa e o recurso", apresentou novo requerimento (fls. 75 e seguinte), do seguinte teor:

"a) Foi requerida a V. Ex.ª que - em ordem a preparar a sua defesa e o recurso do despacho que decretou a prisão preventiva - lhe fossem facultadas cópias do seu auto de interrogatório, do despacho que decretou a prisão e dos meios de prova [em] que se funda tal despacho.

b) O Sr. Procurador da República deferiu apenas que lhe fosse permitido o acesso ao auto de interrogatório, ao despacho que ordenou a detenção, à promoção do Ministério Público após aquele interrogatório e ao despacho que decretou a prisão preventiva, através de fotocópias que ficaram avulsas na Secretaria e que já foram consultadas pelo signatário.

c) Tais elementos são manifestamente insuficientes para preparar a defesa e o recurso, faltando designadamente - e tendo por referência o auto de interrogatório e o despacho que decretou a prisão preventiva - o acesso às declarações prestadas por [...] e [...], bem como dos técnicos de contas não identificados referidos no despacho que decretou a prisão preventiva; falta-lhe ainda o acesso ao relatório intercalar 5 que lhe foi parcialmente exibido durante o interrogatório, bem como as listagens de fl. 1160 a fl. 1162 e ainda os comprovativos dos depósitos dos alegados lucros na conta do BES, para além dos comprovativos das alegadas vendas fictícias.

d) Deve ser deferido o acesso do arguido a todos esses elementos, nos termos já consagrados por jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, assim se fazendo a adequada leitura do artigo 141.º, n.º 4, do CPP, em consonância com o disposto no artigo 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP.

e) Por outro lado, deve ser facultado ao arguido cópia do despacho que decretou a prisão preventiva, bem como o seu antecedente interrogatório e promoção do Ministério Público, já que tais elementos não se podem considerar compreendidos no âmbito do artigo 89.º, n.º 2, do CPP.

f) Assim sendo, requer-se que - com a maior urgência uma vez que está a decorrer o prazo para o recurso - seja deferido o acesso do arguido aos elementos acima referidos na alínea c) e que lhe seja facultada cópia das peças supra-referidas na alínea e).

g) Acresce que não é ao Sr. Procurador da República que cabe deferir ou indeferir o que ora se requer, uma vez que está em causa a obtenção de elementos necessários à preparação do recurso - e da defesa em geral - de um despacho de V. Ex.ª, pelo que deve ser o juiz de instrução a decidir acerca desta matéria."

O juiz de instrução indeferiu o requerido, nos seguintes termos (fls. 78 e 78 v.º):

"Ao contrário do entendimento [...] exposto pelo arguido Jorge Santos Costa, entendo que os elementos a que se refere nas alíneas c) e d) têm necessariamente de se considerar compreendidos no elenco dos que não lhe podem ser facultados, segundo a interpretação que fazemos do n.º 2 do artigo 89.º do CPP."

2 - Jorge Manuel Barbas dos Santos Costa interpôs recurso deste despacho, tendo na motivação respectiva apresentado, para o que agora releva, as seguintes conclusões (fls. 1 e seguintes destes autos):

"D) O arguido tem direito a conhecer os elementos de prova (ou uma súmula relevante dos mesmos) em que se funda o despacho que decreta a sua prisão preventiva, os quais devem ser facultados (mesmo que apenas para consulta) ao seu mandatário, a fim de que este possa preparar a sua defesa e interpor os recursos competentes.

E) Por outro lado, não pode ser posto em causa o direito a que lhe seja facultada cópia do despacho que decreta essa prisão preventiva, bem como do seu auto de interrogatório, sendo intolerável que esses elementos só lhe possam ser facultados para consulta.

F) É o que decorre da aplicação directa do artigo 28.º, n.º 1, da CRP - o arguido tem o direito de conhecer as razões concretas em que se funda a sua prisão preventiva -, bem como do artigo 32.º, n.º 1, da CRP - o processo assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

É ainda o que decorre de uma adequada leitura do artigo 89.º, n.º 2, do CPP, devidamente conjugado com os artigos 61.º, n.º 1, alíneas f) e h), e 141.º, n.º 4, do CPP.

G) Como é manifesto, no caso dos autos, os elementos a que se reporta a alínea c) do requerimento supra-referido no n.º 4 são indispensáveis para que o arguido conheça e possa contraditar os elementos de prova em que se funda a sua prisão preventiva.

