Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 9/2023, de 21 de Setembro
- Corpo emitente: Supremo Tribunal de Justiça
- Fonte: Diário da República n.º 184/2023, Série I de 2023-09-21
- Data: 2023-09-21
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Sumário
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Sumário: No crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, que se realiza em actos reiterados, o momento que, por referência à data do trânsito em julgado da primeira condenação anterior, releva para aferir a existência da relação de concurso de conhecimento superveniente prevista no artigo 78.º do Código Penal é o da prática do último acto típico.
Autos de Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência
Processo 123/16.4SWLSB-F.L1-A.S1
5.ª Secção
ACÓRDÃO
Acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em Pleno das Secções Criminais:
I. RELATÓRIO.
1 - AA, arguido(1) veio em 13.12.2021 interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) de 27.10.2021 proferido nos autos de PCC n.º 123/16.4SWLSB do Juiz... do Juízo Central Criminal...(2) que, julgando improcedente recurso que lhe moveu, confirmou despacho de 1.ª instância de 16.5.2021 que indeferira pedido para realização de audiência nos termos do artigo 472.º do Código de Processo Penal(3) em vista da cumulação superveniente de penas que, com trânsito, lhe tinham sido impostas naqueles mesmos autos por crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93, de 22.1 - 6 anos e 10 meses de prisão - e nos do Proc. n.º 795/16... do Juiz... do Juízo Local de Pequena Criminalidade..., por crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos artigos 143.º n.º 1, 145.º n.º 1 al.ª a) e 132.º n.os 1 e 2 al.ª i), do Código Penal(4) - 1 ano e 8 meses de prisão, inicialmente suspensa na sua execução, depois com revogação da suspensão.
Disse que o Acórdão Recorrido se opunha nos termos previstos no artigo 437.º n.os 1 a 3 do CPP(5) ao Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra de 23.9.2020, proferido no Proc. n.º 58/13.2PEVIS-D.C1(6), acessível em www.dgsi.pt.
Identificou a oposição no ponto em que os arestos, cuidando de apurar o tempo da consumação dos ilícitos de tráfico de estupefacientes em vista de conferir, por referência ao trânsito em julgado das anteriores decisões, a existência da relação de concurso de conhecimento superveniente de crimes prevista no artigo 78.º n.º 1 do CP(7), o localizou, o primeiro, no momento da prática dos últimos dos actos materiais integrativos de alguma das modalidades de acção previstas no tipo incriminador, o segundo, logo, no da prática do primeiro acto integrativo dessa mesma previsão.
Pediu que se dirimisse o conflito mediante a adopção do entendimento do Acórdão-Fundamento para os efeitos, e com as consequências, do artigo 445.º
2 - O Ministério Público sediado na instância recorrida não respondeu ao recurso.
3 - Recebido o procedimento na 5.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça(8), a Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, opinando pela rejeição do recurso nos termos dos artigos 440.º n.os 3 e 4 e 441.º n.º 1, primeira parte, por inverificação dos requisitos substanciais previstos no artigo 437.º
Em pronúncia sobre o parecer, o Recorrente, reiterou, com desenvolvimentos, o argumentário da motivação, concluindo pela admissibilidade do recurso e pela verificação da oposição de julgados.
4 - No despacho preliminar - artigo 440.º - fixou-se ao recurso efeito devolutivo - artigo 438.º n.º 3.
5 - Em acórdão de 28.4.2022 proferido em conferência na mencionada Secção - artigo 440.º n.º 4 e 441.º n.º 1 -, julgou-se verificada a oposição de julgados - artigo 437.º - e determinou-se o prosseguimento do recurso para a fase, subsequente, do julgamento do objecto do recurso e da fixação de jurisprudência.
6 - Notificados para os fins do artigo 442.º n.º 1, alegaram o Recorrente e a Senhora Procuradora-Geral Adjunta, que remataram as motivações com as conclusões e pedidos que seguem transcritos:
- Recorrente:
- «A) O crime de tráfico de estupefacientes é um crime de perigo abstracto, de empreendimento mas também exaurido.
B) Pelo que, ponto de vista da sua tipicidade, este é logo preenchido com os primeiros actos de execução (consumação formal), sendo que a repetição de actos e a produção de sucessivos resultados (consumação material) é imputada a uma realização única - e, por isso, catalogado também como crime exaurido.
C) Porém, o crime de tráfico de estupefacientes é também um crime de empreendimento, uma vez que inexiste tentativa, sendo esta consubstanciada na imediata realização do tipo e, como tal, a consumação.
D) Contrariamente aos crimes de empreendimento em cuja tipicidade se distingue o momento da terminação e o momento da consumação, no crime de tráfico de estupefacientes existe antes uma estrutura reiterada, como nos crimes permanentes ou de múltiplos actos, não havendo distinção no tipo entre o momento da consumação formal e da consumação material.
E) Daí que, pese embora a multiplicidade de actos, a consumação do crime por reporte ao seu tipo - seja em que modalidade for da descrita no artº. 21.º do DL 15/93 - é atingida logo com a consumação formal, sendo que a consumação material consistirá na realização do objectivo pretendido pelo agente, sem que isso seja exigido por qualquer elemento da norma incriminadora.
F) O crime de tráfico de estupefacientes encontra-se desenhado como um crime em que, no caso da prática de múltiplos actos em determinado universo temporal, a realização do primeiro pelo agente é suficiente, per se, para integrar e preencher o tipo incriminador, na medida em que este pune a conduta de levar a cabo a actividade tráfico que é ou pode ser consubstanciada em diversos e múltiplos actos.
G) É nosso entendimento que os actos de perfeição ou terminação do crime de tráfico, o exaurimento do crime consubstanciado na consumação material relevam, naturalmente, para efeitos de ilicitude, em sede de medida concreta da pena a aplicar ao Arguido.
H) Isto porque, o exaurimento não integra o inter criminis, ocorrendo posteriormente ao preenchimento do tipo, este esgotar da conduta (exaurimento) deve influir na dosimetria da pena ou até como circunstância agravante ou qualificadora.
I) Assim, na esteira da jurisprudência que se crê maioritária, e em concreto, com integral apoio no acórdão fundamento, proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, entende-se que no caso da prática de vários actos ou condutas de tráfico de estupefacientes ao abrigo artigo 21.º n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/01, a consumação é alcançada no momento da prática do primeiro acto de execução.
J) Também para efeitos de concurso superveniente de crimes, não há que distinguir entre os momentos da consumação, formal ou material (o que, aliás, salvo melhor entendimento, não nos parece dogmaticamente defensável), pelo que, considerando a posição assumida a propósito da natureza e momento da consumação do crime de tráfico de estupefacientes, alcança-se com o primeiro acto de execução.
K) O instituto do concurso superveniente de crimes, não alude sequer a "consumação" (o que poderia levar à discussão da distonia entre consumação formal e material), mas antes à prática do crime - "se mostrar que o agente praticou [...] outro ou outros crimes" - artº. 78.º n.º 1 do C.P. - o que, para nós, dúvidas não temos, que no caso do crime de tráfico de estupefacientes, considerando a sua natureza, a prática do crime ocorre com o primeiro acto de execução.
L) Acresce que, o paradigma em que assenta o nosso regime ao nível do concurso de crimes é o de que toda a responsabilidade penal de um determinado agente, por factos cometidos num mesmo lapso temporal deve ser apreciada conjuntamente.
M) Assim, se bem interpretamos o elemento literal e teleológico da norma insista no referido artº. 78.º do C.P., salvo melhor opinião, parece-nos que a prática do crime ocorre com o primeiro acto de execução e, como tal, é este o momento que representa o marco intransponível, para fazer operar o concurso superveniente de crimes.
N) Neste sentido, no caso que nos ocupa - concurso superveniente de crimes - não nos parece ser de distinguir entre os momentos da consumação, formal ou material (o que, aliás, salvo melhor entendimento, não nos parece dogmaticamente defensável), pelo que, considerando a posição assumida a propósito da natureza e momento da consumação do crime de tráfico de estupefacientes, facilmente se conclui que é nosso entendimento que, para o efeito de conferir a existência da relação de concurso superveniente de crimes nos termos previstos no artigo 78.º n.os 1 do C.P., o crime de tráfico de estupefacientes praticado numa pluralidade de actos consuma-se com o primeiro acto de execução.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser fixada Jurisprudência de acordo com o Acórdão fundamento (Acórdão datado de 23-09-2020 do Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do Processo 58/13.2PEVIS-D.C1, em que foi Relatora a Exma. Sra. Dra. Desembargadora Rosa Pinto), no sentido de que, para o efeito de conferir a existência da relação de concurso superveniente de crimes nos termos previstos no artigo 78.º n.os 1 e 2 do C.P., o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º do DL 15/93 de 22/1 praticado numa pluralidade de actos consuma-se com o primeiro acto de execução.».
- Ministério Público:
- «1 - O artigo 21.º do DL n.º 15/93, de 22/01 foi erigido de modo que o resultado típico se alcança logo que o agente pratique uma qualquer daquelas acções ali previstas.
2 - Trata-se de um tipo legal que não exige a ocorrência de um qualquer resultado, caracterizando-se como um crime formal ou de mera actividade.
3 - Exige apenas a criação, com qualquer daquelas condutas, de um perigo (abstracto) para o bem jurídico protegido - a saúde física e psíquica, vida das pessoas, liberdade dos virtuais consumidores e a estabilidade social.
4 - Para a actividade de tráfico de estupefacientes em que existe uma multiplicidade de actos, homogeneidade de condutas, conexão temporal entre os actos realizados e pluralidade de resoluções, a jurisprudência, de molde a unificar os vários actos em um só crime, desenvolveu a figura do "crime de trato sucessivo" denominando aquela pluralidade de resoluções de "unidade resolutiva".
