Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 10/2025
Acórdão do STA de 25 de Setembro de 2025, no Processo 748/24.4BELSB-1.ª Secção
Recursos de Revista de Acórdãos dos TCA Julgamento ampliado do recurso (art. 148.º do CPTA) Com intervenção de todos os Juízes Conselheiros, acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
I. DO OBJETO DO RECURSO
1-O BANCO 1..., S. A., interpôs recurso de revista do acórdão do TCA Sul, de 9.01.2025, que concedeu provimento ao recurso interposto pela A...-SOCIEDADE DE CAPITAL DE RISCO, S.A e anulou a sentença do TAC de Lisboa de 7.05.2024 que havia julgado verificada a exceção de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário passivo, decorrente da falta de indicação dos contrainteressados, e, em consequência, absolvera a ora Recorrente da instância, mais tendo ordenado a baixa dos autos para que o TAC proferisse despacho de convite à A. para que fosse aperfeiçoado o requerimento inicial.
2-No acórdão recorrido do TCA SUL, sumariou-se:
I-No caso dos processos cautelares, perante a falta de indicação dos contrainteressados a quem a adopção da providência cautelar possa directamente prejudicar, impõe o artigo 114.º, n.º 3, alínea d), em conjugação com o n.º 5, do CPTA, a notificação do interessado para suprir a falta no prazo de cinco dias.
II-A omissão do despacho de aperfeiçoamento, quando se justifica a sua emissão, enquanto poderdever do juiz, implica a falta de formalidade essencial que acarreta a nulidade dos actos processuais subsequentes (cf. artigo 195.º, n.º 1, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 1.º do CPTA).
III-E ainda que se encontre ultrapassada a fase liminar prevista no artigo 116.º do CPTA, no caso de total omissão de indicação de contrainteressados ou de falta de indicação de todos os contrainteressados que emerjam da concreta relação material controvertida, cabe ao juiz convidar a parte para aperfeiçoar o seu requerimento inicial.
3-A RECORRENTE, BANCO 1..., S. A., terminou as alegações de recurso que apresentou com as seguintes conclusões:
I. A questão que se coloca é a saber se o Tribunal está obrigado, em qualquer circunstância, a proferir despachoconvite de aperfeiçoamento ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 114.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, mesmo depois ser ultrapassada a fase liminar.
II. A questão tem sido suscitada inúmeras vezes junto das instâncias e obtido decisões contraditórias, pelo que revela importância jurídica fundamental.
III. Por outro lado, foi recentemente admitido um recurso de revista pelo Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18/12/2024, processo 0260/24.1BEFUN, em situação análoga à dos presentes autos, tendo a formação preliminar afirmado que, na medida em que a decisão então recorrida era contrária ao entendimento subscrito pelo Supremo Tribunal Administrativo nos processos 01357/13 e 0449/22.8BELRA, a sua admissão era necessária para a melhor aplicação do direito.
IV. Uma vez admitido o recurso, deve, antes do mais, verificar-se as nulidades por excesso de pronúncia e por oposição entre fundamentos e decisão incorridas pelo Tribunal a quo, bem como o pedido de reforma da condenação quanto a custas V. As conclusões de recurso delimitam o objeto e os fundamentos do recurso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil).
VI. À luz do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o Tribunal ad quem não pode pronunciar-se senão sobre as questões que tenham sido suscitadas, sob pena de nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), ex vi artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
VII. No recurso interposto para o Tribunal a quo a A... delimitou a nulidade indireta que invocou (artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) à omissão de notificação para identificação dos contrainteressados, nos termos do artigo 114.º, n.º 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (cf. a conclusão 16 do seu recurso), afirmando que o Tribunal de primeira instância estava vinculado a, nesse momento do artigo 114.º, n.º 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (despacho de fls. 317), proceder a esse convite.
VIII. A A... não alegou ou concluiu que, após o momento do artigo 114.º, n.º 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e após a prolação do despacho liminar a que se refere o respetivo artigo 116.º, o Tribunal de primeira instância estivesse sujeito ao dever de notificála para suprir a falta de identificação de contrainteressados.
IX. Ao decidir que “ainda que se encontre ultrapassada a fase liminar prevista no artigo 116.º do CPTA, no caso de total omissão de indicação de contrainteressados ou de falta de indicação de todos os contrainteressados que emerjam da concreta relação material controvertida, cabe ao juiz convidar a parte para aperfeiçoar o seu requerimento inicial”, o Tribunal a quo incorreu em nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), ex vi artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
X. Por outro lado, não tendo essa questão sido suscitada pela A... no recurso, também não foi abordada nas contraalegações, pelo que a sua decisão sem contraditório do Banco 1... consubstancia decisãosurpresa e, logo, uma outra nulidade autónoma, por violação do dever imposto no artigo 3.º, n.os 1 e 3, nos termos do 195.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.
XI. O recurso interposto pela A... apresentou dois pedidos e duas causas de pedir:
(i) o erro de julgamento, por o Tribunal de primeira instância ter considerado haver contrainteressados, conducente da revogação da sentença proferida;
(ii) a nulidade, por falta de convite à identificação de contrainteressados, nos termos e aquando do artigo 114.º, n.º 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, conducente da anulação da sentença proferida.
XII. O Tribunal a quo pronunciou-se sobre ambas as questões:
(i) julgou haver contrainteressados e, logo, não haver erro de julgamento (cf. pp. 7 a 12 do douto Acórdão recorrido);
(ii) julgou a nulidade invocada (cf. pp. 13 e ss. do douto Acórdão recorrido).