H) Assim sendo, o despacho recorrido fez uma errónea aplicação do artigo 89.º, n.º 2, do CPP, devidamente conjugado com os artigos 61.º, n.º 1, alíneas f) e h), e 141.º, n.º 4, do CPP, lidos à luz das garantias consagradas nos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP.

I) A interpretação do artigo 89.º, n.º 2, do CPP, devidamente conjugado com os artigos 61.º, n.º 1, alínea f) e h), e 141.º, n.º 4, do CPP, no sentido de que, sob a invocação genérica do regime de segredo de justiça previsto naquele artigo 89.º, n.º 2, do CPP, pode ser negado ao arguido preso preventivamente para o efeito de este apresentar a sua defesa e preparar o recurso dessa prisão - o acesso a consultar os elementos de prova (ou súmula dos mesmos) em que concretamente se funda tal prisão preventiva, é inconstitucional por violação dos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP."

O Ministério Público, no Departamento Central de Investigação e Acção Penal, apresentou a resposta a fls. 37 e seguintes, em que concluiu:

"1) O despacho sob censura não violou os preceitos legais invocados pelo recorrente, dos quais fez justa, adequada e criteriosa aplicação.

2) Dos autos resultam fortes indícios de que o arguido foi autor de factos susceptíveis de integrarem a prática dos crimes de associação criminosa e de fraude fiscal qualificada.

3) Esses indícios estão suportados em prova documental e testemunhal e nos relatórios elaborados pela administração fiscal que reconstituem os vários esquemas da fraude carrossel detectada, com o apoio de documentação e informações enviadas pelas autoridades estrangeiras, no âmbito de cartas rogatórias expedidas, umas já cumpridas e outras em cumprimento.

4) No interrogatório a que foi submetido, o recorrente foi confrontado com os factos que lhe são imputados, tendo-lhe sido dados a conhecer os elementos de prova (inquirições e relatórios), na parte que se lhe referiam, indiciadores da sua responsabilidade na prática dos factos em investigação, assim se dando cumprimento ao comando do n.º 4 do artigo 141.º do CPP, com a apresentação, em súmula, dos elementos de prova contra si recolhidos.

5) Não é possível facultar ao arguido o acesso a essas peças processuais por as mesmas dizerem também respeito a variados indivíduos e empresas também intervenientes na fraude, cuja disponibilização ao arguido, nesta fase, comprometeria irremediavelmente a investigação.

6) Não foi negado ao recorrente o direito a consultar as peças processuais mencionadas no artigo 89.º, n.º 2, do CPP, as quais estiveram à sua disposição, para esse efeito, na Secretaria.

7) 'A limitação que a lei estabelece quanto ao local do exame - a Secretaria e não o escritório do advogado - não cerceia a defesa, dada a possibilidade de consulta do processo e de utilização de cópias das peças que interessam à defesa. Tal limitação apenas releva no aspecto da menor comodidade que nalguns casos representa para o advogado a impossibilidade de consultar o processo no escritório, o que não se traduz numa redução do direito de defesa do arguido'.

8) A não entrega ao arguido dessas cópias não o impediu de recorrer do despacho que manteve a prisão preventiva.

9) O artigo 89.º, n.º 2, do CPP é claro no sentido de apenas permitir o acesso através de consulta na Secretaria.

10) Tal interpretação não viola nem o princípio do contraditório nem os direitos de defesa do arguido.

11) 'Na fase processual de inquérito impera a regra do segredo de justiça - artigo 86.º, n.º 1, do CPP, atentos os valores por este protegidos, mormente o interesse público na boa administração da justiça e no êxito da investigação criminal.

12) A abertura do acesso irrestrito aos autos na fase de inquérito poderá vir a ser fatal para a própria investigação, face a todos os malefícios susceptíveis de virem a acontecer aos indícios probatórios ainda não completamente adquiridos e garantidos nos autos.'

13) O despacho recorrido não violou qualquer preceito legal, designadamente os artigos 89.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, alíneas f) e h), e 141.º, n.º 4, todos do CPP, e 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP.

14) Assim, ao invés do que defende o recorrente, o despacho recorrido não violou qualquer norma legal, pelo que não merece qualquer censura, devendo, pois, ser mantido."

