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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 5/2025, de 12 de Maio

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Sumário

«O prazo de prescrição do procedimento pelo crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. no artigo 104.º, n.º 2, al. a), do RGIT, com utilização de facturas fraudulentas (as designadas “facturas falsas”) inicia-se no momento da entrega da correspondente declaração à administração fiscal.».

Texto do documento


Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2025

Processo: 92/07.1 TELSB-M.S.1

Recurso de Fixação de Jurisprudência

Acordam no Pleno das Seções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I - RELATÓRIO

Do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência

1 - O arguido AA, em 27 de março de 2023, interpôs o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 06 de dezembro de 2022, no processo 92/07.1TELSB.L1, transitado em julgado em 23 de fevereiro de 2023, alegando que o mesmo se encontra em oposição com o acórdão da mesma Relação proferido em 8 de março de 2017, no processo 1596/03.0JFLSB.L1 (acórdão-fundamento), transitado em julgado a 23 de março de 2017, e cuja publicação se encontra em www.dgsi.pt.

Alegou, em síntese, que o acórdão-fundamento e o acórdão recorrido, ambos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, assentam em soluções opostas, de modo expresso e a partir de situações de facto idênticas.

Identifica-se como thema decidendum, a questão de saber, no crime de fraude fiscal, por emissão de faturas falsas, qual o momento temporal em que se inicia a contagem do prazo prescricional.

2 - Recebido o processo no Supremo Tribunal de Justiça, a conferência da 5.ª secção, por acórdão proferido em 26 de setembro de 2024, julgou verificada a oposição de julgados e determinou o seu prosseguimento.

3 - Foram notificados os interessados, nos termos do disposto no artigo 442.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo o Ministério Público apresentado as seguintes conclusões:

«1) - A “fraude-fiscal” constitui-se, no ponto-de-vista da lesividade do bem-jurídico-penal, num crime de perigo abstracto-concreto - crime-aptidão, no sentido de que só devem relevar tipicamente as condutas apropriadas ou aptas a desencadear o perigo proibido no caso de espécie;

2) - A verdade e a lealdade e o património tributários constituem-se no bem-jurídico complexivo protegido no crime “fraude-fiscal”, revelando-se o último como o objecto de um resultado danoso que, não sendo pressuposto típico, há-de iluminar a intenção do agente;

3) - A matriz da estrutura tipológica do ilícito em causa surpreende-se na acção de utilizar as “facturas falsas” numa relação jurídico-tributária, visando a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens, assim alterando factos ou valores que devem constar nas declarações respectivas.

4) - A consumação do facto-crime pressupõe, sob o prisma formal, que seja completado o iter criminis, pelo preenchimento dos elementos objectivos do tipo-de ilícito respectivo (com culpa), e, do ponto-de-vista material, que ocorra efectiva violação do bem-jurídico-penal, como objecto da acção protegido

5) - A emissão das “facturas falsas” é um acto prévio à sua utilização, este, sim, elemento do tipo-de-ilícito.»

4 - Por sua vez, o arguido pronunciou-se, tendo apresentado as seguintes conclusões:

«1 - A emissão de faturas, pelo menos desde 26 de Dezembro de 1984 (data da introdução do Código do IVA), reveste um acto formal regulado (entre outras), pelas disposições constantes da alínea b) do n.º 1 do artigo 29.º , do artigo 36.º n.º 1 a), b) e c), n.º.s 2, 4, 5, do Código do IVA, e ainda artºs 2.º e 3.º do Decreto-Lei 28/2019 de 15 de fevereiro.

2 - Pelo que, o emitente de uma fatura, tem plena consciência do acto que comete, pois que é obrigado ao preenchimento dos diversos requisitos formais supra descritos, sem os quais a fatura não pode ser introduzida no comércio jurídico ou no sistema fiscal. Mesmo que seja emitida falsamente.

3 - O crime de fraude fiscal com recurso a facturas falsas ou fictícias consuma-se na data da emissão dessas facturas, independentemente de ter havido ou não declaração do contribuinte (declaração periódica do IVA ou a entrega anual da declaração do IRC, sendo para efeitos de consumação irrelevantes tais declarações).

4 - A fraude fiscal materializa-se numa defraudação que visa a obtenção de um benefício fiscal ou de causar um prejuízo ao fisco.

5 - A obtenção de vantagem patrimonial não é elemento do tipo, bastando apenas que as condutas do agente sejam preordenadas à obtenção de tal vantagem, não sendo de exigir para a consumação do crime que o agente represente com exactidão o montante da vantagem ou benefício patrimonial indevido, bastando a representação da consequência da diminuição da receita fiscal.

6 - O crime em questão reveste a forma de um crime de execução vinculada que só pode ser cometido através de uma das formas típicas descritas nas alíneas a), b) e c) do artigo 103.º do RGIT.

7 - O tipo objectivo apenas se preenche com a adopção de condutas que visem a obtenção de uma situação tributária mais favorável, como sejam o não pagamento de um imposto, a sua redução ou a obtenção de benefícios fiscais, de reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.

8 - Por seu turno, o artigo 104.º do RGIT acolhe a forma qualificada do crime de fraude fiscal, prevendo o n.º 2 “a fraude que tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes”.

9 - A jurisprudência tem entendido que o crime de fraude fiscal cometido através de faturas falsas é um crime de perigo na modalidade de crime de aptidão.

10 - Para o cometimento do crime não é exigível a obtenção de vantagem patrimonial em prejuízo do fisco, mas apenas a conduta tipificada que vise essa vantagem ou prejuízo.

11 - O crime consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente.

12 - Consumando-se o crime de fraude fiscal com a emissão da factura, é a sua data de emissão relevante para o início do prazo de prescrição do procedimento criminal.»

5 - Colhidos os vistos e reunido o Pleno das secções criminais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Por acórdão proferido a 26 de Setembro de 2024, pela 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, concluiu-se existir oposição de julgados pelo que, em consequência, os autos prosseguiram os seus termos.

Todavia, uma vez que a referida decisão não vincula o pleno das secções criminais, que pode decidir em sentido contrário ao da conferência da secção (artigo 692.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal), importa proceder ao reexame sumário dos pressupostos do presente recurso.

O artigo 437.º do Código de Processo Penal preceitua que:

“1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 - O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público”.

Paralelamente, dispõe o artigo 438.º do Código de Processo Penal que:

“1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.”

Nesta medida, em decorrência do disposto nos citados normativos legais, verifica-se que a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende da verificação dos seguintes requisitos formais:

i) Os acórdãos em conflito serem de tribunais superiores, ambos do Supremo Tribunal de Justiça, ambos de Tribunal da Relação, ou um [o recorrido] da Relação, mas de que não seja admissível recurso ordinário, e o outro [o fundamento] do Supremo - artigo 437.º, n.os 1 e 2;

ii) O trânsito em julgado dos dois acórdãos - artigos 437.º, n.º 4 e 438.º, n.º 1;

iii) A interposição do recurso no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (acórdão recorrido) - artigo 438.º, n.º 1;

iv) A identificação do aresto com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão-fundamento), com menção, caso se encontre publicado, do lugar da publicação - artigo 438.º, n.º 2;

v) A indicação de apenas um acórdão-fundamento - artigos 437.º, n.os 1, 2 e 3 e 438.º, n.º 2;

vi) A legitimidade do recorrente - artigo 437.º n.º 5;

vii) A justificação/fundamentação da oposição - artigo 438.º n.º 2, última parte.

No que respeita aos pressupostos de ordem substancial, tal corresponde à oposição de julgados propriamente dita entre os acórdãos em presença, nos termos previstos no artigo 437.º, n.os 1 e 3 do Código de Processo Penal. Deste modo, verifica-se a oposição quando se esteja perante dois acórdãos que incidem sobre a mesma questão de direito, proferidos no domínio da mesma legislação e adotem soluções opostas.

Ademais, a questão em causa terá de ter sido decidida de modo expresso em ambos os acórdãos e tomada a título principal, pelo que a mera oposição de posições implícitas ou diferente fundamentação não é de molde a sustentar tal oposição.

Acresce que as situações de facto terão de ser substancialmente idênticas, pois só assim se poderá aferir se para a mesma questão jurídica foram adotadas soluções opostas.

Finalmente, impõe-se ainda que a questão sob apreciação não tenha sido objeto de anterior fixação de jurisprudência. No que respeita aos pressupostos necessários para se julgar verificada a oposição de julgados, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de janeiro de 2022, processo 225/18.2PASXL-A.S1, e de 28 de abril de 2022, processo 123/16.4SWLSB-F.L1-A.S1, disponíveis para consulta, em www.dgsi.pt.

Pelo acórdão proferido pela 5.ª Secção Criminal, a 24 de Setembro de 2024, julgou-se estarem preenchidos todos os referidos pressupostos formais e substanciais e, em consequência, estar verificada a oposição de julgados ali se dizendo que “[...] os dois arestos enfrentaram a mesma questão jurídica: a de saber em que momento esse crime se consuma - temática que é relevante para se determinar o «dies a quo» do respectivo prazo prescricional. Efectivamente, é nítido que os arestos em confronto resolveram a sobredita questão jurídica fundamental mediante a enunciação de proposições jurídicas mutuamente contrárias e facilmente deles extraíveis.

