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Assento 7/99, de 3 de Agosto

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Sumário

Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º nº 1 do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual (Proc. nº 993/98).

Texto do documento

Assento 7/99

Processo 993/98. - Acordam, em conferência, no plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1 - Relatório

Ângelo do Nascimento Gonçalves, recorrente no processo 802/97, recurso interposto de uma sentença do Tribunal da Comarca de Porto de Mós, 2.ª Secção, para o Tribunal da Relação de Coimbra, na qual sentença foi absolvido do crime de cheque sem provisão, previsto e punido nos artigos 11.º, n.º 1, alínea a), e 313.º, n.º 1, do Código Penal de 1982, que lhe era imputado, mas tendo sido condenado a pagar ao assistente 2 000 000$00, acrescidos de juros, veio interpor recurso para fixação de jurisprudência para este Supremo Tribunal, nos termos dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, com os fundamentos seguintes:

O acórdão recorrido, proferido no recurso n.º 802/97, da Relação de Coimbra, manteve que, não obstante o arguido ter sido absolvido da acusação e do ilícito criminal que lhe era imputado e sendo certo que o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal terá sempre de ser fundado na prática de um crime (artigo 71.º do Código de Processo Penal), só sendo aplicável o disposto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal quando esteja em causa uma situação de responsabilidade extracontratual, mas já não quando se configura um caso de responsabilidade civil contratual, «o pedido de indemnização civil formulado em processo penal terá de ser apreciado e julgado, do ponto de vista substantivo com recurso à lei civil, sem quaisquer limitações [...] pelo que nem só nos casos de ocorrência de ilícito criminal e ou civil (crime e ou responsabilidade por factos ilícitos ou pelo risco) deve o Tribunal arbitrar indemnização», e com este entendimento manteve a condenação do arguido quanto ao pedido de indemnização formulado, apesar de se configurar uma situação de mera responsabilidade civil contratual.

Todavia, a mesma Relação, no acórdão proferido no recurso penal n.º 424/96, decidiu que:

No pressuposto de que a acção cível enxertada na acção penal visa obter uma reparação civil pelas perdas e danos resultantes da infracção, sendo certo que ambas têm o mesmo fundamento - a infracção; e que a responsabilidade tem sempre por fundamento a prática de um facto ilícito ou o risco, salvo casos excepcionais de responsabilidade derivada de factos lícitos, não se verificando tal fundamento, deverá o arguido ser absolvido do pedido de indemnização formulado.

E desta forma, por se verificar clara oposição entre os referidos acórdãos, que chegaram a soluções opostas relativamente à mesma questão de direito e tendo sido proferidos no domínio da mesma legislação, considerou o recorrente estarem preenchidos os requisitos dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, pelo que se requereu que o mesmo seguisse os respectivos trâmites.

Foi o recurso recebido pela forma legal e a Exma. Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal teve vista dos autos e promoveu o seu prosseguimento para os fins e efeitos do n.º 4 do artigo 440.º e segunda parte do artigo 441.º do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, por Acórdão de 26 de Novembro de 1998, foi decidido que as soluções a que cada um dos acórdãos chegou sobre a mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação são substancialmente contraditórias e opostas entre si, pelo que se ordenou o cumprimento do artigo 442.º, n.º 1, do mesmo diploma.

A Exma. Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal apresentou as suas mui doutas alegações, em que com grande erudição e brilhantismo tratou a questão jurídica em causa, tendo sugerido que se fixasse a seguinte jurisprudência:

«Em caso de sentença absolutória proferida em processo penal, nos termos do n.º 1 do artigo 377.º do Código de Processo Penal, deve ser apreciado o pedido civil aí formulado.» O recorrente, nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos:

1) O pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime. Se o arguido for absolvido desse crime, o pedido cível formulado só poderá ser considerado se existir ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco (responsabilidade extracontratual), salvo nos casos excepcionais da responsabilidade derivada de factos lícitos.

2) Sobre este concreto ponto de direito e no domínio da mesma legislação, o acórdão recorrido e o acórdão fundamento chegaram a soluções substancialmente opostas entre si e, como tais, contraditórias, justificando-se por isso que seja uniformizada jurisprudência no sentido indicado anteriormente, que é, aliás, o dominante no Supremo Tribunal.