No Tribunal da Relação de Lisboa, o Ministério Público concluiu também no sentido do não provimento do recurso pelas razões invocadas na resposta apresentada no Departamento Central de Investigação e Acção Penal.

3 - Tendo sido entretanto interposto recurso pelo arguido do despacho que decretou a prisão preventiva, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu negar provimento a tal recurso e manter a decisão recorrida (acórdão de fl. 97 a fl. 108 destes autos).

4 - O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu então um primeiro acórdão em que decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto pelo arguido do despacho que não lhe facultou, nos termos pretendidos, o acesso aos elementos do processo.

Na sequência de invocação pelo arguido da nulidade desse primeiro acórdão, veio a ser tirado novo acórdão, em que a Relação negou provimento a tal recurso (Acórdão de 23 de Junho de 2005, a fls. 120 e seguintes).

Neste segundo acórdão, o Tribunal da Relação de Lisboa começou por enunciar assim as questões a resolver:

"Consequentemente, cumpre agora apreciar se: a) devia ter sido entregue ao recorrente cópia do despacho que impôs a medida de coacção de prisão preventiva; b) acesso a determinados elementos de prova, ou súmula relevante dos mesmos."

Quanto à primeira questão, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa:

"A primeira conclusão é a de que tendo o ilustre mandatário tido acesso aos elementos constantes do despacho que determinou a aplicação ao arguido da medida de coacção de prisão preventiva, conforme expressamente admite, o arguido teve acesso, através do seu advogado, aos elementos indiciários por nós supra-enunciados, com os detalhes pormenorizados que nos impedimos de transcrever neste acórdão para evitar a violação do direito ao bom nome dos demais implicados e a violação do segredo de justiça em relação à matéria em investigação. Assim sendo, o arguido não esteve impedido de se defender, conforme pretende, muito menos de exercer o contraditório em sede de recurso e de avaliar e contraditar os indícios constantes dos autos.

Redundante seria admitir que apenas quando fosse notificado do despacho tomava conhecimento da matéria de facto nele enunciada. Embora entendamos que pode/deve ser facultada ao arguido recorrente cópia do despacho que ordenou a sua prisão preventiva e dos fundamentos desse despacho, e que essa notificação não pode/deve ser confundida com a possibilidade de consulta do mesmo despacho e referidos fundamentos na Secretaria sob pena de se violar o direito a um processo justo e equitativo entendido este como, tanto quanto possível nesta fase processual, due and fair, entendemos igualmente que essa omissão ficou sanada com a consulta do referido despacho pelo ilustre mandatário do arguido recorrente.

Com efeito, o arguido havia sido notificado pessoalmente do despacho, bem como o defensor oficioso presente no acto.

Não tendo sido facultada ao arguido a cópia do despacho e tendo, após, o ilustre mandatário tido acesso, por consulta directa, aos fundamentos do mesmo despacho, entendemos não lhe assistir razão quando insiste que não está habilitado a defender-se por não ter tido acesso aos fundamentos do mesmo despacho que determinou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.

Entendemos igualmente que ficou sanada qualquer violação que até aí tivesse ocorrido do direito de defesa do arguido, designadamente do seu direito a exercer o contraditório quanto aos fundamentos do despacho de prisão preventiva.

Nessa medida, ainda que por fundamentos muito diversos dos expendidos no despacho recorrido, entendemos que este não é de revogar."

Relativamente ao segundo problema enunciado, pronunciou-se assim o Tribunal da Relação de Lisboa:

"Quanto à questão da súmula dos meios de prova e do acesso aos meios de prova, entendemos igualmente que não assiste razão ao arguido e recorrente, já que, tendo tido acesso ao despacho que aplicou ao arguido a medida de coacção de prisão preventiva, teve necessariamente acesso à súmula dos meios de prova que fundamentam, nesta fase processual, os indícios contra ele reunidos.

Muito concretamente, no que à listagem de movimentos bancários efectuados na conta de [...], no BES, não pode o arguido ignorar, após consulta do referido despacho na Secretaria, conforme o seu mandatário expressamente admite, que a mesma listagem indicia depósitos efectuados na conta da pessoa com que o arguido refere estar casado, pelo que se entende que estando ainda o processo em investigação essa listagem detalhada lhe não deve ser facultada.

O arguido sabe como foi essa listagem interpretada e, consequentemente, sabe como deve impugná-la.