Os julgados em confronto responderam diferentemente àquela questão de direito: o acórdão recorrido afirmou que a consumação do crime se dá com a entrega da declaração fiscal à AT, enquanto o acórdão fundamento disse que o crime se consuma com a emissão da factura falsa, independentemente de se lhe seguir, ou não, um procedimento declarativo à AT.”

2 - Está em causa, a seguinte factualidade considerada nos acórdãos recorrido e fundamento:

a) No Acórdão Recorrido, o recurso tinha como objeto, nomeadamente, para o que aqui releva, a invocada prescrição do procedimento criminal, relativamente ao crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelo artigo 104.º, n.º 2, al. a), do RGIT, praticado através da emissão de facturas falsas;

b) O acórdão recorrido entendeu, assim, que o referido ilícito se consumou com a entrega da declaração fiscal à Autoridade Tributária, sendo essa a data relevante para efeitos de início de contabilização do prazo prescricional.

c) Por sua vez, no Acórdão-Fundamento [proferido em 08-03-2017], estava, igualmente, em causa a prática de um crime de fraude fiscal qualificada, praticado mediante a emissão de facturas falsas, p. e p. pelo artigo 104.º, n.º 2, al. a), do RGIT;

d) Nesse aresto, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que a consumação do crime de fraude fiscal, enquanto momento relevante para a fixação do início do decurso do prazo de prescrição do procedimento, ocorre na ocasião da emissão da factura falsa, independentemente de ter havido ou não declaração do contribuinte.

3 - Verifica-se, assim, do ponto de vista formal, que nada obsta à admissão do recurso, pois que o arguido tem legitimidade para interpor o presente recurso de fixação, os acórdãos em causa são ambos do Tribunal da Relação e encontram-se transitados em julgado, tendo o recurso sido interposto a 27 de março de 2023, dentro do prazo de 30 dias prescrito no artigo 438.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Acresce que o recorrente identificou apenas um acórdão-fundamento, tendo justificado de modo completo e adequado a oposição de julgados, mencionando o lugar da publicação e a data do trânsito em julgado (23 de março de 2017). De igual modo, e na esteira do teor do acórdão proferido nestes autos a 24 de Setembro de 2024, o mesmo sucede relativamente aos requisitos substanciais.

Com efeito, está-se perante a mesma questão de direito, que respeita, no essencial, à circunstância de saber em que momento o crime de fraude fiscal qualificada, praticado mediante a emissão de facturas falsas, p. e p. pelo artigo 104.º, n.º 2, al. a), do RGIT, se consuma, o que é relevante para se determinar o «dies a quo» do respectivo prazo prescricional.

Os acórdãos em confronto foram proferidos no domínio da mesma legislação (particularmente os artigos 103.º e 104.º, n.º 2, alínea a), ambos do RGIT, e 119.º do Código Penal), sendo que as normas referidas e citadas no seu percurso argumentativo assumiam, essencialmente, a mesma redação.

No que respeita à identidade fáctica, conclui-se que, à semelhança do juízo que foi efetuado no acórdão que verificou a oposição de julgados, o núcleo factual relevante para a decisão adotada é coincidente.

Do mesmo modo, as respostas foram, em ambos os arestos, expressas e tomadas a título principal, não tendo a questão em análise sido objeto de anterior fixação de jurisprudência.

Nesta medida, mantém-se o entendimento que se encontram integralmente preenchidos os pressupostos formais e substanciais previstos nos artigos 437.º, n.os 1, 2 e 3 e 438.º, n.os 1 e 2, ambos do Código de Processo Penal, considerando-se, em consequência, verificada a necessária oposição de julgados, porquanto os acórdãos assentam em soluções opostas, a partir de idêntica situação de facto, sendo expressa a oposição das respetivas decisões.

III - APRECIAÇÃO

1 - No acórdão recorrido apreciou-se, assim, a eventual prescrição do procedimento criminal, relativamente ao crime de fraude fiscal qualificada, pela qual os arguidos haviam sido condenados em 1.ª instância.

Entendeu, assim, o Tribunal da Relação que:

“O crime imputado aos arguidos/recorrentes é um crime de fraude fiscal qualificada do artigo 104.º, n.os 1 e 2 do RGIT (Lei 15/2001, de 5 de Junho), o qual é punível, em todas as leis aplicáveis desde a data da sua prática, com pena de prisão de 1 a 5 anos.

Uma vez que, quanto à prescrição, se aplicam as regras do Código Penal artigo 21.º do RGIT -, o prazo de prescrição do procedimento criminal por este tipo de crime é de 10 anos, independentemente de se tratar de pessoa singular ou de pessoa colectiva, não obstante a esta última apenas poder ser aplicada pena de multa, face ao disposto no artigo 118.º, n.º 1, alínea b) e n.º 3 do Código Penal (neste sentido cf. Nota 12 ao artigo 118.º do Código Penal, in Comentário do Código Penal, de Paulo Pinto de Albuquerque, p. 329). Tal prazo é contado desde a data da consumação do crime.

O tribunal de 1.ª instância considerou, e bem, a nosso ver, que a consumação ocorria na data em que a última (uma vez que consideraram tratar-se de um único crime) declaração tinha ou devia ter sido entregue. Damos aqui por reproduzidos os argumentos já defendidos pela 1.ª instância das diversas vezes que teve de apreciar a questão da prescrição sobre a data da consumação do crime, os quais subscrevemos.

[...]

Uma vez que até à constituição de cada um dos arguidos não decorreu mais de 10 anos e que, depois disso, esse prazo não decorreu antes de existir a prática de um outro acto com efeito suspensivo ou interruptivo da prescrição, o prazo a considerar é o de 18 anos (10+5+3), por força do artigo 121.º, n.º 3 do Código Penal, como, aliás, considerou o tribunal recorrido.

Ora, contando esse prazo, tendo em conta as datas referidas no acórdão (na parte supra transcrita) e a não pronúncia quanto aos recorrentes Companhia... e AA, relativamente às declarações de IRC respeitantes aos anos de 2010, 2012 e 2013, o procedimento criminal pelo crime de fraude fiscal qualificada só se encontra extinto quanto aos arguidos BB e respectiva sociedade (W..., S. A.), se bem que ainda não o estivesse quanto a estes quando, em 5 de Fevereiro de 2021, foi proferido o acórdão recorrido.

Termos em que, sem necessidade de outras considerações e remetendo para os fundamentos aduzidos pelo tribunal recorrido, improcede este segmento do recurso relativamente a todos os recorrentes, quanto ao crime de fraude fiscal qualificada pelo qual foram pronunciados e condenados, com excepção do recorrente BB, cujo conhecimento do recurso fica, no mais, prejudicado.”.

Por sua vez, o acórdão-fundamento considerou que:

“A fraude fiscal materializa-se numa defraudação que visa a obtenção de um benefício fiscal ou de causar um prejuízo ao fisco.

Trata-se de um crime de execução vinculada que só pode ser cometido através de uma das formas típicas descritas nas alíneas a), b) e c) do artigo 103.º do RGIT, ou seja, o tipo objectivo apenas se preenche com a adopção de condutas que visem a obtenção de uma situação tributária mais favorável, como sejam o não pagamento de um imposto, a sua redução ou a obtenção de benefícios fiscais, de reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.

Assim, para a punição do agente basta comprovar que este quis as respectivas acção ou omissão e que elas eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e à consequente diminuição da receita tributária.

O artigo 104.º do RGIT acolhe a forma qualificada do crime de fraude fiscal, prevendo o n.º 2 “a fraude que tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes”, sendo esta a forma de fraude fiscal imputada aos arguidos em co-autoria no caso dos presentes autos. Quanto à natureza do crime de fraude fiscal, o STJ tem entendido tratar-se de um crime de perigo na modalidade de crime de aptidão. Isto porque não se exige a obtenção da vantagem patrimonial em prejuízo do fisco, mas apenas a conduta tipificada-que vise essa vantagem ou prejuízo.

Assim, o crime consuma-se ainda que nenhum dano ou vantagem patrimonial indevida venha a ocorrer efectivamente. É o que resulta da expressão «susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias” (corpo do n.º 1 do artigo 103.º do RGIT).

[...]

“Na verdade, a obtenção de vantagem patrimonial não é um elemento do tipo, bastando apenas que as condutas do agente sejam preordenadas à obtenção de tal vantagem, não sendo de exigir para a consumação do crime que o agente represente com exactidão o montante da vantagem ou benefício patrimonial indevido, bastando a representação da consequência da diminuição da receita fiscal.

Deste modo, o ilícito consuma-se quando o agente, com a intenção de lesar o Fisco, atenta contra a verdade e transparência exigidas na relação Fisco-contribuinte, através de qualquer das modalidades de falsificação, previstas no art° 103.º, n.º 1 do RGT.

Assim, o momento a partir do qual começa a contar o prazo de prescrição é o momento da acção delituosa, com vista ao não pagamento da prestação tributária ou seja, a consumação ocorreu na data da prática da última conduta (emissão da última factura) - 30-09-2006.”

2 - Os acórdãos em confronto procederam ao tratamento distinto da mesma questão jurídica, ou seja, decidir se o crime de fraude fiscal qualificado, cometido mediante a emissão de facturas fraudulentas, se consuma no momento em que a factura é emitida ou, posteriormente, aquando da apresentação da declaração à Autoridade Tributária.

3 - O Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) foi aprovado pelo artigo 1.º da Lei 15/2001, de 5 de Junho, tendo reformulado os tipos de crime fiscal anteriormente constantes no Regime Geral das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), que havia sido aprovado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 20-A/90, de 1 de Janeiro.