5 - O tratamento do crime de tráfico de estupefacientes como crime de trato sucessivo alicerça-se, essencialmente, no facto de este tipo de ilícito se inserir na classificação de crimes de empreendimento.
6 - Nos crimes de empreendimento, actos que noutros casos seriam classificados como de tentativa são aqui tidos como actos de consumação do próprio crime verificando-se uma antecipação da tutela penal.
7 - Os crimes de empreendimento caracterizam-se ainda, por não existir uma sincronia entre a consumação formal e material na medida em que a consumação formal ou típica ocorre com o preenchimento integral dos elementos do tipo e a consumação material ou terminação com a realização completa do conteúdo do ilícito em vista do qual foi erigida a incriminação.
8 - No crime de tráfico de estupefacientes, no caso de o agente que cultiva e vende, tanto é punido o acto de cultivo de plantas (consumação formal), como a venda de estupefacientes (consumação material, terminação ou exaurimento do crime).
9 - Para o preenchimento do crime de tráfico de estupefacientes, não se exige o desfecho da globalidade da acção que o agente planeou.
10 - Sendo, embora, verdade que o tipo legal de crime se mostra preenchido com a prática do primeiro acto de execução, isto não significa que seja esse o momento da consumação do crime para efeitos de conferir a existência da relação de concurso superveniente de crimes.
11 - Para se determinar qual o momento da consumação relevante para conferir a existência da relação de concurso superveniente de crimes, no crime de tráfico de estupefacientes praticado em actos sucessivos, haverá que, em cada caso, analisar o comportamento global realizado pelo agente.
12 - Definir tal momento implica verificar quais os actos típicos, para além do primeiro - consumação formal -, praticados no desenvolvimento da actividade do agente que caibam ainda no conteúdo do ilícito, actos típicos não poderão deixar de ser tidos como relevantes para determinar qual o momento da terminação ou exaurimento do crime
13 - A consumação material do crime de tráfico de estupefacientes ocorrerá com a prática do último acto de execução na medida em que "embora a actividade de tráfico no tempo constitua um crime integrado por múltiplos actos, a verdade é que cada acto individualmente praticado não deixa de constituir um 'somatório de diferentes resoluções parcelares' ".
14 - O crime de tráfico de estupefacientes, como crime exaurido ou plurisubsistente que é, considera-se "praticado e consumado em qualquer (e em todos) os momentos em que o agente pratica alguma das acções típicas descritas no artigo 21.º do Decreto-Lei 15/93, de 22 de janeiro."
Face ao exposto, propõe-se, que o conflito de jurisprudência existente, seja resolvido nos seguintes termos:
No crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. no artigo 21.º n.º 1 do DL n.º 15/93, de 22/01, que se realize em actos sucessivos, para efeitos de conferir a existência da relação de concurso superveniente de crimes nos termos do artigo 78.º do Código Penal, deve atender-se à data em que foi praticado o último acto de execução.».
7 - Colhidos os vistos e reunido o Pleno das secções criminais, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
A. A oposição de julgados.
8 - Nos termos dos n.os 3 e 4 do artigo 440.º, compete à conferência decidir sobre a admissibilidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, conferindo os respectivos pressupostos formais e material enunciados nos artigos 437.º e 438.º Foi essa a tarefa do acórdão de 28.4.2022 referido, que, verificando a oposição prevista no artigo 437.º, determinou o prosseguimento do processo.
Porém, uma tal decisão não vincula o Pleno das secções criminais - artigo 692.º n.º 4 do CPC, ex vi do artigo 4.º -, razão por que importa aqui reexaminar a questão.
Assim:
O Acórdão Recorrido foi proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 27.10.2021 e transitou em julgado em 12.11.2021.
O Acórdão-Fundamento foi proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 23.9.2020 e transitou em 8.10.2020.
O recurso foi interposto pelo Recorrente, arguido condenado, em 13.12.2021, no 30.º dia posterior ao trânsito - artigo 438.º n.º 1 -, portanto.
Estão, assim, verificados os pressupostos formais do recurso, a que se referem os artigos 437.º n.º 1, 2, 4 e 5 e 438.º n.º 1: o recorrente tem legitimidade e interesse, o recurso é tempestivo, os acórdãos em conflito são de tribunais de Relação, não admitiam recurso ordinário e transitaram em julgado.
E - diz-se já - verifica-se igualmente o requisito da oposição relevante de julgados.
Com efeito e como com maior desenvolvimento se diz no acórdão preliminar:
- Os dois acórdãos em confronto «incidem sobre a mesma questão de direito de saber qual o momento em que ocorre a consumação do crime de tráfico de estupefacientes de estupefacientes que se realiza em actos sucessivos, isso para o efeito de conferir a existência da relação de concurso superveniente de crimes nos termos previstos no artigo 78.º n.os 1 e 2 do CP.».
- Fundaram, «no mais decisivo, as suas respostas nas, mesmas, normas - que, aliás, nenhuma sofreu alteração entre as datas em que cada um deles foi proferido - dos artigos 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93 e 78.º n.os 1 e 2 [e 77.º] do CP.».
- Laboraram sobre «quadros facto-procedimentais essencialmente idênticos, mesmo se o Fundamento em situação que relevava de ilicitude consideravelmente diminuída que justificou o apelo ao tipo privilegiado do artigo 25.º a) do Decreto-Lei 15/93», concretamente:
- Acórdão Recorrido:
- «De acordo com [...] [a] factualidade [apurada], verifica-se que o arguido AA praticou vários actos de tráfico de estupefacientes, em distintos momentos temporais, a saber:
- em 7.9.2017 (cfr o provado nos pontos 40. 41. 42. 47. 49. 50 e 53) [(9)];
- em 26.10.2017 (cfr o provado nos pontos 55. 63. 64. e 68) [(10)];
- em 3.1.2018 (cfr o provado nos pontos 70.75. 76 e 77);
- em 15.2.2018 (cfr o provado nos pontos 78. e 80 a 87) [(11)];
- em 12.3.2018 (cfr o provado nos pontos 92.93.94. 95 e 101) [(12)];
- em 19.4.2018 (cfr o provado nos pontos 122.124.132.133.134.135. 14 a 147 e 153 dos autos) [(13)].
Igualmente se provou na 1.ª instância que no dia 19.4.2018, o arguido aqui recorrente, foi detido à ordem destes autos, no interior da casa sita no n.º ... da rua... e nesta mesma data se efectuaram as apreensões de droga e outros artigos relacionados com tráfico, quer no interior da referida casa (cfr. o provado no ponto 153) quer nos seus dois veículos, um veículo automóvel e um motocico (cfr. o provado nos pontos 165 e 166).
Para além do mais, ficou ainda apurado que o arguido AA não actuou sozinho, mas sim conjuntamente com outros elementos, co-arguidos no processo 123/16, de acordo com um plano comum e em conjugação de interesses e vontades (cfr o provado em 178 e 179), razão pela qual, o mesmo foi condenado a título de co-autor e não em autoria material singular (artigo 26.º do C.P), pela prática de um crime de estupefacientes p.p no artigo 21.º do D.L n.º 15/93 de 22.1 com referência às tabelas I-A, I-B e I-C anexas.».
- Acórdão-Fundamento:
- «[V]ários actos de detenção de produtos estupefacientes não destinada ao autoconsumo e de venda (heroína e cocaína), no seu mor praticados pela arguida BB em co-autoria com a arguida CC, sua irmã, entre princípios de 2013 e 9.5.2014.».
- Responderam «contraditoriamente à questão enunciada, o Recorrido, elegendo o momento do último acto de execução, o Fundamento, o primeiro.».
- «As respostas foram, em ambos, expressas e tomadas a título principal.».
- «A vexata quaestio não foi objecto de anterior fixação de jurisprudência.».
9 - Motivos por que este Pleno das secções criminais confirma a decisão proferida em conferência na 5.ª Secção, por acórdão de 28.4.2022, de verificação da oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito.
Por isso que avançando para o momento ulterior do conhecimento do objecto do recurso stricto sensu e da formulação da proposição uniformizadora e sua projecção sobre o Acórdão Recorrido.
Assim:
B. A questão colocada; as teses em confronto.
10 - Como já dito, no PCC n.º 123/16.4SWLSB o Recorrente foi condenado na pena de 6 anos e 10 meses de prisão pela co-autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93, de 22.1, praticado em actos reiterados no intervalo de 7.9.2017 a 19.4.2018. Condenação essa proferida em 30.1.2020 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado a 4.3.2020, que confirmou acórdão do Tribunal Colectivo do Juiz... do Juízo Central Criminal... de 11.7.2019.
Em sentença de 28.10.2016, transitada em julgado em 29.11.2017, proferida no Proc. n.º 795/16... do Juízo Local..., tinha o Recorrente sido condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, numa pena de 1 ano e 8 meses de prisão, substituída pela da sua suspensão executiva por igual período e com sujeição a regime de prova, por factos praticados em 2.10.2016. Pena essa cuja execução se iniciou no momento daquele trânsito, mas que veio a ser revogada por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, dando lugar à execução da pena de prisão substituída.
Classificando o crime de tráfico de estupefacientes como de trato sucessivo - isto é, como crime que se traduz numa reiterada violação do tipo legal, através de vários actos que se sucedem num determinado período temporal, cometidos de forma homogénea e em obediência a uma unidade resolutiva -, entendeu o Acórdão Recorrido que o ilícito só se tinha consumado quando a prática de todos esses actos terminou - no caso, em 19.4.2018 -, que só então - sustentou - se concretizou a «realização completa do conteúdo de ilícito em vista do qual foi erigida a incriminação», é dizer, a sua consumação material.