Assim, embora em abstracto, no domínio dos princípios que devem reger o processo penal, assista parcialmente razão ao arguido recorrente, o certo é que uma vez consultado pelo ilustre mandatário o auto de interrogatório do qual consta uma súmula dos factos acerca dos quais o arguido foi interrogado, o conjunto das respostas dadas pelo arguido e as questões concretas que lhe foram colocadas em relação à listagem a fls. 1161 e 1162, questões essas que permitem concluir como é a mesma listagem interpretada pela entidade que dirige o inquérito, sanada ficou a violação do direito de defesa do recorrente por omissão do dever de notificação do despacho recorrido e fundamentação respectiva e ultrapassada ficou a questão sobre o acesso aos meios de prova (possível, diríamos nós) nesta fase de inquérito (considerado que foi como constitucional).

Embora com fundamentos diversos dos dele constantes, o despacho recorrido é de manter.

O recurso improcede, pois."

5 - Jorge Manuel Barbas dos Santos Costa interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, para apreciação das questões de inconstitucionalidade que assim enunciou (requerimento a fls. 132 e seguintes):

"O acórdão recorrido interpreta o artigo 89.º, n.º 2, do CPP, devidamente conjugado com o artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do CPP, no sentido de que, muito embora possa e deva ser facultada ao arguido cópia do despacho que ordenou a sua prisão preventiva, bem como do seu próprio auto de interrogatório, sob pena de se violar o direito a um processo justo e equitativo, deve ser considerada sanada tal omissão se o arguido os pôde consultar através do seu mandatário.

[...]

Por outro lado, o acórdão recorrido interpreta o artigo 89.º, n.º 2, do CPP, devidamente conjugado com os artigos 61.º, n.º 1, alíneas f) e h), e 141.º, n.º 4, do CPP, no sentido de que pode ser negado ao arguido preso preventivamente - para o efeito de este apresentar a sua defesa e apresentar o recurso dessa prisão - o acesso a consultar os elementos de prova (ou súmula dos mesmos) em que concretamente se funda tal prisão preventiva, se do auto do interrogatório consta uma súmula dos factos acerca dos quais o arguido foi interrogado e se, das questões concretas colocadas, é possível concluir qual é a interpretação do Ministério Público acerca de um comportamento do arguido tido como relevante (porventura até o mais relevante) para o efeito da sua eventual incriminação, caso em que se considera satisfeito o direito de defesa do arguido."

Segundo o entendimento do recorrente, tais interpretações normativas seriam inconstitucionais por violação dos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

O recurso foi admitido por despacho a fl. 138 v.º

6 - Nas alegações que produziu perante o Tribunal Constitucional (fls. 143 e seguintes), concluiu assim o recorrente:

"A) A primeira questão tem a ver com a implícita interpretação normativa do acórdão recorrido - relativa ao artigo 89.º, n.º 2, do CPP, devidamente conjugado com o artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do CPP - no sentido de que, muito embora possa e deva ser facultada ao arguido cópia do despacho que ordenou a sua prisão preventiva, bem como do seu próprio auto de interrogatório, de forma a assegurar um processo equitativo, se deve considerar sanada tal omissão se o arguido os pode consultar através do seu mandatário.

B) A lógica do acórdão recorrido é a seguinte: se a consulta das peças em apreço foi efectuada, não há razão prática que justifique a invocação de um prejuízo pelo facto de as cópias não terem sido facultadas.

C) Mas não é assim. É do senso comum compreender que é diferente a recolha de notas que uma consulta permite e a disponibilidade do texto integral do documento sobre o qual se trabalha. E este acesso integral é uma mera decorrência lógica do princípio segundo o qual deve ser dado ao arguido conhecimento pleno do que lhe é imputado e justifica a sua prisão.

D) Tal interpretação normativa viola, assim, os artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP - bem como os artigos 5.º, n.º 2, e 6.º, n.os 1 e 3, alíneas a) e b), da CEDH -, porque admite, sem justificação razoável, que não se faculte ao arguido cópia de elementos fundamentais para o exercício da sua defesa, o que põe em causa o núcleo essencial das garantias que aqueles preceitos legais visam acautelar.

