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Acórdão 593/2008, de 26 de Janeiro

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Sumário

Não conhece do objecto do recurso na parte referente à norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), do regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 42.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações e coimas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro; não conhece do objecto do recurso na parte referente à norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.os 1 e 2, do mesmo diploma; não julga inconstitucional a norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.os 1 e 2, da citada Lei n.º 18/2003, no sentido de conferir competência ao Ministério Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional de pessoas colectivas

Texto do documento

Acórdão 593/2008

Processo 397/08

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Comércio de Lisboa, em que é recorrente Portucel Embalagem - Empresa Produtora de Embalagens de Cartão, S. A., e recorridos o Ministério Público e a Autoridade da Concorrência, foi interposto recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade da sentença daquele Tribunal, de 10.03.2008, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), para apreciação das seguintes questões:

i) (In)constitucionalidade da norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.os 1 e 2, do regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de conferir competência ao Ministério Público para autorizar buscas à sede e domicilio profissional de pessoas colectivas, por violação dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.os 1, 2, 3 e 4, da CRP e do princípio da reserva de juiz neles consagrado;

ii) (In)constitucionalidade da norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), do regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 42.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações e coimas, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, no sentido de que a correspondência aberta (circulares, mensagens de correio electrónico e documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) pode ser apreendida e utilizada como meio de prova em processo contra-ordenacional, por violação dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, ambos da CRP;

iii) (In)constitucionalidade da norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.os 1 e 2, do regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de que páginas extraídas de cadernos de apontamentos pessoais e de agenda pessoal podem ser apreendidas e utilizadas como meio de prova em processo contra-ordenacional, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, e 32.º, n.º 8, da CRP.

2 - O presente recurso emerge de processo de contra-ordenação, no qual a Portucel Embalagem, S. A., interpôs recurso para o Tribunal de Comércio de Lisboa, do despacho da Autoridade da Concorrência (AdC), de 28.03.2007, que indeferiu o seu requerimento de arguição de nulidades, pedindo que fosse julgado procedente o recurso e declarada a invalidade das diligências de busca e apreensão realizadas pela AdC nas instalações da Portucel Embalagem e, subsidiariamente, que fossem reconhecidas as nulidades de prova resultantes da natureza especialmente tutelada de alguns documentos apreendidos, nomeadamente aqueles que constituam correspondência, condenando-se a AdC à sua restituição.

Por sentença do Tribunal de Comércio de Lisboa, de 10.03.2008, ora recorrida, o recurso foi julgado totalmente improcedente.

3 - No Tribunal Constitucional, a recorrente concluiu da seguinte forma as respectivas alegações:

«1. No âmbito da aplicação da Lei 18/2003, de 11 de Junho, que aprovou o regime jurídico da concorrência, e em sede de processo contra-ordenacional, a Autoridade da Concorrência realizou em 16 de Janeiro de 2007, ao abrigo de um mandado emitido por uma magistrada de turno do Ministério Público, diligências de busca na sede e instalações da Recorrente, tendo apreendido correspondência diversa (designadamente circulares e mensagens de correio electrónico), bem como extractos de cadernos de apontamentos e agenda pessoal, no decurso das buscas.

2 - O entendimento, subjacente à decisão recorrida, segundo o qual as buscas realizadas pela Autoridade da Concorrência na sede de pessoas colectivas, ao abrigo dos poderes de inquérito que lhe são conferidos pelas normas do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), e n.º 2, da Lei 18/2003, de 11 de Junho, não constituem buscas domiciliárias, pelo que a entidade competente para emitir os mandados correspondentes é o Ministério Público, é materialmente inconstitucional por violação do disposto nos números 1 e 2 do artigo 34.º da CRP e do princípio da reserva de juiz aí consagrado.

3 - A generalidade da doutrina constitucionalista reconhece que, por si só (imediatamente) ou em conjugação com outros direitos fundamentais (como, nomeadamente, o direito de iniciativa económica, o direito à propriedade ou o direito à tutela do segredo comercial), a garantia de inviolabilidade do domicílio é extensível às pessoas colectivas, designadamente às pessoas colectivas de direito privado como é o caso da ora Recorrente.

4 - Para além de considerar que o âmbito de protecção da garantia de inviolabilidade do domicílio consagrada no artigo 34.º da CRP se estende à sede e instalações das pessoas colectivas, a doutrina converge em sentido idêntico no que respeita à titularidade deste direito subjectivo fundamental, considerando que, nos termos do disposto no número 2 do artigo 12.º da CRP, a inviolabilidade do domicílio não é indissociável da personalidade humana ou da pessoa física, sendo, portanto, compatível com a específica natureza das pessoas colectivas.

5 - As empresas devem beneficiar de uma esfera específica de reserva e sigilo merecedora de tutela equiparável à que é conferida à "habitação" das pessoas físicas, nomeadamente em atenção ao facto de que é na sede e instalações destas pessoas colectivas que se concentram as suas actividades industriais, comerciais ou de investigação; os seus dados de negócio e documentação contabilística e financeira; os haveres pessoais dos seus funcionários, administradores e trabalhadores; informação sobre clientes e fornecedores; planos de negócios e orçamentos; registos de declarações fiscais; documentação bancária e relativa a créditos e financiamentos, etc.