XIII. Contudo, no segmento decisório o Tribunal a quo afirmou “Ante o exposto, acordam, em conferência, os JuízesDesembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, anular a sentença recorrida e determinar a baixa dos autos à 1.ª instância para que seja proferido o despacho omitido, de convite à ora Recorrente para, no prazo de cinco dias, aperfeiçoar o seu requerimento inicial, com a indicação de todos os contrainteressados”.
XIV. Sucede que, à luz da fundamentação expendida, não houve lugar ao provimento integral do recurso, o que, contudo, não é espelhado no segmento decisório, ocorrendo a nulidade a que se refere o artigo 615.º, n.º 2, alínea c), aplicável ex vi artigo 666.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil, devendo o segmento decisório ser retificado de modo a espelhar o provimento meramente parcial do recurso.
XV. Tendo o recurso interposto no Tribunal a quo suscitado duas questões e improcedendo uma delas, carece de fundamento a imputação integral de custas ao Banco 1....
XVI. As custas definidas deveriam ter sido fixadas em função da proporção do vencimento, nos termos do artigo 527.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em partes iguais, para efeitos do disposto no artigo 607.º, n.º 6, ex vi artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
XVII. Ao condenar integralmente o Banco 1... em custas, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação das normas indicadas, devendo a condenação em custas ser reformada nos termos dos artigos 616.º, n.º 1, e 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
XVIII. Importa, igualmente, dispensar o pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do artigo 6.º, n.º 7, do RCP, visto que está em causa um processo cautelar em que não foi adotada decisão de mérito e que não exige o manuseamento de inúmeros documentos de difícil compreensão ou a apreciação de prova complexa ou dotada de qualquer complexidade técnica, decorrendo os autos com a normalidade expectável em face da tramitação regular e normal, sob pena de violação do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 2.º da Constituição e do direito de acesso à justiça previsto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição.
XIX. Resulta da interpretação conjugada do disposto nos artigos 114.º, n.º 5, e 116.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos que só há lugar ao convite a aperfeiçoamento quando as falhas do requerimento cautelar sejam manifestas, no quadro de um juízo de primeira aparência ou leitura.
XX. O artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil apenas sanciona com nulidade a omissão de formalidades que a lei prescreva.
XXI. No caso dos presentes autos a falta de identificação dos corretos contrainteressados não era manifesta, tendo a A..., no requerimento cautelar, afirmado que a procedência da providência cautelar prejudicaria o último classificado e tendo identificado como contrainteressado a B....
XXII. Não sendo manifesta a falha que veio a determinar a absolvição da instância, a qual só pôde ser alcançada após a oposição e a resposta a exceções e após a análise dos documentos juntos pelas partes, não estava o tribunal sujeito ao dever, no momento do artigo 114.º, n.º 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, de convidar a A... a corrigir o requerimento cautelar quanto a esta matéria.
XXIII. Ao assim não ter decidido, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nos artigos 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 114.º, n.º 5, e 116.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
XXIV. O Código de Processo nos Tribunais Administrativos não prevê o convite ao aperfeiçoamento após o despacho a que se refere o artigo 116.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pelo que não existe qualquer dever a que o Tribunal proferisse despacho de convite ao aperfeiçoamento.
XXV. Ao assim não entender, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto nos artigos 116.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
XXVI. Com a notificação da oposição a A... ficou a conhecer a alegação da exceção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição de contrainteressados, pelo que, à luz do disposto no artigo 199.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dispunha, a partir de então, de 10 dias para arguir a nulidade do despacho de fls. 317, por não ter incluído o convite ao suprimento em matéria de contrainteressados.
XXVII. Não foi só com a sentença proferida que a A... ficou a conhecer a existência de contrainteressados, visto que no requerimento cautelar afirmou que o último lugar seria o contrainteressado e, senão antes, ao menos na oposição, ficou claro que a B... não havia sido classificada em último lugar.
XXVIII. A intempestividade da invocação da nulidade foi oportunamente invocada pelo Banco 1....
XIX. Ao afirmar que a nulidade invocada foi tempestiva, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, com violação do disposto no artigo 199.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Nestes termos e nos melhores de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Ex.as, deve o presente recurso de revista ser admitido e, sendo julgado procedente:
a) Ser parcialmente anulado o Acórdão recorrido, por excesso de pronúncia;
b) Ser anulado o Acórdão recorrido por oposição entre fundamentos e decisão;
c) Ser revogado o Acórdão recorrido, por erro de julgamento, e ser substituído por outro que, reformando a condenação em custas realizada pelo Tribunal a quo, julgue procedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva por falta de identificação dos contrainteressados e absolva o Banco 1... da instância, e com dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça [...].”
4-A Recorrida, A...-SOCIEDADE DE CAPITAL DE RISCO, S. A., não apresentou contraalegações.
5-O recurso de revista foi admitido por acórdão de 10.07.2025 da formação preliminar, de onde se extrai:
“A questão em apreço prende-se com a determinação das circunstâncias em que um tribunal de primeira instância, ao receber um requerimento cautelar, está obrigado a proferir despachoconvite de aperfeiçoamento ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 114.º do CPTA, mesmo depois de ultrapassada a fase liminar.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo ainda não conseguiu estabilizar uma orientação uniforme para esta questão, como as alegações recursivas bem destacam e o acórdão tirado na 1.ª Secção, por maioria, em 13.02.2025 (Proc. 0260/24.1BEFUN), bem ilustra, nas referências que constam da sua fundamentação e do voto de vencido que o acompanha.
