Acórdão 1/99
Processo 970/98 - 1.ª Secção. - Acordam, em plenário, das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:
1 - O Ministério Público junto da Relação do Porto interpôs recurso ampliado de revista - artigo 678.º, n.º 4, do Código de Processo Civil - dada a oposição sobre a mesma questão fundamental de direito proferido no Acórdão da Relação do Porto de 12 de Março de 1998 - o dos presentes autos - e no acórdão da Relação do Porto, no processo 98/97, devidamente certificado, sendo certo que no caso em apreço não é admissível recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, em virtude da jurisprudência uniformizada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/97, de 30 de Maio de 1995, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 15 de Maio de 1997.
Neste decidiu-se:
«O Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei 438/91, de 9 de Novembro, consagra a não admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que tenha por objecto decisão sobre a fixação do valor da indemnização devida.»
E o objecto do recurso circunscreve-se à fixação do valor da indemnização devida, projectada na interpretação da alínea h) do n.º 3 artigo 25.º do Decreto-Lei 438/91, que aprovou o Código das Expropriações.
Nela estatui-se: «Localização e qualidade ambiental - 15%», como percentagem a acrescer - n.º 3 do artigo 25.º - à referida no número anterior.
A contradição interpretativa passaria por:
No acórdão recorrido decidiu-se que aquela percentagem de 15%, para o factor de «localização e qualidade ambiental», seria uma percentagem fixa;
No acórdão certificado tal coeficiente «constitui um limite máximo a aplicar de acordo com a valoração que se faça da localização e qualidade ambiental do bem expropriado e não um valor fixo a aplicar em todos os casos».
2 - O Ministério Público, recorrente nas conclusões das suas alegações, afirma, em resumo:
a) É possível aceitar que sejam fixas as percentagens previstas nas alíneas a) a g) do n.º 3 do artigo 25.º, na medida em que têm a ver com infra-estruturas físicas;
b) O parâmetro inserto na alínea h), por ser de natureza variável, terá de receber diversos juízos ou graus;
c) Tudo porque não pode o legislador (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil) valorizar fixamente um factor necessariamente variável;
d) Daí ser de fixar a percentagem de 10%, conforme laudo dos peritos do Tribunal.
Pedindo, por isso, a procedência do recurso, com revogação do acórdão recorrido, com uniformização de jurisprudência da seguinte forma:
«A percentagem de 15%, estabelecida na alínea h) do n.º 3 do artigo 25.º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei 438/91, de 9 de Novembro, constitui um limite máximo a aplicar de acordo com a valoração que se faça da localização e qualidade ambiental do bem expropriado.»
Não houve contra-alegação.
3 - O Exmo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça concordou com o sucinto parecer do relator e determinou o julgamento ampliado.
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer na linha do pugnado pelo recorrente.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
4 - A expropriação por utilidade pública é classicamente entendida como a «relação jurídica pela qual o Estado, considerando a conveniência de utilizar determinados bens imóveis em fim específico de utilidade pública, extingue os direitos subjectivos constituídos sobre eles e determina a sua transferência definitiva para o património da pessoa a cujo cargo esteja a prossecução desse fim, cabendo a esta pagar ao titular dos direitos extintos uma indemnização compensatória» (Prof. Marcello Caetano, Manual, vol. III, 10.ª ed., p. 1020).
Daqui resulta que nela há uma extinção de direitos e uma constituição de um direito novo (Prof. M. Cordeiro, Direitos Reais, 2.º vol., 1979, p. 802).
Há que compreender como tal se dinamiza.
5 - O artigo 1.º do Decreto-Lei 438/91, 9 de Novembro, que aprovou o Código das Expropriações, estatui:
«Os bens imóveis e direitos a eles inerentes podem ser expropriados por causa de utilidade pública, compreendida nas atribuições da entidade expropriante, mediante o pagamento contemporâneo de justa indemnização.»
São, assim, pressupostos de legitimidade de expropriação:
O princípio da legalidade;
O princípio da utilidade pública;
O princípio da proporcionalidade;
A justa indemnização.
Esta justa indemnização é a garantia económica que o artigo 62.º da Constituição - o cerne da presente questão - concede ao direito de propriedade.
