de 10 de Julho
O presente diploma ocupa-se da salvação marítima, instituto de grande tradição no direito marítimo e de indiscutível importância teórica e prática. A sua disciplina jurídica consta do título VIII, livro III, do Código Comercial, recomendando-se a alteração agora realizada, particularmente em razão da assinatura em 28 de Abril de 1989 da Convenção Internacional sobre Salvação Marítima.Apesar de a designação tradicional do instituto ser a de salvação e assistência, optou-se apenas pela de salvação.
A referida tradição encontra origem na doutrina maritimista francesa para a qual salvação e assistência constituíam figuras autónomas.
Esta autonomia, de contornos duvidosos, tem sido contestada, não só entre nós, mas sobretudo no âmbito da comunidade internacional.
Em Portugal, nunca se defendeu com perseverança a distinção entre os dois conceitos, tendo prevalecido o entendimento de que assistência e salvação não são factos diversos, visto que ambos significavam o socorro prestado, conjunta ou separadamente, a um navio, à sua carga e às pessoas que se encontram a bordo.
A nível internacional, a contestação desta autonomia é propugnada pelos direitos de raiz anglo-saxónica. Sempre houve neles, apenas, um único conceito - o de salvage.
A existência das duas orientações doutrinárias patenteia-se no artigo 1.º da Convenção de Bruxelas de 23 de Setembro de 1910, onde está consagrada uma solução de compromisso: «A assistência e salvação das embarcações marítimas em perigo, das coisas que se encontram a bordo [...] ficam sujeitas às disposições seguintes, sem que haja lugar a distinções entre estas duas espécies de serviços [...]» Mas a terminologia anglo-saxónica tornar-se-ia dominante no texto da mencionada Convenção de 1989, com o emprego de um único termo para designar o instituto, precisamente o de salvage. A palavra assistance aparece tão-só na versão oficial francesa, utilizada como sinónimo de salvage.
Neste quadro, diluiu-se a autonomia que usualmente se considerava existir entre assistência e salvação. Parece que não subsiste, na actualidade, qualquer distinção, legal ou doutrinária, entre as duas espécies de serviços.
Consequentemente, entende-se que o legislador português, em consonância com a maioria dos ordenamentos jurídicos da comunidade internacional, deve passar a utilizar o termo «salvação», em detrimento de «assistência».
O diploma introduz relevantes inovações algumas delas que o são mesmo em face dos ordenamentos jurídicos estrangeiros. A saber:
a) Obrigação do salvador de evitar ou minimizar danos ambientais - o contrato de salvação marítima passou a estar condicionado pelo interesse público da defesa do ambiente, impondo-se ao salvador, ao lado de outras obrigações clássicas, a de evitar ou minimizar danos ambientais;
b) Compensação especial - a fim de incentivar o interesse dos salvadores na defesa do ambiente cria-se uma compensação especial a atribuir ainda que não tenha havido resultado útil para o salvado e, consequentemente, o salvador não vença salário de salvação marítima (princípio no cure no pay). O valor desta compensação é igual ao montante das despesas efectuadas, acrescido de 30%; em situações de particular dificuldade, a compensação especial pode ser elevada para valor equivalente ao dobro de tais despesas;
c) Salvação de pessoas - visando ressarcir os prejuízos do salvador de vidas humanas, quando não tenha direito a participar na repartição do salário de salvação marítima, prevê-se o direito à indemnização pelas despesas que suportou durante a operação. A indemnização é reclamável ao proprietário, armador ou segurador da responsabilidade civil da embarcação em que se transportavam as pessoas salvas;
d) Pagamento pelo Estado - com o objectivo de motivar os salvadores na defesa do ambiente e da vida humana no mar, o Estado passa a garantir o pagamento da compensação especial e da indemnização pelas despesas efectuadas, quando os obrigados não o tenham realizado, dentro do prazo de 60 dias contados da inter-pelação;
e) Repartição do salário entre salvadores - pretendendo alcançar uma repartição mais justa entre o capitão, ou quem desempenhe correspondentes funções de comando, e a tripulação da embarcação salvadora, recorre-se ao critério da proporção do salário base de cada um, afastando-se as regras do artigo 688.º do Código Comercial;
f) Direito de retenção do salvador - a lei passa a atribuir este direito ao salvador, para garantia dos créditos emergentes da salvação marítima;
g) Salvação marítima por embarcações do Estado - a salvação marítima em que intervenham embarcações do Estado como salvadores fica abrangida pela regulamentação geral.