No âmbito do RJIFNA encontravam-se previstos o crime de fraude fiscal (artigo 23.º), o crime de abuso de confiança fiscal (artigo 24.º), o crime de frustração de créditos fiscais (artigo 25.º) e o crime de violação do segredo fiscal (artigo 27.º). Diferentemente, no RJIT, distinguiram-se os crimes tributários comuns e os fiscais, onde se incluem a fraude, a fraude qualificada e o abuso de confiança (artigos 103.º a 105.º).

Nesta medida, o anterior crime de fraude fiscal subdivide-se em fraude fiscal simples, prevista no artigo 103.º, e fraude fiscal qualificada, regulada no artigo 104.º, tendo o legislador do RGIT desenhado a estrutura típica do crime de fraude fiscal em total sobreposição com a figura homónima do RJIFNA - vd. ANDRADE, Manuel da Costa, em «A Fraude Fiscal - Dez anos depois, ainda um crime de “resultado cortado”?», in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 135.º, Julho-Agosto de 2006, n.º 3939, pág. 329.

No que respeita ao crime de fraude fiscal, dispõe o artigo 103.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) que:

“1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:

a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;

b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;

c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.

2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 15000.

3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.”

4 - Ora, toda e qualquer punição criminal tem subjacente a protecção de um determinado bem jurídico, legitimadora da intervenção penal.

Sucede que, na doutrina, têm vindo a surgir entendimentos diferenciados no que respeita ao bem jurídico protegido pelo crime de fraude fiscal. De facto, no domínio do direito penal secundário - onde se inclui, precisamente, o direito penal fiscal -, torna-se, frequentemente, complexa a identificação do objecto de tutela da norma - vd. neste sentido, SOUSA, Susana Aires de, “Os Crimes Fiscais, Análise Dogmática e Reflexão sobre a Legitimidade do Discurso Criminalizador”, Coimbra Editora, 2006, pág. 68 - ao contrário do que sucede com o direito penal de ‘justiça ou clássico’..

Assim, «no direito penal de justiça é possível referenciar claramente o bem jurídico pondo entre parênteses o desenho normativo da incriminação - v. g., a vida em relação ao homicídio e, portanto, como realidade ontológica e normativamente preexistente à descrição legal da conduta proibida. Já no direito penal secundário muitas vezes só a partir da consideração do comportamento proibido é possível identificar e recortar em definitivo o bem jurídico. Aqui, e pelo menos do ponto de vista heurístico-hermenêutico, isto é, na perspectiva do intérprete e aplicador do direito, a determinação do bem jurídico é normalmente um posterius em relação à conformação legal-positiva da incriminação” - vd. DIAS, Figueiredo, e ANDRADE, Manuel da Costa, “O Crime de Fraude Fiscal no Novo Direito Penal Tributário Português (Considerações sobre a Factualidade Típica e o Concurso de Infracções)”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6, Fasc. 1.º, Janeiro-Março 1996, Coimbra Editora, pág. 81.

Deste modo, na configuração da fraude fiscal, a doutrina tem adoptado - vd. neste sentido, nomeadamente, TEIXEIRA, Carlos e GASPAR, Sofia, Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume II, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 453, bem como SOUSA, Susana Aires de, op. cit., págs. 68 e 69 -, no essencial, três construções fundamentais distintas:

A. O bem jurídico tutelado assume uma dimensão eminentemente patrimonial, traduzida na obtenção integral e tempestiva das receitas fiscais provenientes de cada imposto.

Neste modelo, o ilícito surge estruturado como sendo um crime de dano, cuja consumação exige a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial ao Estado, que consiste no não pagamento ou no pagamento indevido do imposto em causa, bem como na forma de um reembolso sem suporte legal ou atribuição de um benefício fiscal indevido.

A referida construção coloca o acento tónico no desvalor do resultado.

B. Diferentemente, uma segunda corrente constrói a incriminação fiscal atendendo em exclusivo à tutela dos deveres de colaboração existentes entre a Autoridade Tributária e os contribuintes, pelo que, em consequência, a ilicitude da conduta se centra já não no prejuízo patrimonial ocorrido mas na inobservância de deveres de informação, transparência e verdade fiscal, como refere SOUSA, Susana Aires de, op. cit., pág. 69 «a índole do bem jurídico a proteger aproxima-se dos bens jurídicos próprios dos crimes de falsificação, a saber, a segurança e a fiabilidade do tráfico jurídico com documentos, na área específica da prática fiscal».

Como tal, de acordo com esta abordagem, acentua-se o desvalor da acção, em detrimento do desvalor do resultado, pelo que os crimes fiscais se configuram, predominantemente, como sendo crimes formais ou de desobediência. Assim, os tipos penais, nesta concepção, apresentam-se estruturados como crimes de perigo para o bem jurídico, havendo consumação do crime mesmo que não se efective a lesão do mesmo.

Nesta senda, segundo Figueiredo Dias, em DIAS, Figueiredo, e ANDRADE, Manuel da Costa, op. cit., pág. 92, “Tudo se conjuga, assim, em abono da tese segundo a qual, são a segurança e fiabilidade do tráfico jurídico com documentos no domínio específico da prática fiscal e não o património fiscal como tal que configura o bem jurídico directa e primacialmente protegido pela incriminação da Fraude fiscal. Que emerge assim, tipicamente como um crime de falsidade. Em termos perfeitamente idênticos e sobreponíveis ao que sucede, no contexto do tráfico jurídico geral, com o crime de Falsificação de documentos da lei penal geral (artigo 256.º do Código Penal). Um entendimento que vê a sua plausibilidade e acerto particularmente reforçados pelo disposto no artigo 26.º do RJIFNA. O qual privilegia, como condição da concessão do benefício do arquivamento do processo e da isenção de pena, a reposição pelo agente da verdade sobre a sua situação fiscal: uma forma de adscrever à reposição da verdade a eficácia neutralizadora da danosidade social da conduta típica. E, por vias disso, uma forma indirecta mas nem por isso menos impressiva e convincente de apontar a verdade e a transparência como o bem jurídico-penal em primeira linha protegido pelo crime de Fraude fiscal”.

C. Finalmente, para alguns autores, coexiste uma terceira via autónoma, intermédia, com uma matriz compromissória, pretendendo combinar componentes de ambas as construções anteriores, reconhecendo, no parâmetro penal fiscal, uma tutela de interesses patrimoniais do Estado, quer os valores de transparência e verdade fiscais.

Neste sentido defende Germano Marques da Silva, em “Direito Penal Tributário”, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2009, Pág. 230, que “O objecto do crime de fraude fiscal é complexo. Por uma parte o património do Estado, enquanto componente do bem jurídico tutelado, mas também o dever de colaboração leal dos cidadãos na determinação dos factos tributários e, por isso, o objecto do crime é por uma parte o património tributário do Estado, enquanto bem jurídico tutelado, e por outro os deveres de informação e de verdade dos cidadãos perante o sistema fiscal, que constituem o objecto da acção.

A ratio do crime de fraude fiscal é o dano no património fiscal do Estado que se consubstancia na violação dos deveres de colaboração dos sujeitos passivos fiscais.”.

Por sua vez, Carlos Teixeira e Sofia Gaspar, em op. cit., pág. 454, afirmam que “[...] no actual crime de fraude fiscal, previsto no art. 104.º, ressalta bem vincada uma concepção patrimonialista do bem jurídico, dirigida à arrecadação de receitas fiscais. Pode mesmo afirmar-se que a verdade e transparência fiscais, sendo valores também tutelados pelo tipo penal da fraude, constituem o chamado “bem jurídico-meio”, residindo no património activo ou receitas do Estado o “bem jurídico-fim” da tutela penal que a norma estabelece”.

5 - Nesta medida, considera-se que, em primeira linha, o legislador português pretendeu proteger as receitas fiscais que integram o activo do património fiscal do Estado, tendo adoptado uma concepção com uma forte dimensão patrimonialista do bem jurídico tutelado, uma vez que o agente que não paga os seus impostos necessariamente reduz esse património, porquanto “Tal como a conduta lesiva do património de um multimilionário não deixa de poder constituir um crime de furto, ou um crime de burla, ou um crime de abuso de confiança, também o não pagamento fraudulento ou a redução indevida de impostos não deixa de constituir um acto lesivo do património fiscal. Com a ressalva que, tal como na tutela do património privado, faz sentido não punir, por razões de dignidade penal, condutas que tenham um valor bagatelar quando comparadas com a totalidade das receitas fiscais”, cf. SOUSA, Susana Aires de, op. cit., pág. 301.

Assim, e não obstante se considere, face à literalidade da Lei, que o bem jurídico protegido é o património - nas palavras de Costa Andrade, “A Fraude Fiscal - Dez anos depois, ainda um crime de ‘resultado cortado’?”, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 135.º, julho-agosto 2006, n.º 3939, pág. 338, “ [...] não pode questionar-se a legitimidade de ensaiar a categorização da Fraude fiscal do ponto de vista da ofensividade na direcção do património fiscal, ele próprio erigido ao estatuto de bem jurídico típico. É, de resto, assim que a generalidade dos autores procedem” -; a verdade é que, embora indirectamente, se visa, com a presente incriminação, proteger também os valores da verdade e transparências fiscais - neste sentido, v. TEIXEIRA, Carlos e GASPAR, Sofia, op. cit., pág. 462, onde consta que “[...] em face do teor literal do tipo legal, que centra a especial ilicitude no desvalor resultante da manipulação de documentos ou da agregação de agentes (comparticipação) na realização da conduta, evola-se um quadro de ingredientes de uma concepção intermédia ou mista de tutela penal de interesses patrimoniais do Estado e de valores de transparência e verdade fiscais”.

