Acórdão 4/98
Processo 86931 - 2.ª Secção. - Acordam em plenário das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:
Paulo Manuel Saraiva Vaz Osório e mulher, Paula Alexandra Tavares Lopes Moreira da Silva Vaz Osório, na acção que lhes foi movida por Francisco Sampaio Pereira e mulher, Zélia Coelho Garcez Machado Sampaio, interpuseram recurso para o tribunal pleno do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Junho de 1994, proferido no processo 85357, da 1.ª Secção, com o fundamento de estar, quanto à mesma questão fundamental de direito, em oposição com o Acórdão de 15 de Março do mesmo ano proferido no processo 84601, da mesma Secção.
Por acórdão da 2.ª Secção a fls. 47 e seguintes, foi reconhecida a existência de oposição entre os dois acórdãos.
Recorrentes e recorridos alegaram e o Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de que deve resolver-se o conflito uniformizando-se a jurisprudência nos seguintes termos:
«A anterioridade do registo da acção de execução específica torna inoponíveis ao autor direitos incompatíveis, concretizados antes ou depois, mas não inscritos no registo ou a ele levados em momento ulterior ao registo da acção.»
Os autos correram seus termos legais e há, agora, que apreciar o recurso.
I - O artigo 763.º do Código de Processo Civil fixava os seguintes requisitos de admissibilidade do recurso para o tribunal pleno:
Que os acórdãos recorrido e fundamento tivessem sido proferidos no domínio da mesma legislação, em processos diferentes ou em incidentes diferentes do mesmo processo, que relativamente à mesma questão de direito assentassem sobre soluções opostas e que o acórdão fundamento tivesse transitado em julgado, mas presumindo-se o seu trânsito.
Entretanto os artigos 763.º a 770.º daquele Código e que regulavam a matéria do recurso para o tribunal pleno foram revogados pelo artigo 3.º do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, o qual ressalvou, no entanto, os recursos deste tipo já intentados, mas circunscrevendo o seu objecto à resolução em concreto do conflito, «com os efeitos decorrentes das disposições legais citadas no número anterior», ou seja, que terão o valor dos acórdãos proferidos nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B do referido Código, os quais regulam o julgamento ampliado do recurso de revista, com intervenção do plenário das secções cíveis, para uniformização de jurisprudência.
II - Como se sabe, o reconhecimento da existência da oposição de julgados não impede que, ao apreciar-se agora o recurso, se decida em sentido contrário ao que consta do acórdão preliminar.
Há, assim, que reexaminar a questão com o fim de se decidir se se verificam os pressupostos que condicionam o reconhecimento do objecto do recurso.
Fazendo o seu reexame, conclui-se que são idênticas as situações de facto apreciadas nos dois acórdãos que se dizem em oposição.
Em ambos os processos os autores pretenderam obter sentença judicial que produzisse efeitos de declaração negocial que aos réus competia.
Do processo em que foi proferido o acórdão recorrido consta que os réus, por contrato de 21 de Janeiro de 1988, prometeram vender aos autores uma habitação, mas que, a 29 de Dezembro de 1988, a venderam a Ricardo Augusto Pereira Marques dos Santos.
Este não registou a aquisição e os autores fizeram, por apresentação de 30 de Janeiro de 1991, o registo da acção que intentaram contra os réus para a execução específica do contrato-promessa.
Do processo em que foi proferido o acórdão fundamento consta que a ré prometeu ceder ao autor, por contrato de 13 de Agosto de 1988, uma quota que possuía na sociedade Táxis Alves Henriques, Lda., e que, por contrato de 20 de Julho do mesmo ano, lhe prometeu ceder a parte ou percentagem que lhe havia ou viesse a ser adjudicada da quota de 900000$00 que a mãe possuía naquela sociedade.
Entretanto cedeu a António Marques, seu irmão, as quotas que havia prometido ceder ao autor.
O autor registou a acção que intentou contra a ré para execução específica do contrato-promessa.
O António Marques só depois de efectuado aquele registo é que efectuou o registo de aquisição das quotas que lhe foram cedidas.
No acórdão recorrido entendeu-se que o registo da acção tem como finalidade demonstrar que a partir da sua feitura nenhum interessado poderá prevalecer-se contra o registante dos direitos que sobre o mesmo imóvel adquira posteriormente ou adquiridos antes tenha negligenciado o seu registo.
No acórdão fundamento entendeu-se que o registo da acção não confere ao autor o direito à execução específica na hipótese de, antes daquele registo, a coisa ter sido alienada a um terceiro, mesmo que este não haja inscrito o negócio aquisitivo no registo.
Assim tiveram as duas acções destinos diferentes.
É, portanto, manifesta a oposição entre julgados proferidos no domínio da mesma legislação, sobre a mesma questão fundamental de direito.
Os acórdãos foram proferidos em processos diferentes e presume-se que o acórdão fundamento transitou em julgado.
III - Antes de prosseguir é indispensável deixar bem delimitada a hipótese que cabe apreciar e decidir.