A isso acresce que a decisão proferida no aresto recorrido vai em sentido contrário ao que fez vencimento no aresto deste Supremo Tribunal Administrativo acabado de mencionar e apresenta ainda outros aspectos de duvidoso acerto jurídico.
Assim, apesar de estarmos no domínio de um processo urgente, de natureza cautelar e onde ainda se discute uma questão respeitante à conformação da instância processual a decidirtudo razões que desaconselham vivamente a admissão de um recurso de revista por se tratar de questões cujo correcto julgamento não deveria ultrapassar o recurso de apelação-, a verdade é que não podemos igualmente deixar de ponderar a relevância jurídica (atenta a falta de estabilização de uma linha jurisprudencial certa por este Supremo Tribunal Administrativo) e social (atento o tipo de concurso público aqui em causa e as respectivas ligações ao Programa Recuperar Portugal) da questão, que ditam a necessidade de promover a intervenção in casu deste Supremo Tribunal Administrativo, para, uma vez mais, tentar identificar e fixar os termos em que (assim como o momento processual até ao qual) é de impor ao juiz de primeira instância que profira um despachoconvite de aperfeiçoamento segundo o disposto no n.º 5 do artigo 114.º do CPTA.”
6-O Ministério Público junto deste Supremo Tribunal Administrativo, notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 146.º, n.º 1 e 147.º, n.º 2, ambos do CPTA, não se pronunciou.
7-Sob proposta do Relator, pelo Despacho de 13.09.2025 de S. Exa. o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, foi determinado que o julgamento do presente recurso fosse efetuado por todos os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 148.º, n.os 1 e 2, do CPTA.
8-Foi cumprido o disposto no n.º 3 do art. 148.º do CPTA.
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II. QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR:
9-As questões suscitadas pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, traduzem-se em apreciar:
-Se o acórdão recorrido é nulo por excesso de pronúncia, por no recurso perante o TCA Sul não vir suscitada qualquer omissão processual relativamente às obrigações decorrentes do artigo 116.º, n.º 1, do CPTA;
-Se o acórdão é nulo por contradição entre os fundamentos e a decisão, já que confirmou a existência de contrainteressados, o que havia sido decidido pelo TAC de Lisboa, e depois anulou a mesma sentença;
-Se o acórdão recorrido incorreu em nulidade processual por não ter sido promovido o contraditório sobre aquela questão (de convide ao requerente da providência cautelar a suprir as deficiências do requerimento cautelar); e, quanto mérito,-Se o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento de direito por julgar que, mesmo depois de ultrapassada a fase liminar, seria de proferir despacho de aperfeiçoamento ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 114.º do CPTA.
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III. FUNDAMENTAÇÃO
III.i. DE FACTO 10-Remete-se para a factualidade descrita no acórdão recorrido, de onde se retiram as incidências processuais relevantes para a decisão a proferir (não foram autonomamente fixados factos).
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III.ii. DE DIREITO III.ii.i. DAS NULIDADES SUSCITADAS (EXCESSO DE PRONÚNCIA, CONTRADIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO E DECISÃO-SURPRESA) 11-Começa por alegar a RECORRENTE, para fundamentar a existência de nulidade por excesso de pronúncia, que “no recurso interposto para o Tribunal a quo a A... delimitou a nulidade indireta que invocou (artigo 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) à omissão de notificação para identificação dos contrainteressados, nos termos do artigo 114.º, n.º 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (cf. a conclusão 16 do seu recurso), afirmando que o Tribunal de primeira instância estava vinculado a, nesse momento do artigo 114.º, n.º 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (despacho de fls. 317), proceder a esse convite. // A A... não alegou ou concluiu que, após o momento do artigo 114.º, n.º 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e após a prolação do despacho liminar a que se refere o respetivo artigo 116.º, o Tribunal de primeira instância estivesse sujeito ao dever de notificála para suprir a falta de identificação de contrainteressados.”
12-O tribunal recorrido, proferiu acórdão de sustentação, no qual se escreveu:
“[...]
A segunda questão fulcral que se impôs a este Tribunal de apelação conhecer e decidir foi a de que, uma vez reconhecida a existência de contrainteressados no caso concreto, o que fazer nessa circunstância (?), isto é, “se se impunha ao Tribunal a quo a prolação de despachoconvite dirigido à ora Recorrente no sentido de aperfeiçoar o seu requerimento inicial, indicando os demais contrainteressados que da relação material controvertida emergissem”, conforme consta da parte III do acórdão ora recorrido. Ou, como se disse mais adiante no acórdão ora posto em crise, “Questão diversa passa agora por saber qual a solução perante tal cenário, se, como decidiu a sentença recorrida, a absolvição do ora Recorrido da instância por preterição de litisconsórcio necessário passivo, decorrente da falta de indicação de todos os contrainteressados, ou, como propugna a Recorrente, a prolação de um despachoconvite com vista a suprir tal falta, formalidade essa que a Recorrente assevera ter sido omitida pelo Tribunal a quo, geradora de nulidade processual, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 1.º do CPTA.”