E) A segunda questão tem a ver com a implícita interpretação normativa - relativa ao artigo 89.º, n.º 2, do CPP, devidamente conjugado com os artigos 61.º, n.º 1, alíneas f) e h), e 141.º, n.º 4, do CPP - no sentido de que pode ser negado ao arguido preso preventivamente - para o efeito de este exercer a sua defesa e apresentar recurso dessa prisão o acesso a consultar os elementos de prova (ou súmula dos mesmos) em que concretamente se funda tal prisão preventiva, se do auto do interrogatório consta uma súmula dos factos acerca dos quais o arguido foi interrogado e se, das questões concretas colocadas, é possível concluir qual é a interpretação do Ministério Público acerca dos comportamentos do arguido em causa para o efeito da sua eventual incriminação, caso em que se considera satisfeito o direito de defesa do arguido.

F) No fundo, o acórdão recorrido vem sustentar que, se o arguido - no decurso do primeiro interrogatório judicial - se pôde aperceber das questões concretas que lhe são imputadas pelo Ministério Público, já não lhe assiste o direito a consultar os concretos elementos de prova em que se funda a indiciação que levou à sua prisão preventiva, estando satisfeito o direito da defesa.

G) Mas não é assim. Para o exercício do direito de defesa, quando alguém está preso preventivamente, não basta conhecer os factos concretos que lhe são imputados, exigindo-se ainda o conhecimento dos concretos elementos de prova que fundam tais imputações, em que assenta o juízo que levou à sua prisão preventiva, de forma a poder refutá-los, completá-los ou esclarecê-los, segundo o melhor critério que a defesa venha a definir.

H) Tal proposição devia ser pacífica na comunidade jurídica portuguesa, sobretudo depois da jurisprudência do Tribunal Constitucional no caso 'Casa Pia' - cf. Acórdãos n.os 580/2003 e 594/2003.

I) O critério normativo em causa naqueles arestos do TC - nos segmentos relevantes para o efeito - é precisamente o que ora está em discussão: a questão do acesso pelo arguido aos concretos elementos de prova em que se funda a indiciação que levou à sua prisão, na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave nessa comunicação.

J) Aquela interpretação normativa - que acaba por reduzir o direito da defesa ao conhecimento dos factos imputados, suprimindo-lhe o direito ao conhecimento dos elementos de prova de tais factos em que se funda a sua prisão - viola, assim, os artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP - bem como os artigos 5.º, n.º 2, e 6.º, n.os 1 e 3, alíneas a) e b) da CEDH -, porque restringe, sem qualquer justificação razoável, o acesso a elementos imprescindíveis para o exercício do direito de defesa, o que põe em causa o núcleo essencial das garantias que aqueles preceitos legais visam acautelar.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, declarando-se a inconstitucionalidade dos preceitos legais em causa, quando interpretados nos sentidos implícitos assinalados."

O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional contra-alegou (fls. 158 e seguintes), tendo concluído do seguinte modo:

"1.º Não é inconstitucional a interpretação normativa do n.º 2 do artigo 89.º do Código de Processo Penal que considera precludida a omissão de entrega ao arguido de cópia do auto de interrogatório e do despacho que lhe aplicou a medida de prisão preventiva com fundamento em que o respectivo defensor teve acesso a tais elementos mediante consulta na Secretaria, sem que tal envolvesse prejuízo substancial ou relevante para o exercício do direito de defesa.

2.º A Relação, no acórdão recorrido, não realizou interpretação normativa traduzida em denegar, em abstracto, ao arguido o acesso aos elementos probatórios em que assentou o despacho impositivo da medida de coacção de prisão preventiva, limitando-se a considerar que, no caso concreto, a súmula de tais elementos - que lhe foi facultada no decurso do interrogatório - é suficiente para harmonizar, em concreto, o exercício do direito de defesa com as necessidades da investigação em curso.

3.º Termos em que deverá improceder o presente recurso."

7 - Tendo em conta que nas contra-alegações o Ministério Público sustenta que no acórdão recorrido não foi efectivamente aplicada a norma constante do artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal - o que pode constituir questão prévia susceptível de obstar ao conhecimento de parte do objecto do presente recurso -, foi determinada a notificação do recorrente para se pronunciar sobre essa questão (despacho a fl. 164).