3) Consequentemente, face à matéria de facto provada, não pode considerar-se fundado, no sentido dado a esta expressão pelo artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização civil formulado pelo assistente, pelo que deverá o arguido ser absolvido do respectivo pedido.

2 - A questão tal como resulta dos acórdãos em oposição

2.1 - No acórdão recorrido:

Este acórdão teve a sua origem no seguinte circunstancialismo que se passa a indicar:

Na Comarca de Porto de Mós, 2.ª Secção do respectivo Tribunal Judicial, o Exmo. Magistrado do Ministério Público acusou o arguido e ora recorrente Ângelo do Nascimento Gonçalves, imputando-lhe a prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, previsto e punido nos artigos 11.º, n.º 1, alínea a), e 313.º, n.º 1, do Código Penal de 1982.

O assistente João Cerejo Pragosa deduziu pedido de indemnização civil no montante de 2 000 000$00, acrescido de juros legais, contados desde a data da apresentação do cheque a pagamento.

Foi realizado o julgamento, na sequência do qual foi proferida sentença que julgou improcedente e não provada a acusação, dela se absolvendo o arguido, mas o pedido cível foi julgado procedente e provado e o arguido foi condenado a pagar ao assistente 2 000 000$00, acrescidos de juros à taxa de 15% até 30 de Setembro de 1995 e à taxa de 10% a partir de 1 de Outubro de 1995, desde a data da apresentação do cheque até efectivo e integral pagamento.

O arguido recorreu, concluindo assim:

a) O pedido cível, tal como ele é configurado pelo assistente, radica na obrigação formal do próprio cheque acrescida dos respectivos juros, sem qualquer referência a uma indemnização por perdas e danos emergentes do crime.

b) Não se tendo provado a prática pelo arguido do crime pelo qual vinha acusado e, designadamente, não se tendo provado a existência do dano invocado pelo assistente no seu pedido, nunca o arguido poderá ser condenado em processo penal, pelo que se impõe a sua absolvição.

c) Ao decidir condenar o arguido no pedido cível, o Tribunal fez uma errada interpretação e aplicação do direito, devendo antes ter tomado em consideração as normas dos artigos 128.º do Código Penal de 1982, 129.º o Código Penal de 1995 e 483.º do Código Civil.

Não houve resposta e o Ministério Público apôs o seu visto.

Vejamos agora a argumentação do acórdão da Relação:

O acórdão recorrido começa por parecer acolher o princípio de que o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem de ser fundamentado na prática de um crime.

Depois, considera-se que a condenação em indemnização civil, no caso de absolvição quanto à matéria penal, só pode ocorrer no caso do artigo 377.º, n.º 1, do mesmo diploma (CPP), ou seja, quando, mesmo havendo absolvição da parte criminal, o pedido cível se ache fundado.

Mas depois acrescenta-se que, absolvido o arguido do crime, resta sempre a possibilidade de ter existido residualmente ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco.

Para ainda, depois, se referir: não basta que se provem factos que consubstanciam uma obrigação de natureza civil, mas outrossim que se esteja perante um ilícito civil que produza o dever de indemnizar e, assim, o n.º 1 do artigo 377.º referido só pode funcionar quando esteja em causa uma situação de responsabilidade civil extracontratual, já não acontecendo o mesmo quando se configure um caso de responsabilidade civil contratual.

E então, o acórdão recorrido, considerando que in casu se achava um contrato de mútuo em que uma das partes não cumpriu a obrigação (responsabilidade contratual), avança que teria de dar razão ao recorrente, não fora a doutrina de um acórdão da mesma Relação (no recurso n.º 559/97), segundo a qual:

A reparação civil arbitrada em processo penal não é um efeito da condenação.

Não está submetida às regras próprias do ordenamento jurídico civil, quantitativamente e nos seus pressupostos, conforme o prescrito no artigo 129.º do Código Penal, muito embora processualmente seja exclusivamente regulada pela lei adjectiva penal.