E o conhecimento de tal questão não constitui de modo algum um excesso de pronúncia deste Tribunal de apelação, nem, muito menos, uma decisão surpresa, porquanto, a Recorrente primitiva, atentas as conclusões do recurso interposto contra a decisão da 1.ª instância, a tal temática o exigiu Secção de Contencioso Administrativo Subsecção Administrativa Comum directamente (à nossa pronúncia), conforme se pode constatar das seguintes conclusões recursivas (as da Recorrente primitiva):
14. a omissão do despacho de aperfeiçoamento gera uma nulidade processual, visto que se trata, dado o seu caráter de vinculatividade, da omissão de uma formalidade que a lei prescreve e cuja omissão pode influir no exame e na decisão da causa.
15-Ora, in casu é a obrigação do juiz convidar as partes a suprir as deficiências dos seus articulados é um poderdever, isto é, um poder vinculado que o juiz não pode deixar de cumprir sob pena de incorrer numa nulidade processual por a omissão por ele cometida ser suscetível de influir no exame e na decisão da causa.
16-No caso dos autos, é inequívoco que impendia sobre o Tribunal a quo o poderdever de convidar a Requerente a dar cumprimento ao disposto no n.º 5 do artigo 114.º do CPTA na fase prévia ao despacho liminar, mas não o tendo feito, o mesmo incorreu numa nulidade processual, devendo, por isso, ser anulada a sentença proferida nestes autos.
»Aliás, a Recorrente primitiva não termina a sua peça de recurso sem pedir ainda a
anulação do saneador-sentença, julgando como não existindo contrainteressados, directamente prejudicados pela adoção da providência aqui em causa, ou caso assim não se entenda, determinar à 1.ª Instância, que dirija convite à Recorrente para que supra o vício de que padece o seu articulado inicial.
»Portanto, o ora Recorrente, ao dizer agora que
a A... não alegou ou concluiu que, em qualquer circunstância, mesmo após o momento do artigo 114.º, n.º 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e a prolação do despacho liminar a que se refere o respetivo artigo 116.º, o Tribunal de primeira instância devesse notificála para suprir a falta de identificação de contrainteressados
», cria uma mera aparência de nulidade, pois, como vimos, a Recorrente primitiva não só suscitou a omissão do despacho de convite preconizado no n.º 5 do artigo 114.º do CPTA, como também demandou do Tribunal de apelação uma solução jurídica que lhe permitisse, mesmo que já ultrapassada a fase do despacho liminar, a anulação da decisão recorrida, com a necessária retroação dos actos processuais até ao ponto em que a 1.ª instância deverá proferir o acto omitido, isto é, no fim de contas, o despachoconvite para o suprimento da falta de indicação dos contrainteressados no requerimento inicial.
13-Como se observa, tal como devidamente explicitado pelo TCA Sul, é manifesto que a nulidade por excesso de pronúncia não se verifica e que nenhuma decisãosurpresa houve. Ou não foi objeto do recurso e eleita como questão a decidir saber se, atento o disposto no artigo 114.º, n.º 5, do CPTA, deveria ou não ter existido despachoconvite em 1.ª instância para a indicação dos contrainteressados não identificados? Dúvida não pode subsistir que a resposta a esta questão é positiva. E, no caso em apreço, portanto, o TCA Sul não se afastou das questões temáticas centrais atinentes ao thema decidendum colocado nas conclusões recursivas da Recorrente primitiva.
14-Quanto à arguida nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão, em síntese, a ora Recorrente aduz que “resulta dos fundamentos do Acórdão que o recurso apenas foi parcialmente procedente, e não integralmente procedente. O que, contudo, não é espelhado no segmento decisório. // De resto, a atender-se apenas ao segmento decisório e à afirmação de procedência (integral) de recurso, ficaria sem compreender-se por que razão haveria de anular-se a sentença proferida, já que a procedência do recurso implicaria a inexistência de contrainteressados-o que, manifestamente, não é o caso, conforme consta dos fundamentos do Acórdão proferido.
15-Salvo o devido respeito, não se alcança sequer fundamento para semelhante arguição. Nem de um ponto de vista formal, nem substancial.
16-Com efeito, como é sabido, a nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, segundo a qual a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão, sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença. Constituindo a sentença um silogismo lógicojurídico, de tal forma que a decisão seja a conclusão lógica dos factos apurados, aquela nulidade só se verifica quando das premissas de facto e de direito se extrair uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído.
17-Ora, não se dá a circunstância da fundamentação encadeada no acórdão recorrido apontar para uma determinada consequência ou direção jurídica e a sua decisão final enveredar por um sentido divergente ou oposto. Isso aconteceria, como bem notado pelo TCA Sul, por exemplo, “se o processo lógicojurídico da nossa argumentação de direito tivesse apontado para a inexistência de contrainteressados ou para a inadmissibilidade legal do aludido despacho/convite, uma vez ultrapassada no concreto processo a fase liminar do artigo 116.º do CPTA (confirmando, por exemplo, a tese da irremediável absolvição da instância por preterição do litisconsórcio necessário passivo), e, depois, em decisório final, tivéssemos, contraditória ou divergentemente, julgado o recurso procedente e mandado o processo baixar para a prolação do mencionado despachoconvite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial. Aqui sim, haveria uma clara contradição entre os fundamentos e a decisão, pois a lógica e a consequência jurídica desses dois níveis de análise (o binómio fundamentos/decisão) não se coadunariam entre si.”