Concluiu, assim, que tal consumação tinha ocorrido em momento muito posterior ao trânsito - em 29.11.2017, recorde-se - da condenação proferida no Juízo de Pequena Criminalidade, por isso que intercedendo entre os ilícitos uma relação de sucessão que não de concurso que pudesse justificar a cumulação superveniente das respectivas penas nos termos dos artigos 78.º e 77.º do CP.
E, conformemente, recusou a realização de audiência de julgamento prevista no artigo 472.º que, para efeitos da dita cumulação, o Recorrente requerera, desse modo confirmando o que vinha decidido em despacho de 16.5.2021 da 1.ª instância.
11 - Também no Acórdão-Fundamento, tirado no PCC n.º 58/13.2PEVIS do Juiz... do Juízo Central Criminal..., esteve em jogo despacho de 1.ª instância que indeferira a realização da audiência de julgamento prevista no artigo 472.º para o efeito da cumulação superveniente de penas impostas a uma das arguidas, concretamente, a de 2 anos e 6 meses de prisão pela prática de crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 25.º al.ª a) do Decreto-Lei 15/93, decretada nesse processo por acórdão do Tribunal Colectivo de 14.9.2016 e confirmada em acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.3.2017, transitado em 30.3.2017, e a de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, imposta no Proc. n.º 318/11... pela prática, como cúmplice, de idêntico crime, decretada por acórdão de 8.11.2013, transitado em 29.4.2014, e tudo assim com fundamento na posterioridade daquele relativamente à data do trânsito da condenação por este, por isso que não reconhecendo a 1.ª instância a relação de concurso prevista nos artigo 78.º n.os 1 e 2 do CP.
Considerou, porém, o tribunal de recurso que o crime de tráfico de estupefacientes consubstancia, no mais saliente, um crime de empreendimento - isto é, um crime que se caracteriza pelo facto de que os «actos que noutros casos seriam classificados como de tentativa são aqui tidos como actos de consumação do próprio crime», ocorrendo «uma antecipação da tutela penal, antes mesmo da lesão do bem jurídico» e gerando uma «"distonia entre a consumação formal e material"» - e exaurido - isto é, um crime «em que, após a realização da conduta que já integra a consumação formal ou típica, ainda pode haver a produção do resultado que ainda interessa à valoração típica porque ligado aos bens jurídicos protegidos pelo tipo» -, para chegar à conclusão, primeiro, de que a sua «consumação [...] dá-se com o primeiro acto que preenche os elementos típicos do crime e não com o último» - v. g., em casos de cultivo, detenção e venda de produto estupefaciente, tudo condutas típicas previstas no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93, a consumação ocorre logo com a primeira -, e, depois, que, assim, o ilícito imputado à arguida em causa se tinha consumado em princípios de 2013, antes portanto, do trânsito condenatório a 29.4.2014 no Proc. n.º 318/11..., por isso se verificando a relação de concurso superveniente que, nos termos do artigo 78.º sempre referido, justificava a cumulação de penas.
12 - A questão fundamental sobre que cumpre aqui reflectir é, pois, a de identificar, na estrutura do crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93, de 22.1, que se materializa na prática de vários actos típicos temporalmente sucessivos - ou, talvez mais correctamente, reiterados - o momento em que ocorre a consumação - a prática, na expressão da lei - que releva para a aferição do pressuposto do concurso superveniente de crimes previsto no artigo 78.º n.os 1 e 2 do CP, isto é, se tal momento é o da comissão do primeiro dos actos tipicamente previstos na norma, seja qual for a sua modalidade, ou se apenas o da do último deles.
Questão que convoca, instrumental e previamente, reflexão sobre o regime (de punição) do concurso de crimes e do seu conhecimento superveniente e sobre a estrutura e natureza do ilícito de tráfico de estupefacientes.
Assim e começando pelo regime do concurso.
a) O concurso de crimes de conhecimento superveniente.
13 - Cuida o artigo 77.º do CP do regime punitivo do concurso (efectivo) de crimes de conhecimento coevo, começando por dizer - n.º 1 - que «[q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena» e que «[n]a medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».
O n.º 2 acrescenta que «a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes».
E o n.º 3 remata que «[s]e as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores».
«Pressuposto, então, da aplicação deste regime de punição [...] é que o agente tenha praticado um crime antes de transitar em julgado da condenação por qualquer deles [...]
[...] [O] regime [...] aplica-se pois unicamente ao concurso efectivo, não ao concurso legal. No concurso legal, sob a aparência de uma pluralidade, o que na verdade existe é unidade criminosa: a única operação que tem que ser levada a cabo é de estabelecer qual o crime pelo qual o agente deve ser efectivamente punido procedendo-se depois quanto a este à operação da determinação da pena nos termos gerais.
[...]
Nenhuma distinção haverá que fazer consoante os crimes relevantes se encontrem numa relação de concurso real ou ideal, homogéneo ou heterogéneo: [...] a lei portuguesa transportou com inteira coerência para o regime da punição a sua concepção básica de integral equiparação do concurso ideal ao concurso real (art. 30.º-1).»(14).
A medida concreta da pena do concurso é determinada, tal como a das penas singulares, em função da culpa e da prevenção - artigos 40.º e 71.º do CP -, mas levando em linha de conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente (artigo 77.º, n.º 1, segundo segmento, do CP).
O que significa que à visão atomística inerente à determinação das penas singulares, sucede, nesta, uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a sopesar a gravidade desse ilícito global enquanto enquadrada na personalidade unitária do agente, «tudo deve[ndo] passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique»(15).
E sendo que nessa «avaliação da personalidade - unitária - do agente» releva «sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma "carreira") criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade», que só a primeira, que não a segunda, tem «um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta»(16).
E nela assumindo especial importância «a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)»(17), em que são de considerar «múltiplos factores entre os quais: a amplitude temporal da atividade criminosa; a diversidade dos tipos legais praticados; a gravidade dos ilícitos cometidos; a intensidade da atuação criminosa; o número de vítimas; o grau de adesão ao crime como modo de vida; as motivações do agente; as expetativas quanto ao futuro comportamento do mesmo»(18).
14 - Logrando-se julgar num mesmo momento e processo o arguido por todos os ilícitos até então praticados, o artigo 77.º do CP resolve esgotantemente a questão da punição do concurso de crimes.
Lição da prática judiciária é, porém, que nem sempre assim acontece, não raro sucedendo que o agente seja julgado em processos autónomos e, até, por ordem cronológica diferente da da comissão dos factos.
Intervém, nestes casos o artigo 78.º do CP que, tratando do concurso de conhecimento superveniente, dispõe que - n.º 1 - «[q]uando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» e que - n.º 2 - «[o] disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado».
Este artigo 78.º do CP incide, desse modo, sobre o mesmo objecto - o concurso efectivo de crimes que o artigo 30.º n.º 1 do CP define(19) - e prossegue o mesmo objectivo do artigo 77.º - a sua punição conjunta -, intervindo, porém, cada um no seu tempo e espaço próprios, o primeiro, até ao ponto em que seja possível julgar conjuntamente (todos) os ilícitos até então praticados, o segundo, sempre que, pelas vicissitudes da vida e dos processos, tenham tais crimes acabado por ter sido julgados em momentos e processos separados. Posto que, quanto ao segundo - sublinha-se -, todos os crimes tenham sido praticados antes da data trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer um deles - e data do trânsito e não data da condenação, por recomendação interpretativa do AFJ n.º 9/2016(20) - que, se algum(ns) houver posterior(es), «se bem que do ponto de vista da doutrina do crime, continue a existir uma "pluralidade" ou um "concurso" de crimes [...], a hipótese já não relevará, para efeitos de punição, como concurso de crimes» de conhecimento superveniente «mas só, eventualmente, como reincidência»(21).
E posto, igualmente, que - não menos importante - todas as condenações estejam firmadas na ordem jurídica, isto é, se mostrem transitadas em julgado - cf. n.º 2 do preceito.
15 - Vale, então, na articulação dos artigos 78.º e 77.º do CP a ideia de que descoberto que, após uma condenação com trânsito, o mesmo agente tinha praticado antes desse trânsito outro(s) crime(s), nem por isso tais ilícitos podem deixar de ser punidos conjuntamente, que subsiste a relação de concurso efectivo que, nos termos do n.º 1 do segundo, reclama tal punição.
E porque, idealmente, tais infracções deveriam ter sido julgadas à medida em que foram sendo praticadas ou, pelo menos, conjuntamente com as da primeira condenação, o caminho a seguir é o de ficcionar a «situação que existiria se o agente tivesse sido atempadamente condenado e punido pelos crimes à medida em que os foi praticando», aglutinando-se as penas autónoma e separadamente decretadas numa só sanção, numa pena única ou conjunta, logrando-se, a um mesmo tempo, punição que previna os factos na sua globalidade e na sua relação com a personalidade unitária do infractor e que neutralize os efeitos negativos decorrentes dos atrasos processuais ou do desconhecimento e, ou, ineficácia do sistema judiciário, reflectindo «o atraso da jurisdição penal em condenar o arguido e a atitude do próprio agente em termos de condenação pela prática do crime [...]»(22).
16 - Além de conditio sine que non dela, cada trânsito em julgado desempenha uma função estrutural, e estruturante, no concurso superveniente, materializando um marco intransponível no sentido de que todos os factos ilícitos praticados antes desse momento integram um ciclo cumulatório e de que todos os posteriores não poderão ser juridicamente agregados àqueles outros, indo, isso sim, ou manter a sua autonomia ou, se for o caso, fazer parte de um novo ciclo: «o trânsito em julgado de uma condenação em pena de prisão, consubstanciando a advertência solene de que há que tomar novo rumo, obstará a que com essa infracção ou outras cometidas até esse trânsito, se cumulem outras infracções que venham a ser praticadas em momento posterior a esse mesmo trânsito, o qual funcionará assim como dique, barreira excludente, não permitindo o ingresso no círculo dos crimes em concurso, dos crimes cometidos após aquele limite»(23).
