Acórdão 12/96
Processo 79301. - Acordam, com intervenção do plenário das secções cíveis, no Supremo Tribunal de Justiça:
AVIMAX - Aviário da Quinta dos Bracais, Lda., interpôs recurso para o tribunal pleno do Acórdão deste Tribunal de 10 de Outubro de 1989, proferido no processo 77383, com o fundamento de estar, quanto à mesma questão de direito, em oposição com o Acórdão deste mesmo Tribunal de 24 de Maio de 1988, proferido no processo 75604 e já transitado em julgado.
Pelo acórdão a fls. 32 e seguintes foi reconhecida a existência de oposição entre os mencionados acórdãos.
A recorrente alegou e o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer sobre a solução a dar ao conflito de jurisprudência.
Foram colhidos os vistos legais.
Tudo visto. Cumpre decidir.
E decidindo.
A) Quanto à oposição de acórdãos:
Como questão prévia importa reapreciar o problema da oposição de julgados, sabido como é que o acórdão preliminar que decidiu dessa oposição pode ser alterado em sede de julgamento final do recurso.
Procedendo-se a esse reexame, facilmente se constata que são idênticas as situações de facto apreciadas nos dois acórdãos, já que se trata de sociedades por quotas que, em dado momento, 9 de Março de 1979 no acórdão recorrido e 27 de Maio de 1983 no acórdão fundamento, ficaram reduzidas a dois sócios, casados entre si, não separados judicialmente de pessoas e bens.
Entretanto, no plano do direito, enquanto no acórdão recorrido se decidiu que a sociedade era nula desde o momento em que se verificou a redução, no acórdão fundamento decidiu-se precisamente o contrário, isto é, que não era nula.
E importa acrescentar que essa redução da sociedade a dois sócios ocorreu, nos dois casos, após a entrada em vigor do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro.
Estamos, assim, perante dois julgados proferidos no domínio da mesma legislação, sobre a mesma questão fundamental de direito, que se encontram em manifesta oposição.
Tendo sido proferidos em processos diferentes e tendo transitado o proferido no acórdão fundamento, verificados estão todos os pressupostos formais e materiais da admissibilidade do presente recurso.
Impõe-se, deste modo, ordenar o seu prosseguimento.
B) Quanto ao mérito:
1 - A questão a resolver consiste em determinar se é nula ou válida a sociedade por quotas reduzida a dois sócios cônjuges, casados segundo o regime da comunhão geral de bens e não separados judicialmente de pessoas e bens, redução essa ocorrida entre as datas da entrada em vigor do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, e do Decreto-Lei 262/86, de 2 de Setembro, que aprovou o Código das Sociedades Comerciais.
E importa desde já deixar bem claro que a questão da nulidade ou validade de tais sociedades está intimamente ligada a dois argumentos fundamentais:
«A constituição de uma sociedade entre os cônjuges punha em crise o poder marital e a imutabilidade das convenções antenupciais. A isto acrescentava-se que era perigoso autorizar a associação dos cônjuges em termos de arriscarem todo o património de ambos (caso das sociedades em nome colectivo) e que a sociedade era o instrumento mais cómodo para defraudar outras proibições, tais como a da venda entre esposos.» (António Caeiro, «Sobre a participação dos cônjuges em sociedades por quotas», separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, «Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia», que, aliás, iremos seguir de muito perto ao longo deste acórdão.)
Terá de ser, pois, no plano da defesa destes princípios que deve situar-se o problema da validade ou da nulidade de tais sociedades.
2 - A este propósito pode, antes do mais, salientar-se que no Código de Seabra as sociedades entre cônjuges não estavam vedadas e uma boa parte da doutrina entendia que só seriam nulas quando as suas cláusulas ofendessem regras imperativas da lei, designadamente quando o contrato de sociedade restringisse ou suprimisse os poderes legais de administração do marido ou quando alterasse o regime matrimonial de bens convencional ou legal.
3 - Entretanto, o Código Civil de 1966, na secção que trata das convenções antenupciais, veio fixar o princípio da imutabilidade dessas convenções (artigo 1714.º, n.º 1), e no n.º 3 deste dispositivo veio autorizar a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade de capitais, aceitando expressamente que tal participação dos cônjuges numa sociedade de capitais não punha em causa aquele princípio da imutabilidade das convenções antenupciais.