6 - A circunstância de, nos termos do número 2 do artigo 12.º da CRP, as pessoas colectivas gozarem dos direitos fundamentais compatíveis com a sua natureza, por direito próprio, corresponde a uma limitação, consensualmente reconhecida, ao princípio do carácter individual destes direitos.

7 - O facto de ser incriminada, nos termos do artigo 187.º do Código Penal, a violação de bens jurídicos e valores eminentemente pessoais específicos de pessoas colectivas (como o prestígio, a confiança e a credibilidade) reforça o entendimento segundo o qual a garantia de inviolabilidade do domicílio é compatível com a natureza das pessoas jurídicas.

8 - Acresce que, nos termos da jurisprudência mais recente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a protecção do domicílio decorrente do artigo 8.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais estende-se inequivocamente à "sede e delegações" das empresas (cf. acórdão Colas Est v. França, de 16.04.2002, que concluiu pelo carácter desproporcionado das disposições de um regime legal de direito francês, aplicáveis a investigações a empresas no âmbito da fiscalização de práticas anti-concorrenciais, segundo as quais não seria necessária autorização judicial prévia para diligências de busca na sede e instalações de pessoas colectivas).

9 - A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem constitui um elemento hermenêutico de enorme importância na densificação, normativa e jurisprudencial, das normas consagradoras de direitos fundamentais, quer a nível nacional quer a nível comunitário (neste segundo plano, o valor das normas da Convenção Europeia e da aludida jurisprudência enquanto padrões de interpretação do direito comunitário foi, inclusivamente, reforçado com a adesão formal da União Europeia àquela Convenção por via do Tratado de Lisboa, de 13.12.2007 - cf. nova redacção dos números 2 e 3 do artigo 6º do Tratado da Comunidade Europeia) pelo que não poderá deixar de ser tida em conta na interpretação do disposto no artigo 34.º da CRP.

10 - Aplicando-se a garantia de inviolabilidade do domicílio à sede e instalações das pessoas colectivas, verifica-se que a realização de buscas e apreensões nas instalações da Recorrente é, nos termos do disposto no número 2 do artigo 34.º da CRP, um acto sujeito a reserva de juiz (o que é confirmado, na legislação ordinária, pelas disposições do artigo 177.º, n.º 1 e 269.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, na redacção vigente à data em que foram autorizadas e tiveram lugar aquelas diligências) pelo que a interpretação do artigo 17º, n.º 1, alínea c) e n.º 2 da Lei 18/2003, de 11 de Junho, no sentido de que a "autoridade judiciária" referida nesta última norma não tenha de ser, necessariamente, um magistrado judicial, é materialmente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 4, e 34.º, n.º 2 da CRP.

11 - Acresce não ser possível recorrer subsidiariamente ao conceito de "autoridade judiciária" constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 1.º do CPP porquanto em processo contra-ordenacional, em especial na fase anterior à aplicação da coima pela autoridade administrativa, nenhuma autoridade judiciária tem competência decisória, pelo que falta à norma contida no n.º 2 do artigo 17.º da Lei 18/2003, de 11 de Junho, a indispensável definição, em norma expressa habilitante, de qual deva ser a autoridade judiciária competente para efeitos de autorização de buscas e apreensões, inexistindo, ademais, qualquer elemento interpretativo, legal ou constitucional, que aponte para que a referida autoridade possa ser, no âmbito das diligências de investigação reguladas no regime jurídico da concorrência, o Ministério Público.

12 - Quanto ao facto de a Autoridade da Concorrência ter apreendido correspondência (mensagens de correio electrónico e circulares, arquivados em suporte informático em computador pessoal) na sede da Recorrente, a decisão recorrida propugnou o entendimento segundo o qual a garantia de inviolabilidade da correspondência apenas vale para correspondência "fechada" (devendo a correspondência já "aberta" seguir o regime aplicável aos documentos em geral).

13 - Tal entendimento é materialmente inconstitucional por violação do disposto no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, norma que admite excepcionalmente a ingerência na correspondência apenas nos «casos previstos na lei em matéria de processo criminal».

14 - Por conseguinte, em processo contra-ordenacional vigora uma garantia de inviolabilidade absoluta da correspondência ou telecomunicações - como resulta, a nível da legislação ordinária, do disposto no artigo 42.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações e coimas -, encontrando-se vedado o recurso a meios de obtenção mais gravosos como a apreensão de correspondência, apenas possível em sede de investigação criminal nos termos previstos no artigo 179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

15 - Não existe qualquer motivo justificativo de um tratamento diferenciado entre correspondência "fechada" e correspondência "aberta", pelo que a circunstância de uma mensagem de correio electrónico poder já ter sido lida e arquivada (em versão impressa ou em suporte informático) releva apenas para efeitos do preenchimento do tipo legal de crime previsto e punido no artigo 194.º do Código Penal (violação de correspondência ou telecomunicações), sendo inoperante para efeitos de determinação da amplitude da tutela da correspondência em sede de processo contra-ordenacional.