Ela é aquela em que o promitente-vendedor, em lugar de cumprir a sua obrigação de celebrar o contrato prometido, aliena a terceiro a coisa objecto do contrato prometido antes de registada a acção de execução específica intentada pelo promitente-comprador contra o promitente-vendedor.
A hipótese não é, assim, aquela em que a alienação da coisa a favor de terceiro ocorre já depois de registada a acção de execução específica.
Nem é aquela em que, não se tendo o tribunal apercebido de que o promitente-vendedor alienara a coisa a favor de terceiro, é proferida sentença a julgar a acção procedente e o autor, vencedor, regista a aquisição antes de o terceiro conseguir o registo da sua.
Estas duas hipóteses são diferentes daquela que cabe aqui resolver, pois que convocam outros preceitos legais que não são aplicáveis à resolução da presente, como resultará do que adiante se vai apontar.
Note-se, por último, que na hipótese em consideração a acção de execução específica é intentada pelo promitente-comprador contra o promitente-vendedor; não é também demandado o terceiro adquirente.
IV - O promitente-vendedor, em lugar de cumprir a obrigação assumida no contrato-promessa, aliena a terceiro a coisa objecto do contrato prometido.
Ao assim proceder, o promitente-vendedor cai na situação de impossibilidade de cumprimento, por culpa sua, a que se refere o artigo 801.º do Código Civil.
A consequência é a de o promitente-vendedor se tornar responsável pelo prejuízo que cause ao promitente-comprador, nos termos do artigo 798.º do Código Civil; e sem prejuízo de o promitente-comprador poder resolver o contrato, nos termos do artigo 801.º, n.º 2, do Código Civil, com direito a indemnização.
O que o promitente-vendedor não pode é tornar a vender o que já deixou de ser seu, isto é, vender a coisa pela segunda vez, vender coisa alheia, receber o preço duas vezes, aproveitando-se da circunstância de aquele terceiro (o primeiro comprador) ainda não haver logrado proceder ao registo da aquisição.
Se o promitente-vendedor procedesse a esta segunda venda (a favor do promitente-comprador) cometeria um ilícito civil e, eventualmente, um ilícito criminal, com as respectivas consequências.
Ora, não se concebe que o Estado se substitua ao promitente-vendedor, emitindo a declaração negocial em substituição deste, praticando o acto que a lei veda ao promitente-vendedor; que seja o Estado a vender coisa alheia, a praticar aquele ilícito civil e criminal; que seja o Estado a meter no bolso do promitente-vendedor o preço pela segunda vez.
Não se concebe que se possa executar especificamente um contrato cuja impossibilidade de cumprimento já ocorrera em momento anterior.
Perante a impossibilidade de cumprimento, com culpa do promitente-vendedor, outra prestação não pode o promitente-comprador decepcionado pretender que a de indemnização.
O direito do promitente-comprador tem simples carácter obrigacional e não está sujeito a registo.
A promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis, ou imóveis sujeitos a registo, só adquire eficácia real nos termos do artigo 413.º do Código Civil, que não está aqui em causa.
A hipótese que está em julgamento, em que o contrato-promessa não tem eficácia real, dá lugar a conflito entre o direito de crédito do promitente-comprador, destituído de eficácia erga omnes, e o direito real do terceiro adquirente da coisa; e não a conflito entre dois direitos reais.
Um tal conflito não pode deixar de ser resolvido dando prevalência ao direito real do terceiro sobre a coisa, com sacrifício do direito de crédito do promitente-comprador decepcionado à prestação dessa mesma coisa pelo promitente-vendedor faltoso, dado que este direito é ineficaz em relação àquele terceiro.
O artigo 5.º do Código do Registo Predial não é convocável, uma vez que o conflito não se verifica entre titulares de direitos reais, mas entre o titular de um direito real e o titular de um direito de crédito. A prevalência dada por esta norma ao que primeiro registar a aquisição pressupõe que duas ou mais pessoas já tenham adquirido, que ambas sejam titulares de direitos reais conflituantes. E não é esta a hipótese em julgamento: nesta, à data do registo da acção, o promitente-comprador ainda nada adquiriu; e a questão que se coloca é a de saber se pode ou não adquirir do promitente-vendedor faltoso coisa que já é alheia a este. Trata-se de uma questão que é do foro do direito civil, e não do direito registal.
O disposto no artigo 271.º, n.º 3, do Código de Processo Civil também não é convocável para resolver o conflito da hipótese em julgamento, na qual, repete-se, o terceiro adquiriu antes de registada a acção.
Como ensina Antunes Varela, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103.º, pp. 483 e segs., esta norma prevê a hipótese de transmissão da coisa durante a pendência da lide, provendo a extensão da força do caso julgado da decisão aos terceiros que adquiram direitos sobre a coisa durante o período da mora litis (rectius, após o registo da acção).