Aliás, bem se intui a razão de ser de uma tal fronteira, nem mais nem menos a de que, após ser confrontado com o trânsito em julgado de uma decisão condenatória, a reiteração criminosa do agente é mais grave do que antes de existir qualquer condenação, demonstrando o seu comportamento criminal sucessivo indiferença perante o juízo judicial censório e revelando que a pena aplicada não surtiu, afinal, o efeito impeditivo da prática de novos ilícitos que se esperava. Bem se podendo dizer com, v. g., o acórdão do STJ(24) de 18.1.2012(25) que, «concretizada a admonição na condenação transitada, encerrado um ciclo de vida, impõe-se que o arguido a interiorize, repense e analise de forma crítica o seu comportamento anterior, e projecte o futuro em moldes mais conformes com o direito, de tal modo que, a sucumbir, iniciando um ciclo novo, reincidirá»(26).
Como tal - repete-se -, cada trânsito em julgado cristaliza a situação jurídica do agente, pelo que, escolhendo voltar a delinquir, não obstante sabedor da sua anterior condenação e da pena que lhe foi aplicada, inicia-se um novo ciclo de infracções. E a cada conjunto de crimes delimitado por um novo trânsito em julgado posterior, corresponde uma nova pena única, e assim sucessivamente, estabelecendo sempre a lei, como linha de clivagem, a data de tal trânsito.
17 - De resto, se assim não fosse, e se o sistema de cúmulo jurídico de conhecimento superveniente fosse aplicado em todas as situações em que houvesse uma pluralidade de penas independentemente da data da prática dos factos e do trânsito em julgado das várias condenações, tal perverteria, no limite, o sistema penal: é o que aconteceria, pelo menos, no cenário em que um agente tivesse sido condenado, com trânsito, no máximo de prisão por 25 anos de prisão admitido pelo artigo 41.º n.os 1 e 2 do CP, caso em que cometendo, depois, um ou vários crimes não cumpriria por eles qualquer outra pena, beneficiando de uma impunidade absoluta e gozando como que de uma permissão legal para a prática de quaisquer ilícitos, por mais graves que fossem(27).
E isso para além de que os próprios princípios subjacentes ao cúmulo jurídico sairiam frustrados com tal entendimento, que assentam na ideia da efectiva separação entre os factos praticados antes e depois da solene advertência que o trânsito em julgado da decisão condenatória representa e realiza(28), não se concebendo, sequer, possível a análise conjunta dos factos e da culpa por referência à personalidade unitária do agente que o artigo 78.º do CP, por remissão para o artigo 77.º n.º 1, pretende, quando uns são anteriores e outros posteriores àquele momento.
18 - A rematar, então, nesta parte em jeito de síntese, dir-se-á que são fundamentalmente três os pressupostos que convocam o instituto do concurso superveniente de crimes previsto no artigo 78.º n.º 1 do CP, o (i) da pluralidade de crimes cometidos, com julgamentos efectuados em momentos diferentes; o (ii) do trânsito em julgado de todas as condenações; e o (iii) da anterioridade desses crimes no sentido de que tenham sido cometidos pelo mesmo agente antes de qualquer deles ter sido objecto de uma sentença transitada em julgado(29).
Asserções que convocando - principalmente, a segunda e a terceira - para o primeiro plano a questão do momento da prática do ilícito - afinal, o factor (mais) determinante do se, do quando e do quanto da figuração da relação de concurso superveniente - mais alertam, se necessário fosse, para a necessidade de, na estrutura de um crime como o de tráfico de estupefacientes cuja prática se desagregue numa pluralidade de actos reiterados ou repetidos, identificar com precisão o que, por referência ao momento do mencionado trânsito, espoleta tal relação.
É o que, ora, segue.
b) A estrutura e natureza do crime de tráfico de estupefacientes.
19 - Decorre, então, do artigo 78.º do CP que é o trânsito em julgado da (primeira) condenação que define de forma absoluta os limites do concurso superveniente, havendo de nele ser incluídos todos os factos ilícitos praticados antes desse momento temporal - que só esses estão na relação de concurso prevista no artigos 77.º e 30.º n.º 1, do CP - e dele devendo ser excluídos os ocorridos posteriormente - por em relação de sucessão de crimes.
Contudo, se ilícitos há que, instantâneos, se traduzem na prática de um único acto ou na génese de um único evento cuja produção se esgota num único momento(30), e, por isso, não levantando dificuldades de maior em posicioná-los no antes ou no depois daquele trânsito, já as coisas podem ser mais complexas quando a acção se desenvolve na prática de vários actos ao longo de período de tempo mais ou menos alargado, maxime, havendo actos criminalmente típicos ocorridos, uns, no anterior, outros, no posterior, ao referido trânsito.
Como é o caso dos crimes de tráfico de estupefacientes de que este acórdão se ocupa.
E é neste cenário em que o trânsito em julgado da primeira condenação ocorre enquanto ainda decorre a segunda conduta criminosa, que cabe perguntar, como neste recurso vem perguntado, se, para os efeitos da respectiva punição, se está perante um concurso ou uma sucessão de crimes e qual a data que releva para demarcar a respectiva linha de fronteira.
20 - Importando, então, reflectir sobre a estrutura e a natureza do crime de tráfico de estupefacientes, diga-se logo que se centrarão atenções tão-só sobre o tipo fundamental ou matricial do artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93, de 22.1, por não interessarem autonomamente à economia do raciocínio nem as previsões, mais específicas, dos n.os 2, 3 e 4 da norma(31), nem os tipos, agravado, do tráfico qualificado do artigo 24.º(32) e, privilegiado, do traficante-consumidor do artigo 26.º(33), e nem sequer, o, (também) privilegiado, do tráfico de menor gravidade do artigo 25.º(34) que, não obstante em jogo no Acórdão-Fundamento, comunga da estrutura típica objectiva e subjectiva do tipo matricial de que apenas se distingue em razão do quantum, consideravelmente diminuído, da ilicitude do facto.
(a). O crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93, de 22.1.
21 - Dispõe o artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93 que comete o ilícito de tráfico de estupefacientes «[q]uem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.».
Trata-se de uma previsão típica muito generalizada - uma previsão «assumidamente compreensiva e de largo espectro», diz-se no AcSTJ de 29.10.2008(35) -, abrangendo todo o caminho percorrido pelo produto estupefaciente desde a detenção, plantação ou produção até à efectiva entrega aos consumidores, enumerando-se de forma exaustiva e praticamente esgotante as condutas congemináveis que, aliás, vão muito além do tráfico stricto sensu considerado como a efectiva colocação da droga ao alcance dos consumidores(36).
O bem jurídico protegido é, primacialmente, a saúde pública(37). Mas também, a vida, a saúde e a coesão inter-individual das organizações fundacionais da sociedade, a saúde individual dos consumidores, a liberdade individual, a estabilidade familiar e, até, a economia do Estado, isso porquanto «o tráfico propicia economias paralelas, subterrâneas, de complexa sindicância, fazendo do tráfico um negócio temível e comunitariamente repugnante, fundamentalmente pela devastação física e psíquica do consumidor, geralmente as camadas mais jovens do tecido social, instabilidade e, na maior parte dos casos, a desgraça total do seu agregado familiar, censurável em alto grau no plano ético-jurídico, até pelos custos sociais a que conduz, relacionados com o absentismo laboral e a contracção de doenças transmissíveis.»(38).
Tipo plural, então, «com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito»(39), corporizam prática do crime desde actos que, na dinâmica das formas da sua realização, ainda seriam, noutros casos, tidos como meramente preparatórios - e, por isso que, em princípio, não puníveis nos termos do artigo 21.º do CP - ou de tentativa, como aconteceria, v. g., com o cultivo, produção, fabrico, extracção, preparação, compra, recebimento, transporte, importação, exportação, colocação em trânsito ou simples detenção de estupefaciente - até situações que são de completa realização da conduta proibida e de produção do evento típico - como v. g., a da venda ou cedência a terceiro da substância ou produto ilícitos.
Sendo que - antecipa-se - a construção de uma previsão legal agregadora de condutas tão diversas e tão heterogéneas só se explica em razão da existência de «um denominador comum [...], exactamente a [...] aptidão», de todas e cada uma delas, «para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação»(40).
O que chama a terreiro as primeiras arrumações categoriais do ilícito de tráfico de estupefacientes que aqui cumpre salientar, a de se tratar de crime de perigo comum e abstracto.
Com efeito:
(b). O tráfico como crime de perigo.
22 - Subscrevendo as palavras do legislador penal em 1982(41) acerca da modulação e fundamento material dos crimes de perigo:
- «A lei penal, relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstracto) para que dessa forma o tipo legal esteja preenchido. O dano que se possa vir a desencadear não tem interesse dogmático imediato. Pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social. Adiante-se que devido à natureza dos efeitos altamente danosos que estas condutas ilícitas podem desencadear o legislador penal não pode esperar que o dano se produza para que o tipo legal de crime se preencha. Ele tem de fazer recuar a protecção para momentos anteriores, isto é, para o momento em que o perigo se manifesta».
Ora, foi precisamente uma ideia assim que norteou o Decreto-Lei 15/93 na construção do tipo matricial do tráfico, sendo muito evidente que, «nas condutas que [nele] descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine», fazendo «recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta»(42).