16 - O acesso e análise, por parte da Autoridade da Concorrência, do conteúdo integral de uma agenda pessoal e de cadernos de apontamentos pessoais armazenados no gabinete de um director da Recorrente, configura uma intromissão na esfera da privacidade da pessoa em questão na medida em que, independentemente do teor concreto dos extractos apreendidos e copiados, implica o acesso irrestrito daquela autoridade - e a aquisição da informação respectiva - a todas as anotações (pessoais e de outra natureza) que deles constam.

17 - Constitui, portanto, uma violação da reserva da intimidade da vida privada o escrutínio e apreensão não autorizados das referidas anotações manuscritas, devendo ser julgado inconstitucional, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, e 32.º, n.º 8, da CRP, a interpretação do artigo 17.º, n.os 1 e 2, da Lei 18/2003, de 11 de Junho, segundo a qual é possível a apreensão e utilização como meio de prova dos referidos elementos em processo contra-ordenacional.»

4 - O representante do Ministério Público junto deste Tribunal contra-alegou, concluindo o seguinte:

«1. O conceito de domicílio previsto no artigo 34.º da Constituição não configura a possibilidade de uma equiparação entre domicílio de pessoa (singular) e de pessoa colectiva, nomeadamente para efeitos de intervenção de autoridade judiciária.

2 - A interpretação do artigo 17.º, n.º 2, da Lei de Concorrência segundo a qual o Ministério Público é competente para autorizar buscas em sede de pessoa colectiva não viola qualquer comando constitucional, nomeadamente o artigo 34.º

3 - Não viola a Constituição a norma do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), da Lei 18/2003, de 11 de Junho, quando interpretada no sentido de ser possível a apreensão e utilização, como meio de prova em processo contra-ordenacional, correspondência aberta, lida e arquivada (circulares, mensagens de correio e documentos anexos, arquivados em computador ou impressos).

4 - De igual modo não viola a Constituição a interpretação do preceito referido supra, quando permite a apreensão e utilização, como meio de prova, de páginas extraídas de cadernos de apontamentos pessoais cujo conteúdo é relativo a "dados de negócios" sem qualquer conexão com a reserva da intimidade da vida privada e familiar.»

5 - A recorrida Autoridade da Concorrência apresentou contra-alegações onde, para além do mais, suscitou o não conhecimento do objecto do recurso quanto às segunda e terceira questões colocadas, concluindo o seguinte:

«A) A Recorrente não configurou como inconstitucionalidade normativa a interpretação da norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.º 1 c) da Lei 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 42.º, n.º 1 do RGCO no sentido de que a correspondência aberta (circulares, mensagens de correio electrónico e documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) pode ser aprendida e utilizada como meio de prova em processo contra-ordenacional, por violação dos artigos 32.º, n.º 8 e 34.º, n.º 4, ambos da CRP. Só nesta sede o fazendo.

B) Considerou, e configurou, que a AdC decorrente da sua actuação violou a proibição de ingerência na correspondência e nas telecomunicações consagradas no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, violando igualmente o disposto no n.º 1 do artigo 42.º do RGCO (artigo 111.º da Impugnação), violando também os termos do mandado (artigo 112.º da impugnação) e as conclusão XII e XIII

C) Ao considerar a actuação da AdC como violadora das garantias constitucionais de inviolabilidade de correspondência com a consequente nulidade de obtenção de prova. Não configurando como ora pretende, uma inconstitucionalidade normativa.

D) Pelo que não devem ser conhecidas as questões de inconstitucionalidade resultantes da segunda e terceiras questões das alegações da Recorrente por ser a primeira vez que o faz.

E) A questão violação da reserva da intimidade da vida privada resulta do entendimento e valoração da actuação da AdC.

F) Esta inconstitucionalidade resulta da sua discordância com a Sentença "a quo" que não atendeu à sua tese, portanto, não configura uma questão de inconstitucionalidade normativa, mas sim uma questão de discordância com a sentença em ligação intrínseca com a actuação da AdC (conclusão 16 e 17 das suas alegações).

G) Em parte alguma das suas alegações para o Tribunal de Comércio, a Recorrente reconduz esta questão a uma questão de inconstitucionalidade normativa, com se constata dos artigos 123.º a 129.º da impugnação e conclusão XV.

H) Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto processual a suscitação, durante o processo, da questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer - artigo 72.º, n.º 2, da TC.

I) A Sentença "a quo" não fez qualquer aplicação das interpretações normativas que a Recorrente lhe imputa no presente requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. Efectivamente, o tribunal recorrido não se pronunciou sobre as questões de inconstitucionalidade que agora vêm colocadas.

J) Destarte, não estando preenchidos os pressupostos processuais do presente recurso, não é possível conhecer do respectivo objecto quanto a estas duas questões.