Não foi esse, porém, o entendimento que os Profs. Antunes Varela (Direito de Família, p. 361) e Pires de Lima (Código Civil Anotado, vol. IV, p. 364) deram à excepção constante do citado n.º 3 do artigo 1714.º
Segundo eles, este dispositivo só autorizava a participação dos cônjuges com outras pessoas na mesma sociedade de capitais, isto é, desde que não fossem os únicos sócios.
«Participar» significaria tomar parte em alguma coisa acompanhado de alguém.
Se o legislador quisesse abranger na excepção a própria constituição da sociedade de capitais, ter-se-ia expressado de forma diferente.
Este argumento tem, naturalmente, o valor que têm todos os argumentos formais, ou seja, muito reduzido ou nenhum.
Com efeito, «participar», como verbo intransitivo, significa «fazer parte integrante», «ter ou tomar parte», «ter natureza ou qualidades comuns a alguma pessoa ou a alguma coisa» (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 20, p. 476).
Poderá este conceito exigir a presença de mais de uma pessoa na mesma empresa, mas não exige certamente mais de duas pessoas, que, no caso de uma sociedade, bem poderiam ser os dois cônjuges.
O que tudo evidencia que o argumento literal, extraído do vocábulo «participar», se tem algum valor, o que duvidamos, sempre seria um valor muito reduzido.
4 - Por outro lado, no plano racional, argumenta-se (Prof. Antunes Varela) que, não sendo «as sociedades por quotas - e são estas que estão em causa - típicas sociedades de capitais e constituindo, pelo contrário, uma das sociedades em que alguns dos sócios (munidos de poderes de gerência) mais facilmente podem lesar o outro ou outros (sobretudo quando minoritários, sobretudo por carência de uma fiscalização adequada e por falta de deveres legais de informação convenientes), não podem considerar-se abrangidas nem no espírito nem sequer no texto do n.º 3 do artigo 1714.º».
Na mesma linha de pensamento vai o Prof. Pires de Lima (com o apoio de Antunes Varela, Código Anotado, supra-referenciado), afirmando que «se julgou preferível eliminar todas as dificuldades a que forçosamente se prestaria a aplicação prática de tal sistema casuístico (casos em que concretamente se reconhecesse haver uma alteração efectiva da convenção antenupcial ou do regime legalmente fixado), considerando nula a sociedade, seja qual for a sua natureza ou a sua forma, desde que tenha como sócios apenas os dois cônjuges. Igual solução é aplicável aos casos em que um dos cônjuges, assumindo a posição contratual de um terceiro, vem a ingressar na sociedade, com o seu consorte, já depois de ela se encontrar constituída».
Prosseguindo na interpretação do referido comando legal, entendem os ilustres professores que é lícita a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade anónima, exemplo típico da sociedade de capitais, mas proibida essa participação na mesma sociedade em nome colectivo, sociedade tipicamente de pessoas. E acentuam que foi em razão da responsabilidade ilimitada dos sócios pelas dívidas sociais que «a lei afastou a possibilidade da participação dos dois cônjuges em tais sociedades, pela profunda alteração que daí poderia advir para o estatuto das suas relações patrimoniais, principalmente vigorando entre eles o regime de separação».
5 - A proibição da participação dos cônjuges na mesma sociedade por quotas, defendida pelos ilustres mestres, assenta pois, essencialmente, na ideia de que as sociedades por quotas não podem ser consideradas como sociedades de capitais, para os efeitos consignados no citado n.º 3 do artigo 1714.º
Por outras palavras, este preceito só autorizaria a participação dos cônjuges nas sociedades anónimas, que são as únicas tipicamente de capitais.
Mas pode desde já objectar-se que, se essa era a intenção do legislador, seria muito mais curial ter usado a expressão «sociedades anónimas» em vez de «sociedades de capitais».
Urge, assim, perguntar: o que pretendeu o legislador ao usar a expressão «sociedades de capitais»?