E desta forma chegou-se a esta ideia:

A decisão sobre o pedido de indemnização civil formulada em processo penal terá de ser apreciada e julgada do ponto de vista substantivo com recurso à lei civil, sem quaisquer limitações, conquanto na génese da mesma se encontre o facto ilícito objecto do processo, pelo que nem só nos casos de ocorrência de ilícito criminal e ou civil (crime e ou responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco) deve o Tribunal arbitrar indemnização.

Por último, a Relação, atendendo ao valor da quantia mutuada, haveria de pronunciar-se pela nulidade do contrato, por falta de forma, condenando o arguido a restituir a importância emprestada.

2.2 - Passaremos, agora, à análise da argumentação constante do

acórdão fundamento:

Segundo ele, nos termos do artigo 71.º do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado perante o tribunal civil nos casos previstos na lei.

Cita-se, depois, o preceito do artigo 377.º, n.º 1, do mesmo Código, que, como já vimos, dispõe que «a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo venha a revelar-se fundado, sem prejuízo [...]».

Ora, segundo este acórdão, tais disposições estão relacionadas com o artigo 129.º do Código Penal, segundo o qual a indemnização de perdas e danos emergentes do crime é regulada pela lei civil.

Assim, admite-se o princípio de um regime de adesão obrigatória, como regra, mas tal regime é considerado como respeitante ao pedido de indemnização por perdas e danos resultantes de um facto punível.

Citando-se o Prof. Eduardo Correia, considera-se que a lei estabeleceu como regra a dependência processual da acção civil perante a acção penal, esta arrastando consigo aquela para a jurisdição criminal.

Mais adiante:

«Insiste-se que a acção a que se refere o princípio ou regime de adesão não é uma acção cível qualquer. Por exemplo, uma acção de dívida, uma acção para obter o cumprimento de uma obrigação. Não: trata-se de uma acção em que é formulado um pedido de indemnização civil para ressarcimento de danos causados por uma conduta considerada como crime.» E mais adiante refere-se ainda:

«A responsabilidade civil - que é o que aqui está em causa - tem por fundamento a prática de um facto ilícito ou um risco, salvo casos excepcionais de responsabilidade derivada de factos lícitos.»

3 - Fundamentos e decisão

3.1 - Normativos que interessam à solução da questão suscitada

a) Artigo 71.º do Código de Processo Penal:

«O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.» b) Artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal:

«A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no artigo 82.º, n.º 2.» c) Artigo 82.º, n.º 2, do Código de Processo Penal:

«Pode, no entanto, o tribunal, oficiosamente ou mediante requerimento, estabelecer uma indemnização provisória por conta da indemnização a fixar posteriormente, se dispuser de elementos bastantes, e conferir-lhe o efeito previsto no artigo seguinte.» d) Artigo 128.º do Código Penal de 1982:

«A indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil.» e) Artigo 129.º do Código Penal de 1995:

«A indemnização de perdas e danos emergentes do crime é regulada pela lei civil.» f) Artigo 483.º do Código Civil:

«1 - Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

2 - Só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei.»

3.2 - Generalidades

Convém começar por esclarecer que a questão da indemnização a fixar pela prática de um crime pode ser resolvida por três vias, a saber:

A via independentista, segundo a qual tais indemnizações só podem e devem ser apreciadas e resolvidas nos e pelos meios próprios, ou seja, no foro cível e recorrendo ao processo civil, sendo o expediente criminal de todo inidóneo para esse fim, visto estar vocacionado exclusivamente para o conhecimento de matérias de natureza penal.

Refira-se, ainda, que neste sistema, consagrado nos países anglo-saxónicos e no Brasil, os interessados têm de utilizar obrigatoriamente o procedimento civil e o tribunal civil para se fazerem pagar de eventuais danos ocasionados pela prática do crime;

A via interdependente ou alternativa, segundo a qual ambos os procedimentos, o criminal e o civil, são idóneos para conhecer da matéria da indemnização civil decorrente do ilícito criminal.