De todas as inovações mencionadas, a que se afigura mais arrojada é a respeitante à possibilidade de pagamento pelo Estado, prevista nos artigos 10.º e 11.º Saliente-se o aspecto pioneiro de o Estado, dado estarem em causa danos ambientais e despesas efectuadas para a salvaguarda da vida humana no mar, que materializam relevantes interesses públicos, se poder substituir no pagamento respectivo, embora ficando sub-rogado nos direitos do credor, com um prazo especial de dois anos a contar da sub-rogação para exercêlos.
Assim:
Ao abrigo da alínea a)do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:
Artigo 1.º
Definições legais
1 - Para efeito do presente diploma, considera-se:a) «Salvação marítima» todo o acto ou actividade que vise prestar socorro a navios, embarcações ou outros bens, incluindo o frete em risco, quando em perigo no mar;
b) «Salvador» o que presta socorro aos bens em perigo no mar;
c) «Salvado» o proprietário ou armador dos bens objecto das operações de socorro.
2 - Considera-se ainda salvação marítima a prestação de socorro em quaisquer outras águas sob jurisdição nacional, desde que desenvolvida por embarcações.
Artigo 2.º
Contratos de salvação marítima
1 - Podem os interessados celebrar contratos de salvação marítima em que convencionem regime diverso do previsto no presente diploma, excepto quanto ao pre-ceituado pelos artigos 3.º ,4.º ,9.º e 16.º 2 - Os contratos de salvação marítima estão sujeitos a forma escrita, nesta se incluindo, designadamente, cartas, telegramas, telex, telecópia e outros meios equivalentes criados pelas modernas tecnologias.3 - As disposições dos contratos de salvação marítima podem ser anuladas ou modificadas nos termos gerais de direito e ainda nos casos seguintes:
a) O contrato ter sido celebrado sob coacção ou influência de perigo, não se apresentando equitativas cláusulas;
b) O salário de salvação marítima ser manifestamente excessivo ou diminuto em relação aos serviços prestados.
4 - Nos contratos referidos neste artigo, o capitão da embarcação objecto de salvação, ou quem nela desempenhe funções de comando, actua em representação de todos os interessados na expedição marítima.
Artigo 3.º
Dever de prestar socorro
1 - Ocapitão de qualquer embarcação, ou quem nela desempenhe funções de comando, está obrigado a prestar socorro a pessoas em perigo no mar, desde que isso não acarrete risco grave para a sua embarcação ou para as pessoas embarcadas, devendo a sua acção ser conformada com o menor prejuízo ambiental.2 - À omissão de prestar socorro, nos termos do número anterior, é aplicável o disposto no artigo 486.º do Código Civil, independentemente de outro tipo de responsabilidade consagrada na lei.
3 - O proprietário e o armador da embarcação só respondem pela inobservância da obrigação prevista neste artigo se existir culpa sua.
Artigo 4.º
Obrigações do salvador
Constituem obrigações do salvador:a) Desenvolver as operações de salvação marítima com a diligência devida, em face das circunstâncias de cada caso;
b) Evitar ou minimizar danos ambientais;
c) Solicitar a intervenção de outros salvadores, sempre que as circunstâncias concretas da situação o recomendem;
d) Aceitar a intervenção de outros salvadores, quando tal lhe for solicitado pelo salvado;
e) Entregar, em caso de abandono, à guarda da autoridade aduaneira do porto de entrada, a embarcação e os restantes bens objecto de salvação marítima, desde que não exerça direito de retenção.
Artigo 5.º
Remuneração do salvador
1 - Havendo resultado útil para o salvado, é a salvação marítima remunerada mediante uma retribuição pecuniária denominada «salário de salvação marítima».2 - Se o salvador não obtiver resultado útil para o salvado, mas evitar ou minimizar manifestos danos ambientais, a sua intervenção é remunerada, nos termos dos artigos 9.º e 10.º, mediante uma retribuição pecuniária denominada «compensação especial».
3 - Para efeitos do número anterior, entende-se por danos ambientais todos os prejuízos causados à saúde humana, vida marinha, recursos costeiros, águas interiores ou adjacentes, em resultado de poluição, contaminação, fogo, explosão ou acidente de natureza semelhante.