18-O TCA Sul concluiu pela efetiva existência de contrainteressados não citados e, em consequência, tomando por aplicável esse normativo, determinou a baixa para cumprimento do disposto no art. 114.º, n.º 5, do CPTA. Se tal conclusão é ou não acertada é algo que já escapa ao âmbito da nulidade decisória, antes integrando o juízo de mérito da mesma.
19-Assim, não se verificam as suscitadas nulidades por omissão de pronúncia e/ou por contradição entre os fundamentos e a decisão, como não ocorre a nulidade processual arguida. Improcedem, portanto, estes fundamentos do recurso.
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III.ii.ii. DO MÉRITO (ART. 114.º, N.º 5, E 116.º DO CPTA) 20-Entrando agora na questão de fundo a resolver, importa, tal como identificado no acórdão que admitiu a revista e salientado no despacho que promoveu o julgamento do recurso nos termos do disposto no art. 148.º do CPTA, apreciar se ultrapassada a fase liminar, o juiz pode, ou não, convidar o requerente da providência a aperfeiçoar o requerimento inicial de modo a, nomeadamente, indicar contrainteressados. Em síntese, “identificar e fixar os termos em que (assim como o momento processual até ao qual) é de impor ao juiz de primeira instância que profira um despachoconvite de aperfeiçoamento segundo o disposto no n.º 5 do artigo 114.º do CPTA.”
21-Como já se disse, o TCA Sul entendeu que a omissão do despacho de aperfeiçoamento previsto no n.º 5 do artigo 114.º do CPTA, e que no caso se exigia, mesmo que já ultrapassada a fase do despacho liminar, tem como consequência a anulação da decisão recorrida, com a retroação dos atos processuais até ao ponto em que a 1.ª instância deverá proferir o ato omitido. Isto é, dito de outro modo, mesmo que tenha sido proferido despacho liminar que admita a providência e ordena a citação para ser deduzida oposição ao abrigo do art. 116.º, n.º 1, do CPTA, isso não preclude a obrigação de ser proferido, posteriormente, despachoconvite para o suprimento da falta de indicação dos contrainteressados no requerimento inicial.
22-A Recorrente alega que essa interpretação é contrária ao regime que decorre do art. 116.º do CPTA e que o Código não prevê o convite ao aperfeiçoamento após o despacho liminar. Sustenta que resulta da interpretação conjugada do disposto nos artigos 114.º, n.º 5, e 116.º, n.º 2, do CPTA que só há lugar ao convite a aperfeiçoamento quando as falhas do requerimento cautelar sejam manifestas, no quadro de um juízo de primeira aparência ou leitura.
Vejamos então.
23-Sobre a questão da admissibilidade de o juiz proferir despacho de aperfeiçoamento após o despacho liminar, este Supremo Tribunal Administrativo respondeu negativamente nos acórdãos de 5.12.2013, proc. n.º 1357/13, de 30.03.2023, proc. n.º 449/22.8BELRA e, mais recentemente, de 13.02.2025, proc. n.º 260/24.1BEFUN. Em sentido positivo, ainda que por reporte a processos de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, foram proferidos acórdãos em 17.10.2024, nos processos n.os 38/24.2 BALSB e 15/24.3BALSB. Ainda com relevância para a questão decidenda, importa recuperar os votos de vencido exarados nos acórdãos de 30.03.2023, no proc. n.º 449/22.8BELRA (neste voto defende-se que a correção do requerimento inicial é facultada ao A., por via da existência de uma nulidade processual derivada da omissão de um poderdever a que o juiz estava obrigado) e de 13.02.2025, no proc. n.º 260/24.1BEFUN (em que se destaca que, muitas das vezes, a falta de indicação dos contrainteressados não é detetável pelo juiz na fase liminar, só o sendo após a invocação dessa exceção pela entidade requerida na respetiva contestação e junção dos documentos pertinentes, maxime do processo administrativo).
24-Pois bem, a posição explanada nos acórdãos proferidos nos processos n.º 15/24.3BALSB e 38/24.2BALSB, ambos de 17.10.2024, é aquela que merece a nossa concordância.
25-Como nesses arestos desenvolvidamente explicitado, ainda que tendo por referência ao processo de intimação para proteção de direitos liberdades e garantias, o despacho liminar e a ordem de citação do Réu, tem a natureza de uma avaliação provisória, que não assume a característica de caso julgado formal. Neste capítulo, adotamos a fundamentação aí vertida, a qual, de resto, foi fixada por maioria e, no que aqui é essencial, também subscrita pelo aqui relator:
“[...] no despacho liminar o juiz pode rejeitar a petição ou pode admitir a petição, caso em que é ordenada a citação da outra parte para responder no prazo de sete dias, ou, se a situação se bastar com o decretamento de uma providência cautelar, notificar o autor e fixar o prazo para o mesmo, querendo, substituir a petição.
[...]
94-A Recorrente não se conforma com o acórdão assim proferido, entre o mais, por entender que ultrapassada a fase do despacho liminar e da verificação dos pressupostos processuais da intimação, a 1.ª Secção do STA já não podia, por um lado, determinar a notificação a que alude o artigo 110.º-A, n.º 1 do CPTA e, por outro, deixar de proferir uma decisão de mérito, e isso, porque, o despacho liminar produz caso julgado formal que impede o Tribunal de posteriormente conhecer de matéria que podia e devia ter conhecido em sede liminar.