Este sistema vigora em França e na Alemanha, sendo que os interessados são livres de escolher um ou outro caminho para obterem o ressarcimento dos seus prejuízos, mantendo ambos a mesma dignidade;

A via de adesão obrigatória da acção civil na acção penal: por esta via, o direito à indemnização por perdas e danos sofridos com o ilícito criminal só pode ser exercido no próprio processo penal, enxertando-se o procedimento civil a tal destinado na estrutura do procedimento criminal em curso.

Neste sistema, os interessados só podem, em princípio, obter compensação para os prejuízos havidos com o crime «colando-se» ao processo penal e fazendo aí desencadear um expediente com esse fim, apenas lhes sendo permitido implementar pedido em separado nos casos previstos na lei. [Sobre isto, v. Código de Processo Penal, de Leal Henriques, Simas Santos e Borges de Pinho, vol. I, p. 331.] É evidente que, perante a redacção do artigo 71.º do Código de Processo Penal, o regime imposto é o de adesão obrigatória, isto fundamentalmente por duas razões essenciais:

A primeira deriva do tom imperativo utilizado no próprio artigo 71.º, citado: «o pedido [...] é deduzido».

A segunda resulta de que o preceito apenas admite que o pedido de indemnização civil, com base num crime, só possa ser deduzido em separado nos casos previstos na lei, ou seja, nos casos a que se refere o artigo 72.º do mesmo diploma.

Importa, agora, analisar a problemática do âmbito deste pedido de indemnização civil e é isso que iremos desenvolver nas considerações que se vão seguir.

3.3 - Algumas referências ao regime anterior

Vejamos o que se passou nesta matéria anteriormente no direito português, para chegarmos ao regime actual.

Segundo o regime do Código Civil de 1867, constante do seu artigo 2373.º, a indemnização civil conexa com a responsabilidade criminal era exigida no competente processo criminal.

Segundo o Código de Processo Penal de 1929, o pedido de indemnização por perdas e danos, resultantes de um facto punível por que sejam responsáveis os seus agentes, deve fazer-se no processo em que correr a acção penal (artigo 29.º).

O Código da Estrada (aprovado pelo Decreto-Lei 39 672, de 20 de Maio de 1954) também se pronunciava sobre o exercício da acção cível em conjunto com a acção penal, abrindo uma excepção ao regime do Código de Processo Penal de 1929, na medida em que admitia a intervenção no processo de pessoas só civilmente responsáveis por factos imputados ao arguido.

Por sua vez, o artigo 12.º do Decreto-Lei 605/75, de 3 de Novembro, estabelecia que, nos casos de absolvição de acusação-crime, o juiz condenará a indemnização civil, desde que fique provado o ilícito desta natureza ou a responsabilidade fundada no risco. (Sobre isto, v. o Curso de Processo Penal, do Prof. Germano Marques da Silva, vol. I, pp. 77 e segs.) Segundo este Professor, «O artigo 128.º do Código Penal de 1982 referia-se à responsabilidade civil emergente de crime e à indemnização de perdas e danos emergentes de um crime; e o artigo 71.º do Código de Processo Penal à indemnização civil fundada na prática de um crime, mas a expressão usada pelo Código de Processo Penal é insuficiente, como resulta dos artigos 84.º e 377.º do Código de Processo Penal, que admitem a condenação em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vise revelar-se fundado, ainda que a sentença seja absolutória quanto à responsabilidade criminal» (op. cit., p. 77).

Mais adiante, o mesmo Professor firma a seguinte tese: «Sucede é que o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado. A autonomia da responsabilidade civil e criminal não impede, por isso, que, mesmo no caso de absolvição da responsabilidade criminal, o Tribunal conheça da responsabilidade civil, que é daquela autónoma e só por razões processuais, nomeadamente de economia e para evitar julgados contraditórios, deve ser julgada no mesmo processo.» (Loc. cit.) Estamos perfeitamente de acordo com isto, mas importa acrescentar que, na medida em que o artigo 129.º do Código Penal remete a regulação da indemnização de perdas e danos emergentes do crime para a lei civil, esta só pode ser o artigo 483.º do Código Civil, que apenas contempla a responsabilidade por factos ilícitos, mas com total exclusão da responsabilidade contratual e da responsabilidade por factos lícitos, nos casos contemplados na lei. E estas duas responsabilidades, por um lado a responsabilidade por facto ilícito (extracontratual ou aquiliana) e a responsabilidade contratual, são essencialmente diferentes, porquanto resulta da inexecução de uma determinada obrigação preexistente entre credor e devedor, enquanto a primeira deriva de um facto ilícito prejudicial a alguém independentemente de qualquer obrigação preexistente entre o lesante e o lesado.