E, daí, o seu, comummente afirmado, acolhimento na figura do crime de perigo, é dizer - repete-se - na de ilícito que, baseando-se «na suposição legal de que determinados comportamentos são geralmente perigosos» para os bens ou valores protegidos pela incriminação, se basta com «a aptidão genérica de determinadas condutas para constituírem um perigo» de lesão deles(43), por isso fazendo recuar a tutela penal reclamada pelo crime consumado para fases mais precoces do iter criminis em que ainda não ocorreu o efectivo atingimento dos bens ou interesses protegidos, como as dos actos preparatórios ou da tentativa.
E, no seio de categoria de crime de perigo, é, igualmente, pacífica a sua catalogação em de perigo abstracto - porquanto o perigo resultante da acção não está individualizado em qualquer vítima ou em qualquer bem, não sendo a sua produção ou verificação elemento do tipo, tão-só constituindo fundamento da punição, e sem que, por isso, haja que «comprovar, no caso concreto, se esse perigo efectivamente se verifica»(44) - e de perigo comum - porquanto «o perigo se expande relativamente a um número indiferenciado e indiferenciável de objectos de acção sustentados ou iluminados por um ou por vários bens jurídicos»(45), sendo susceptível de causar um dano difuso com potência expansiva, apto a causar alarme social(46).
Características do tipo estas que, de resto, explicam «que seja punida a mera detenção de estupefacientes» - ou o seu (mero) cultivo, produção, fabrico, extracção, preparação, compra, recebimento, transporte, importação, exportação ou colocação em trânsito - «sem que chegue a ocorrer venda ou cedência destes e, portanto, efectivo perigo ou prejuízo para a saúde de consumidores concretos, bastando o perigo de que, em abstracto, tal venha verificar-se»(47). E sem que seja necessário - insiste-se -, com relação aos actos que não envolvam, directa e imediatamente, introdução no circuito da distribuição, apurar o concreto fim visado, não exigindo o tipo legal a existência de uma efectiva transmissão a terceiros do produto estupefaciente, precisamente em razão do perigo que cada uma das actividades descritas representa de a droga vir a ser traficada, e sendo que «[o] conhecimento» daquele fim «só pode interessar para efeitos de determinação da ilicitude do facto e, no caso de ser para o consumo próprio, para a qualificação do crime»(48).
(c). O tráfico como crime de empreendimento e crime exaurido.
23 - Aparentadas e, ou, conexionadas com as que o qualificam como crime perigo abstracto andam as ideias, (também) comummente afirmadas na doutrina e na jurisprudência, de que o crime de tráfico de estupefacientes é um ilícito de empreendimento e um ilícito exaurido ou excutido.
Veja-se o que com cada uma das classificações se quer significar.
«Os crimes de empreendimento [...] (classificação usada no sistema alemão) também designados por crimes de atentado no sistema italiano, são caracterizados pelo facto de os atos que noutros casos seriam classificados como de tentativa são aqui tidos como atos de consumação do próprio crime. Ou seja, são crimes onde ocorre uma antecipação da tutela penal, antes mesmo da lesão do bem jurídico, constituindo condutas criadoras de um perigo para o bem jurídico, condutas que integram atos dirigidos de forma imediata à realização do tipo e idóneas à criação daquele perigo.
Tratando-se de casos onde ocorre uma equiparação entre a tentativa e a consumação [...], verifica-se não só uma antecipação da tutela penal, mas também uma punição mais grave do que aquela que ocorreria se aqueles mesmos atos fossem punidos segundo as regras da tentativa (uma vez que não há lugar à atenuação da pena como ocorre nos casos de tentativa; cf. art. 23.º, n.º 2, do CP).»(49).
E, revista a descrição típica e a compreensão do conceito, bem se compreende a subsunção do tráfico nesta categoria ou não preencha por inteiro a respectiva tipicidade que não apenas a tentativa prevista no artigo 22.º do CP, v. g., a detenção, à margem de permissão legal, de alguma planta, substância ou preparação enumerada nas tabela I a III anexas ao Decreto-Lei 15/93, posto que não exclusivamente destinada ao autoconsumo, mesmo que o propósito último do agente não seja a sua venda ou cedência ou que, sendo-o, estas não cheguem a concretizar-se, maxime, por circunstância alheia à sua vontade.
24 - Identificativo, então, dos crimes de empreendimento é que «[o] resultado típico», a consumação, se alcança «logo com o que normalmente configura a realização inicial do iter criminis (uma mera tentativa), precisamente porque já aí, antes de se verificar qualquer lesão, se verifica o perigo dessa lesão», punindo-se o ilícito enquanto «um processo, e não apenas como resultado de um processo»(50).
Tal particularidade - isto é, a circunstância de o estádio de realização da tipicidade ocorrer logo com o primeiro acto praticado que preenche os elementos objectivos do tipo, independentemente de a finalidade última perseguida pelo agente ainda não ter sido totalmente alcançada - alerta para uma especificidade dos crimes desta categoria, precisamente a de neles se poderem divisar, ao menos idealmente, dois momentos de consumação, quais sejam o da consumação formal - que se verifica por ocasião da prática daquele primeiro acto - e o da consumação material, terminação ou conclusão - que ocorre quando o agente, com a sua continuada actuação, preenche integralmente todos os elementos do tipo, alcançando a «"realização completa do conteúdo do ilícito em vista do qual foi erigida a incriminação», ou, dito de outro modo, verificando-se o «resultado que interessa ainda à valoração do ilícito por directamente atinente aos bens jurídicos tutelados e à função de protecção da norma".»(51).
E, conferindo para rematar nesta parte, é muito nítida na estrutura do crime de tráfico de estupefacientes essa distonia entre consumação formal e consumação material(52), acontecendo aquela com a prática do primeiro acto do agente relacionado com a droga em qualquer das modalidades enumeradas no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93 - e independentemente de, sim ou não, se lhe seguirem outras de similar ou de diversa índole - e, esta, com a cessação da actividade com ela relacionada, no limite - mas não necessariamente -, com a sua introdução no circuito da distribuição e consumo, maxime a troco de compensação económica.
25 - Associada, de seu lado, à ideia da consumação material ou terminação anda a de exaurimento do crime.
Na lição de Cavaleiro de Ferreira a «consumação material ou exaurimento consistirá na produção dos efeitos ou consequências, que não sendo embora exigidos como elementos essenciais da incriminação, constituem a plena realização do objectivo pretendido pelo agente; [...] a consumação ou exaurimento terá lugar mediante a obtenção efectiva das consequências prejudiciais que a lei pretende evitar ou que o agente se propusera»(53).
E crime exaurido, ou excutido - outra das categorias elaboradas pela doutrina - é o «em que, após a realização da conduta que já integra a consumação formal ou típica, ainda pode haver a produção do resultado que ainda interessa à valoração típica porque ligado aos bens jurídicos protegidos pelo tipo»(54).
Como - pensa-se - facilmente se intuirá, não há incompatibilidade substancial entre os conceitos de empreendimento e de exaurimento: se, como impressivamente afirma Lobo Moutinho, «se pode dizer que a consumação [formal] representa o ápice do iter criminis, já não se [pode] aceitar que com ela» termina(55), podendo ser exaurido o crime empreendido quando «praticado até à sua completa realização, até ao seu exaurimento»(56).
26 - Um dos ilícitos que, neste enfoque, é mais frequentemente apelidado de crime exaurido é o de tráfico.
E percebe-se tanto melhor porquê quanto mais numerosos e, ou, diversificados forem os actos praticados e mais próxima da terminação fique a actividade do agente, mormente, quando praticando actos do catálogo da artigo 21.º n.º 1, v. g., comece por cultivar a planta; depois, a partir dela prepare o produto estupefaciente; depois, ainda, o transporte; e, por fim, o venda, seja ao consumidor seja para revenda. Significando, já se convirá, os três primeiros momentos consumação formal - é dizer, comportamentos que numa tipificação de outra natureza poderiam representar simples tentativa ou, até, preparação, mas que convocam a tutela penal reclamada pela realização integral do tipo - e, o último, exaurimento, terminação ou consumação material - isto é, a «produção dos efeitos ou consequências, que não sendo embora exigidos como elementos essenciais da incriminação» (logo) preenchidos por ocasião da (primeira) consumação formal, «constituem a plena realização do objectivo pretendido pelo agente» e efectiva, e completa, lesão do(s) bem(s)jurídico(s) protegido(s).
(d). O crime de trato sucessivo.
27 - À ideia do empreendimento e da reiteração ou repetição que, nas situações mais comuns se identifica na comissão do crime de tráfico de estupefacientes - de um lado, quem vendeu necessariamente deteve e, se não cultivou, produziu ou extraiu, seguramente adquiriu (onerosa ou gratuitamente) e transportou ou fez transitar; de outro lado, quem assim agiu, fê-lo, no mais frequente, por diversas vezes e ao longo de períodos de tempo mais ou menos alongados - anda ligada uma outra categorização, qual seja a de crime de trato sucessivo.
Conceito de génese jurisprudencial, tem raízes já antigas nas decisões deste STJ, remontando as primeiras notícias dele aos anos 80 do século passado, construído em torno de infracções como as de tráfico de estupefacientes - «para fazer face a algum entendimento quanto à possibilidade de continuação criminosa do crime de tráfico de estupefacientes quando se realizavam vários atos de venda»(57) -, fiscais ou contra a segurança social(58), burla qualificada(59) e de falsificação de moeda(60).
Mais tarde, o conceito estendeu-se aos crimes sexuais(61).
E a discussão, na jurisprudência e na doutrina, em torno da propriedade, e utilidade, da figura aprofundou-se nos tempos mais recentes, principalmente, no domínio dos crimes sexuais a partir da alteração introduzida no artigo 30.º n.º 3 do CP pela Lei 40/2010, de 3.9(62), a ponto de se poder dizer que, nesse específico contexto, a ideia do crime de trato sucessivo está, hoje, praticamente abandonada(63) (64).