Como afirma António Caeiro (ob. cit.), «o traço mais nítido da distinção entre sociedades de pessoas e de capitais - e que é, ao mesmo tempo, aquele que é do conhecimento geral - é o da responsabilidade dos sócios. Quando queremos contrapor as sociedades de pessoas e as de capitais, a que exemplos recorremos? Precisamente àqueles que começámos por citar: a sociedade em nome colectivo e a sociedade anónima. Na primeira, todos os sócios respondem pessoal, ilimitada e solidariamente, embora a título subsidiário, pelas dívidas da sociedade. Na segunda, cada sócio responde apenas pela fracção do capital que subscreveu; pelas dívidas da sociedade só esta responde.
Ora, como muito bem intuiu Sá Carneiro, «tendo em vista que o nosso objectivo imediato é o de interpretar o artigo 1714.º, o emprego do termo 'sociedade de capitais' no n.º 3 desse artigo tem de relacionar-se com a possibilidade de os cônjuges alterarem a situação dos bens do casal emergente do regime convencionado ou supletivamente aplicável; ora, olhado o caso por este prisma, interessa especialmente a responsabilidade dos sócios».
A interpretação da expressão «sociedades de capitais», constante do preceito em análise, deverá, assim, ser colocada no plano da responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais, já que só por essa via a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade poderá pôr em crise o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais.
6 - Não existem quaisquer dúvidas, como vimos, de que a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade em nome colectivo pode lesar o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, como é inquestionável que essa participação na mesma sociedade anónima o deixa incólume.
Entretanto, a mesma razão da responsabilidade pessoal dos sócios pelas dívidas da sociedade conduz à proibição da participação conjunta dos cônjuges como sócios de responsabilidade ilimitada (comanditados) numa sociedade em comandita, seja simples seja por acções.
Por outro lado, não se vê razão válida, com base no mesmo princípio da responsabilidade dos sócios pelas dívidas da sociedade, para proibir a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade em comandita, desde que um seja sócio comanditado e o outro comanditário (ou ambos comanditários).
No que diz respeito à participação dos dois cônjuges numa sociedade por quotas, ainda o mesmo princípio da responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais não impede essa participação.
Com efeito, afigura-se-nos que o legislador, ao proibir a sociedade entre cônjuges, ressalvando, contudo, a participação destes na mesma sociedade de capitais, quis prevenir o perigo abstracto de violação da regra legal da imutabilidade das convenções antenupciais e este perigo só existirá quando ambos os cônjuges respondem ilimitadamente pelas dívidas sociais, o que nunca acontece nas sociedades por quotas.
7 - De tudo quanto deixámos exposto resulta, pelo menos, que não seria necessário um grande esforço interpretativo para concluir que o Código Civil de 1966 não proibia a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade por quotas, aliás na linha da tradição implantada pelo Código de Seabra.
Veremos de seguida como a posterior evolução legislativa só veio confirmar a bondade desse entendimento.
8 - As alterações introduzidas no Código Civil pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Dezembro, visando a consagração na lei civil do princípio da igualdade entre marido e mulher, quer no que toca às relações pessoais entre os cônjuges, quer ao regime de administração dos bens do casal, eliminaram a parte mais importante da argumentação clássica contra a participação dos cônjuges na mesma sociedade.
Na verdade, a consagração do princípio da igualdade entre os cônjuges, com o consequente desaparecimento do «poder marital», veio abrir novas possibilidades de colaboração e associação entre eles, facilitando a participação dos cônjuges na mesma sociedade e a sua própria constituição.
Os receios de instabilidade familiar, de crise do poder marital, de perda de todo o património do casal, deixaram de ter qualquer fundamento sério numa sociedade conjugal assente no princípio da igualdade dos cônjuges.
O que equivale a afirmar que as objecções de ordem familiar que poderiam colocar-se à participação dos dois cônjuges na mesma sociedade por quotas deixaram de existir, por vontade expressa do legislador, ao consagrar o princípio da igualdade dos cônjuges.
9 - Mas se dúvidas algumas ainda poderiam subsistir, o legislador do Decreto-Lei 262/86, de 2 de Setembro, veio dissipá-las definitivamente.
Com efeito, o artigo 8.º, n.º 1, daquele diploma veio estabelecer que «é permitida a constituição de sociedades entre cônjuges, bem como a participação destes em sociedades, desde que só um deles assuma responsabilidade ilimitada».