95-A questão que se suscita é, portanto, recorde-se, a de saber se tendo sido proferido despacho liminar a ordenar a citação do réu para deduzir oposição nos termos do n.º 1 do artigo 110.º do CPTA, no qual, o Tribunal a quo não deu como verificada nenhuma exceção de impropriedade do meio processual, o que, a acontecer, determinaria então a rejeição da Intimação, pode o Tribunal posteriormente conhecer dessa exceção, como fez, e absolver o Réu da instância, ou se, conforme advoga a Recorrente se impunha que o Tribunal a quo tivesse conhecido do mérito da ação de Intimação. E, bem assim, se após ter aceitado liminarmente a Intimação, podia ordenar a notificação da autora para substituir a respetiva p.i por requerimento para a atribuição de uma providência cautelar.
96-A questão é pertinente e complexa e sobre a mesma, a jurisprudência que existe, é não só escassa como divergente.
97-Antes de mais, importa, contudo, começar por assinalar que a tese da autorade acordo com a qual o despacho liminar constitui caso julgado formal-, parece ou encontra mesmo, respaldo na doutrina perfilhada por Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto F. Cadilha, quando em comentário ao artigo 110.º-A do CPTA, tecem as seguintes considerações:
De facto, o despacho liminar corresponde à primeira intervenção do juiz no processo, logo após a distribuição, e tem designadamente em vista verificar se o processo pode prosseguir, e podendo, prosseguir, se deve seguir os termos da intimação ou de um processo cautelar. Esse despacho constitui, pois, caso julgado formal quando conclua que não há obstáculo a que o processo seja tramitado como intimação. E, nesse caso, já não será possível, na fase de decisão, rejeitar a petição ou promover a sua substituição por um pedido de adoção de providência cautelar, cabendo ao juiz unicamente proferir a decisão de mérito
»-cf. ob. cit. pág. 950.
98-Percorrendo a jurisprudência produzida pelos tribunais superiores desta jurisdição, através de consulta à base de dados da dgsi, detetamos que a questão já foi objeto de algumas decisões por parte dos Tribunais Administrativos Centrais, e que o próprio Supremo Tribunal Administrativo, ao que conseguimos apurar, já foi convocado a pronunciar-se sobre essa questão, em dois acórdãos.
99-Assim, no Acórdão da 1.ª Secção do STA, de 10/09/2020, proferido no processo de intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, sobre a dita questão de formaçãoou não-de caso julgado, que tramitou sob o n.º 01798/18.5BELSB, sumariou-se a seguinte jurisprudência:
I-O despacho liminar em que não se questiona a tramitação do processo como intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias e se ordena a citação da parte contrária constitui caso julgado formal e, assim sendo, já só restará ao juiz proferir decisão de mérito
».
100-Em sentido divergente, por referência a essa mesma concreta questão, a formação preliminar do STA, em Acórdão de 26/06/2018, proferido no âmbito do processo 0592/18, que não admitiu a revista interposta, pronunciou-se de forma lapidar, nos seguintes termos:
A ideia de que a admissão liminar da intimação envolveria o
supra
» referido caso julgado não tem o mínimo cabimento. Se assim fosse, os réus ficariam impossibilitados de arguir, em 1.ª instância e neste género de processos, a impropriedade do meio-o que seria absurdo. É claro que as regras acerca da correção da forma do processo escolhida estão no CPC, advindo dos seus arts. 193.º, 196.º e 198.º a admissibilidade de se conhecer, no momento em que o TAC o fez, da impropriedade do meio adjetivo utilizado. Assim, e perante a óbvia plausibilidade do que as instâncias decidiram neste campo, não se justifica admitir a revista para reanálise do problema”.101-Relativamente à jurisprudência produzida pelos Tribunais Centrais Administrativos, esta menos escassa, encontram-se decisões num e noutro sentido.
[...]
105-Uma primeira observação que nos apraz efetuar, perante o regime legal delineado no CPTA para a Intimação, é a de que, se perante a pretensão de tutela trazida a juízo, o julgador entendesse que ao caso era ajustada a adoção de uma providência cautelar, sem dúvida que o despacho liminar era o momento processual em que devia logo ter determinado a substituição da ação de intimação prevista no artigo 109.º do CPTA por processo cautelar. O despacho liminar previsto no n.º 1 do artigo 110.º do CPTA, é naturalmente o momento adequado para o juiz, através do conhecimento oficioso, fixar ao autor prazo para substituir a petição, convolando-a em requerimento de adoção de providência cautelar.
106-Mas o ponto não é esse, porque o que está em causa saber, é se não tendo o juiz usado dessa prerrogativa no despacho liminar, e note-se, nada tendo sequer decidido para além de ordenar a citação do Réu, a verificar-se, após o exercício do contraditório, que ocorre a exceção da impropriedade do meio processual utilizado, porque, veja-se, afinal é adequada ao caso trazido a juízo a adoção de uma providência cautelar ou a simples instauração de uma ação administrativa normal, o mesmo ainda pode determinar a notificação do autor para substituir a p.i. pela apresentação de requerimento para adoção da providência cautelar que se revelar adequada ou simplesmente absolver o réu da instância, se for o caso.