28 - No que em particular respeita ao ilícito de tráfico de estupefacientes, a ideia de crime de trato sucessivo desenvolveu-se em torno da questão de saber se, desagregando-se a actividade criminosa, como no mais comum das situações se desagrega, na prática, continuada no tempo, de diversos actos dos previstos no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93, por forma essencialmente homogénea e temporalmente próxima, tanto corresponderia à comissão de apenas um ou, antes, de vários crimes, o mesmo é dizer, se tanto deveria ser tratado como uma situação de unidade ou de pluralidade infraccional(65).
E a resposta preconizada pela teorização jurisprudencial, recusando a priori a intervenção da figura do crime continuado previsto no artigo 30.º n.º 2 do CP - e, recusando-a, por não resultarem preenchidos os respectivos pressupostos, «nomeadamente, a existência de uma situação exterior que diminuísse a culpa do agente» que «nada justificava uma ideia de menor exigibilidade, antes pelo contrário, havia um aumento da culpa pela prática sucessiva de vários atos integradores do crime de tráfico de estupefacientes»(66) -, foi - é - no sentido da unidade infraccional operada, esta, por uma unidade resolutiva comum que aglutina num único crime uma pluralidade de condutas homogéneas - e homogéneas por referentes ao mesmo tipo de ilícito ou, pelo menos, a tipos que, fundamentalmente, protegem o mesmo bem jurídico - que, se individualmente consideradas, já preencheriam o tipo.
Unidade resolutiva que, ainda assim, nem sempre significou o mesmo para todos, que, para uns, sendo coisa diferente da resolução criminosa única, consiste, antes, num conjunto de resoluções criminosas, em que «o dolo do agente engloba ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar»(67), representando cada um deles uma fracção daquele todo, ocorrendo apenas um descarga dessa resolução criminosa inicial sem necessidade da sua renovação, e sendo a homogeneidade resolutiva que preside ao comportamento que o torna uno(68); e que, já para outros, equivalerá a mesma resolução criminosa, parecendo querer-se significar que se trata de uma única resolução que, persistindo e norteando todo o comportamento, produz apenas um crime(69).
29 - Muito sensível à casuística judicial de onde, aliás, emerge, não se pode dizer que se tenha atingido uma definição acabada do crime de trato sucessivo em que convirjam tanto os seus apaniguados como os seus detractores. De resto, a falta de consenso começa, logo, na própria nomenclatura, vendo-se, com alguma frequência, utilizar indiferentemente qualificações como as de crime de empreendimento, exaurido ou de trato sucessivo por referência à mesma realidade ou a mesmo aspectos dela(70).
Uma das sínteses definitórias mais depuradas do conceito encontra-se no AcSTJ de 30.9.2015(71), onde se assenta em que crime de trato sucessivo é o em que ocorre uma «unificação das condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma, uma só resolução criminosa, desde o início assumida pelo agente», sendo «essa unidade de resolução, a par da homogeneidade da actuação e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação num só crime». E a que, desenvolvendo e fundamentando, se acrescenta que «[é] essa unidade de resolução, a par da homogeneidade de actuação, e da proximidade temporal, que constitui a razão de ser da unificação dos vários actos sucessivos num só crime»; que «[o] dolo do agente abarca ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, para tanto preparando, se necessário, as condições de realização, estando-se no plano da unidade criminosa»; que «a reiteração, revelando uma resolução determinada e persistente do agente, traduz uma culpa agravada»; e que «[h]á um único dolo a abranger todas as condutas sucessivamente praticadas e essa unidade de resolução, a par da homogeneidade das condutas e da sua proximidade temporal, configura o trato sucessivo.».
30 - Mas (re-)visto um tal entendimento do trato sucessivo uma questão de imediato emerge, qual seja a da sua proximidade relativamente à figura do crime continuado de que fala o artigo 30.º n.º 2 do CP. Pelo que caberá perguntar se afinal, pese embora as diferentes designações, se não tratará das mesmas realidades ou, pelo menos, de simples variantes delas. Como, de resto é acusação corrente na doutrina e até na jurisprudência de que, sem prejuízo do que à frente melhor se dirá, desde já se dá nota.
E avançando de imediato para a resposta, breve, esclarece-se que, tendo de facto vários pontos de contacto, outros há em que as figuras se apartam e em termos de se poder afirmar a sua autonomia se não antinomia.
Com efeito:
Na definição do artigo 30.º n.º 2 do CP, «[c]onstitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente». E da respectiva punição trata o artigo 79.º n.º 1 do CP, estabelecendo que «O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação».
O crime continuado propõe-se, assim, tratar no quadro de uma única realização criminosa o preenchimento plúrimo pelo mesmo agente do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que protejam essencialmente os mesmo bens jurídicos, presidido por distintas resoluções criminosas, verificados os requisitos da homogeneidade de execução, da proximidade temporal das condutas e da existência de uma envolvente externa que, propiciando e facilitando as sucessivas repetições, diminui a exigibilidade do comportamento conforme ao direito e justifica a aglutinação e punição de tudo como se de uma só infracção se tratasse.
O que, em boas contas, significa que o crime continuado não traduz uma modalidade própria da realização do crime estritamente único, antes uma forma especial de punição de um concurso de crimes derrogatória dos artigo 30.º n.º 1 e 77.º do CP, um tertium genus relativamente ao crime simples e ao concurso de crimes(72), uma «unificação jurídica de um concurso efectivo de crimes»(73).
Ora, não é isto o que se passa com o crime de trato sucessivo, pelo menos na formulação mais evoluída que acima se extractou: debruçando-se, tal como aquele outro, sobre situações da realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime pelo mesmo agente, de forma homogénea e temporalmente próxima, não lhe subjaz nenhum condicionalismo que, propiciando ou facilitando a reiteração, torne menos exigível o comportamento devido e, consequentemente, diminua a culpa - pelo contrário, a repetição, evidenciando firmeza e persistência, se não progressão, do propósito criminoso, agrava-a -, não operando qualquer unificação jurídica de um concurso de crimes, antes evidenciando uma unidade de propósito - e chame-se ela unidade resolutiva, como a maioria pretende, ou até resolução única como alguns chegam a admitir(74) - que, na acepção mais corrente do artigo 30.º n.º 1 do CP, decide pela verificação do crime estritamente único.
Numa palavra, na dicotomia unidade/pluralidade infraccional de que trata o artigo 30.º do CP, enquanto o crime continuado ficciona uma unidade jurídica mediante a unificação de um concurso efectivo de crimes, já o trato sucessivo, atento às especificidades do tipo criminal, encara a reiteração das condutas, não obstante preenchedoras cada uma delas da (totalidade da) tipicidade objectiva e subjectiva, como parcelas de uma mesma sequência e de um mesmo todo que representam uma, e apenas uma, una e indivisível realização do tipo de ilícito.
31 - Isto dito, e passando às duas últimas arrumações categoriais mais comuns do crime de tráfico que cumpre abordar:
(e). O crime habitual e o crime de múltiplos actos.
32 - Mais vivamente contestado no seio dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual a ponto de hoje, e como já dito, ser ideia praticamente abandonada nos entendimentos deste STJ nessa área, tanto não significa que a figura do crime de trato sucessivo não venha merecendo reservas também noutros contextos, inclusivamente, na específica temática do crime de tráfico de estupefacientes onde, apesar de tudo, continua a merecer aceitação em boa parte da jurisprudência(75).
Testemunho disso, na doutrina, pode ver-se, v. g., em Lobo Moutinho(76), que, mais do que descartar o enquadramento no crime de trato sucessivo, lhe prefere o no crime habitual, cuja raiz colhe directamente na lei - concretamente, nos artigos 119.º n.º 2 al.ª b) do CP(77) e 19.º n.º 3 no CPP(78) - e que define como «um crime em que a consumação se protai no tempo (dura) por força da multiplicidade da prática de actos "reiterados"»(79) - e reiterados, no sentido de homogéneos e de «temporalmente separados»(80), ainda que próximos -, aliás, distinguível quer do crime permanente - em que a persistência temporal na consumação se dá mediante a prática de um só acto que se protai, «o que envolve a sua rigorosa continuidade»(81) -, quer do crime contínuo - em que «os actos que vão consumando o crime» são sucessivos, no sentido que «praticados em actos seguidos»(82) -, a que (também) se referem os mesmos preceitos(83).
E exemplos de idênticas reservas podem ver-se, igualmente, na jurisprudência, designadamente, (logo) no voto de vencido aposto no AcSTJ de 29.11.2012 já referido e no AcSTJ de 20.2.2019(84), que também preferem o enquadramento na figura, legal, do crime habitual, valendo a pena, por eloquentes, transcrever deste último os passos que seguem:
- «Entendemos, salvo o devido respeito, que na punição do crime de tráfico de droga não se coloca qualquer problema particular relacionado com o número de crimes que tenha que ser resolvido por apelo ao chamado crime de trato sucessivo [...]. Com efeito, e considerando aqui apenas o modo da respectiva execução, ao contrário de qualquer dos crimes sexuais, o chamado crime de tráfico de droga desenvolve-se, naturalmente, no quadro de uma actividade criminosa, como de resto decorre da epígrafe do tipo base do artigo 21.º do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro (tráfico e outras actividades ilícitas) [...]. O artigo 21.º constitui um tipo de realização plurifacetada, abarcando na sua previsão uma multiplicidade de condutas potencialmente perigosas para a saúde pública, por direta ou indirectamente induzirem ao consumo. Mas a verdade é que todo o regime se encontra desenhado em função do exercício de uma actividade, que é aliás inerente aos conceitos associados a formas específicas de realização típica como cultivar, produzir, fabricar, pôr à venda, distribuir, transportar, importar, exportar, etc., mencionados nos artigos 21.º, n.º 1 e 22.º n.º 1. [...].