Tanto uma como a outra se traduzem na obrigação de reparar o dano causado, mas a primeira, por isso mesmo que é consequência de uma relação preexistente, regula-se pelo regime jurídico dessa mesma relação, que nem sempre é idêntico ao da responsabilidade delitual ou derivada de facto ilícito (cf. José Tavares, Os Princípios Fundamentais de Direito Civil, Coimbra, 1922, vol. I, pp. 516 e 517).

O facto ilícito criminal, fundamento do pedido cível enxertado no processo penal, não é por si fonte geradora, nem pode ser, de responsabilidade contratual.

3.4 - Crítica ao acórdão recorrido

Há também um aspecto que convém deixar esclarecido aqui e que resulta de uma asserção contida no acórdão recorrido e com a qual não concordamos.

Tal proposição consiste em dar como assente que a reparação civil arbitrada em processo penal não é um efeito da condenação. E isto tirar-se-ia do que vem disposto no artigo 129.º do Código Penal, segundo o qual a indemnização de perdas e danos emergentes do crime é regulada pela lei civil.

Ora nós, com o devido respeito, não podemos concordar com tal posição por uma variada série de razões.

Em primeiro lugar, o efeito pressupõe sempre uma causa que o gera, que o provoca.

Para que a indemnização cível arbitrada em processo penal fosse excluída da condenação por força daquele preceito era necessário que se estabelecesse uma relação de causa e efeito entre as duas realidades e se dissesse que a condenação não provocava a dita indemnização civil.

Mas não é isso o que consta do aludido artigo 129.º do Código Penal, o qual, afastando-se totalmente de qualquer relação de causalidade, apenas se limita a afirmar ou estabelecer um regime de regulação para a indemnização emergente do crime, e neste particular impõe-se que tal indemnização seja regulada pela lei civil.

Quer dizer: o normativo em causa apenas remete para o artigo 483.º do Código Civil tratando-se da regulação da indemnização de perdas e danos emergentes do crime (em contrário, o Código Penal, citado, 1.º vol., p. 331).

Também deste preceito se pode extrair outra conclusão curiosa, é que a indemnização civil que interessa ao direito penal e ao processo penal só pode consistir, como ali se refere expressamente, na indemnização de perdas e danos emergentes do crime, excluindo-se, portanto e claramente, a indemnização que resulte da responsabilidade contratual.

3.5 - Concordância com o acórdão fundamento

Este acórdão põe em relevo uma ideia muito importante em toda esta polémica.

É que, aceitando-se, muito embora, que o nosso direito positivo impõe um regime de adesão obrigatória, tal diz respeito ao pedido de indemnização por perdas e danos resultantes de um facto punível, ou seja, de um ilícito criminal.

Por outro lado, e recorrendo ao ensinamento de Eduardo Correia (Processo Criminal, pp. 212 e segs.), o acórdão vai encontrar a explicação da dependência da acção civil perante a acção penal, no fundo, de ambas provirem da mesma causa material.

Outra ideia muito importante que aceitamos e que está bem patente no acórdão recorrido é que o regime de adesão não implica uma acção cível qualquer, mas tão-somente um pedido de indemnização civil para ressarcimento de danos causados por uma conduta considerada como crime.

Daí que se concorde inteiramente com a posição expressa neste referido acórdão.

3.6 - Jurisprudência

Apesar de não haver muita jurisprudência sobre esta problemática, alguns acórdãos existem que alinham com a posição defendida pelo acórdão fundamento e alguns bem recentes.