Não se ignora, contudo, o entendimento sufragado no Acórdão de Fixação de Jurisprudência 3/2003, no âmbito do qual se afirmou que “A factualidade típica da fraude fiscal é apenas o atentado à verdade ou transparência corporizado nas diferentes modalidades da falsificação previstas no n.º 1do artigo 23.o do diploma em causa, crime que se consuma mesmo que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar, sendo a segurança e a fiabilidade do tráfico jurídico com documentos no domínio específico da prática fiscal - e não património fiscal como tal - que configura o bem jurídico directa e primacialmente protegido pela incriminação da fraude fiscal, que aparece relativamente à falsificação de documentos como um caso de especialidade, pois que a sua incriminação só se propõe fazer face aos atentados à verdade, segurança e fiabilidade no âmbito circunscrito da relação jurídico-tributária, enquanto a infracção do Código Penal visa prevenir atentados à segurança e fiabilidade do tráfico jurídico em geral.”.

Todavia, é de salientar o entendimento constante do voto de vencido, elaborado pelo Conselheiro Simas Santos, onde se considera que “A consideração de que a fraude fiscal se consuma mesmo que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar, não permite afirmar que o património não seja também protegido pelo tipo. Significa somente que é antecipada essa protecção, o que não afasta a protecção de outros bens jurídicos.

Com efeito, como refere Jescheck (Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4.a ed., p. 6), «o direito penal tem por missão proteger bens jurídicos. Em todas a normas jurídico-penais subjazem juízos de valor positivo sobre bens vitais, que são indispensáveis para a convivência humana na comunidade e que consequentemente devem ser protegidos, pelo poder coactivo do Estado através da pena pública [...] Todos os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou vários bens jurídicos. O desvalor do resultado radica na lesão ou o colocar em perigo de um objecto da acção (ou do ataque) (v. g., a vida de uma pessoa ou a segurança de quem participa no tráfico), que o preceito penal deseja assegurar do titular do bem jurídico protegido». O que significa que poderá um só tipo legal proteger mais de um bem jurídico, questão a dilucidar, perante cada tipo e cada acção dele violadora.

Basta atentar, na relevância dada, no desenho do tipo de fraude fiscal e sua regulamentação, ao prejuízo patrimonial e sua reparação, para concluir pela protecção que quis dar-se ao património do Estado com o crime de fraude fiscal.”

6 - Por sua vez, no que respeita ao tipo objectivo, e tendo por referência a incriminação base prevista no artigo 103.º do RGIT vemos, assim, que, para que seja cometido o referido ilícito, impõe-se a verificação de três elementos, cf. TEIXEIRA, Carlos e GASPAR, Sofia, op. cit., pág. 453: a existência de um mecanismo fraudulento - através da ocultação de factos (ou seu registo e/ou valores ou, então, através da simulação de negócio); uma finalidade específica - “visem a não liquidação”; e a idoneidade da conduta para diminuir a receita tributária.

Neste sentido, o tipo apenas impõe que o comportamento vise a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição da receita tributária, não sendo exigível que esse resultado se chegue a verificar.

7 - No que respeita à natureza do crime de fraude fiscal, afigura-se não ser o mesmo um crime de dano, pois que, se assim fosse, seria necessário que, com a conduta do agente, o bem jurídico fosse efectivamente lesado o que, in casu, não sucede - não se punem apenas os comportamentos que tenham originado uma efectiva diminuição da receita e que, por isso, tenham lesado o património do Estado. O bem jurídico é, assim, protegido, por antecipação.

Deste modo, e conforme é referido no artigo 31.º, do Preâmbulo do Código Penal, “[a] lei penal, relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstracto) para que dessa forma o tipo legal esteja preenchido. O dano que se possa vir a desencadear não tem interesse dogmático imediato. Pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social. Adiante-se que devido à natureza dos efeitos altamente danosos que estas condutas ilícitas podem desencadear o legislador penal não pode esperar que o dano se produza para que o tipo legal de crime se preencha. Ele tem de fazer recuar a protecção para momentos anteriores, isto é, para o momento em que o perigo se manifesta”.

Como tal, no crime de perigo abstracto, o perigo ou o dano não se integra no tipo criminal, porquanto a Lei basta-se com “[...] a aptidão genérica de determinadas condutas para constituírem um perigo que atinja determinados bens e valores. Baseia-se na suposição legal de que determinados comportamentos são geralmente perigosos para esses bens e valores. O perigo não é, pois, elemento do tipo, mas somente o fundamento da punição.” Veja-se PATTO, Pedro Vaz, “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, Volume II, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, página 487.

No dizer de COSTA, Maia, “O crime de tráfico de estupefacientes: o direito penal em todo o seu esplendor”, Revista do Ministério Público, ano 24.º, abril - junho de 2003, n.º 94, página 94, “A incriminação do perigo abstracto traduz-se portanto na antecipação da tutela penal para uma fase anterior não só ao dano para o bem jurídico protegido, como anterior inclusivamente à criação de qualquer perigo para esse bem”. Todavia, relativamente ao crime de fraude fiscal, não se está perante um crime de perigo abstracto, pois que, se assim fosse, “[...] atendendo que se trata de um crime de mera actividade, o legislador teria considerado a prática do comportamento proibido como perigosa para o bem jurídico, porém, não teria exigido que fosse idónea para alcançar um determinado resultado lesivo do bem jurídico, ou seja, a verificação do crime bastar-se-ia com o facto de o agente ter levado a cabo o comportamento típico sem ser necessário proceder a qualquer ulterior consideração para efeitos de preenchimento do tipo de ilícito objectivo”, cf. SANTOS, André Teixeira, “O Crime de Fraude Fiscal: Um contributo para a configuração do tipo objectivo de ilícito a partir do bem jurídico”, Coimbra Editora, 2009, págs. 223 e 224.

Desta forma, o perigo não representa apenas o motivo da proibição. E, nesta medida, se é certo que não se está perante um crime de perigo concreto - uma vez que o perigo não faz parte do tipo, pois que há consumação independentemente de o bem jurídico tutelado ter sido efectivamente posto em perigo - também não se poderá concluir que se trate de um crime de perigo abstracto, porquanto o tipo penal de fraude fiscal exige a susceptibilidade de o comportamento proibido propiciar a obtenção da vantagem patrimonial ilegítima.

Verifica-se, pois, que “[...] a expressão “visem” traduz a exigência de o comportamento típico ser idóneo a provocar a vantagem patrimonial nos moldes do n.º 1 do art. 103.º do RGIT. Essa idoneidade traduz-se em a conduta em si mesma, independentemente de factores externos que sejam alheios ao autor e que não se encontrem directa e intimdamente relacionados com esta, ser apta a lesar o bem jurídico, sem que seja necessário apurar se o perigo de lesão efectivamente se verificou. O comportamento é uma fonte de perigo que tem de ser idónea a produzir um efeito lesivo sobre o bem jurídico, cuja idoneidade vem exigida no próprio tipo de ilícito objectivo.”.

Desta forma, para que o crime seja consumado, exige-se que o comportamento típico «seja idóneo a atingir uma vantagem patrimonial ilegítima alcançada em determinados moldes, mas já não que o perigo para o bem jurídico chegue efectivamente a ocorrer”, cf. SANTOS, André Teixeira, op. cit., págs. 225 e 226.

Como explicita SOUSA, Susana Aires, na op. cit., pág. 73, o “[...] o tipo legal renuncia à forma concreta que o perigo pode revestir, ao mesmo tempo que exige ao intérprete e ao aplicador da lei a comprovação no caso concreto de uma aptidão genérica da acção para atingir aqueles bens jurídicos [...] O fundamento do ilícito é a idoneidade ou aptidão da conduta, reconhecível ex ante, para a lesão ou colocação em perigo do bem jurídico. Assim sendo, deve o julgador comprovar no caso concreto a ocorrência do elemento de perigosidade típica do comportamento ou a sua idoneidade para produzir um determinado resultado com recurso a um juízo de prognose, que no momento ex ante ao empreendimento da acção, avalie a aptidão da conduta para a produção daquele resultado”.

E, mais adiante, na op. cit., pág. 75, a mesma autora refere que o “[...] legislador, além de tipificar condutas que segundo as regras da experiência são tipicamente perigosas para as receitas tributárias - a ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável (alínea a)); ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária (alínea b)); celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas (alínea c)) - e embora não exigindo a verificação, a posteriori, de um perigo concreto, preciso no tipo legal a necessidade de essas condutas serem susceptíveis de diminuírem as receitas fiscais”.

Trata-se, portanto, de uma figura intermédia, entre os tipos de crime de perigo concreto e abstracto, referindo-se os autores a estes ilícitos como sendo de perigo abstracto-concreto ou de aptidão.

8 - No caso da fraude fiscal, ao utilizar-se na lei a expressão “susceptíveis de causarem”, pressupõe-se, necessariamente, que a conduta adoptada pelo agente seja apta a causar perigo, traduzindo-se essa idoneidade na circunstância de ser provável que a mesma cause a diminuição das receitas fiscais ou seja, na probabilidade séria, de acordo com as leis da experiência, de aquelas condutas determinarem a diminuição das receitas fiscais, cf. SOUSA, Susana Aires, na op. cit., pág. 73.