Tal não significa que a simples venda ou cedência de estupefaciente não integre a prática de crime. Porém não é uma situação destas que preside à criminalização do tráfico de droga, não sendo mesmo difícil demonstrar que uma tal actividade, isolada e meramente ocasional, desligada de um qualquer contexto de reiteração, assume diminuta dignidade penal, visto que o próprio crime de tráfico de menor gravidade (artigo 25.º) importa dos artigos 21.º e 22.º a factualidade típica.
Ou seja, o chamado crime de tráfico de droga é essencialmente um crime habitual de execução reiterada só deixando de haver unidade criminosa quando, por decisão do agente ou por razões a ele alheias, por exemplo por intervenção das autoridades, ocorra uma situação de descontinuidade da conduta típica.
Afigura-se por isso que a analogia entre crimes sexuais e crime de tráfico de droga, mesmo no simples plano da sua execução prolongada [...], não dá contributo relevante para a aceitação do chamado crime de trato sucessivo.»(85).
- «Não há, tanto quanto sabemos, qualquer ordenamento jurídico-penal onde se fale em crime de trato sucessivo. Entre nós constitui esse designado crime uma criação jurisprudencial [...], mas sem qualquer respaldo na lei ou apoio relevante da doutrina e que corresponde, grosso modo, ao crime continuado, não tal como ele é consagrado na legislação portuguesa mas como é entendido, por exemplo, na Alemanha, Espanha ou Itália [...]», entre cujos requisitos não se leva em «[...] consideração a culpa do agente.
[...].
Em boa verdade o chamado crime de trato sucessivo mais não é do que uma tentativa de ampliar a nossa construção jurídica do crime continuado, despojando-o da marca essencial que assume no nosso ordenamento jurídico-penal, que é a realização plúrima da acção típica no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente (artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal). É aí que reside a verdadeira marca identitária do crime continuado [...], que se manifesta designadamente nos casos de pluralidade de resoluções, (se bem que a continuação criminosa não seja incompatível com a verificação de um dolo conjunto ou dolo continuado [...], dado que, como escreve Mezger, "... o característico do crime continuado é precisamente sucumbir cada vez de novo à tentação" [...].
A ideia de que o elemento diferenciador entre crime continuado e crime de trato sucessivo é de que, "ao contrário do que sucede no crime continuado, nos crimes de trato sucessivo não há uma diminuição considerável da culpa, mas, sim, um seu agravamento crescente à medida que a conduta se vai repetindo", não passa de um sofisma. No crime continuado tal como previsto no artigo 30.º, n.º 2 do C. Penal, a diminuição da culpa refere-se à reiteração da conduta lesiva mas não à conduta global no âmbito da qual é necessariamente mais elevada. Na chamado crime de trato sucessivo afirma-se a progressiva medida da culpa nas sucessivas acções, para depois a mitigar no contexto global (Mantovani). Em qualquer caso a punição é pela pena correspondente ao crime mais grave, eventualmente exasperada em função da gravidade das restantes condutas tendo em conta o grau de ilicitude, medida da culpa e das necessidades de prevenção [...], pelo que crime continuado ou o dito crime de trato sucessivo, a ser admitido, seriam na prática vias diferentes para se chegar a um mesmo resultado.
[...].».
Ainda no plano das visões alternativas, há quem, ou dentro da catalogação como crime habitual ou como categoria autónoma(86), e apelando ao conceito de unidade típica de acção(87) qualifique o tráfico como crime de múltiplos actos, ou seja, como «crime em que a realização de um e qualquer deles já permite integrar o tipo, determinando uma unidade típica de acção [...] relativamente a todos os atos que o integram»(88), ou - se se preferir uma definição mais descritiva -, um crime cuja figuração típica reflecte uma estrutura objectiva plural ou reiterativa constituída por acções que facilmente se acompanham umas às outras e que se repetem, formando uma atividade criminosa unitariamente punida(89), de que é sugestiva indicação uma descrição típica, como na hipótese, com múltiplos vocábulos verbais(90 91).
(f). Nota conclusiva - o crime de tráfico de estupefacientes como crime único ou unitário.
33 - Acaba, então, de se ver que o crime de tráfico vem sendo rotulado - num casos mais incontestadamente; noutros, com divergências mais ou menos extremadas -, como crime de perigo, abstracto e comum; como crime de empreendimento; como crime exaurido; como crime de trato sucessivo; e como crime habitual e, ou, de múltiplos actos.
Como resultará - pensa-se - do que a propósito se foi dizendo, mais do que pré-compreensões incompatíveis e mutuamente excludentes, traduzem esses nomina conceitos funcionais-analíticos que, cada um no seu enfoque, isola e valoriza determinada face ou conjunto de faces do tipo de ilícito que, complementando-se nas suas múltiplas, e multiformes, concretizações na realidade da vida, convergem na figuração dele como um todo ou uma unidade: que isso é assim relativamente aos rótulos de crime de perigo (abstracto e comum), de empreendimento, exaurido ou de trato sucessivo é algo que o próprio encadeamento expositivo dos n.os 19. a 26. supra seguramente evidenciará; que isso é, também, assim mesmo na, suposta, divergência das ideias do crime de trato sucessivo e do crime habitual e, ou, de múltiplos actos, é algo em que os próprios doutrinadores convergem, como é o caso de Lobo Moutinho - que, depois de arrolar o crime de tráfico entre os habituais e de afirmar a correspondência destes «a casos especiais em que a estrutura do facto criminoso se apresenta ou, pelo menos, pode apresentar-se mais complexa do que habitualmente sucede e se desdobra numa multiplicidade de actos semelhantes que se vão praticando ao longo do tempo mediando intervalos entre eles», afiança que «[é], no fundo, isso que significa a qualificação do crime como crime de trato sucessivo» e que, a par da antecipação da tutela penal, «[é] também esse um dos aspectos que está na base da qualificação do tráfico de estupefacientes como crime exaurido pela jurisprudência»(92) -, ou de Helena Moniz - que, ao preferir a denominação de crime de múltiplos actos, sublinha ter sido, precisamente, a constatação de que «a realização de um e qualquer deles já permite integrar o tipo, determinando uma unidade típica de acção relativamente a todos os atos que o integram», que, na procura de uma resposta que superasse a ideia, inadequada, do crime continuado, acabou por impulsionar a jurisprudência para a solução do crime de trato sucessivo(93).
E é esta concepção do crime de tráfico de estupefacientes como realidade jurídica única ou unitária - e não simplesmente unificada como, v. g., é próprio do crime continuado na acepção do artigo 30.º n.º 2 do CP - no estrito sentido que se colhe, a contrario, no artigo 30.º n.º 1 do CP que neste momento e lugar se quer especialmente sublinhar, e assim seja qual for o entendimento doutrinário que na norma que se queira ver acolhido ou com que se queira compatibilizá-la, v. g., o de Eduardo Correia, como ainda hoje é opinião mais comum na jurisprudência - sendo, na hipótese, a unidade criminosa gerada pela resolução única ou, no enfoque do crime de trato sucessivo, pela unidade de resolução, que preside à reiteração de todos e cada um dos actos típicos -, ou o de Figueiredo Dias - sendo a unidade realizada pela unidade de sentidos sociais da ilicitude que o comportamento global do agente revela(94) - ou, até, o de Lobo Moutinho - sendo a mesma unidade realizada pela estrita continuidade da realização típica que persiste ao longo do tempo em todos os seus elementos, repetindo-se na forma de vários actos(95).
E tudo assim no sentido de que, independentemente da sua maior ou menor complexidade organizativa - isto é, trate-se de um vulgar tráfico de rua, a envolver um agente, uns gramas de produto estupefaciente e um telefone para o estabelecimento de contactos entre o agente e os consumidores, ou trate-se de uma grande rede transcontinental de narcotráfico, tentacular, com elevado número de cooperantes rigidamente escalonados e com papéis minuciosamente determinados, a movimentar toneladas de droga e apoiada em sofisticados equipamentos (aviões, barcos, automóveis, evoluidíssimos sistemas de telecomunicações, etc.) -, do maior ou menor número ou da maior ou menor diversidade dos actos do catálogo do artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93 em que se desagregue - desde uma simples detenção de droga não destinada ao autoconsumo, até incontáveis actos de todas e, ou, da cada uma das espécies enumeradas na norma - e do maior ou menor período de tempo por que perdure - suposta, aqui, como se observa no AcSTJ de 20.2.2019, a continuidade da conduta típica(96), que a existência de hiatos prolongados, por iniciativa do agente ou acção de terceiros, mormente, a intervenção das autoridades pode significar, afinal, a terminação de uma realização típica (unitária) e o início de outra -, independentemente de tudo isso, dizia-se, e ainda que, vistos isoladamente, cada um dos actos protagonizados pelo agente pudesse consubstanciar a prática de um crime consumado independente, a actividade em causa constitui, sempre, uma realidade jurídica unitária, o mesmo é dizer, um, e só um, crime(97), em si mesmo uno e indivisível.
34 - Isto dito e dando por encerradas as considerações preliminares, afronte-se, então, a questões de fundo.
C. Os julgados em oposição.
35 - A traço muito grosso, recorde-se de novo que, subjacente ao Acórdão Recorrido esteve um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93 por cuja (co-)autoria o Recorrente foi punido com pena de prisão de 6 anos e 10 meses, traduzido na prática de múltiplos actos de detenção e venda a consumidores de cocaína, heroína e cannabis, concretizados em datas e momentos vários do período de 7.9.2017 a 19.4.2018(98).