Caso assim não se entenda,

K) A AdC, nos termos dos artigos 1.º e 4.º dos seus Estatutos, aprovados pelo Decreto- Lei 10/2003, de 18 de Janeiro, tem como missão assegurar a aplicação das regras da concorrência nacionais e comunitárias, no respeito pelo princípio da economia de mercado e de livre concorrência, com vista ao funcionamento eficiente dos mercados, à repartição eficaz dos recursos e aos interesses dos consumidores;

L) No âmbito do exercício dos seus poderes sancionatórios, cumpre à AdC identificar e investigar as práticas susceptíveis de infringir a legislação da concorrência nacional e comunitária, proceder à instrução e decidir sobre os respectivos processos, aplicando se for caso disso, as sanções previstas na lei, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 7.º, dos Estatutos supra mencionados, e do artigo 17.º, n.º1 alínea c) da LdC;

M) No caso dos autos, e salvo melhor, não foram efectuadas buscas domiciliárias e, igualmente, não foi apreendida qualquer correspondência, logo o mandado foi emitido pela autoridade judiciária competente;

N) Com efeito, o conceito de domicílio deve ser "dimensionado e moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de intimidade da vida privada" (Acórdão do TC n.º 67/97 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 36.º vol., p. 247), não está seguramente essa "intimidade" em causa na sede da empresa, nem este é "aquele espaço fechado e vedado a estranhos onde recatada e livremente se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar" (Acórdão do TC n.º 452/89, in Acórdãos do Tribunal Constitucional 13.º vol., tomo I, p. 543).

O) Pelo que toda argumentação da Recorrente deve improceder, não existindo qualquer inconstitucionalidade decorrente da inviolabilidade do domicílio das pessoas colectivas e da alegada busca "domiciliária" à "sede" da recorrente, em razão do n.º 2 do artigo 12.º da CRP que prevê que "as pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza ".

P) Tal preceito não consagra um princípio de equiparação entre pessoas físicas e pessoas colectivas no tocante à titularidade de direitos fundamentais, nem o mesmo é defendido pelos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira;

Q) O Tribunal Constitucional rejeita expressamente uma tal equiparação, sendo a este propósito exemplar o seu Acórdão 569/98, no Proc. n.º 505/96, de 7 de Outubro de 1998;

R) Da norma do n.º 2 do artigo 12.º decorre uma "limitação": as pessoas colectivas só têm os direitos compatíveis com a sua natureza, alicerçado na ligação íntima dos direitos fundamentais ao valor supremo da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP);

S) Disto resulta que o n.º 2 do artigo 12.º da CRP não determina a atribuição directa, por extensão, dos direitos fundamentais às pessoas colectivas, mesmo os seus representantes sendo pessoas singulares, o que obriga a uma análise sempre casuística e sempre temperada com o facto de inexistir um catálogo "prévio" de direitos fundamentais que possam ser invocados pelas pessoas colectivas;

T) O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre o conceito constitucional de domicílio acolhido no artigo 34.º da CRP, entendendo, a esse propósito, no Acórdão 452/898 (in Diário da República, 1.ª série, de 22 de Julho de 1989), e reiterado no seu Acórdão 67/97, proc. n.º 602/96, de 4 de Fevereiro de 1997;

U) Ou seja, o conceito constitucional de domicílio é dimensionado e moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de reserva da intimidade da vida familiar, e como tal conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 26.º da CRP;

V) O que é, igualmente, confirmado no douto Parecer 127/2004 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 17 de Março de 2005 e pelo parecer, da mesma procuradoria, com o n.º 86/1991, no ponto 7.4, onde se defende que as buscas na sede das pessoas colectivas não configuram buscas domiciliárias, ou seja, "em casa habitada ou numa sua dependência fechada";

W) As buscas efectuadas pela Autoridade da Concorrência nos presentes autos não são enquadráveis no conceito de buscas domiciliárias previsto no artigo 177.º do CPP, não sendo, consequentemente, acto subsumível à previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 269.º do CPP;

X) Nos termos dos n.ºs 1, 2 do artigo 17.º da Lei 18/2003, de 11 de Junho, a AdC goza dos mesmos direitos, faculdades e deveres dos órgãos de polícia criminal e tem competência para proceder a buscas nas instalações das empresas, desde que obtenha um despacho da autoridade judiciária competente para a sua realização;

Y) Por aplicação subsidiária do CPP, ex vi da artigo 19.º da LdC, e do artigo 41.º do RGCO, e porque estas diligências têm lugar na fase de inquérito, a entidade competente para a emissão dos mandados é o Ministério Público, nos termos dos artigos 267.º e 2.º, ambos, do CPP.

Z) A invocação dos Acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, não colhe, porque não tem aplicação ao caso concreto, e, além disso, porque todos os princípios consagrados na Carta dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem vêm expressamente previstos e sufragados na Constituição da República Portuguesa;

AA) Não foi apreendida nenhuma correspondência, porquanto os documentos apreendidos e classificados, pela Recorrente, como correspondência, não violam o direito ao sigilo da correspondência, consagrado constitucionalmente como garantia fundamental que encontra sua recriminação, no âmbito penal, no artigo 194.º do CP;

BB) Decorre do normativo supra, que o legislador ordinário ao pretender acautelar o bem jurídico constitucionalmente garantido - o direito à privacidade e a garantia da comunicação - veio proibir, antes de mais, a própria "abertura" de um escrito que "se encontre fechado ", e isto, independentemente, de o seu conteúdo versar ou não sobre matéria privada, ou mesmo de se tomar ou não conhecimento desse mesmo conteúdo. Ou seja, é a própria "abertura" que é punida de 'per se'.