No n.º 2 deste artigo 62.º estatui-se:
«A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.»
A indemnização constitucionalmente qualificada de «justa» é, assim, pressuposto de legitimidade do exercício do direito do expropriante, «elemento integrante do próprio conceito de expropriação» (Dr. Alves Correia, Garantia do Particular..., p. 156).
O Tribunal Constitucional tem considerado que o direito à justa indemnização se traduz num direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pelo que as suas restrições deverão limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (Acórdãos n.os 131/88, publicado em 29 de Junho, 52/90, de 30 de Março de 1990, in Boletim, 395, p. 91, e 210/93, de 16 de Março de 1993, in Boletim, 245, p. 160).
Neles consignaram a correcta ideia no sentido de que o legislador constitucional - não tendo estabelecido critérios concretos integradores do conceito de «justa indemnização», deixando essa tarefa ao legislador ordinário - veio impor a este, como directiva, o respeitar sempre a observância dos princípios materiais da Constituição de igualdade e de proporcionalidade.
Paralelamente, Prof. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Portuguesa Anotada, em comentário ao referido artigo 62.º, n.º 2, da Constituição.
Princípio da igualdade de cidadãos perante os encargos públicos frente à expropriação: perda patrimonial emergente de a expropriação ser equitativamente repartida entre todos os cidadãos.
Igualdade perspectivada sob dois ângulos: relação interna, por forma a igualar tratamentos entre os expropriados; e relação externa, visando tratamento jurídico não desigual entre expropriados e não apropriados.
Nesta linha, já no assento do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Novembro de 1995, sob o seu n.º 14, se escrevia que a indemnização «será justa se respeitar os princípios materiais da Constituição da igualdade e proporcionalidade».
E paralelamente, Prof. M. Cordeiro, ob. cit., p. 804.
Igualdade tradutora de uma igualdade social efectiva, no sentido axiológico-jurídico, «conectado com a justiça», na expressão de Del Vecchio.
Aqueles assinalados dois princípios serão o eco de «cláusulas gerais políticas», potenciando assegurar os objectivos últimos do sistema.
Em plena recepção de valores éticos e sociológicos e daí de origem extrajurídica.
As cláusulas gerais, oriundas dos Digesta, «clausula generalis», apresentam-se como verdadeiros «órgãos respiratórios do sistema», como regulação de comportamentos, que permitem ao juiz realizar uma justiça materialmente fundada.
Desta forma, a «justa indemnização» será cláusula «indeterminada e normativa» na linguagem de Engisch, aplicável a um número incerto de casos, pensamento formulado pela recepção de alguns casos típicos, base que permite ao aplicador do direito a sua individualização, ao preencher, no concreto, definindo os seus contornos, a sua congénita generalidade e elevado grau de abstracção.
É na aplicação do direito, no jogo do binómio «vinculação e liberdade», que se vai esvaziando a sua indeterminalidade.
6 - Surpreende-se, assim, uma interdependência, uma sinalagmaticidade entre expropriação e o pagamento de justa indemnização (Dr. Osvaldo Gomes, Expropriações, 1997, p. 145).
Tudo em afloração do princípio da protecção jurídica, que ornamenta o Estado de direito, atribuindo indemnização total ou integral ao garantir ao expropriado uma compensação plena da perda patrimonial que lhe foi imposta e por si sofrida, a ser equitativamente repartida entre os cidadãos, compensação que se traduz em colocar o expropriado na posição de adquirir outro bem de igual natureza e valor.
Só assim o expropriado, que começou por ser colocado numa posição de desigualdade perante os restantes cidadãos, consegue obter a justa compensação pelo especial sacrifício que lhe foi imposto.
O acto expropriatório, apresentando-se, desta forma, como violador do princípio da igualdade perante os encargos públicos, será posteriormente compensado com a obrigação de indemnizar justamente.
Esta obrigação emerge de conduta lícita do agente: aquilo que a literatura italiana designa «dano antijurídico».
Mas ela é diferente do dever de indemnizar emergente de responsabilidade civil contratual ou extracontratual.