Aqui vão indicados alguns:

Deste Supremo Tribunal de 23 de Janeiro de 1996, in Colectânea do Supremo Tribunal de Justiça, 1996, t. I, p. 189, e de 9 de Julho de 1997, in Colectânea do Supremo Tribunal de Justiça, de 1997, t. II, p. 262, e ainda os Acórdãos da Relação de Coimbra de 9 de Outubro de 1996, no processo 424/95, e de 14 de Novembro de 1996, no processo 653/96, e de 17 de Maio de 1996, no processo 227/96.

Ainda há relativamente pouco tempo o Acórdão de 15 de Outubro de 1998, no processo 692/98, que foi relatado pelo mesmo relator deste processo, defendia o seguinte:

«Os réus cíveis apenas foram demandados não com base na prática de qualquer ilícito criminal, mas antes por violação do dever de vigilância a que estavam obrigados como pais do menor Jacinto.

Assim, o Tribunal fez bem em absolver os réus cíveis do pedido contra eles formulado, porque estes não têm legitimidade em virtude de não terem cometido qualquer crime, sendo certo que a sua responsabilidade civil só poderia advir desse facto.

O tribunal criminal só poderia, na realidade, conhecer dos pedidos emergentes da prática de um crime, nos termos do artigo 71.º do Código de Processo Penal.»

4 - Aproximação conclusiva

Deixámos dito atrás que dos vários sistemas possíveis nesta matéria para fazer valer a responsabilidade civil resultante da prática de um crime a lei seguiu a via da adesão obrigatória, como tal consagrada no artigo 71.º do Código de Processo Penal.

No entanto, para alguns autores (como, por exemplo, o Prof. Germano Marques da Silva, op. cit., p. 79), ficam algumas dúvidas do regime consignado neste artigo até ao artigo 84.º, isto porque e segundo ele, ao contrário do que sucedia com o Código de Processo Penal de 1929, mesmo no caso de absolvição pelo crime de que o arguido é acusado, o tribunal condena o mesmo arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado. Daqui o ilustre Professor extrai a autonomia da responsabilidade civil da responsabilidade criminal.

É evidente que a responsabilidade civil é, do ponto de vista conceptual, autónoma da responsabilidade criminal, isto pela própria essência e compreensão dos conceitos.

Mas não é isso que está em causa.

O que acontece, aliás, como o próprio Professor reconhece, é que o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem necessariamente por causa de pedir o facto ilícito criminal, ou seja, os mesmos factos que constituem também o pressuposto da responsabilidade criminal.

E assim se compreende que é por força da autonomia entre as duas responsabilidades que o Tribunal absolva da responsabilidade criminal, mas possa conhecer da responsabilidade civil.

Só que esta última é a responsabilidade emergente do facto ilícito criminal, ou seja, a responsabilidade a que se refere o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil.

Esta responsabilidade vem assim definida:

«Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.» Desta forma, o n.º 1 do artigo 377.º do Código de Processo Penal, quando manda condenar a indemnização civil, tem como pressuposto que esta indemnização resulte de um facto ilícito criminal e, no fundo, tendo como base o já citado artigo 483.º do Código Civil. Daí a alusão a que o pedido seja fundado: não é qualquer pedido, mas sim o fundado na responsabilidade aquiliana.

Disto tudo resulta que, no caso do referido preceito do Código de Processo Penal, só pode tratar-se de uma situação de responsabilidade civil extracontratual, com exclusão da responsabilidade civil contratual.

Entendemos, por último, com todo o respeito e consideração devidos à douta posição da ilustre procuradora-geral-adjunta, que o seu projecto de fixação de jurisprudência nada acrescenta ao disposto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e, portanto, não poderá ser considerado.

Senão vejamos:

Esta disposição legal determina, como vimos, que a sentença penal, mesmo absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que este se revele fundado.

Ora, se se vem dizer que, em caso de sentença absolutória proferida em processo penal, nos termos do n.º 1 do artigo 377.º do Código de Processo Penal, deve ser apreciado o pedido civil aí formulado, estabelece-se uma redundância na medida em que, se a lei já impõe, no caso de absolvição, a condenação no pedido cível, é porque evidentemente impõe, como pressuposto, a sua apreciação.

Não pode, de facto, haver condenação naquele pedido se o mesmo não for apreciado previamente.