CC) Não é abrangida pela proibição prevista naquele normativo - e logo não é considerada violação de correspondência ou intromissão nas telecomunicações - visualização ou apreensão de encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre aberto, porque, para efeitos da tutela penal e (não obstante o termo literal utilizado), o legislador penal distinguiu entre "correspondência" - a fechada, e respectiva violação e os restantes "objectos" que, para o efeito, não são correspondência, mas, nomeadamente, documentos, nos termos previstos no artigo 178.º do CPP;

DD) Tal resulta, aliás, expressamente, do mandado emitido pela entidade judiciária competente;

EE) Assim, contrariamente ao que alega a Recorrente, no âmbito das diligências de busca realizadas, não foi feita qualquer apreensão de "correspondência ", com violação daquelas disposições;

FF) A protecção legal visada pelo artigo 42.º n.º 1 do RGCO, tal como o artigo 179.º do CPP, que foi afastado pela douta sentença "a quo", por não se aplicar ao caso concreto, deve-se circunscrever, tal como no artigo 34.º n.º 1 da CRP, apenas a escritos fechados.

GG) Termos em que não pertencendo a documentação recolhida pelos funcionários da AdC à área da tutela da incriminação nos termos definidos tanto no direito contraordenacional como no direito penal e direito processual penal, não ocorreu, in casu, qualquer violação do artigo 42.º, n.º 1 do RGCO nem do artigo 179.º do CPP: este aliás, como foi defendido na Sentença "a quo";

HH) O mesmo se dirá quanto à correspondência electrónica, porquanto não existe no ordenamento jurídico português um regime jurídico específico para a apreensão de correspondência sob a forma electrónica.

II) Também neste caso, toda a 'documentação' apreendida pelos funcionários da AdC, circunscreveu-se, tão só, a documentos já visualizados pela empresa e que se encontravam a circular, por conseguinte, abertos, através de sistemas de correspondência internos, em formato papel ou electrónico, sem que, em qualquer dos casos, se estivesse perante a 'intromissão de correspondência' que requeresse especial protecção legal;

JJ) Donde carece de fundamento qualquer uma das argumentações da Recorrente quanto à obtenção ilegal, nula e inconstitucional de todo e qualquer documento, como a mesma pretende, e que, por razões de defesa, vem invocar como sendo correspondência;

KK) Não existe, pois, qualquer violação, no sentido proposto pela Recorrente, do disposto nos artigos 17.º n.ºs 1 e 2, da Lei 18/2003; no artigo 42.º, n.º 1, do RGCO, e ainda, nos artigos 126.º, n.ºs 1 e 3, 174.º, 178.º, 179.º, todos do CPP, bem como dos artigos 32.º n.º 8 e 34.º, n.ºs 1, 2, 3 e 4 da CRP, na delimitação do conceito de correspondência unicamente aos documentos fechados.

LL) Há uma efectiva diferença entre o que se entende por correspondência aberta e fechada sendo que só a segunda se enquadra dentro da previsão constitucional.

MM) Por fim, não põe em causa a dignidade da pessoa humana, nem consiste numa intromissão abusiva da vida privada, a apreensão de agendas profissionais e cadernos de apontamentos de reuniões, que por razões de defesa a recorrente intitula de cadernos pessoais e agenda pessoal. Não está em causa o domínio nuclear intocável da personalidade, da dignidade do homem, a sua esfera privada, ou seja, o problema da (i)licitude de uma ingerência pública no âmbito da intimidade pessoal ou familiar.

NN) O caderno de apontamentos em causa e a agenda pessoal referidas pela Recorrente, que se encontravam nas instalações da empresa, não se encontram abrangidos pelo direito de personalidade constitucionalmente consagrado. Estão, portanto, fora do âmbito de aplicação dos preceitos constitucionais invocados que impedem a recolha de provas com violação do direito à reserva da vida privada.

OO) Não existe, qualquer inconstitucionalidade material uma vez que não está em causa qualquer prova obtida abusivamente mediante intromissão da vida privada.»

6 - A recorrente respondeu às questões prévias suscitadas nas contra-alegações da AdC, concluindo pela sua improcedência.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

A) Questões prévias

7 - O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro.

Pressuposto deste tipo de recurso - e, portanto, condição da sua admissão neste Tribunal - é que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada perante o tribunal a quo antes de este ter esgotado o seu poder jurisdicional para a apreciar.

A primeira questão a dilucidar há-de ser, pois, a de saber se durante o processo foi suscitada de modo processualmente adequado uma questão de constitucionalidade, a propósito de normas (ou de uma interpretação destas).

Ora, quanto à alegada intromissão abusiva na correspondência e nas telecomunicações, pelo exame dos autos constata-se que, nem na motivação, nem nas conclusões da impugnação judicial, a recorrente suscitou, perante o tribunal recorrido, uma questão de inconstitucionalidade de dada interpretação do artigo 17.º, n.º 1, al. c), da Lei da Concorrência e do artigo 42.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações.

Na verdade, o que aí questionou foi a apreensão, pela Autoridade da Concorrência, de determinados elementos, na sua sede, pondo essa actuação directamente em confronto com prescrições legais e constitucionais, que considera violadas.

Veja-se o que ficou escrito no artigo 86.º da citada impugnação:

«O exame e apreensão deste tipo de documentos - que constituem, inequivocamente, "correspondência" para efeitos das normas constitucionais e legais aplicáveis - viola a garantia da inviolabilidade da correspondência e das telecomunicações, cuja tutela constitucional vai além da proibição (e consequente nulidade) das provas obtidas mediante intromissão abusiva consagrada no aludido artigo 32, n.º 8, da CRP».