Com efeito, a «justa indemnização» não visa compensar o benefício alcançado pelo expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, medida pelo valor do bem expropriado, fixado por acordo ou determinado objectivamente pelos árbitros ou por decisão judicial, tendo em consideração as circunstâncias e as condições de facto existentes à data da declaração de utilidade pública (n.º 2 do artigo 22.º do Decreto-Lei 438/91, de 9 de Novembro).
Não se trata, pois, de uma verdadeira indemnização, «uma vez que não deriva do funcionamento do instituto da responsabilidade civil» (Prof. M. Cordeiro, «Parecer», Colectânea de Jurisprudência, XV, 90, t. V, p. 25).
A compensação integral representa o valor de mercado, de venda ou de compra e venda do bem expropriado, como valor «normativamente entendido», na linguagem alemã (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 210/93, atrás citado) no sentido de «valor de mercado normal ou habitual».
E, por isso, não especulativo.
Valor sujeito a correcções ditadas pela exigência de justiça que, assim, pode ser diverso do resultado do jogo da oferta e da procura.
É o acolhimento da teoria da substituição.
7 - Foi tendo presente este quadro constitucional que o legislador de 1991 corrigiu o de 1976, afastando disposições aqui tidas por inconstitucionais.
Desta forma, a alínea e) do artigo 2.º da Lei 24/91, de 16 Julho, que autorizou o Governo a legislar sobre esta matéria, impunha:
«Consagração da justa indemnização devida por expropriação por utilidade pública, a qual visa ressarcir o prejuízo que para o expropriado advenha da expropriação, sendo a indemnização calculada, nomeadamente, em função de bem expropriado e da aptidão do solo, tendo em consideração as circunstâncias e as condições de facto existentes à data da declaração de utilidade pública da expropriação.»
Assim, para o efeito do cálculo da indemnização por expropriação, o legislador de 1991 (artigo 24.º) classificou o solo em:
a) Apto para construção;
b) Apto para outros fins.
O douto acórdão recorrido classificou - definitivamente - o solo em apreço como apto para construção.
8 - Entremos, pois, de pleno na interpretação do artigo 25.º, que trata do cálculo do valor de tal solo.
Pelo seu n.º 1, o valor do solo apto para construção calcula-se em função do valor provável daquela que nele seja possível efectuar de acordo com as leis e regulamentos em vigor, num aproveitamento economicamente normal, à data da declaração de utilidade pública, devendo ter-se em conta a localização e a qualidade ambiental.
Apontando para o «valor da construção», enquanto no Código de 1976 (artigo 33.º, n.º 1) se referia ao «custo provável de construção», está a seguir o critério do «valor corrente do mercado», critério que é seguido pela quase generalidade dos ordenamentos jurídicos (v. Dr. Alves Correia, ob. cit., p. 129), com referência aos direitos espanhol, italiano, francês e alemão.
Determina, logo no n.º 2, que, num aproveitamento economicamente normal, o valor do solo apto para construção deverá corresponder a 10% do valor da construção, no caso de dispor apenas de acesso rodoviário, sem pavimento em calçada, betuminoso ou equivalente.
Só que depois no seu n.º 3 estabelece acréscimos percentuais, que podem atingir 34%, escalpelizados em índices valorativos do terreno frente às características próprias de cada caso, distribuídos pelas alíneas a) a h).
9 - Discute o Dr. Osvaldo Gomes, ob. cit., p. 197, se há ou não arbitrariedade na fixação daquelas alíneas.
Não concorda com a relatividade de atribuição das percentagens nelas inseridas.
Afirma que se a pavimentação [alínea a)] e as redes de águas [alínea b)] e de energia eléctrica [alínea d)] estão valoradas em 1%, não se pode justificar a valoração de 1,5% à rede de saneamento [alínea c)] e de 2% à estação depuradora e à rede distribuidora de gás [alíneas f) e g)], em face da carência de saneamento básico e de a rede distribuidora de gás só existir em áreas restritas do País.
Mas a sua sensibilidade jurídica fica chocada com o facto de a alínea h) - a que nos directamente interessa -, fixando o limite «rígido» de 15% para a «localização e qualidade ambiental», poder impedir, em alguns casos, que o dano sofrido pelo expropriado seja integralmente ressarcido.
Desta forma, o analisado artigo 25.º, n.os 2 e 3, fixando máximas percentuais iguais para todos os casos «rigorosos e inultrapassáveis» impede que se atinja a justa indemnização.