O que importava neste caso era estabelecer a interpretação do que deve entender-se por pedido cível fundado e foi para aí que se dirigiu toda a nossa investigação, tendo em conta que as divergências notadas nos acórdãos em causa derivaram exactamente da resposta a dar a esta questão, ou seja, o conceito de pedido fundado a que se refere o n.º 1 do artigo 377.º do Código de Processo Penal.

5 - Conclusões

As considerações feitas permitem tirar as seguintes conclusões:

1.ª No nosso direito positivo, a questão da indemnização a fixar pela prática de um crime consiste no sistema da adesão obrigatória da acção civil à acção penal, com algumas excepções expressas na lei (artigos 71.º e 72.º do Código Penal);

2.ª Em face do artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, verifica-se a autonomia entre a responsabilidade civil e a responsabilidade criminal, mas isso não impede que, mesmo no caso de absolvição da responsabilidade criminal, o Tribunal conheça da responsabilidade civil, mas que tem necessariamente a mesma causa de pedir, ou seja, os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal;

3.ª Não pode concluir-se do artigo 129.º do Código Penal que a reparação civil arbitrada em processo penal é um efeito da condenação, mas sim que este normativo apenas remete para o artigo 483.º do Código Civil;

4.ª Esta responsabilidade civil, que poderá exclusivamente ser apreciada em processo penal (se o pedido for aí deduzido), refere-se tão-somente àquela que emerge da violação do direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, com dolo ou mera culpa e da qual resultem danos, ficando, portanto, excluída a responsabilidade contratual (artigo 483.º do Código Civil).

6 - Decisão

Por tudo o sobredito e o mais que dos autos consta, acordam os juízes que compõem o plenário da Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça no seguinte:

Conceder provimento ao recurso interposto por Ângelo do Nascimento Gonçalves; Em consequência, revogar o acórdão recorrido, ou seja, o acórdão proferido no processo 802/97, do Tribunal da Relação de Coimbra;

Fixar, nos termos do artigo 445.º do Código de Processo Penal, a seguinte jurisprudência:

«Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.» Publique-se nos termos do artigo 444.º do Código de Processo Penal, enviando-se a competente certidão ao Tribunal da Relação.

Lisboa, 17 de Junho de 1999. - Sebastião Duarte de Vasconcelos da Costa Pereira - Bernardo Guimarães Fisher Sá Nogueira - Armando Acácio Gomes Leandro - Virgílio António da Fonseca Oliveira - Luís Flores Ribeiro - Florindo Pires Salpico - Emanuel Leonardo Dias - José Damião Mariano Pereira - Norberto José Araújo de Brito Câmara - António Gomes Lourenço Martins - Manuel Maria Duarte Soares - António Abranches Martins - Hugo Afonso dos Santos Lopes - António Luís de Sequeira Oliveira Guimarães - António Sousa Guedes - José Pereira Dias Girão - Álvaro José Guimarães Dias.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/1999/08/03/plain-104630.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/104630.dre.pdf .

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Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2002-03-05 - Jurisprudência 3/2002 - Supremo Tribunal de Justiça

    Extinto o procedimento criminal, por prescrição, depois de proferido o despacho a que se refere o artigo 311.º do Código de Processo Penal mas antes de realizado o julgamento, o processo em que tiver sido deduzido pedido de indemnização civil prossegue para conhecimento deste.

  • Tem documento Em vigor 2013-01-07 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 1/2013 - Supremo Tribunal de Justiça

    Fixa a seguinte jurisprudência: em processo penal decorrente de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. no artº 107º nº 1, do R.G.I.T., é admissível, de harmonia com o artº 71.º, do C.P.P., a dedução de pedido de indemnização civil tendo por objecto o montante das contribuições legalmente devidas por trabalhadores e membros dos órgãos sociais das entidades empregadoras, que por estas tenha sido deduzido do valor das remunerações, e não tenha sido entregue, total ou parcialmente, às in (...)

  • Tem documento Em vigor 2018-10-30 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 5/2018 - Supremo Tribunal de Justiça

    «A insolvência do lesante não determina a inutilidade superveniente da lide do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal.»

Aviso

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