4 - Não exclui o direito do salvador a remuneração o facto de pertencerem à mesma pessoa, ou por ela serem operadas, as embarcaçoes que desenvolvem as operações de salvação marítima e as que destas constituem objecto.
Artigo 6.º
Salário de salvação marítima
1 - O salário de salvação marítima é fixado tendo em consideração as circunstâncias seguintes:
a) O valor da embarcação e dos restantes bens que se conseguiram salvar;
b) Os esforços desenvolvidos pelo salvador e a eficácia destes a fim de prevenir ou minimizar o dano ambiental;
c) O resultado útil conseguido pelo salvador;
d) A natureza e o grau do risco que o salvador correu;
e) Os esforços desenvolvidos pelo salvador e a eficácia destes para salvar a embarcação, outros bens e as vidas humanas;
f) O tempo despendido, os gastos realizados e os prejuízos sofridos pelo salvador;
g) A prontidão dos serviços prestados;
h) O valor do equipamento que o salvador utilizou.
2 - Pelo pagamento do salário de salvação marítima fixado nos termos do número anterior, respondem a embarcação e os restantes bens salvos, na proporção dos respectivos valores, calculados no final das operações de salvação marítima.
3 - O montante do salário de salvação marítima, excluídos os juros e as despesas com custas judiciais, não pode exceder o valor da embarcação e dos restantes bens que se conseguiram salvar, calculados no final das operações de salvação marítima.
4 - Não resulta afectados o salário de salvação marítima, sempre que o salvador tenha sido obrigado a aceitar a intervenção de outros, nos termos da alínea d) do artigo 4.º, e se demonstre a manifesta desnecessidade desta intervenção.
Artigo 7.º
Pagamento do salário
O pagamento do salário de salvação marítima é feito pelos salvados de harmonia com as regras aplicáveis à regulação da avaria grossa ou comum.
Artigo 8.º
Repartição do salário entre os salvadores
1 - A repartição do salário de salvação marítima entre os salvadores é efectuada, na falta de acordo dos interessados, pelo tribunal, tendo em conta os critérios estabelecidos no artigo 6.º 2 - A repartição entre o salvador, o capitão, ou quem desempenhava as correspondentes funções de comando, a tripulação e outras pessoas que participaram na salvação marítima é efectuada, na falta de acordo dos interessados, pelo tribunal, nos termos do número anterior;
a parte do capitão, ou de quem desempenhava as correspondentes funções de comando, e da tripulação, porém, não pode ser superior a metade nem inferior a um terço do salário de salvação marítima líquido.
3 - A repartição entre o capitão, ou quem desempenhava as correspondentes funções de comando, e os membros da tripulação é feita na proporção do salário base de cada um.
4 - Caso a salvação marítima haja sido prestada por rebocador ou outra embarcação especialmente destinada a esta actividade, o capitão, ou quem desempenhava as correspondentes funções de comando, e a tripulação ficam excluídos da repartição do respectivo salário.
Artigo 9.º
Compensação especial
1 - Se o salvador desenvolver actividades de salvação marítima em relação a navio ou embarcações que, por eles próprios ou pela natureza da carga transportada, constituam ameaça para o ambiente e não vença salário de salvação marítima, tem direito a uma compensação especial, da responsabilidade dos proprietários do navio ou embarcação e dos restantes bens que se conseguiram salvar, igual ao montante das despesas efectuadas, acrescido de 30%.2 - Consideram-se despesas efectuadas pelo salvador todos os gastos realizados com pessoal e material, incluída a amortização deste.
3 - Em situações de particular dificuldade para as operações de salvação marítima, pode o tribunal elevar a compensação especial até montante igual ao dobro das despesas efectuadas.
4 - O segurador da responsabilidade civil do devedor pode ser demandado pelo salvador, caso o segurado não efectue o pagamento da compensação especial prevista neste artigo.
Artigo 10.º
Pagamento da compensação pelo Estado
1 - Não tendo o devedor da compensação especial procedido ao seu pagamento dentro dos 60 dias contados da interpelação judicial ou extrajudicial pelo salvador, pode este exigir imediatamente ao Estado a respectiva satisfação.2 - Sempre que o Estado, nos termos do número anterior, pague a compensação especial ao salvador, fica sub-rogado nos direitos deste em relação ao devedor, podendo exercê-los dentro dos dois anos subsequentes à sub-rogação.