«Se o autor registar a acção real, a sentença que nela obtiver terá uma eficácia superior à que normalmente deriva do caso julgado. Além de vincular as partes, a decisão produz ainda efeitos contra todo aquele que adquirir sobre a coisa litigiosa, durante a pendência da acção, direitos incompatíveis com os do autor. O registo destina-se, portanto, a dar conhecimento a terceiros de que determinada coisa está a ser objecto de um litígio e a adverti-los de que devem abster-se de adquirir sobre ela direitos incompatíveis com o invocado pelo autor - sob pena de terem de suportar os efeitos da decisão que a tal respeito venha a ser proferida, mesmo que não intervenham no processo.»
O que se regista nos termos do artigo 3.º do Código do Registo Predial são as acções e as decisões. Não é o direito de crédito do autor, ou seja, do promitente-comprador. O registo da acção não confere eficácia real ao direito de crédito, que não é, ele próprio, objecto do registo. A eficácia do direito de crédito do promitente-comprador em confronto com o direito real do terceiro é regulada pelo direito civil, nos termos acima apontados, sem que o registo da acção nela interfira.
A sentença transitada em julgado não atinge terceiros, não demandados na acção, que hajam adquirido direitos anteriormente ao registo.
Se o autor (promitente-comprador decepcionado) pretender ir caçar a coisa objecto do contrato prometido ao património deste terceiro, adquirente em data anterior à do registo da acção de execução específica, não poderá deixar de demandar este terceiro, disputar com ele o direito na barra do tribunal e obter sentença eficaz contra este terceiro.
A respeito deste tema, cf. ainda Almeida e Costa, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 128.º, p. 215, em anotação ao acórdão fundamento.
V - Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em, concedendo provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido, para ficar a valer o decidido pelas instâncias, e em firmar jurisprudência nos seguintes termos:
A execução específica do contrato-promessa sem eficácia real, nos termos do artigo 830.º do Código Civil, não é admitida no caso de impossibilidade de cumprimento por o promitente-vendedor haver transmitido o seu direito real sobre a coisa objecto do contrato prometido antes de registada a acção de execução específica, ainda que o terceiro adquirente não haja obtido o registo da aquisição antes do registo da acção; o registo da acção não confere eficácia real à promessa.
Custas pelos recorridos.
Lisboa, 5 de Novembro de 1998. - Agostinho Manuel Pontes de Sousa Inês - José Pereira da Graça - Roger Bennett da Cunha Lopes - António Pais de Sousa - Dionísio Alves Correia - Fernando Machado Soares - José Augusto Sacadura Garcia Marques - João Fernando Fernandes de Magalhães - Armando Castro Tomé de Carvalho - Joaquim Lúcio Faria Teixeira - Joaquim José de Sousa Dinis - José da Silva Paixão - Herculano Albino Valente Matos Namora - Ilídio Gaspar Nascimento Costa - Luís António Noronha do Nascimento - José Miranda Gusmão de Medeiros - Francisco António Lourenço - João José Silva Graça - Abílio de Vasconcelos Carvalho - Armando Lopes de Lemos Triunfante - Fernando José Matos Pinto Monteiro - José Martins da Costa - Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida - Fernando João Ferreira Ramos - João Augusto de Moura Ribeiro Coelho - Rui Manuel Brandão Lopes Pinto - Jorge Alberto Aragão Seia - António Quirino Duarte Soares - José Alberto de Azevedo Moura Cruz (vencido, pelas razões expostas pelo Sr. Conselheiro Miranda Gusmão) - Fernando Costa Soares (vencido pelas razões do voto do Exmo. Conselheiro Miranda Gusmão) - António Costa Marques (vencido, nos termos da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Miranda Gusmão) - Armando Moita dos Santos Lourenço (voto vencido por coerência com o acórdão uniformizador de jurisprudência sobre a eficácia da penhora, na medida em que naquele acórdão se aceita que o nosso registo predial, ao admitir o registo da acção em que se discute um direito de crédito, está a aceitar o entendimento de que se admite uma anotação preventiva do direito de crédito no registo. Indo assim contra o entendimento daqueles que entendiam que o artigo 5.º só se referia à eficácia de direitos reais) - Afonso de Melo [vencido. Adiro às posições de Galvão Telles (v. g., O Direito, 124, III, pp. 495 e seg.) e de J. Oliveira Ascenção e Paula Costa e Silva (R. O. A., 1992, I, pp. 193 e seg.) - o conflito resolve-se segundo os princípios do registo (artigos 5.º e 6.º do Código do Registo Predial). Parece-me que a jurisprudência agora uniformizada pelo Supremo destoa do conceito alargado de terceiro fixado pelo plenário no Acórdão de 20 de Maio de 1997] - José Miranda Gusmão [não acompanho a tese que fez vencimento, por entender, na esteira dos Profs. Galvão Silva (Sinal e Contrato-Promessa, 6.ª ed., pp. 145 e 146), Galvão Telles (Direito das Obrigações, 4.ª ed., p. 91) e Antunes Varela (Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 118.º, p. 285), que válida e eficaz inter partes, a venda feita pelo promitente-vendedor não produz efeitos contra o promitente-comprador enquanto não tiver sido registada (artigo 5.º, n.º 1, do Código do Registo Predial). Mas, uma vez registada a acção de execução específica, o registo posterior daquela compra e venda é ineficaz perante o autor].