E, de modo igualmente revelador, o que consta do artigo 111.º:

«Com a apreensão de diversos documentos que constituem correspondência ou que se enquadram no conceito de "telecomunicações" (como seja o caso de mensagens de correio electrónico extraídas de computadores pessoais), a AdC violou a proibição de ingerência na correspondência e nas telecomunicações consagrada no n.º 4 do artigo 34.º da CRP, violando igualmente o disposto no n.º 1 do artigo 42.º do regime geral das contra-ordenações e coimas».

Em resultado e em coerência com esta linha argumentativa, a conclusão XII reafirma que "as diligências de busca e apreensão realizadas pela Autoridade da Concorrência"violaram estas disposições.

"Durante o processo", a questão da constitucionalidade relacionada com a apreensão de correspondência foi, pois, sempre reportada a um acto levado a cabo pela Autoridade da Concorrência, visando-se a declaração de nulidade da prova por esse meio obtida e a consequente restituição dos elementos apreendidos (artigos 120.º a 122.º). Nunca, em momento algum do recurso para o Tribunal do Comércio de Lisboa, a interpretação agora questionada foi cotejada com os parâmetros constitucionais invocados - em flagrante contraste, aliás, com a posição tomada quanto à norma resultante da interpretação do artigo 17.º, n.º s 1 e 2, da Lei 18/2003, arguida de configurar uma violação da reserva de juiz (cf. os artigos 67.º e 80.º, e a conclusão VII da impugnação judicial).

Um dos preceitos em que repousa a base normativa da interpretação questionada - o artigo 17.º, n.º 1, al. c) da Lei 18/2003 - nem sequer merece qualquer menção, a este propósito. E quanto ao outro - o artigo 42.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações e coimas - apenas é referido enquanto norma violada pela actuação da AdC (art. 111.º e conclusão XII).

Todo o esforço argumentativo da recorrente, perante o tribunal a quo, foi dirigido no sentido de convencer que os elementos apreendidos cabiam no conceito de correspondência do artigo 34.º, n.º 4, da CRP, pelo que teria sido violada, pela AdC, a proibição dele constante.

Assim chamado a pronunciar-se, o tribunal avançou para a qualificação dos documentos em causa, de forma a apreciar se os mesmos estavam ou não abrangidos pelo âmbito de protecção daquele preceito constitucional, tendo concluído (fls. 583):

«Ora dos documentos objecto de apreensão juntos aos autos e dos elementos disponíveis nos autos e das próprias alegações da recorrente, constata-se que não existem quaisquer elementos que nos permitam concluir ter sido apreendida correspondência, tendo em conta o conceito supra referido, mas apenas documentos lidos, disponíveis e "arquivados", em suporte de papel ou digital».

Ou seja, o que esteve em causa, por força da concreta forma como a recorrente defendeu o seu ponto de vista, não foi um critério normativo retirado das normas sindicandas, mas um determinado juízo aplicativo do conceito constitucional de correspondência, em sede decisória, e tendo em conta as circunstâncias específicas do caso concreto. Mas a fiscalização da correcção desse juízo encontra-se fora da esfera de competência deste Tribunal, pois corresponderia a um reexame do mérito da decisão recorrida.

Como se diz no Acórdão 618/98, reiterando jurisprudência uniforme deste Tribunal, «impugnar a constitucionalidade de uma norma implica, pois, imputar a desconformidade com a Constituição não ao acto de aplicação do Direito - concretizado num acto de administração ou numa decisão dos tribunais - mas à própria norma, ou, quando muito, à norma numa determinada interpretação que enformou tal acto ou decisão».

A recorrente apenas o fez no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal. Mas esta suscitação não se afigura atempada, não podendo suprir a falta de suscitação da inconstitucionalidade normativa perante o tribunal a quo. Na verdade, só a exigência do cumprimento deste ónus antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre a questão, se compagina com a natureza da competência deste Tribunal, como instância de recurso.

De resto, mesmo nas alegações de recurso, a recorrente não se desprende inteiramente da posição adoptada na impugnação judicial, pois, ao mesmo tempo que invoca a inconstitucionalidade da interpretação, que imputa ao tribunal recorrido, das normas questionadas, continua a referir a violação da proibição consagrada no n.º 4 do artigo 34.º da CRP pela apreensão dos documentos (cfr, a pág. 41 das alegações, a fls. 635 do processo).

Pelo que se conclui que esta questão de constitucionalidade não foi suscitada no decurso do processo, perante o tribunal a quo.

8 - Também quanto à apreensão de diversas páginas extraídas de cadernos de apontamentos pessoais e da agenda pessoal do director de uma unidade da recorrente Portucel, é a este acto que se imputa a afectação dos direitos fundamentais do referido funcionário, por configurar uma "abusiva intromissão na vida privada, pelo que se requer a declaração da sua nulidade como meio de prova e a sua restituição" (artigos 124.º a 129.º e conclusão XV da impugnação).