Deste dispositivo resulta claramente que o legislador, ao permitir a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade, colocou o acento tónico na questão da responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais.
Abandonando toda e qualquer referência aos vários tipos possíveis de sociedades, contrariamente ao que havia feito o legislador de 1966, entendeu que a salvaguarda do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, que não postergou, estava intimamente ligada ao problema da responsabilidade dos cônjuges pelas dívidas sociais.
Isto é, adoptou o critério que seguimos para interpretar a expressão «sociedades de capitais» constante do n.º 3 do artigo 1714.º do Código Civil, fazendo recair sobre o princípio da responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais o elemento a atender para permitir ou impedir a constituição e a participação dos cônjuges na mesma sociedade.
Temos, assim, que actualmente é permitida a constituição e ou a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade por quotas, uma vez que em tais sociedades a responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais é limitada.
10 - Mas, chegados aqui, surge o verdadeiro problema posto no recurso: a sociedade por quotas, aqui em causa, reduzida, em 9 de Março de 1979, a dois sócios casados entre si, não separados judicialmente de bens e pessoas, deve ser declarada nula?
Vejamos.
11 - Como é sabido, e expressamente resulta dos artigos 205.º e 206.º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais constituem órgãos de soberania com competência para administrar justiça, incumbindo-lhes «assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos».
Fácil é, deste modo, constatar que as decisões judiciais se justificam apenas quando visam a tutela de interesses legalmente protegidos.
Mas, sendo assim, importa averiguar que interesse legalmente protegido poderia visar a eventual declaração de nulidade da sociedade em apreço.
12 - Consagrado o princípio da igualdade entre os cônjuges na lei civil, as eventuais razões de ordem familiar, a que, aliás, já aludimos, que poderiam justificar a proibição da participação dos cônjuges na mesma sociedade por quotas, deixaram de existir.
Restaria, assim, como eventual interesse a proteger, o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais.
Acontece, porém, que foi o próprio legislador a vir dizer de forma expressa e inequívoca que nas sociedades por quotas, onde a responsabilidade dos sócios é limitada, a participação dos cônjuges na mesma sociedade não põe em causa esse princípio da imutabilidade das convenções antenupciais.
Isto é, a declaração de nulidade da sociedade em causa não poderia, assim, defender esse interesse da imutabilidade das convenções antenupciais, uma vez que a redução dessa sociedade aos dois cônjuges não põe em perigo esse mesmo princípio da imutabilidade.
A eventual decisão judicial a declarar nula tal sociedade não constituiria mais do que uma mera fórmula, sem qualquer conteúdo substancial, já que não tutelaria qualquer interesse legalmente protegido.
Colocada, pois, a questão na sua verdadeira sede, a dos interesses juridicamente protegidos, inexiste razão para declarar nula esta sociedade, que se viu reduzida a dois sócios casados entre si.
13 - Entretanto, ainda poderia acrescentar-se que à luz do Código Civil vigente, nomeadamente depois das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, a solução da validade da referida sociedade era perfeitamente defensável.
Com efeito, o n.º 3 do artigo 1714.º permite, como vimos, sem grande esforço interpretativo, considerar abrangidas na expressão «sociedades de capitais» as sociedades por quotas, já que numas e noutras a responsabilidade limitada dos sócios pelas dívidas sociais afasta o perigo de lesão do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, quando constituídas ou reduzidas a dois sócios casados entre si.
14 - Mas nem esse pequeno esforço interpretativo é necessário, face ao disposto no citado artigo 8.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais.
Na verdade, este dispositivo veio estabelecer que «é permitida a constituição de sociedades entre cônjuges, bem como a participação destes em sociedades, desde que só um deles assuma responsabilidade ilimitada».
De uma forma inequívoca, o legislador veio esclarecer que a participação dos cônjuges na mesma sociedade, em que a sua responsabilidade é limitada, como acontece nas sociedades por quotas, não viola o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais.
E como as demais razões de índole familiar que poderiam impedir a participação dos cônjuges na mesma sociedade por quotas se encontravam já afastadas pela consagração do princípio da igualdade dos cônjuges, deixou de existir qualquer razão válida justificativa da declaração de nulidade de sociedades por quotas reduzidas a dois sócios casados entre si.