O recorrente respondeu através do requerimento a fls. 166 e seguinte e 170 e seguinte:

"a) O acórdão recorrido considerou sanada a violação do direito de defesa - traduzida no facto de não ter sido facultada ao arguido cópia dos elementos em causa - pela circunstância de o seu mandatário ter podido consultar tais elementos na Secretaria do Tribunal.

b) Na óptica do recorrente, ao utilizar tal critério normativo, o Tribunal, ainda que apenas implicitamente, recorreu ao critério normativo subjacente ao artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do CPP, devidamente conjugado com o artigo 89.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.

c) O artigo 121.º, n.º 1, alínea b), considera sanada a nulidade se o participante processual tiver aceite os efeitos do acto anulável, o que, na óptica do recorrente, o Tribunal entendeu implicitamente que também seria aplicável à situação análoga em que, tendo o recorrente direito às cópias em apreço, se teria satisfeito com a consulta das peças processuais em pauta.

d) Não vislumbra o recorrente que o Tribunal tenha recorrido à solução análoga que vigora no ordenamento processual em sede de notificações aos sujeitos processuais - como sustenta o Ministério Público - já que aqui está em causa a situação particular do acesso - integral e efectuado de uma forma cómoda e adequada - a elementos imprescindíveis para o exercício do direito de defesa do cidadão preso preventivamente.

e) Em qualquer caso, o que releva é o critério normativo aplicado - tenha ou não sido considerado implicitamente o artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do CPP -, como tem julgado a jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem apreciado a inconstitucionalidade de critérios normativos distintos daqueles que foram invocados nos recursos interpostos.

Termos em que não procede a questão prévia suscitada."

Cumpre apreciar e decidir.

II - 8 - Tal como delimitado no respectivo requerimento de interposição, o presente recurso tem como objecto duas interpretações normativas que o recorrente considera terem sido perfilhadas no acórdão recorrido quanto ao artigo 89.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

O artigo 89.º, n.º 2, do Código de Processo Penal dispõe como segue:

"Artigo 89.º

Consulta de auto e obtenção de certidão e informação por sujeitos processuais

[...]

2 - Se, porém, o Ministério Público não houver ainda deduzido acusação, o arguido, o assistente [...] só podem ter acesso a auto na parte respeitante a declarações prestadas e a requerimentos e memoriais por eles apresentados, bem como a diligências de prova a que pudessem assistir ou a questões incidentais em que devessem intervir, sem prejuízo do disposto no artigo 86.º, n.º 5. Para o efeito, as partes referidas do auto ficam avulsas na Secretaria, por fotocópia, pelo prazo de três dias, sem prejuízo do andamento do processo. O dever de guardar segredo de justiça persiste para todos."

Segundo o entendimento do recorrente, a norma do artigo 89.º, n.º 2, do Código de Processo Penal seria inconstitucional, por violação dos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, nas seguintes dimensões interpretativas:

a) Quando, em conjugação com o artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, é interpretada "no sentido de que, muito embora possa e deva ser facultada ao arguido cópia do despacho que ordenou a sua prisão preventiva, bem como do seu próprio auto de interrogatório, sob pena de se violar o direito a um processo justo e equitativo, deve ser considerada sanada tal omissão se o arguido os pôde consultar através do seu mandatário";

b) Quando, em conjugação com os artigos 61.º, n.º 1, alíneas f) e h), e 141.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, é interpretada "no sentido de que pode ser negado ao arguido preso preventivamente - para o efeito de este apresentar a sua defesa e apresentar o recurso dessa prisão - o acesso a consultar os elementos de prova (ou súmula dos mesmos) em que concretamente se funda tal prisão preventiva, se do auto do interrogatório consta uma súmula dos factos acerca dos quais o arguido foi interrogado e se, das questões concretas colocadas, é possível concluir qual é a interpretação do Ministério Público acerca de um comportamento do arguido tido como relevante (porventura até o mais relevante) para o efeito da sua eventual incriminação, caso em que se considera satisfeito o direito de defesa do arguido".

9 - Relativamente à primeira questão suscitada pelo recorrente [supra n.º 8, alínea a)], salienta-se, antes de mais, que o tribunal recorrido não aplicou efectivamente a norma do artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, ainda que em conjugação com o artigo 89.º, n.º 2, do mesmo Código. Na verdade, não só o artigo 121.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal não se encontra referido no texto do acórdão recorrido, como também o tribunal recorrido não aventou a hipótese de ter sido cometida alguma irregularidade que pudesse considerar-se sanada nos termos previstos em tal preceito, que se reporta à "aceitação expressa" - que manifestamente se não verificou - "dos efeitos do acto anulável".