107-Antes de nos debruçarmos sobre o despacho liminar concretamente proferido nesta ação, dir-se-á, primacialmente, que ponderando nas várias teses em confronto sobre a formação de caso julgado, que seja ele o formal ou material, o mesmo pressupõe uma decisão expressa que verse sobre uma questão processual (caso julgado formal) ou sobre os direitos/interesses discutidos no processo (caso julgado material).
108-Neste sentido, aponta-se desde logo a noção de caso julgado contida no artigo 628.º do CPC, onde se estatui que a decisão se considera transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.
109-O caso julgado pressupõe, salvo melhor opinião, a prolação de uma decisão que recaia sobre uma concreta e especifica questão processual ou sobre o mérito da causa, obstando a que a mesma questão seja objeto de nova apreciação e decisão (efeito negativo do caso julgado) e impondo o decidido de forma imperativa e vinculativa (efeito positivo do caso julgado) apenas intraprocessualmente (no caso julgado formal) ou intra e extraprocessualmente no caso julgado material.
110-É certo que, a doutrina e jurisprudência atualmente maioritárias, admitem a figura do caso julgado implícito, tendo em consideração que
como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respetivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer-se que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha com esse valor, por si mesma e independente dos respetivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor do caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo:
o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão
»-cf. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, Lisboa 1997, pág. 578-579.
111-Contudo, conforme resulta do que se vem dizendo o caso julgado implícito pressupõe que seja proferida uma decisão expressa (no dispositivo final da sentença, acórdão ou despacho) atingindo aquele não apenas o dictat autoritário nele proferido pelo julgador como todos os pressupostos que serviram de fundamento a essa decisão (v.g. condenado o réu a pagar as rendas vencidas por decisão de mérito transitada em julgado, não pode aquele, posteriormente, em nova ação que lhe seja movida pelo senhorio ou que instaure contra aquele, vir alegar a invalidade do contrato de arrendamento, uma vez que a decisão de mérito antes proferida que o condenou a pagar as rendas em divida tem como antecedente ou pressuposto lógico necessário a validade do contrato de arrendamento).
112-Tendo em consideração o comando expresso constante do artigo 110.º-A, n.º 1 em conjugação com o n.º 1 do artigo 109.º, ambos do CPTA, que impõem ao juiz o poderdever de verificar se em sede de despacho liminar o processo deve prosseguir e, nesse caso, se deve seguir os termos da intimação ou de um processo cautelar, na ausência de qualquer decisão que fixe prazo para o autor substituir a petição, para o efeito de requerer a adoção de providência cautelar, não pode, pois, concluir-se de forma segura que o único sentido útil a extrair dessa ausência de convite apenas é o de ter sido entendimento do julgador que nada obsta ao prosseguimento do processo como intimação.
113-Com efeito, subjacente a essa omissão podem estar variadíssimas razões, que não necessariamente o entendimento do julgador de que nada obsta ao prosseguimento do processo, questão essa que o mesmo poderá nem sequer ter ponderado.
114-No caso vertente, não é despiciendo notar que o Tribunal a quo limitou-se a determinar a citação do réu, e que não conheceu oficiosamente da questão da impropriedade da intimação, ou seja, da questão de saber se ao caso bastava a instauração de uma ação administrativa, ou se ao caso bastava a adoção de uma providência cautelar, pelo que, não emitiu, sequer, uma qualquer decisão expressa em relação à qual se pudesse cogitar da possibilidade de sobre a mesma recair o efeito do caso julgado.
115-Note-se que a citação, na definição que consta do artigo 219.º, n.º 1 do CPC é somente
o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proferida contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender…
».
116-De qualquer forma, tal como o STA se pronunciou no acórdão suprarreferido que não admitiu uma revista, cuja jurisprudência subscrevemos, a prolação de despacho liminar não faz caso julgado formal. Aliás, a doutrina civilista é a esse respeito, muito enfática na rejeição da possibilidade de o despacho liminar constituir caso julgado formal.
117-Veja-se, nesse sentido, a lição que Alberto dos Reis, não a destempo para o caso, nos disponibiliza sobre o tema:
Se o juiz, em consequência de exame superficial e precipitado da petição, mandou citar o réu, devendo, ao contrário, proferir despacho de indeferimento, ou porque a petição é inepta, ou porque ocorre qualquer dos outros factos mencionados nos n.os 2 e 3 do art. 481.º, é claro que com tal decisão causa prejuízo ao réu; força-o a contestar e a exercer a restante atividade de defesa… Se o juiz, em consequência de exame superficial e precipitado da petição, mandou citar o réu, devendo, ao contrário, proferir despacho de indeferimento, ou porque a petição é inepta, ou porque ocorre qualquer dos outros factos mencionados nos n.os 2 e 3 do art. 481.º, é claro que com tal decisão causa prejuízo ao réu; força-o a contestar e a exercer a restante atividade de defesa… [...] Se o juiz, em vez de indeferir a petição, mandar fazer a distribuição ou citar o réu, não pode daqui concluir-se que tenha considerado apta a petição, competente o tribunal e idóneo o meio empregado, e que por isso o réu, querendo arguir qualquer desses vícios, deva agravar do respetivo despacho.
Não. O despacho cite-se o réu, embora não seja atacado por meio de recurso, não fica constituindo caso julgado que obste a que o juiz, no despacho saneador, declare inepta a petição, incompetente o tribunal ou nula a forma de processo. O que aquele despacho significa é que o juiz não notou na petição vício palpável e manifesto, ou que o vício não saltou aos olhos do juiz; pode, porém, o vício existir.