Por isso sustenta a sua inconstitucionalidade, por violação dos artigos 62.º, n.º 2, e 13.º, n.º 1, da lei fundamental.
10 - Debrucemo-nos mais de perto na interpretação da discutida alínea h).
O douto acórdão recorrido, na esteira do julgado em 1.ª instância, decidiu que os aí assinalados 15% referidos à «localização e qualidade ambiental» são fixos e, daí, não graduáveis.
Fundamenta-se no facto de «não dizer a lei que a localização e qualidade ambiental valem até 15%, sendo certo que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil)».
Agarra-se aqui à intencional significatividade e à lógica de não se ter inserido a preposição «até».
Parte certamente de um tecnicismo de linguagem, por o direito ser formulado por juristas, próprio dos Códigos Civis português e alemão e não já do suíço.
A racionalidade de semelhante julgamento é analítico-linguística, dedutivista e de carácter semântico.
Dá prioridade ao teor literal.
Daí toda a sua fragilidade.
Com efeito, a letra da lei só tem valor heurístico e não normativo.
É acompanhado pelos Acórdãos da Relação do Porto de 3 de Dezembro de 1996, processo 991/96, de 13 de Janeiro de 1997, processo 1067/97, e de 3 de Fevereiro de 1997, processo 1147/96, como consta do parecer do Ministério Público, a fl. 172.
E na doutrina pelo Dr. Melo Ferreira, Código das Expropriações Anotado, 1997, p. 85: «A letra da lei, neste caso concreto, não permite outra interpretação, os 15% pela localização e qualidade ambiental são um factor fixo e não gradativo.»
E pelo Dr. Osvaldo Gomes, ob. cit., p. 197: «[...] a fixação de limites rígidos nas diversas alíneas, nomeadamente de 15% para a localização e a qualidade ambiental [...]»
Ex adverso, o acórdão em oposição, decidiu «que a percentagem de 15% referida na alínea h) do n.º 3 artigo 25.º do Código das Expropriações constitui um limite máximo a aplicar de acordo com a valoração que se faça da localização e qualidade ambiental do bem expropriado e não um valor fixo a aplicar em todos os casos».
Decidiram semelhantemente os Acórdãos, também da Relação do Porto, de 6 de Dezembro de 1994, de 4 de Maio de 1995, de 29 de Junho de 1995, de 21 de Novembro de 1997 e de 20 de Novembro de 1997 e da Relação de Lisboa de 29 de Março de 1998.
No mesmo sentido opina o Dr. Perestrelo de Oliveira, Código das Expropriações, 1992, p. 93, em comentário ao artigo 25.º, em análise.
11 - A interpretação dogmática, pressuposto de um sistema jurídico dogmático - direito como ordem só objectiva -, filtrada por uma dimensão hermenêutica, como condição de possibilidade de compreender o texto legal, visava veicular o pensamento dirigido à sua compreensão e interpretação, dentro de determinado círculo.
Apoiava-se em elementos que não tinham entre si prevalência hierárquica, abstractamente, mas que para a solução do caso concreto um seria o que efectivamente potenciava uma maior força argumentativa, o que significaria o seu carácter tópico (Coing, Esser e Zippelius).
Está ultrapassada.
Hoje, «a linha de orientação exacta só pode ser, pois, aquela em que as exigências do sistema e de pressupostos fundamentos dogmáticos não se fechem numa auto-suficiência, a implicar também a auto-subsistência de uma hermenêutica unicamente explicitante, e antes se abram a uma intencionalidade materialmente normativa que, na sua concreta ejudicativo-decisória realização, se oriente decerto por aquelas mediações dogmáticas, mas que ao mesmo tempo as problematize e as reconstitua pela sua experimentação concretizadora» (Prof. C. Neves, Metodologia, 1993, p. 123).
Na interpretação estão, assim, presentes as duas grandes coordenadas da realização jurídica: o sistema e o problema.
A certeza do direito e a segurança jurídica são valores superiores e traves mestras que pautam a realidade normativa geral e abstracta.
No direito norma apura-se o interesse tutelado, a ratio legis, aferidos os valores.