Ao afastar as objecções que poderiam colocar-se à constituição ou participação dos cônjuges na mesma sociedade, em que a sua responsabilidade pelas dívidas sociais fosse limitada, o legislador procedeu a uma interpretação autêntica do quadro legal então vigente e nessa medida não pode deixar de aplicar-se às situações de facto precedentes.
Constituindo, assim, o citado artigo 8.º, n.º 1, uma norma interpretativa, deve aplicar-se à situação dos autos e, obviamente, impedir a declaração de nulidade da sociedade em apreço - artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil.
15 - Esta natureza interpretativa do citado artigo 8.º, n.º 1, tem sido objecto de contestação por parte daqueles que têm da interpretação das leis uma concepção subjectivista, defendendo que o objecto dessa actividade é procurar a vontade real do legislador.
E neste plano, dizem, o legislador foi bem claro ao afastar uma tal natureza interpretativa, afirmando abertamente que «permite-se a participação dos cônjuges em sociedades comerciais desde que só um deles assuma responsabilidade ilimitada [artigo 8.º], modificando-se assim o regime do artigo 1714.º do Código Civil».
A este propósito importa, antes do mais, referir que esta concepção subjectivista da interpretação das leis assenta no pressuposto de que o legislador sabe bem o que quer e raramente se engana, o que, todos sabemos, nem sempre corresponde à realidade.
Por outro lado, os próprios defensores desta concepção admitem uma «interpretação correctiva» da lei.
Como refere Pires de Lima (Noções Fundamentais de Direito Civil, I, p. 149), «mais do que uma obediência cega ao comando verbal da lei, pretende o legislador uma obediência ao conteúdo essencial da sua vontade, fixado sobretudo através dos fins ou objectivos por ele visados».E acrescenta:
«O intérprete deve inclusivamente desobedecer ao comando da lei se tanto se tornar necessário, para salvaguardar o seu objectivo essencial. Deve fazer, noutros termos, uma interpretação correctiva da lei quando só assim possa alcançar o fim visado pelo legislador.»
Colocado o problema neste plano, mais do que respeitar a vontade declarada pelo legislador, o que verdadeiramente importa é alcançar os fins por ele visados.
Ora, o que o legislador pretendeu através deste dispositivo (artigo 8.º, n.º 1) foi permitir a constituição de sociedades comerciais entre cônjuges, desde que não fosse posto em causa o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais (o que acontece nas sociedades em que é limitada a responsabilidade dos sócios pelas dívidas sociais).
Mas se esse foi o seu objectivo, e este é atingido, considerando interpretativo aquele comando legal, a que título se deveria respeitar a vontade declarada pelo legislador?
Deverá o respeito pela mens legislatoris conduzir a que se declare nula uma sociedade que, além de poder ser reconstituída nos seus precisos termos, não põe em causa o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, o único que poderia justificar essa declaração de nulidade?
Como resulta do próprio enunciado das questões, a resposta não pode deixar de ser negativa.
16 - Aliás, por uma outra via se chegaria sempre a essa solução da validade da sociedade em apreço.
É sabido que a lei nova só dispõe para o futuro (artigo 12.º do Código Civil), assim como no caso de dúvida, só visa os factos novos quando dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de factos ou sobre os seus efeitos (citado artigo 12.º, n.º 2, 1.ª parte).
Quando, porém, a lei dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Portanto, nos termos da 2.ª parte do citado artigo 12.º, n.º 2, a lei nova «aplica-se, de futuro, às relações jurídicas já anteriormente constituídas e subsistentes à data da sua entrada em vigor» quando define o conteúdo (os efeitos) de certa relação jurídica, independentemente dos factos que lhe deram origem (Prof. Baptista Machado, SATNCC, p. 29).
Isto é, aplica-se imediatamente.
Conteúdo de uma relação jurídica é o próprio direito subjectivo e o correspondente dever jurídico (Prof. Manuel de Andrade, TGRJ, I, p. 24).
Duas pessoas podem livremente formar uma sociedade por quotas. Se se trata de cônjuges, únicos sócios da sociedade, a única especificidade reside na vigência do casamento e inerentes efeitos matrimoniais. Releva o estatuto legal de pessoas casadas, com determinados direitos e deveres na área patrimonial.