3 - O procedimento administrativo relativo ao pagamento pelo Estado, previsto neste artigo, será regulamentado por despacho conjunto dos Ministros das Finanças, do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, da Justiça e do Ambiente.
Artigo 11.º
Salvação de pessoas
1 - O salvador de vidas humanas que intervenha em operações que originem salário de salvação marítima tem direito, por esse simples facto, a participar na repartição do respectivo montante.2 - Não ocorrendo a situação prevista no número anterior, o salvador de vidas humanas tem direito a ser indemnizado pelas despesas que suportou na operação de salvamento, reclamando-as do proprietário, armador ou segurador da responsabilidade civil do navio ou embarcação em que se transportavam as pessoas salvas.
3 - O disposto no artigo anterior é aplicável, com as necessárias adaptações, à salvação de pessoas.
Artigo 12.º
Embarcações ou outros bens naufragados
1 Não podem ser adquiridos por ocupação as embarcações naufragadas, seus fragmentos, carga ou quaisquer bens que o mar arrojar às costas ou sejam nele encontrados.
2 - A recusa injustificada da entrega dos bens referidos no número anterior ao proprietário ou seu representante determina a perda do direito ao salário de salvação marítima sem prejuízo de outras sanções que ao facto correspondam.
Artigo 13.º
Exercício dos direitos
1 - Os direitos decorrentes da salvação marítima devem ser exercidos no prazo de dois anos a partir da data da conclusão ou interrupção das operações de salvação marítima.2 - Se o salvador não exigir o salário de salvação marítima, a compensação especial ou a indemnização das despesas referida no n.º 2 do artigo 11.º, o capitão, ou quem desempenhava as correspondentes funções de comando, e a tripulação podem demandar os salvados, pedindo a parte que lhes caiba, dentro do ano subsequente ao termo do prazo fixado no número anterior.
3 - Verificando-se a situação prevista no número anterior, o capitão da embarcação que desenvolveu as operações de salvação marítima, ou quem desempenhava as correspondentes funções de comando, tem legitimidade para, em nome próprio e em representação da tripulação, demandar os salvados; porém, caso esse direito não seja exercido, podem os tripulantes interessados demandar conjuntamente os salvados, nos seis meses imediatos.
Artigo 14.º
Direito de retenção
O salvador goza de direito de retenção sobre a embarcação e os restantes bens salvos para garantia dos créditos emergentes da salvação marítima.
Artigo 15.º
Tribunal competente
1 - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para o julgamento de acções emergentes de salvação marítima, em qualquer dos casos seguintes:a) Se o porto de entrada após as operações de salvamento se situar em território nacional;
b) Se o contrato de salvação marítima tiver sido celebrado em Portugal;
c) Se o salvador e o salvado forem de nacionalidade portuguesa;
d) Se a sede, sucursal, agência, filial ou delegação de qualquer das partes se localizar em território português;
e) Se o sinistro ocorreu em águas sob jurisdição nacional.
2 - Nas situações não previstas no número anterior, a determinação da competência internacional dos tribunais para julgamento das acções emergentes de salvação marítima é feita de acordo com as regras gerais.
Artigo 16.º
Salvação marítima por embarcações do Estado
Odisposto neste diploma abrange a salvação marítima desenvolvida por navios ou embarcações de guerra ou outras embarcações não comerciais propriedade do Estado ou por ele operadas; não se aplica, porém, no caso de tais embarcações serem objecto de operações de salvamento.
Artigo 17.º
Norma revogatória
São revogados os artigos 676.º a 691.º do Código Comercial.
Artigo 18.º
Entrada em vigor
O presente diploma entra em vigor 30 dias após a sua publicação.Visto e aprovado em Conselho de Ministros de 26 de Fevereiro de 1998.
-António Manuel de Oliveira Guterres - José Veiga Simão - António Luciano Pacheco de Sousa Franco - João Cardona Gomes Cravinho - José Eduardo Vera Cruz Jardim - Elisa Maria da Costa Guimarães Ferreira.
Promulgado em 6 de Maio de 1998.
Publique-se.O Presidente da República, JORGE SAMPAIO.
Referendado em 5 de Junho de 1998.
O Primeiro-Ministro, António Manuel de Oliveira Guterres.