Mas o que as partes querem é a justiça ao seu caso concreto, o que não é, necessariamente, coincidente com aquele valor.
Aqueles válidos princípios não podem impor-se com sacrifício das elementares exigências do «justo».
Por isso, agora, no direito judiciário, na aplicação do direito ao caso concreto, há que alargar o campo de sensibilidade axiológica de direito ao facto concreto, com características naturalísticas, históricas, sociológicas e culturais próprias, numa apreciação dialéctica do facto à norma.
Indutivamente.
É, pois, sempre o direito, em conjunto, que se aplica.
«O direito será um contínuo problematicamente constituendo» - Prof. C. Neves, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 131.º, p. 11: «dialéctica entre sistema e problema num objectivo judicativo de realização normativa».
Tal impõe que a ratio legis se dialectize e se veja superada pela ratio iuris.
A hermenêutica será um normativo encontrar o direito em concreto.
E a jurisprudência - e, com maior relevância, a uniformizadora -, como ciência interpretativa, encerra em si pensamento normativo de realização do direito, correspondente às expectativas prático-sociais dos sujeitos, realizando o direito na solução do caso concreto com a consciência jurídica geral, com as expectativas jurídico-sociais de validade e justiça.
Só assim a justiça será o fundamento necessário da interpretação jurídica.
Com efeito, a solução injusta no resultado não pode ser entendida como vontade da lei (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Por isso, desde Esser e Zippelius, o primeiro índice a observar na interpretação circunscreve-se às valorações expressas pelo legislador constitucional: sentido de cada norma em referência ao «ordenamento jurídico global», na expressão de Engisch.
Ou seja, há que interpretar a norma em referência à «unidade do sistema jurídico» (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), frente ao «Princípio da coerência valorativa ou axiológica da ordem jurídica» (Dr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 191).
Unidade intrinsecamente coerente, a ser interpretada em projecção da ideia de direito, tradutora de uma concebida ordem social justa, que a fundamenta.
E o legislador constitucional valorou a indemnização devida ao expropriado de «justa», com os parâmetros atrás assinalados.
Sempre a respeitar.
12 - O legislador de 1991, sensível às aludidas decisões do Tribunal Constitucional, no que concerne ao direito à «justa indemnização» (basta ler o preâmbulo do Decreto-Lei 438/91), procurou veicular a indemnização, tida constitucionalmente como «justa», através de mecanismos de avaliação do solo expropriado apto para construção, no caso em apreço.
Tendo como denominador comum sempre «em consideração as circunstâncias e as condições de facto existentes à data da declaração de utilidade pública» (n.º 2 do artigo 22.º).
A versatilidade destas circunstâncias e condições determina, necessariamente, que os mecanismos de avaliação sejam maleáveis, adaptáveis.
Daí que os tivesse maleabilizado através das diferentes alíneas do n.º 3 artigo 25.º, sendo certo que umas podem encerrar em si um maior campo de elasticidade.
Decisivamente é o caso da alínea h).
Pretendeu dar ao julgador um método de uniformização de critérios de avaliação, para que os expropriados não corressem o risco de serem sujeitos a critérios diversos.
Mas não teve por objectivo limitar a indemnização, como sucedia nos artigos 30.º, n.º 2, e 33.º, n.º 1, do anterior Código das Expropriações de 1976 - «não poderá exceder».
Estes, sim, feridos, por isso, de inconstitucionalidade.
Na sua elasticidade visou uma igualação da situação concreta frente às demais expropriações.
E pretendeu garantir, por outro lado, que a indemnização a fixar não entre em desequilíbrio com a fixar para um não expropriado.
A meta é, como anteriormente vimos, uma «compensação séria e adequada», «correctiva de qualquer facto especulativo que mine o mercado».
Tudo trabalhado indutivamente.
Para o Dr. Perestrelo de Oliveira, ob. cit., p. 93, até «essas percentagens são, antes, referenciais para os peritos, configurando um padrão de cálculo não necessariamente vinculante».
O legislador de 1991 traçou, desta forma, «momentos racionais e de objectividade», na linguagem do Prof. Mota Pinto, Teoria Geral, p. 45, como via a seguir pelo tribunal para adequar a justiça concreta ao valorado pelo legislador.