Ora, o citado artigo 8.º veio bulir com esse estatuto legal, com os respectivos direitos subjectivos e deveres jurídicos, com os efeitos, o conteúdo da inerente relação jurídica, abstraindo dos factos que lhe deram origem, do contrato em si.
Neste sentido, Baptista Machado (ob. cit., p. 123):
«É igualmente sugestiva, neste contexto, a distinção de Affolter entre relações jurídicas com conteúdo individualizado, isto é, em função de concretos factos constitutivos, e relações jurídicas com conteúdo tipificado, quer dizer, determinado, abstraindo da sua concreta dimensão e sem que possa ser influenciado por esta, a fim de valer da mesma forma para um tipo genérico de factos e situações.»
Logo, o citado artigo 8.º visa o referido estatuto legal e não o contratual.
Daí que, definindo o conteúdo (efeitos) da relação jurídica emergente da constituição da sociedade em questão, independentemente do respectivo contrato constitutivo, deva aplicar-se imediatamente, por força do citado artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil. E esta aplicação imediata obsta, obviamente, à declaração de nulidade da sociedade aqui em causa.
17 - Finalmente, ainda poderia acrescentar-se que, dado o paralelismo desta situação com a que ocorre com as sociedades em que o número de sócios desce abaixo do mínimo legal, a possibilidade de regularização da situação, ao abrigo do disposto no artigo 143.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, sempre seria uma solução a considerar, já que obstaria a que uma sociedade, reconstituível nos seus precisos termos, fosse declarada nula.
18 - Pelo exposto, acorda-se em dar provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, nomeadamente a declaração de nulidade da sociedade em causa, e uniformiza-se a jurisprudência nos termos seguintes:
As sociedades por quotas que, depois da entrada em vigor do Código Civil de 1966 e mesmo depois das alterações nele introduzidas pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, e antes da vigência do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei 262/86, de 2 de Setembro, ficaram reduzidas a dois únicos sócios, marido e mulher, não separados judicialmente de pessoas e bens, não são, em consequência dessa redução, nulas.
Custas pela recorrida.
Lisboa, 1 de Outubro de 1996. - Herculano Carlindo Machado Moreira de Lima - António Pais de Sousa - Agostinho Manuel Pontes de Sousa Inês - Fernando Machado Soares - Jorge Alberto Aragão Seia - João Fernando Fernandes Magalhães - Ilídio Gaspar Nascimento Costa - Rui Manuel Brandão Lopes Pinto - José Pereira da Graça - Manuel José Almeida e Silva - Torres Paulo - Fernando Adelino Fabião - António César Marques - Ramiro Luís d'Herbe Vidigal - José Martins da Costa - Mário Fernando da Silva Cancela - Manuel Nuno de Sequeira Sampaio da Nóvoa - António da Costa Marques - Joaquim Fonseca Henriques de Matos - Luís Filipe Motello de Nápoles - João Augusto Gomes Figueiredo de Sousa - Roger Benneto da Cunha Lopes - António Manuel Guimarães de Sá Couto - Fernando da Costa Soares - José Miranda Gusmão de Medeiros.
Declaração de voto
Votei a decisão, muito embora, contrariamente ao defendido no acórdão, considere inovador o artigo 8.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, mas, não obstante isso, aplicável às sociedades por quotas entre cônjuges quando constituídas no domínio de vigência do artigo 1714.º, n.º 2, do Código Civil.
Com efeito, apesar de o vício de que enferma a constituição de uma situação jurídica, segundo a lei vigente ao tempo da sua constituição, não ser sanado pela entrada em vigor da nova lei que deixou de considerar a existência desse vício, de acordo com a 1.ª parte do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil, certo é que, quando este preceito legal diz que as leis relativas à validade de quaisquer factos só se aplicam a factos novos, tem de entender-se que estes «factos novos» são também os «estados de facto» ou «as qualidades» que, vindo embora do passado, do tempo da lei antiga, ainda permanecem no presente, sob o domínio da lei nova, por tal forma que a lei nova se não aplica a «factos passados» mas a «factos actuais», a «factos novos», no sentido que esta expressão tem na referida 1.ª parte do n.º 2 do artigo 12.º (J. Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, pp. 67 a 71, 204 e 209 a 211). - Fernando Adelino Fabião.