E então o juiz conhecerá dele no despacho saneador, ou por sua iniciativa, ou por requerimento das partes. [...] O magistrado pode ter de examinar as mesmas questões nos dois momentos; mas trata-se de exames de caráter diferente. O exame inicial é por sua natureza sumário e destinado a corrigir vícios grosseiros e evidentes E então o juiz conhecerá dele no despacho saneador, ou por sua iniciativa, ou por requerimento das partes. [...] O magistrado pode ter de examinar as mesmas questões nos dois momentos; mas trata-se de exames de caráter diferente. O exame inicial é por sua natureza sumário e destinado a corrigir vícios grosseiros e evidentes; o exame posterior é ponderado e refletido e destinado a desembaraçar o processo de todas as questões prejudiciais e, portanto, dos vícios que possam ter escapado à primeira inspeção E então o juiz conhecerá dele no despacho saneador, ou por sua iniciativa, ou por requerimento das partes. [...] O magistrado pode ter de examinar as mesmas questões nos dois momentos; mas trata-se de exames de caráter diferente. O exame inicial é por sua natureza sumário e destinado a corrigir vícios grosseiros e evidentes E então o juiz conhecerá dele no despacho saneador, ou por sua iniciativa, ou por requerimento das partes. [...] O magistrado pode ter de examinar as mesmas questões nos dois momentos; mas trata-se de exames de caráter diferente. O exame inicial é por sua natureza sumário e destinado a corrigir vícios grosseiros e evidentes; o exame posterior é ponderado e refletido e destinado a desembaraçar o processo de todas as questões prejudiciais e, portanto, dos vícios que possam ter escapado à primeira inspeção
»(negrito da nossa autoria)-cf. Professor Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, Vol. II, Artigos 409.º a 486.º, 3.ª EdiçãoReimpressão, Coimbra Editora pág. 397-398.
118-Esta perspetiva de Alberto dos Reis, já tinha assento no CPC desde longa data, sendo que até no CPC de 1939 (artigo 483.º)
se consagrava a não preclusão das questões que podiam ter sido fundamento de indeferimento liminar, mas não o foram
»-cf. Ac. da RL, de 18.06.2009, Proc. 23443/1996.dgsi.pt-. Neste acórdão lê-se ainda que:
iv-O despacho de citação nunca constitui caso julgado formal. V-Assim, antes da Reforma, como depois dela para as situações excecionais em que se admite despacho liminar, consoante os art.234.º-A e 234.º/4, o tribunal pode conhecer das questões que conduzem ao indeferimento liminar, mesmo depois de ordenada a citação do réu
».
119-Esta solução foi sendo mantida no CPC, e presentemente está consagrada no n.º 5 do artigo 226.º do CPC no qual se estabelece que
Não cabe recurso do despacho que mande citar os réus ou requeridos, não se considerando precludidas as questões que podiam ter sido motivo de indeferimento liminar
».
120-Em comentário a esta norma, veja-se ainda, na doutrina, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, que escrevem o seguinte:
O n.º 5 recebeu, em 1995-1996, duas normas que constavam do art. 479 anterior à revisão.
A primeira é a da irrecorribilidade do despacho de citação, introduzida pelo diploma intercalar de 1985.
Antes dele, a lei era expressa em admitir o recurso (de agravo) do despacho de citação (art.479-1 da versão de 1961 e, anteriormente, art. 483, § único, do CPC de 1939), a fim de tornar nítido o afastamento da sua caracterização como despacho de mero expediente (ALBERTO DOS REIS, CPC anotado cit. V, p.251;
CASTRO MENDES, Direito processual civil cit., III, p.45;
RIBEIRO MENDES, Recursos cit., p.156). Este recurso manteve-se, entre 1985 e a revisão de 1995-1996, apenas na ação executiva (dizia-o o então art.813).
A segunda norma, já existente no CPC de 1939 (art.483, § único) e mantida inalterada, não obstante o aperfeiçoamento da sua redação, é a da não preclusão das questões que podiam ter sido fundamento de indeferimento liminar, mas não o foram. Quer o juiz a elas se refira no despacho liminar (resolvendo-as no sentido de o fundamento não se verificar) quer não, o despacho de citação nunca constitui caso julgado formal. Compreende-se porquê:
não tendo sido o réu ainda citado, qualquer decisão, por muito fundamentada que seja, tem lugar sem precedência de contraditório. Não há, portanto, lugar a distinguir, como no caso do despacho saneador, a decisão baseada numa apreciação concreta e a que contém mera apreciação abstrata da existência de exceções dilatórias e nulidades processuais (art.595-3)
»-Cfr. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ANOTADO, VOLUME 1.º, ARTIGOS 1.º A 361.º, 4.ª EDIÇÃO, ALMEDINA, pág.452.
121-Estas considerações da doutrina civilista são perfeitamente transponíveis para o âmbito do contencioso administrativo no que tange ao despacho liminar, uma vez que, em relação ao mesmo, o legislador do CPTA não estabeleceu nenhuma preclusão como a que previu no artigo 88.º, n.º 2 do CPTA em relação ao despacho saneador, onde expressamente teve a preocupação de estabelecer que “As questões prévias referidas na alínea a) do número anterior que não tenham sido apreciadas no despacho saneador não podem ser suscitadas nem decididas em momento posterior do processo e as que sejam decididas no despacho saneador não podem vir a ser reapreciadas
»