SANTOS, André Teixeira dos, op. cit., págs. 225 e 226, refere que se está perante um crime de perigo abstracto-concreto ou de aptidão, pois que “[...] a prova da inexistência do perigo determina o não preenchimento do tipo”. E, conforme refere Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 231, “O crime de fraude fiscal é um crime de perigo na perspectiva do bem jurídico e de mera actividade na perspectiva da conduta, pois que embora a conduta deva ser susceptível de causar diminuição das receitas tributárias não importa que essa diminuição se verifique para a consumação do crime”.

Parece assim que o julgador, apenas, terá de aferir se aquela conduta, quando é praticada pelo agente, é ou não idónea a diminuir as receitas tributárias. Sendo-o - e estando verificados os demais elementos objectivos e subjectivos do tipo - o crime encontra-se consumado, porque tal aptidão constitui um elemento típico essencial do referido ilícito.

9 - Por sua vez, no que respeita, em concreto, à fraude fiscal qualificada, o artigo 104.º do RGIT prevê que:

“1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de um a cinco anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:

a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;

b) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;

c) O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;

d) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;

e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro;

f) Tiver sido utilizada a interposição de pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;

g) O agente se tiver conluiado com terceiros com os quais esteja em situação de relações especiais.

2 - A mesma pena é aplicável quando:

a) A fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente; ou

b) A vantagem patrimonial for de valor superior a € 50 000.”.

Nesta medida, as circunstâncias previstas nos n.os 1 e 2, do artigo 104.º, do RGIT, que consubstanciam um elenco taxativo e fechado, assumem-se como qualificadoras, face ao crime matricial constante do já citado artigo 103.º - cf. TEIXEIRA, Carlos e GASPAR, Sofia, op. cit., pág. 462 -, pretendendo o legislador proteger o património do Estado contra ataques que entendeu serem particularmente ofensivos.

No caso, o crime de fraude fiscal é praticado mediante a utilização, pelo agente, de facturas fraudulentas - artigo 104.º, n.º 2, alínea a) do RGIT -. Segundo SOUSA, Susana Aires de, op. cit., pág. 114, “Esta opção legislativa terá sido motivada por considerações de política criminal, tendo em conta a frequência destes casos na prática jurisprudencial e a disparidade de decisões jurisprudenciais nesta matéria, designadamente no que diz respeito à subsunção no tipo legal de Fraude Fiscal ou no tipo legal de Burla do CP”.

10 - MESQUITA, Paulo Dá, em “Sobre os crimes de fraude fiscal e burla”, Direito e Justiça, 2001, pág. 103, a “[...] designação de facturas falsas envolve um conjunto de modalidades de documentos escritos com referências relativas a mercadorias ou serviços e respectivos preços com o objectivo de enganar o Estado pessoa colectiva”. Trata-se de casos recorrentes e graves que, como tal, mereceram autonomização por parte do legislador, que fundamentam, por si só, a qualificação da fraude fiscal, sem necessidade de se verificar qualquer outra circunstância cumulativa.

SOUSA, Susana Aires de, op. cit., pág. 118, afirma que “O legislador classifica em três categorias as facturas falsificadas: facturas ou documentos equivalentes que referem valores diferentes dos valores reais; facturas ou documentos equivalentes que sugerem a intervenção de pessoas ou entidades diversas das envolvidas na operação subjacente”.

Assim, a doutrina considera as seguintes modalidades de utilização de facturas falsas, Ibidem, pág. 78:

i) Atribuídas pelo utilizador a empresas inexistentes;

ii) Atribuídas pelo emitente-utilizador a empresas existentes, com desconhecimento destas últimas;

iii) Emitidas por um terceiro, em conluio com o utilizador que as incorpora na sua contabilidade fiscal.

No Código do IVA estabelece-se a regra geral de obrigatoriedade de emissão de uma factura, a cada transmissão de bens ou prestação de serviços, e pelos pagamentos que sejam efectuados antes dessa transmissão ou dos serviços serem efectivamente prestados. Deste modo, os valores titulados pela factura vão repercutir-se no montante de imposto a pagar ou a receber, pelo que se trata de um documento essencial para o apuramento e obtenção de receitas fiscais, cf. SILVA, Isabel Marques da, “Regime Geral das Infracções Tributárias”, 3.ª ed., Almedina, 2010, págs. 91 e 92.

A utilização destes documentos, que não reflectem a realidade das operações que foram efectuadas, visa a obtenção de vantagens patrimoniais a nível de impostos directos - o IRS e o IRC, apresentando deduções indevidas à matéria colectável, apresentando encargos forjados -, bem como ao nível dos impostos indirectos - o IVA, através da dedução indevida de imposto pretensamente pago em operações simuladas ou por preços simulados (superiores aos verdadeiros) de aquisições de bens ou serviços, obtendo, assim, um reembolso indevido -. Neste sentido, vd. MESQUITA, Paulo Dá, op. cit. págs. 115 e 116, concretizando, na pág. 117, que “Relativamente à facturação com vista à obtenção de deduções indevidas de IRC, é clara a possibilidade de preenchimento do tipo de fraude fiscal, pois trata-se de uma conduta com aptidão a diminuir a receita fiscal relativa a esse imposto directo, pois determina ou é susceptível de determinar uma liquidação de imposto inferior à que resultaria da aplicação da lei aos factos reais.

No que concerne às deduções indevidas de IVA, estribadas em facturas falsas, que não determinam qualquer reembolso, são susceptíveis de preencher o crime de fraude fiscal, pois têm aptidão para diminuir as receitas tributárias a título de IVA devido ao Estado por outras operações económicas do sujeito passivo (para além de poder cumular, com essa circunstância, uma diminuição da matéria colectável a título de IRC.”.

Todavia, para que seja praticado o crime de fraude fiscal, tais facturas fraudulentas terão sempre de ser idóneas para provocar uma diminuição das receitas tributárias.

Assim, e articulando o crime base previsto no artigo 103.º, com a qualificativa constante do artigo 104.º, n.º 2, alínea a), ambos do RGIT, conclui-se que o agente pratica o crime de fraude fiscal se a utilização de facturas falsas se traduzir numa ocultação ou alteração de valores que assumam relevância tributária e, como tal, sejam susceptíveis de diminuir as receitas tributárias. Pelo que, necessariamente será de se excluir a existência de ilícito penal - pelo menos neste âmbito fiscal - se o agente, apesar de utilizar documentos falsos, não adoptar uma conduta apta a causar uma diminuição das receitas fiscais, tratando-se, assim, de um comportamento atípico - vd. SANTOS, Teixeira dos, op. cit., pág. 225, dando o seguinte exemplo “Y utiliza facturas falsas para receber um reembolso indevido em sede de IVA por um imposto que não chegou a cobrar (668). Uma vez que Y está isento de IVA, a conduta não é idónea a atingir qualquer reembolso, logo é atípica”.

11 - A questão fundamental em apreciação no presente recurso para fixação de jurisprudência respeita ao momento em que se inicia o prazo prescricional do procedimento criminal.

Dispõe o artigo 119.º, n.º 1 do Código Penal, aplicável ex vi artigo 3.º, alínea a), do RGIT, que “O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado”. Por seu turno, no que respeita ao momento da consumação, o artigo 5.º do RGIT prevê que “As infracções tributárias consideram-se praticadas no momento e no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia ter actuado, ou naqueles em que o resultado típico se tiver produzido, sem prejuízo do disposto no n.º 3”.

No que respeita ao momento da ‘consumação’ do crime de fraude fiscal com recurso às designadas “facturas falsas”, a doutrina, tradicionalmente, distingue dois momentos, que poderão, ou não, ocorrer em simultâneo - o da consumação formal e o da consumação material.

A consumação ‘formal’ ocorre com o primeiro acto praticado pelo agente, que preencha os elementos objectivos do tipo, independentemente de o seu objectivo final, ainda, não ter sido plenamente alcançado.

Nesse primeiro momento, em que o comportamento doloso do agente integra o tipo objectivo do crime, está-se perante a consumação formal do ilícito. Segundo DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Gestlegal, 3.ª edição, 2019, pág. 367, pode, contudo, o agente, com a sua contínua actuação, preencher também a consumação material, que ocorrerá com “[...] realização completa do conteúdo do ilícito em vista do qual foi erigida a incriminação, desde que o agente tenha actuado com o dolo de o realizar”. Nestes termos, cf. FERREIRA, Cavaleiro, Lições de Direito Penal, Parte Geral I, Lisboa, 1988, página 291, a “[...] consumação material ou exaurimento consistirá na produção dos efeitos ou consequências, que não sendo embora exigidos como elementos essenciais da incriminação, constituem a plena realização do objectivo pretendido pelo agente”.

Nos crimes de perigo, ao não se exigir que a conduta do agente cause um determinado resultado, o momento relevante, para que se esteja perante um crime consumado, é aquele em que se verifica uma consumação formal, uma vez que corresponde ao instante em que o comportamento do agente preenche todos os elementos constitutivos do tipo de crime.

Diferentemente, nos crimes de resultado, como decorre, aliás, da sua própria nomenclatura, o momento temporal corresponde ao da terminação do crime - apenas quando o resultado da conduta do agente se concretiza - é que se poderá, então, falar de crime consumado. Nesta medida, enquanto os crimes de resultado exigem uma ocorrência produzida por via da atuação do autor, mas temporalmente distinta desta, nos crimes de mera actividade estes ficam realizados com a ocorrência da própria acção.