Tem assim razão o Ministério Público quanto a esta questão prévia.

A primeira interpretação normativa questionada no presente recurso - e efectivamente perfilhada na decisão recorrida - terá, assim, de reportar-se exclusivamente ao artigo 89.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

10 - Quanto a essa primeira interpretação normativa - relacionada com a questão do acesso à cópia do despacho que ordena a prisão preventiva e do auto de interrogatório do arguido -, observe-se que o recorrente conclui no sentido da sua desconformidade constitucional porque, na sua perspectiva, é diferente recolher notas através da consulta de um documento e dispor do texto integral do próprio documento.

Sendo óbvia a existência desta diferença, aquilo que se deve, todavia, perguntar é se essa diferença significou para o ora recorrente, no caso concreto, uma compressão dos seus direitos de defesa, em suma, um prejuízo.

Não seria, na verdade, constitucionalmente conforme, à luz do disposto nos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição, admitir que a ofensa do direito do recorrente ao acesso a certas cópias pudesse considerar-se inócua - atendendo a que lhe fora facultada a consulta de fotocópias na Secretaria -, se, no caso concreto, subsistisse algum prejuízo a considerar.

Com efeito, dos referidos preceitos constitucionais decorre que não seria de considerar irrelevante a ofensa que acarretasse algum prejuízo para o arguido.

Sucede, porém, que o tribunal recorrido deu como assente a inexistência de prejuízos para o arguido. Aliás, o recorrente não invocou no presente recurso a subsistência de prejuízos.

Não havendo prejuízos a considerar, não se vê em que medida a interpretação normativa em apreciação violou os mencionados direitos fundamentais do recorrente, pelo que o recurso improcede, nesta parte.

11 - Vejamos agora a segunda interpretação normativa, relacionada com a questão do acesso aos elementos de prova em que se funda a prisão preventiva [supra n.º 8, alínea b)].

Segundo o recorrente, tal interpretação normativa seria inconstitucional, pois que "para o exercício do direito de defesa, quando alguém está preso preventivamente, não basta conhecer os factos concretos que lhe são imputados, exigindo-se ainda o conhecimento dos concretos elementos de prova que fundam tais imputações, em que assenta o juízo que levou à sua prisão preventiva, de forma a poder refutá-los, completá-los ou esclarecê-los, segundo o melhor critério que a defesa venha a definir" (fl. 151).

Em suma, e de acordo com o recorrente, a segunda interpretação normativa perfilhada pelo tribunal recorrido "reduz o direito da defesa ao conhecimento dos factos imputados, suprimindo-lhe o direito ao conhecimento dos elementos de prova de tais factos em que se funda a sua prisão" (fl. 152).

Não procede, porém, também aqui, a argumentação do recorrente.

Com efeito, o tribunal recorrido não considerou que ao ora recorrente apenas assistia o direito ao conhecimentos dos factos que lhe eram imputados, tendo entendido diversamente que também lhe assistia o direito ao conhecimento dos meios de prova aptos a demonstrar tais factos e que esse direito, no caso concreto, havia sido exercido. E havia sido exercido precisamente aquando do acesso ao despacho que decretara a prisão preventiva e do acesso ao auto de interrogatório, pois que, nestes momentos, acedera o arguido à súmula dos meios de prova.

Ora, não tendo o tribunal recorrido negado ao recorrente o direito ao conhecimento dos meios de prova aptos a demonstrar os factos por que vinha indiciado, mas apenas considerado que esse direito fora exercido em certos momentos processuais, improcede também a alegada violação dos artigos 28.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição pela segunda interpretação normativa que cumpria apreciar.

III - 12 - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 u.c.

Lisboa, 2 de Novembro de 2005. - Maria Helena Brito - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria João Antunes - Rui Manuel Moura Ramos - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1457100.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1990-01-15 - Decreto-Lei 20-A/90 - Ministério das Finanças

    Aprova o regime jurídico das infracções fiscais não aduaneiras.

  • Tem documento Em vigor 2001-06-05 - Lei 15/2001 - Assembleia da República

    Reforça as garantias do contribuinte e a simplificação processual, reformula a organização judiciária tributária e estabelece um novo Regime Geral para as Infracções Tributárias (RGIT), publicado em anexo. Republicados em anexo a Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98 de 17 de Dezembro, e o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/99 de 26 de Outubro.

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