Contrariamente ao que diz no ponto 24 do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, em momento algum daquela peça processual se identifica uma determinada norma ou interpretação normativa que tenha servido de fundamento à decisão recorrida e cuja constitucionalidade se questione.

Em conformidade com o pedido, o tribunal a quo não apreciou a questão da constitucionalidade da norma do artigo 17.º, n.º s 1 e 2, norma que, aliás, nunca refere, a este propósito. Tudo o que faz, para rejeitar o pedido, é caracterizar o conteúdo dos elementos apreendidos como "dados comerciais", para concluir não ter sido afectada a intimidade privada e familiar do referido director.

Pode pois, concluir-se que, também quanto a esta questão, não foi devidamente cumprido o ónus de suscitação adequada perante o tribunal recorrido, pelo que dela não pode conhecer este Tribunal.

Em face do exposto, apenas se conhecerá da primeira questão de constitucionalidade objecto do presente recurso, atinente às normas do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei 18/2003, de 11 de Junho, interpretadas no sentido de conferirem competência ao Ministério Público para autorizar buscas à sede e domicilio profissional de pessoas colectivas.

B) Do mérito do recurso

9 - Vem alegado que as normas do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 17.º da Lei 18/2003, interpretadas no sentido de conferirem competência ao Ministério Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional de pessoas colectivas, ofendem o princípio da reserva de juiz.

A alegação põe em confronto directo o disposto no n.º 2 daquele preceito com o direito à inviolabilidade do domicílio (artigo 34.º, n.º 1, da CRP) e as condições legitimantes da sua restrição, fixadas no n.º 2 do mesmo artigo. Na verdade, a norma questionada faz depender a realização das diligências previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 17.º de "despacho da autoridade judiciária" que as autorize, ao passo que, nos termos constitucionais, "a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstas na lei" (artigo 34.º, n.º 2).

A apreciação do eventual desrespeito desta disposição requer, como questão prévia, a definição rigorosa do objecto da inviolabilidade do domicílio. O que deve entender-se, para este efeito, por domicílio?

Não é fácil a resposta, até porque o conceito técnico de domicílio, compreendido como a "residência habitual" (artigo 80.º do Código Civil), é aqui imprestável, por demasiado restritivo, atentos o sentido e a função da tutela constitucional. Seguro é apenas que, no âmbito do artigo 34.º da CRP, o conceito vem dotado de maior amplitude, abarcando, sem margem para dúvidas, qualquer local de habitação, seja ela principal, secundária, ocasional, em edifício ou em instalações móveis. Mas já não é consensual a extensão da protecção ao domicílio profissional (em sentido afirmativo, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição Portuguesa anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 540; contra, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Lisboa, 2007, 478-479).

Mas, quando se extravasa da esfera domiciliária das pessoas físicas, entrando no campo de actividade das pessoas colectivas, afigura-se que saímos também para fora do âmbito normativo de protecção da norma constitucional, pois decai a sua razão de ser.

Como expressam os primeiros Autores a que fizemos referência (ob. cit., 541):

«Já quanto às pessoas colectivas, a protecção que é devida às respectivas instalações (designadamente quanto à respectiva sede) contra devassas externas não decorre directamente da protecção do domicílio, de cuja justificação não compartilha, como se viu acima, mas sim do âmbito de protecção do direito de propriedade e de outros direitos que possam ser afectados, como a liberdade de empresa, no caso das empresas (...).»

Essa conclusão decorre do substrato e das conexões valorativas do direito à inviolabilidade do domicílio, «ainda um direito à liberdade da pessoa pois está relacionado, tal como o direito à inviolabilidade de correspondência, com o direito à inviolabilidade pessoal (esfera privada espacial, previsto no artigo 26.º), considerando-se o domicílio como projecção espacial da pessoa (...)».

O bem protegido com a inviolabilidade do domicílio e o étimo de valor que lhe vai associado têm a ver com a subtracção aos olhares e ao acesso dos outros da esfera espacial onde se desenrola a vivência doméstica e familiar da pessoa, onde ela, no recato de um espaço vedado a estranhos, pode exprimir livremente o seu mais autêntico modo de ser e de agir.

Dando conta desta identificação do domínio protegido com a esfera da intimidade do ente humano, afirmou-se no Acórdão 67/97:

«Parece incontroverso que o conceito constitucional de domicílio deve ser dimensionado e moldado a partir da observância do respeito pela dignidade da pessoa humana, na sua vertente de reserva da intimidade da vida familiar - como tal conjugado com o disposto no n.º 1 do artigo 26.º da CR - assim acautelando um núcleo íntimo onde ninguém deverá penetrar sem consentimento do próprio titular do direito.»

Não se ignora que, nos termos do n.º 2 do artigo 12.º da CRP, as pessoas colectivas podem ser titulares de direitos fundamentais, desde que compatíveis com a sua natureza. E não custa reconhecer que o direito à privacidade não é incompatível, em absoluto, com a natureza própria das pessoas colectivas, pelo que a titularidade desse direito não lhes pode, a priori, e em todas dimensões, ser negada.