Assim sendo, no que respeita ao crime de fraude fiscal, por utilização de facturas falsas, diferentes têm sido as respostas, quer na doutrina portuguesa, quer na jurisprudência, verificando-se uma significativa proliferação de decisões acerca dessa matéria.

12 - De acordo com o acórdão-fundamento, «A consumação do crime de fraude fiscal, enquanto momento relevante para a fixação do início do decurso do prazo de prescrição do procedimento, ocorre na ocasião da emissão da factura falsa, independentemente de ter havido ou não declaração do contribuinte».

No referido aresto pode-se ler, que, “[...] no caso das “facturas falsas”, a conduta ilícita consiste fundamentalmente na simulação da celebração de operações económicas, como contratos ou acordo de fornecimento de serviços sem qualquer correspondência com a realidade. O objectivo que subjaz à emissão de facturas falsas radica frequentemente na documentação falsa de custos fiscais, assegurando, deste modo, a diminuição de lucros com consequências na determinação da matéria colectável (IRC) ou mesmo a obtenção ilícita de reembolsos fiscais (IVA).

Atendendo à classificação dogmática dos crimes de perigo em crimes de perigo abstracto, de perigo abstracto-concreto e de perigo concreto, o crime de fraude fiscal através de facturas falsas ou de favor insere-se na categoria de crime de perigo abstracto na forma de crime de aptidão.

Enquanto crime de perigo, a realização do tipo não pressupõe a lesão efectiva do bem jurídico protegido, mas o perigo é parte integrante do tipo e não um mero motivo da incriminação, como sucede nos autênticos crimes de perigo abstracto. Por outro lado, porém, a realização típica destes crimes não exige a produção de um resultado de perigo concreto.

Ainda assim, a idoneidade objectiva da concreta actividade ou conduta desenvolvidas para criar alguma das situações expressamente previstas no preceito incriminador (não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem a diminuição das receitas tributárias) integra a factualidade típica, encontra-se sujeita a prova e a valoração judicial.

[...]

Nesta ordem de ideias, a consumação do crime de fraude fiscal indiciado nestes autos ocorre no momento da celebração do negócio simulado, ou seja, da emissão dolosa da factura falsa adequada a diminuir as receitas tributárias, sendo a eventual verificação do resultado lesivo apenas relevante na escolha e determinação da medida concreta da pena, ou seja, independentemente de ter havido ou não declaração do contribuinte.

[...]

Sempre com o devido respeito por entendimento diverso, não encontramos fundamento bastante para postergar a consumação para o momento da entrega da declaração, necessariamente posterior ao preenchimento dos elementos objectivos do tipo de fraude fiscal.

[...]

O entendimento de que a fraude fiscal só se consuma com a declaração levaria a concluir que uma mesma conduta de emissão de factura fictícia tanto poderia conduzir a inexistência de crime, como à verificação de um ou de dois crimes;

- A aptidão objectiva da factura fictícia para influenciar o cálculo do imposto ou a obtenção indevida de benefício fiscal, reembolso, ou outra vantagem patrimonial e a subsequente aptidão desse beneficio fiscal, reembolso ou vantagem para a diminuição das receitas fiscais dependem de prova e de valoração judicial, com base nas circunstâncias concretas e seguindo regras retiradas da experiência comum.

A formulação do juízo judicial de aptidão não exige nem depende da entrada da declaração fiscal na autoridade fiscal.”.

Com este entendimento, vd., nomeadamente, os acórdãos, todos em www.dgsi.pt:

i) do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25-01-2017, processo 714/11.0IDLSB-C.L1-3, onde se lê que a “[...] consumação ocorre na ocasião em que o agente, com intenção de lesar o Fisco, atenta contra a verdade e a transparência exigidas na relação fisco-contribuinte e emite as facturas fictícias idóneas a diminuir as receitas tributárias”;

ii) do Tribunal da Relação de Lisboa, de 25-02-2015, processo 709/08.0IDFUN-A.L1-3, onde consta que “Estando em causa o cometimento do crime (qualificado) através de facturas falsas, tratando-se de um crime de perigo, o momento relevante para o efeito da consumação do crime é o da data de emissão das facturas em que o agente, com intenção de lesar o Fisco, atenta contra a verdade e transparência exigidas na relação Fisco-contribuinte. Para a punição do agente basta comprovar que ele quis incorporar aquelas facturas na sua contabilidade e que elas eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais”;

iii) do Tribunal da Relação do Porto, de 05-01-2011, processo 110/98.2IDAVR.P1, onde se afirma que “O crime de fraude fiscal, realizando-se através da emissão de uma factura falsa entregue a outrem, que a incluiu na sua contabilidade, para reembolso do IVA respectivo, consuma-se na data da emissão dessa factura”;

iv) do Tribunal da Relação do Porto, de 03-12-2012, processo 2690/01.8TAVFR.P1, referindo-se que “O crime de fraude fiscal com recurso a facturas falsas consuma-se na data da emissão da factura, sendo irrelevante a data da entrega das declarações periódicas do IVA em que foram contabilizadas as facturas falsas e, bem assim, a data da entrega anual da declaração de IRC”;

v) do Tribunal da Relação do Porto, de 22-02-2023, processo 1/15.4IDPRT.P2, onde se decide que “O crime de fraude fiscal com recurso a facturas falsas consuma-se na data da emissão da factura, sendo irrelevante a data da entrega das declarações periódicas do IVA em que foram contabilizadas as facturas falsas e, bem assim, a data da entrega anual da declaração de IRC”;

vi) do Tribunal da Relação do Porto, de 19-02-2014, processo 1048/08.2TAVFR.P4, onde menciona que “[...] aquele que emite uma fatura falsa e a entrega a um terceiro, com a finalidade de este se aproveitar dela para cometer o crime de fraude fiscal, vê o seu crime consumado quando entrega a fatura; aquele que recebe a fatura falsa (isto é, sem que tenha havido qualquer transação) só comete o crime quando incluir a falsa operação numa declaração fiscal”;

vii) do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17-01-2017, processo 5/11.6IDFUN.L1-5, estabelecendo-se que “O crime de fraude fiscal, com recurso a facturas falsas ou fictícias, consuma-se na data da emissão dessas facturas, independentemente de ter havido ou não declaração do contribuinte (declaração periódica do IVA ou a entrega anual da declaração do IRC, sendo para efeitos de consumação irrelevantes tais declarações”;

viii) do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12-09-2012, processo 379/07.3TAILH.C1, onde se afirma que o “[...] temos como momento da consumação do crime a data da celebração do negócio simulado”;

ix) do Tribunal da Relação de Guimarães, de 03-11-2014, processo 20/02.0IDBRG-X.G1, referindo esse aresto que o “[...] crime de fraude fiscal praticado através da emissão de fatura falsa, após acordo prévio dos vários arguidos, consuma-se com a emissão da fatura, senda essa a data relevante para o início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal e não a data da liquidação do imposto”.

13 - Diferentemente, o acórdão recorrido considerou que a consumação do crime, momento relevante para efeitos de contagem do prazo prescricional, correspondia à data em que a última declaração, onde constam as informações relativas às facturas forjadas, tinha sido, ou deveria ter sido, entregue.

Neste sentido, nomeadamente, vd. os acórdãos, todos em www.dgsi.pt:

i) do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-10-2023, processo 5037/14.0TDLSB-P.S1, onde consta que “[...] o crime de fraude consuma-se quando a conduta se esgota, portanto, no termo do prazo legal para a apresentação da declaração a que o imposto respeita, à administração fiscal, mais concretamente, quando o agente entrega a declaração fiscal, alterada ou omissa quanto a factos e valores que dela deviam constar, à administração tributária”;

ii) do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-04-1999, processo 97P302, aí se mencionando que “A simples detenção de facturas que não traduzem negócios reais, mas imaginários e que não saíram das mãos de quem as fabricou, não tendo sido lançadas na contabilidade nem utilizadas como suporte de qualquer pedido de reembolso de IVA, não constitui mais do que um acto preparatório de um crime de fraude fiscal e, como tal, não é penalmente punível”;

iii) do Tribunal da Relação de Guimarães, de 06-03-2023, processo 372/04.8IDBRG.G1, referindo “O crime de fraude fiscal consuma-se no momento da entrega da declaração defraudada, já que este é o documento que estriba o apuramento do rendimento tributável e, em conformidade, apresenta-se como determinante ao apuramento do imposto devido. Por conseguinte, é nesse momento que as condutas constantes do tipo legal assumem a exigível suscetibilidade ou aptidão para causarem a diminuição das receitas fiscais através, designadamente, do não pagamento do imposto devido ou obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens de cariz patrimonial”;

iv) do Tribunal da Relação de Évora, de 17-04-2012, processo 0011197, embora por referência ao negócio simulado, onde se diz que “[...]o crime de fraude fiscal consuma-se com a celebração do negócio e a inscrição do preço simulado na declaração de IRC enviada à administração fiscal ou com o decurso do prazo legal sem que o sujeito passivo entregue tal declaração e não com a mera celebração do negócio”;

v) do Tribunal da Relação do Porto, de 07-02-2001, processo 76/05.41DFAR.E1, onde se lê que “O crime de fraude fiscal previsto e punido pelo artigo 23 ns.1, 2 alíneas a) e b), 3 alíneas a) e e) e 4, 1.ª parte, do Regime Jurídico das Infracções Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.343/93, de 24 de Novembro, consuma-se aquando da apresentação da declaração do modelo 2 do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares”;

vi) do Tribunal da Relação do Porto, de 19-03-2003, processo 0210683, entendendo que “O crime de fraude fiscal concretizado na ocultação ou alteração de factos ou valores que devem constar da declaração que, para efeitos fiscais, o agente apresente à administração fiscal consuma-se na data da apresentação dessa declaração”.