Declaração de voto
1 - No Código Civil de 1867, as sociedades entre cônjuges não estavam vedadas e uma boa parte da doutrina entendia que só seriam nulas quando as suas cláusulas constituíssem, de facto, uma violação do princípio do direito marital das convenções antenupciais ou de qualquer outro preceito imperativo (cf. Alberto Pimenta, Sociedades entre Cônjuges, 1953, p. 95, e José Tavares, Sociedades e Empresas Comerciais, 2.ª ed., 1924, p. 77).
2 - O Código Civil de 1966 veio, porém, consagrar a proibição de sociedades que tenham apenas como sócios os dois cônjuges, salvo se estes se encontrarem separados judicialmente de pessoas e bens (artigo 1714.º, n.º 2) - conforme diz Sá Carneiro, «após a vigência do novo Código deixou de ser admitida a sociedade apenas entre os dois cônjuges, independentemente de violar, ou não, a lei. O n.º 2 do artigo 1714.º contém uma proibição absoluta de qualquer sociedade entre dois cônjuges» (v. «Sociedade de cônjuges - Subsídios para a interpretação do artigo 1714.º do Código Civil», in Revista dos Tribunais, ano 86.º, p. 440). O n.º 3 do artigo 1714.º abre uma excepção à regra da nulidade do contrato de sociedade entre cônjuges ao prescrever que «é lícito, contudo, a participação dos dois conjugados na mesma sociedade de capitais».
Tem sido controvertida a delimitação de tal excepção.
A nosso ver, o disposto naquele n.º 3 só autoriza a participação dos cônjuges com outras pessoas na mesma sociedade de capitais, isto é, desde que não sejam os únicos sócios.
«Participar» significa tomar parte em alguma coisa acompanhado de alguém.
Se o legislador quisesse abranger na excepção a própria constituição da sociedade de capitais, ter-se-ia expressado de forma diferente. Não sendo, conforme diz o Prof. Antunes Varela, as sociedades por quotas - e são estas que estão em causa - típicas sociedades de capitais e constituindo, pelo contrário, uma das espécies de sociedades em que alguns dos sócios (munidos de poderes de gerência) mais facilmente podem lesar o outro ou outros (sobretudo quando minoritários, sobretudo por carência de uma fiscalização adequada e por falta de deveres legais de informação convenientes), não podem considerar-se abrangidos nem no espírito nem sequer no texto do n.º 3 do artigo 1714.º (v. Direito de Família, p. 361).
Dizem ainda o mesmo professor e o Prof. Pires de Lima que «se julgou preferível eliminar todas as dificuldades a que forçosamente se prestaria a aplicação prática de tal sistema casuístico (casos em que concretamente se reconhecesse haver uma alteração efectiva da convenção antenupcial ou do regime legalmente fixado), considerando nula a sociedade, seja qual for a sua natureza ou a sua forma, desde que tenha como sócios apenas os dois cônjuges.
Igual solução é aplicável aos casos em que um dos cônjuges, assumindo a posição contratual de um terceiro, vem a ingressar na sociedade, com o seu consorte, já depois de ela se encontrar constituída» (v. Código Civil Anotado, vol. IV, p. 364).
3 - O regime jurídico das relações entre os cônjuges foi alterado pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, consagrando-se aí a igualdade dos cônjuges, cada um deles passando a ter a administração dos seus bens próprios e ambos eles a administração dos bens comuns (artigo 1678.º do Código Civil).
Daí não resulta, no entanto, que ao artigo 1714.º possa dar-se uma interpretação diferente da que lhe vinha sendo dada.
A razão de ser da proibição subsiste apesar de a lei passar a consagrar a igualdade dos cônjuges. É que continua a ser frequente a posição de supremacia psicológica de um cônjuge sobre o outro.
Embora dividida, a grande maioria da jurisprudência, quer deste Supremo Tribunal de Justiça quer das Relações, é no sentido de que a atenuação resultante do n.º 3 do artigo 1714.º do Código Civil não engloba, quer no seu espírito, quer no seu texto, a sociedade por quotas.