13 - Impõe-se concluir que é o valor «justiça» - justiça comutativa -, pautada pelos princípios constitucionais de proporcionalidade e igualdade, que fundamenta a interpretação da alínea h), em apreço, no sentido da sua elasticidade, atentas as características específicas de cada caso concreto, visando uma indemnização integral, a adequada reconstituição da lesão patrimonial infligida ao expropriado.
E daí «justa».
O núcleo normativo, fixo e determinante do conceito-cláusula «justa indemnização», fundante da «estrutura óssea» da ordem jurídica e caução da sua estabilidade, é alargado na viabilização da sua concretização para uma área difusa e discutível, que o legislador de 1991 achou por bem drená-la por índices orientadores e necessariamente maleáveis, sob pena de se negar logicamente a sua congénita indeterminação.
Tal está integralmente respeitado no artigo 25.º do Decreto-Lei 438/91, em plena recepção da ratio iuris do sistema.
Em concretização da função estabilizadora do direito, garantindo a continuidade da vida social e os direitos e expectativas legítimos das pessoas.
Nesta abertura do sistema, na sua dinamização, assenta o actual papel do direito como instrumento de modelação da sociedade pluralista.
Garantindo e facilitando a missão de julgar, consistente na descoberta de uma decisão justa e justificada pela lei, segundo o direito em vigor.
14 - Para efeitos da LBA [artigo 5.º, n.º 2, alínea a)], «ambiente» é o conjunto de sistemas físicos, químicos, biológicos e suas relações e dos factores económicos, sociais e culturais com efeito directo ou indirecto, mediato ou imediato, sobre os seres vivos e a qualidade de vida dos homens.
São componentes do ambiente o ar, a luz, a água, o solo vivo e o subsolo, a flora e a fauna (artigo 6.º).
Estamos perante realidades fácticas complexas integradoras daquele conceito.
As múltiplas coordenadas fácticas em que se desdobra o factor «ambiente» terão de ser protegidas, indutivamente, pela norma com a necessária elasticidade, para que o direito se realize justamente (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Só que o douto acórdão recorrido, na esteira do decidido em 1.ª instância, julgando que a percentagem referente à «localização e qualidade ambiental» inserta na alínea h) do n.º 3 do artigo 25.º do Código das Expropriações é fixa em 15%, acabou, quanto a tal, por não apreciar e valorar a matéria de facto.
Não sendo aquela percentagem fixa, como não é, a matéria de facto terá de ser previamente apurada e surpreendida, quanto a este ponto, tendo ainda em consideração não só os relatórios dos peritos (fls. 82 e 83) como também as realidades fácticas complexas integradoras do conceito de «ambiente».
15 - Termos em que, concedendo a revista, acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
a) Firmar jurisprudência, nos termos seguintes:
A percentagem de 15% estabelecida na alínea h) do n.º 3 do artigo 25.º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei 348/91, de 9 de Novembro - elemento uniformizador de critério de avaliação -, perderá a sua fixidez, passando a maleabilizar-se, no momento da sua aplicação, a cada caso concreto, de acordo com a avaliação que se faça da «localização e qualidade ambiental» do bem expropriado, visando alcançar a constitucional justa indemnização.
b) Ordenar a descida dos autos ao Tribunal da Relação do Porto para apuramento da matéria de facto que constitua base suficiente para integrar decisão de direito, em face da jurisprudência agora firmada.
Custas a final.
Lisboa, 12 de Janeiro de 1999. - Torres Paulo - Roger Lopes - Martins da Costa - Pais de Sousa - Costa Marques - Miranda Gusmão - Sousa Inês - Afonso de Melo - Costa Soares - Machado Soares - Nascimento Costa - Lopes Pinto - Pereira da Graça - Peixe Pelica - Tomé de Carvalho - Ribeiro Coelho Silva Paixão - Garcia Marques - Ferreira Ramos - Lúcio Teixeira - Pinto Monteiro - Dionísio Correia - Quirino Soares - Noronha de Nascimento - Ferreira de Almeida - Matos Namora - Lemos Triunfante - Silva Graça - Francisco Lourenço - Armando Lourenço - Moura da Cruz - Vasconcelos de Carvalho - Sousa Dinis - Abel Freire.