14 - Por sua vez, também na doutrina vêm surgindo certas divergências, havendo quem entenda que se deverá considerar como relevante o momento da liquidação do imposto. Assim, para Augusto Silva Dias, em “Crimes e Contra-ordenações Fiscais”, Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, pág. 455 e 456, a consumação verifica-se com a liquidação, quando realizada pela administração fiscal e com a entrega da declaração à administração nos casos de autoliquidação do contribuinte, se esta for realizada pela administração fiscal, ou aquando da entrega da declaração, no caso de autoliquidação, por se tratar do momento temporal em que o contribuinte perde o domínio sobre o facto.

Diferentemente, para uma outra corrente, considera-se que a circunstância relevante é o momento da entrega/recepção da declaração ‘defraudada’, ou o termo do prazo para a sua apresentação, entendida, como regra geral, sem prejuízo das especialidades que possam surgir, decorrentes da especificidade de cada imposto. Neste sentido, POMBO, Nuno, “A norma incriminadora, a simulação e outras reflexões”, Almedina, 207, págs. 100 e 101, SILVA, Germano Marques da, op. cit., pág. 232, SOUSA, Susana Aires de, op. cit., págs. 84 a 87, e TEIXEIRA, Carlos e GASPAR, Sofia, op. cit., págs. 455 e 456.

Todavia, a tese apresentada pelo acórdão-fundamento consubstancia um terceiro entendimento acerca do momento da consumação, opinião essa que apenas tem eco na jurisprudência, e não na doutrina.

15 - A resposta para a questão sob apreciação encontra-se necessariamente interligada com a natureza do próprio crime: está-se perante um crime de aptidão, pois que, não obstante não se exigir a verificação de uma diminuição das receitas tributárias, impõe-se que a conduta do agente seja apta a esse resultado.

Desde já se refira que não se concorda com a corrente doutrinária que entende que o momento relevante é o da liquidação, uma vez que o tipo de crime não exige a ocorrência de nenhum resultado. Desta forma, os actos posteriores à entrega da declaração, nomeadamente a referida liquidação, não assumem relevância jurídica, nesta sede, porquanto não se exige a materialização da concreta diminuição da receita tributária ou da obtenção de vantagem patrimonial. Tal resultado, que venha ocorrer, poderá ter interesse meramente na perspetiva da medida concreta da pena a ser aplicada ao agente, não influindo, assim, na consumação do tipo de ilícito.

Nesse conspecto, tendo o agente adulterado facturas, que veio a integrar na declaração apresentada à Autoridade Tributária, o crime encontra-se consumado independentemente da liquidação que venha - ou não - a ocorrer e a concreta vantagem obtida pelo agente, reverso do prejuízo sofrido pela Autoridade Tributária.

Nestes termos há que questionar se, a mera emissão de uma factura inverídica, consubstancia um perigo ‘idóneo’ de lesão do bem jurídico, como se considerou no acórdão fundamento. Afigura-se-nos que a resposta terá de ser negativa.

Antes de mais, há que esclarecer que, se é certo que as facturas adulteradas consubstanciam um documento fraudulento por representarem factos inverídicos, em si mesmas não consubstanciarão um documento falso, uma vez que as informações constantes do mesmo correspondem, precisamente, ao declarado pelas partes. Nestes termos, como refere MONIZ, Helena, “Facturas falsas - burla ou simulação fiscal”, Scientia Jurídica, tomo XLIII, n.º 247/249, pág. 158, “A simulação constitui um encobrimento da verdade. Ao realizar o negócio simulado, aquilo que fica documentado é uma vontade falsa. Verifica-se, pois, uma falsa documentação indirecta. É esta falsa documentação que é penalizada e cuja actividade não é subsumível ao tipo legal de crime de falsificação de documentos [...] o facto falso juridicamente relevante, entendido como aquele que cria, extingue ou modifica uma relação jurídica, integrado no acto simulado é o negócio em si - pois é ele que produz efeitos jurídicos porque e na medida da vontade das partes - e este é verdadeiro; aquilo que é falso é a declaração de vontade negocial. Assim, quando estamos face a uma simulação realizada por meio de um documento particular este acto não constitui um comportamento passível de censura jurídico-penal, a não ser que se trate de um meio para a prática de outros ilícitos”.

Ora, no entendimento de que o crime de fraude fiscal se pratica com a mera emissão da factura que contém dados que não correspondem à realidade, ter-se-ia que considerar que se está perante um crime consumado mesmo que essa informação incorrecta não chegue ao conhecimento da Autoridade Tributária, nunca sendo integrada em nenhum tipo de declaração, por parte do contribuinte.

Estar-se-ia, assim, a tratar o tipo de crime de fraude fiscal de forma idêntica ao de falsificação de documento. Sucede que, como se viu, o bem jurídico primordial protegido pela presente incriminação é o património tributário - não obstante a incriminação visar ainda, reflexamente, a protecção dos valores de transparência fiscais. Nesta medida, enquanto que no crime de falsificação de documento o crime fica consumado com a própria alteração do mundo exterior, não é possível, nesta sede, fazer um semelhante paralelismo, pois essa modificação, por si só, não será apta a lesar o referido bem jurídico principal.

Tal pressupõe que, caso as facturas falsas não sejam utilizadas perante a administração fiscal, estar-se-á perante meros actos de execução, que poderiam, eventualmente, consubstanciar uma tentativa do crime de fraude fiscal, como esclarece POMBO, Nuno, op. cit., pág. 217, “[...] importa ainda insistir no facto de deverem ser os actos de execução idóneos, adequados, à consumação do crime. Caso contrário estaremos, tão-só, perante situações que sugerem a figura da tentativa impossível”.

De igual modo, também como explicita SOUSA, Susana Aires de, em op. cit., pág. 85, “[...] a aquisição de uma factura falsa constitui um acto preparatório não punível». Assim, “não conferimos relevância ao momento da prática dos actos materiais de ocultação ou de alteração de factos ou valores, nem tão-pouco à celebração de negócios simulados, porquanto eles, em si mesmos, não se mostram aptos a causarem a diminuição das receitas tributárias. Só com a declaração (ou com a ausência dela) é que esses actos materiais podem produzir impacto na diminuição dessas mesmas receitas.” - neste sentido, POMBO, Nuno, op. cit., pág. 104.

Por isso que se afigura que tal actuação, de emissão de facturas falsas, é, deste modo, manifestamente insuficiente para que se considere verificada a prática dos elementos objectivos do tipo de fraude fiscal, pois que, como diz SANTOS, André Teixeira dos, na op. cit, pág. 219, tanto “[...] a ratio que preside à norma incriminadora como o requisito expresso na já referida oração subordinada adjectiva do corpo do n.º 1 do art. 103.º do RGIT - “que visem…» - permitem concluir que o terceiro enganado pela camuflagem da realidade operada por intermédio do negócio simulado tem necessariamente se der a Administração Fiscal. Assim, esta conduta tem de ser conjugada com a possibilidade de o sujeito passivo informar, em tempo útil, a Administração Fiscal sobre o conteúdo correcto do negócio dissimulado. Só quando deixar de ocorrer essa possibilidade é que o crime se verificará. Claro que, se o sujeito informar de alguma forma a Administração Fiscal no sentido de corresponder à realidade o negócio simulado, - por exemplo, inscrevendo os seus efeitos na contabilidade ou na declaração fiscal - o crime ficará realizado com essa conduta”.

Assim, SOUSA, Susana Aires de, op. cit, págs. 84 a 86, refere que “ [...] a consumação [...] dá-se, por exemplo, quando o agente entrega a declaração de impostos alterada ou sem os factos ou valores que dela deviam constar, e cria um engano na administração fiscal que possibilitará diminuir a sua prestação tributária ou obter benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de diminuir as receitas tributárias. Se esta tem de ser a intenção do agente [...] não é, no entanto, necessário que ela efectivamente se concretize para a consumação da Fraude fiscal. [...] Determinante é a entrada dessa mesma declaração fiscal na esfera do domínio das autoridades fiscais, porque só então ela se revela apta a diminuir as receitas tributárias”.

E, acrescenta “A situação hipotética de uma declaração preenchida incorrectamente pelo contribuinte com intenção de obter vantagens fiscais, apta a diminuir as receitas discais, e que se extravia nunca chegando ao seu destino, pode configurar um crime de fraude fiscal na forma tentada. Esta tentativa não seria punida uma vez que a sua punição não foi expressamente prevista pelo legislador [...]”.

Diz esta autora em op. cit. pág. 115, que “Sem a entrega da declaração não se pode considerar que o bem jurídico [...] fica exposto a um perigo, e, menos ainda, a um perigo que possa ser considerado apto a originar um efectivo dano.

A entrega da declaração defraudada constitui deste modo o momento em que, após a concepção e desenvolvimento do plano criminoso e a prática dos actos necessários à sua prossecução, o agente do crime dá por ultimada e finda a sua conduta, aguardando, a partir desse momento, a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais.