A partir do momento em que se constitui entre dois únicos sócios, casados um com o outro em regime de comunhão geral de bens, ou a partir do momento em que a vida da sociedade fica reduzida a dois sócios, cônjuges não separados judicialmente de pessoas e bens, a sociedade passa a estar ferida de nulidade.
Assim, a partir da redução, o contrato de sociedade deixa de produzir os seus efeitos (v. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 143, e Galvão Teles, Dos Contratos em Geral, p. 329).
Tem a nulidade do contrato de sociedade o regime e os efeitos consignados nos artigos 285.º e seguintes do Código Civil, designadamente operando ipso jure.
4 - Mas dever-se-á considerar sanada tal nulidade em consequência da entrada em vigor do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei 262/86, de 2 de Setembro?
Este Código entrou em vigor em 1 de Novembro de 1986 (artigo 2.º do Decreto-Lei 262/86, de 2 de Setembro) e dispõe, no n.º 1 do seu artigo 8.º, que «é permitida a constituição de sociedades entre cônjuges, bem como a participação destes em sociedades, desde que só um deles assuma responsabilidade ilimitada». Seja qual for o regime de bens do casamento, os cônjuges podem, portanto, constituir entre si ou participar com terceiros numa sociedade, desde que nenhum deles assuma responsabilidade ilimitada ou apenas um assuma tal tipo de responsabilidade.
No que às sociedades anteriormente constituídas respeita, passou a discutir-se, após a entrada em vigor daquele Código, o problema da aplicação do citado artigo 8.º às sociedades por quotas existentes antes da vigência do referido Código. E enquanto uns entendiam que tinha carácter inovador, outros entendiam que se tratava de uma norma interpretativa.
Este carácter interpretativo é defendido, essencialmente, com base no meritório estudo de António Caeiro publicado no Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, no número especial de homenagem ao Prof. Eduardo Correia.
Apesar do brilho daquele trabalho, entendemos que não é de perfilhar a tese de que o artigo 8.º, n.º 1, é uma norma interpretativa.
É o próprio legislador do Decreto-Lei 262/86 a afirmar, no n.º 7 do preâmbulo, que é modificado o regime do artigo 1714.º do Código Civil, o que implica que na matéria regulada no artigo 8.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais era outro o regime fixado anteriormente.
Daí que não possa atribuir-se a natureza interpretativa à norma do artigo 8.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais.
Tratando-se de uma disposição inovadora, não é admissível a sua aplicação retroactiva, por força do disposto no n.º 1 do artigo 12.º do Código Civil, já que naquele número a lei só dispõe, em princípio, para o futuro.
As leis que regulam o processo formativo, ou seja, a constituição de uma situação jurídica, não podem, sem ferir o princípio da retroactividade, afectar situações jurídicas anteriormente constituídas.
É uma regra que teve acolhimento na 1.ª parte do n.º 2 do artigo 12.º do Código Civil e da qual resulta que, quando a constituição da situação jurídica resulta de um acto ou negócio jurídico, a lei nova não se aplica às condições de validade do acto ou negócio jurídico que deram vida à situação existente, sendo a lei antiga a que decidirá sobre a regularidade ou não da formação da situação, isto é, de todas as questões relativas à validade ou invalidade dos actos constitutivos.
Se, conforme diz Baptista Machado, «ao tempo da verificação do acto ou facto constitutivo, existia um impedimento à válida constituição da relação jurídica, ou não existia um outro facto que condicionava a eficácia constitutiva do primeiro, a lei nova que venha suprimir o dito impedimento ou dispensar a eficácia constitutiva condicionante do segundo facto não pode sanar ou convalidar, SR, o acto ou facto jurídico nulo, anulável ou irrelevante» (cf. Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, p. 71).
5 - Assim, deveria confirmar-se a decisão recorrida e uniformizar-se a jurisprudência nos seguintes termos:
São nulas as sociedades por quotas que, depois da entrada em vigor do Código Civil de 1966 e mesmo depois das alterações nele introduzidas pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, e antes da vigência do Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei 262/86, de 2 de Setembro, ficaram reduzidas a dois únicos sócios, marido e mulher, não separados judicialmente de pessoas e bens.
Mário Fernandes da Silva Cancela.