Mas, como acentua Jorge Miranda, reportando-se, em geral, à titularidade "colectiva" de direitos fundamentais, "daí não se segue que a sua aplicabilidade nesse domínio se vá operar exactamente nos mesmos termos e com a mesma amplitude com que decorre relativamente às pessoas singulares" (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa anotada, I, Coimbra, 2005, 113). É esta uma orientação firme, tanto da doutrina (cf., também, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., 331, e Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Coimbra, 2007, 126-127), como da jurisprudência (cf. os Acórdãos n.º s 198/85 e 24/98).

A susceptibilidade, em princípio, de extensão da tutela da privacidade às pessoas colectivas, não implica, pois, que ela actue, nesse campo, em igual medida e com a mesma extensão com que se afirma na esfera da titularidade individual. Dessa tutela estarão excluídas, forçosamente, as dimensões nucleares da intimidade privada, que pressupõem a personalidade física.

É o que acontece com a inviolabilidade do domicílio, uma manifestação particular e qualificada da tutela da intimidade da vida privada, dirigida, como vimos, à realização da personalidade individual e ao resguardo da dignidade da pessoa humana.

E, não estando em causa uma invasão do domicílio, a autorização prévia do Ministério Público para as buscas é o bastante para excluir, sem margem para dúvidas, estarmos perante uma "abusiva intromissão na vida privada" (cf., nesse sentido, o Acórdão 192/2001, citando o Acórdão 7/87).

É neste ponto, na exigência de despacho da autoridade judiciária autorizativo da realização das diligências de busca "nas instalações das empresas", que a lei da concorrência se afasta decisivamente da lei francesa, em relação à qual foi proferido, em 16 de Abril de 2002, o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no Affaire Colas, invocado pela recorrente em defesa da sua tese.

Como resulta da transcrição, no ponto 22, da legislação aplicável ao caso, os agentes da Direcção-Geral do comércio interior e dos preços tinham "livre acesso às instalações que não constituam a habitação do comerciante", sem qualquer controlo de uma entidade judiciária independente. Em face desses dados normativos, o tribunal concluiu que a legislação e a prática francesas não ofereciam "garantias adequadas e suficientes contra os abusos" (ponto 48), como o exigia a tutela do domicílio, consagrada no artigo 8.º da CEDH.

Não é essa, como se viu, a situação normativa vigente entre nós, em que a salvaguarda da privacidade das pessoas colectivas está acautelada, na justa medida, pela necessidade de autorização do Ministério Público, entidade a quem cabe, nos termos constitucionais, "defender a legalidade democrática" (artigo 219.º, n.º 1, da CRP).

Pode, pois, concluir-se que a interpretação normativa questionada não viola o disposto nos artigos 34.º, n.º s 1, 2, 3 e 4, e 32.º, n.º 8, da CRP.

Termos em que se nega, nesta parte, provimento ao recurso.

III - Decisão

Em face do exposto, decide-se:

a)- Não conhecer do objecto do recurso na parte referente à norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.º 1, alínea c), do regime jurídico da concorrência, aprovado pela Lei 18/2003, de 11 de Junho, e do artigo 42.º, n.º 1 do regime geral das contra-ordenações e coimas, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de Outubro, no sentido de que a correspondência aberta (circulares, mensagens de correio electrónico e documentos anexos, arquivados em computador ou impressos) pode ser apreendida e utilizada como meio de prova em processo contra-ordenacional, por violação dos artigos 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, ambos da CRP;

b)- Não conhecer do objecto do recurso na parte referente à norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma, no sentido de que páginas extraídas de cadernos de apontamentos pessoais e de agenda pessoal podem ser apreendidas e utilizadas como meio de prova em processo contra-ordenacional, por violação dos artigos 26.º, n.º 1, e 32.º, n.º 8, da CRP;

c)- Não julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação do artigo 17.º, n.º s 1 e 2, da citada Lei 18/2003, no sentido de conferir competência ao Ministério Público para autorizar buscas à sede e domicílio profissional de pessoas colectivas;

d)- Em consequência, negar, nesta parte, provimento ao recurso, em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.

Lisboa, 10 de Dezembro de 2008. - Joaquim de Sousa Ribeiro - Mário José de Araújo Torres - Benjamim Rodrigues - João Cura Mariano - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1377955.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1987-02-09 - Acórdão 7/87 - Tribunal Constitucional

    Declara não se pronunciar pela inconstitucionalidade dos artigos 108.º, n.º 2, alínea b); 135.º, n.os 2 e 3; 174.º, n.os 3 e 4; 177.º, n.º 2, com referência ao artigo 174.º, n.º 4, alíneas a) e b); 178.º, n.º 3; 187.º, n.º 1; 190.º; 200.º; 250.º, n.º 3; 251.º, n.º 1; 252.º, n.º 3; 263.º; 270.º, n.º 1; 281.º, n.os 3 e 5, salvo, quanto a este último número, consequencialmente, na parte em que ele remete para o n.º 4; 286.º, e 337.º n.os 1, alínea a), e 3, e pronunciar-se pela inconstitucionalidade dos artigos (...)

  • Tem documento Em vigor 2003-05-13 - Lei 10/2003 - Assembleia da República

    Estabelece o regime de criação, o quadro de atribuições e competências das áreas metropolitanas e o funcionamento dos seus órgãos.

  • Tem documento Em vigor 2003-06-11 - Lei 18/2003 - Assembleia da República

    Aprova o regime jurídico da concorrência.

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