E é também esse o momento no qual as condutas tipificadas se tornam susceptíveis/idóneas/aptas de/a causarem diminuição das receitas tributárias”.

Nesta medida, concluem TEIXEIRA, Carlos e GASPAR, Sofia, op. cit., págs. 455 e 456 “[...]relevante será o momento em que o contribuinte dá conhecimento ou no termo do prazo em que devia dar - às autoridades fiscais de declaração fraudulenta porque só aí mas desde aí induz em erro aquelas, susceptível de provocar prejuízo patrimonial para as receitas fiscais; de resto, não parece que a descrição típica exija que se verifique a produção de erro ou engano para que o crime se mostre consumado, já que, não obstante um certo resultado estar ínsito ao tipo de garantia (“susceptível de causar diminuição da receita tributária”), a verdade é que a ocorrência da acção típica realiza o tipo como crime de mera actividade”.

Ou seja, apenas quando o agente utiliza a factura, dando-lhe um concreto fim, é que se poderá aferir da sua susceptibilidade para a diminuição do património fiscal. Para que se esteja perante um crime consumado torna-se necessário que seja apresentada a respetiva declaração fiscal, onde constem os valores referentes às facturas falsas, elemento essencial ao apuramento do imposto devido, uma vez que se trata do documento a partir do qual é apurado o rendimento tributável - neste sentido, MARQUES, Rui Correia, em “Notas sobre a consumação do crime de fraude fiscal com recurso a facturas falsas”, Revista do Ministério Público n.º 157, janeiro-março 2019, pág. 115.

Efectivamente, não sendo entregue a declaração fiscal, embora não corresponda à realidade dos factos, por si mesma, a factura não pode ser considerada um meio adequado a colocar em perigo o bem jurídico protegido. Caso não seja atribuída qualquer finalidade à factura fraudulenta, não se está, à partida, perante a prática de um ilícito criminal. Sobre a relevância criminal deste tipo de factura, veja-se o que diz MARQUES, Rui Correia,, op cit., pág. 112, “[...] apenas surgirá consoante o uso que for dado a essas facturas. Caso as mesmas sejam utilizadas para enganar terceiros, poderão consubstanciar o elemento de “astúcia” no crime de burla. Caso sejam utilizadas numa declaração fiscal, terão a relevância de conduzir à agravação da pena prevista para o tipo base previsto no artigo 103.º, n.º 1, alínea c), do RGIT. Na hipótese de as mesmas nunca virem a ser utilizadas, não se tem por verificado qualquer crime”.

Apenas será compatível a consideração que a consumação ocorre com a emissão da factura se se entender que o crime em causa é de perigo abstracto ou de mera actividade. Tratando-se de um crime de aptidão, ter-se-á de concluir que a consumação ocorre aquando da apresentação da declaração à administração fiscal, pois, só aí se pode considerar que a conduta originou um perigo idóneo para o bem jurídico, posto que, até à entrega da declaração defraudada “[...] o agente mantém o domínio da desistência da sua conduta, podendo dela desistir e desse modo impedir a consumação do crime”, Ibidem, pág. 123.

16 - A todas estas considerações acresce, ainda, que o tipo legal de fraude fiscal qualificada prevê expressamente que as facturas fraudulentas sejam efectivamente ‘utilizadas’ - “a fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas…”, cf. artigo 104.º, n.º 2, al. a), do RGGIT -, não sendo bastante, assim, que o agente as emita ou detenha.

Tal entendimento corresponde, aliás, ao sufragado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça. Com efeito disse-se, no acórdão proferido a 28/04/1999, no âmbito do processo 97P302, em www.dgsi.pt, que “A simples detenção de facturas que não traduzem negócios reais, mas imaginários e que não saíram das mãos de quem as fabricou, não tendo sido lançadas na contabilidade nem utilizadas como suporte de qualquer pedido de reembolso de IVA, não constitui mais do que um acto preparatório de um crime de fraude fiscal e, como tal, não é penalmente punível”.

Paralelamente, no acórdão proferido a 26/10/2023, Processo de habeas corpus n.º 5037/14.0TDLSB-P.S1, em www.dgsi.pt, disse-se que “Visando o crime, como resulta da letra da lei, a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, apenas é exigível, para a sua consumação, o perigo de diminuição de tais receitas - a conduta tem de ser apta ou adequada a produzir essa diminuição - e não, que essa diminuição ocorra efectivamente. Daí que estejamos perante um crime de perigo abstracto-concreto ou de aptidão e também, perante um crime de resultado cortado.

Deste modo, o crime de fraude consuma-se quando a conduta se esgota, portanto, no termo do prazo legal para a apresentação da declaração a que o imposto respeita, à administração fiscal, mais concretamente, quando o agente entrega a declaração fiscal, alterada ou omissa quanto a factos e valores que dela deviam constar, à administração tributária (Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 225, Susana Aires de Sousa, Os Crimes Fiscais, Reimpressão, 2009, Coimbra Editora, pág. 84 e seguintes).”.

Neste conspecto, entende-se que o crime de fraude fiscal qualificado consuma-se quando a factura adulterada ou falsa é “utilizada”, isto é, quando é inserida na respectiva declaração e entregue à Autoridade Tributária, antes e independentemente de se verificar o resultado pretendido pelo agente, por só aí se tratar de uma actuação, objectivamente, apta a produzir o resultado de diminuição de património fiscal, traduzindo-se numa ocultação ou alteração de valores que assumem relevância tributária - entre outros, vd. POMBO, Nuno, op. cit., pág. 217 e SOUSA, Alfredo José de, “Infracções fiscais - Não aduaneiras”, Coimbra, Almedina, 1997, pág. 100.

Em suma, a consumação do crime de fraude fiscal, com recurso à utilização de facturas fraudulentas, as designadas ‘facturas falsas’, ocorre na data da entrega da declaração na administração fiscal ou no termo do prazo da sua apresentação, momento apto a relevar para efeitos de cômputo do prazo de prescrição do respectivo procedimento criminal.

IV - DECISÃO

Acordam os Juízes que constituem o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Fixar a seguinte jurisprudência:

“O prazo de prescrição do procedimento pelo crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. no artigo 104.º, n.º 2, al. a), do RGIT, com utilização de facturas fraudulentas (as designadas “facturas falsas”) inicia-se no momento da entrega da correspondente declaração à administração fiscal.”

c) Sem custas.

d) Cumpra-se o artigo 444.º, n.º 1, do CPP.

Lisboa, 19 de Fevereiro de 2025 (processado e revisto pelo relator). - Leonor Furtado (relatora) - António Latas - Jorge Gonçalves - Heitor Vasques Osório - Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo - Celso José das Neves Manata - Antero Luís - António Augusto Manso - José Vaz Carreto - Carlos Alberto Gameiro de Campos Lobo - Jorge Raposo (vencido, conforme declaração de voto em anexo) - Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira - José Luís Lopes da Mota - Nuno António Gonçalves.

Declaração de Voto

Acompanho a jurisprudência também referida no acórdão que considera que o momento relevante para efeitos da consumação é a emissão das facturas e a sua entrada na contabilidade. Registo que também André Teixeira dos Santos, citado no acórdão, parece admitir, nalguns casos, a relevância para efeitos da consumação da inscrição na contabilidade dos efeitos do negócio simulado.

Melhor concretizando, o que releva é o momento em que as facturas falsas dão entrada na contabilidade da empresa, falseando a verdade contabilística e tornando-as aptas a provocar a obtenção de vantagens patrimoniais e susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias, em relação a vários impostos (ab initio indeterminados mas, por regra o IVA e o IRC). Porém, tendo em atenção que se trata de um crime de resultado cortado, a circunstância de poder ser usado para obter vantagens em vários impostos não pode significar que o número de crimes é determinado pelo número de impostos em que existe a susceptibilidade de ser causada diminuição de receitas tributária nem, consequentemente, o momento da consumação pode ou deve depender do momento da entrega das declarações respectivas (em momentos distintos, conforme os impostos).

No caso da fraude fiscal através de facturas falsas (art. 104.º n.º 2 alínea a) do RGIT) está em causa uma acção e não uma omissão do arguido. Por isso, é inaplicável o disposto no n.º 2 do art. 5.º do RGIT que determina que se considere o prazo de cumprimento dos deveres tributários para definir o momento da consumação.

Lisboa, 19 de Fevereiro de 2025. - Jorge Manuel Ortins de Simões Raposo.

119027754

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/6169043.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1990-01-15 - Decreto-Lei 20-A/90 - Ministério das Finanças

    Aprova o regime jurídico das infracções fiscais não aduaneiras.

  • Tem documento Em vigor 2001-06-05 - Lei 15/2001 - Assembleia da República

    Reforça as garantias do contribuinte e a simplificação processual, reformula a organização judiciária tributária e estabelece um novo Regime Geral para as Infracções Tributárias (RGIT), publicado em anexo. Republicados em anexo a Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98 de 17 de Dezembro, e o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/99 de 26 de Outubro.

  • Tem documento Em vigor 2019-02-15 - Decreto-Lei 28/2019 - Presidência do Conselho de Ministros

    Procede à regulamentação das obrigações relativas ao processamento de faturas e outros documentos fiscalmente relevantes bem como das obrigações de conservação de livros, registos e respetivos documentos de suporte que recaem sobre os sujeitos passivos de IVA

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