Já no caso do Acórdão-Fundamento - lembre-se, igualmente - o crime de tráfico - aí, o de menor gravidade do artigo 25.º al.ª a) do Decreto-Lei 15/93 e punido com prisão de 1 ano e 8 meses -, tinha sido protagonizado por uma arguida, em conluio, no seu mor, com uma irmã e tinha agregado múltiplos actos de detenção e venda de heroína e cocaína a consumidores, o que aconteceu em datas e momentos vários do período de princípios de 2013 a 9.5.2014.
E quando - recorde-se, ainda -, respectivamente, chamados a decidir sobre o cabimento da audiência prevista no artigo 472.º do CPP em vista da, eventual, cumulação superveniente de cada uma daqueles penas com outras impostas noutros processos por decisões que tinham transitado em momento em que ainda estava em curso a prática de cada um dos crimes de tráfico - em 29.4.2014, na situação do Acórdão-Fundamento; em 29.11.2017, na do Acórdão Recorrido, recorde-se também -, adoptaram soluções diametralmente opostas, aquele, valorizando as características do ilícito como de empreendimento - e por isso que, relevando o primeiro momento consumatório dele em princípios de 2013(99), decidiu pela realização da mencionada audiência por verificado o pressuposto da anterioridade da prática do crime relativamente ao trânsito -, este, acentuando as de crime de trato sucessivo - e por isso que, identificando no último acto consumatório ou de terminação o da sua prática(100), recusou a realização da audiência, por posterior àquele trânsito.
Ora, desvendando, já o sentido da decisão a proferir, diz-se que este tribunal entende que o melhor entendimento está do lado do Acórdão Recorrido, devendo, in casu, relevar o momento da cessação da consumação ou da terminação - leia-se, o momento em que o agente pratica o último acto integrador do tipo criminal -, por isso que, na situação que apreciou, se não verificando de facto a relação de concurso superveniente de crimes que poderia legitimar a cumulação de penas.
E, desse modo, por várias razões, umas, mais chegadas às valências da natureza estritamente unitária do tipo de tráfico, outras, mais ligadas aos pressupostos e finalidades das figuras do concurso superveniente e da pena única que anteriormente se expuseram.
Razões, afinal, interdependentes e complementares, por isso que a aconselharem a abordagem, por assim dizer, integrada que segue.
D. A superação do conflito.
36 - Como acabado de (re)afirmar, a condenação subjacente ao Acórdão Recorrido assentou na prática pelo Recorrente, em actuação conjunta e concertada com outros três arguidos e no interesse comum de todos, de diversos actos de detenção e de venda a consumidores de heroína, cocaína e cannabis, a intervalos entre um e dois meses e ao longo do período de 7.9.2017 e 19.4.2018. E, como também já afirmado, tal actividade cessou por força da intervenção das autoridades - que detiveram os agentes e apreenderam, além do mais, diversas quantidades daqueles mesmos produtos depositados na casa da residência do Recorrente e num motociclo de sua pertença, igualmente destinadas à venda a terceiros -, sendo que, na reunião de todos os requisitos objectivos e subjectivos do tipo, tudo fundou a condenação dele enquanto co-autor do crime de tráfico do artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 13/93 e Tabelas I-A, I-B e I-C anexas, e a imposição da pena de prisão de 6 anos e 10 meses.
Recordando, então, o que se disse em 20. a 34., não se tem dúvidas que, neste seu concreto recorte, o crime comunga das características que, em geral, se assinalaram ao ilícito do tráfico, e particularmente as de crime de perigo comum abstracto e de empreendimento, por isso bem cabendo a afirmação de que, com a primeira acção típica protagonizada pelo Recorrente em 7.9.2017(101), o tipo se consumou e tudo assim com o significado de que, caso tivesse cessado a sua actuação nesse momento, teria atingido o termo do iter previsto na norma, realizando plenamente a tipicidade e atingindo a finalidade em vista da qual a incriminação foi criada, sem necessidade de que se tivessem seguido quaisquer actos criminais subsequentes(102).
Mas nem foi isso o que aconteceu - iniciada em 7.9.2017, a actividade de tráfico prolongou-se até 19.4.2018 -, nem foi isso o que acto condenatório relevou - antes sim, toda a actividade desenvolvida, todos os reiterados actos típicos concretizados nesse período -, nem, acima de tudo, foi isso o que a pena de 6 anos e 10 meses de prisão decretada reflectiu - que, isso sim, foi à luz da imagem global da actuação do Recorrente, de toda ela, que o acórdão condenatório, designadamente, aferiu o grau de ilicitude dos factos em si e na sua repercussão sobre as exigências da prevenção geral positiva e que, com atenção às necessidade de socialização e ao limite da culpa, determinou aquela concreta sanção, como a tudo obrigam as disposições dos artigos 40.º n.º 1 e 71.º do CP.
E naturalmente que assim foi, que, como assinalado e seja qual for o fundamento ou o enfoque que se privilegie - ilícito de perigo, de empreendimento, exaurido, de trato sucessivo, habitual e, ou, de múltiplos actos -, o crime de tráfico ajuizado desenvolveu-se na prática de uma multiplicidade de diferentes condutas repetidas a intervalos curtos e regulares, preenchendo o agente com cada uma delas - é dizer, com cada detenção e venda de estupefaciente - os elementos típicos objectivos e subjectivos da previsão criminal, e sendo que, não obstante, em tese, se poderem descortinar vários ilícitos autónomos em concurso, certo é que cada acto praticado, cada persistência na actividade criminosa, integra e integra-se numa realidade unitária, seja por, conforme as perspectivas que se queiram adoptar - e remete-se para o que se disse em 33. supra -, mediada por uma única resolução ou por uma unidade resolutiva, por de tudo emanar um único sentido social de ilicitude, por a consumação se protair por força da multiplicidade de actos reiterados ou por a sua figuração típica reflectir uma estrutura objectiva reiterativa que forma uma actividade criminosa.
37 - Ora, é por as coisas deverem ser assim encaradas que, salvo o muito devido respeito, se tem muita dificuldade em subscrever a tese do Acórdão-Fundamento, assente essencialmente na concepção do tráfico como crime de empreendimento e na ideia de que o primeiro momento do preenchimento de uma das previsões do tipo representa uma consumação dele (sempre) equivalente à consumação material, e não (apenas) primeira consumação ou consumação formal quando àquele se sigam (outros) actos criminalmente típicos que - insiste-se -, não obstante analiticamente destrinçáveis no todo para que, e em que, concorrem, continuam a ser momentos do mesmo crime e não crimes autónomos(103).
Tese que, de resto e se bem se raciocina, nem sequer chega a extrair todas as consequências da qualificação do tipo como crime exaurido em que também assenta - isto é(104), como crime em que «após a realização da conduta que já integra a consumação formal ou típica, ainda pode haver a produção do resultado que ainda interessa à valoração típica porque ligado aos bens jurídicos protegidos pelo tipo» - , da qual precisamente decorre que, para efeitos do preenchimento da previsão típica, tão relevante é o primeiro como o último acto consumativo.
E tese que também parece esquecer que, se é certo que o ilícito «se encontra plenamente realizado logo ao primeiro acto de tráfico, e que todos os actos subsequentes são ainda o mesmo crime, [...]», menos não o é que «a "data da prática do crime", [...] não é (só) o dia do primeiro acto de execução»(105), antes abarca todo o período temporal em que a actividade delituosa tem lugar, é dizer, tudo o que ocorre entre o momento de consumação formal e o momento de consumação material ou de terminação, que só com esta cessa a execução dos actos típicos.
E é por isso que, na lógica das coisas e como sustenta o Acórdão Recorrido, deve ser o momento da terminação que releva para a aferição do pressuposto temporal do concurso de conhecimento superveniente, como, aliás paralelamente, releva para outros importantes momentos da relação material e processual criminal, v. g., para o do termo a quo do prazo de prescrição procedimental - que o artigo 119.º n.º 1 al.ª b) do CP situa no dia da prática do último acto(106) -, ou, mutatis mutandis, para o da definição da competência territorial - que, nestes crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, elege artigo 19.º(107) o lugar do último acto praticado ou da cessação da consumação, como factor de conexão territorial relevante.
38 - Sendo, então, toda a actividade típica desenvolvida no intervalo temporal de referência uma única realidade normativa, um único crime, não se vê como, para efeito - e, muito menos, por efeito - da sua cumulação superveniente nos termos dos artigos 78.º e 77.º do CP, ela possa ser fracturada - que é o que, no fundo, resulta do entendimento que venceu no Acórdão-Fundamento - como se, afinal, dois ou mais ilícitos tivessem sido praticados ou como se, afinal, todos os actos típicos acontecidos após o momento da primeira consumação tivessem sido ponderados, não como actos de execução do (mesmo) ilícito, com relevo tanto para a incriminação (mormente, para a subsunção ao tráfico normal do artigo 21.º ou no privilegiado do artigo 25.º), como para a medida concreta da pena (mormente, enquanto índice do grau de ilicitude dos factos a que o artigo 71.º n.os 1 e 2 al.ª a) do CP manda atender), mas, singelamente, enquanto conduta posterior ao facto de que fala o artigo 72.º n.os 1 e 2 al.ª e) do CP, sem interferência no momento da subsunção e com peso muito mais relativizado na definição do quantum da pena.
E assim sob risco de, a um mesmo tempo, se ofender a natureza estritamente unitária do crime de tráfico, se desrespeitarem os pressupostos e finalidades do instituto do concurso de crimes de conhecimento superveniente e se dar, inclusivamente, azo a soluções de há muito repudiadas na jurisprudência e na doutrina.
Na verdade:
39 - Sublinhou-se já por mais do que uma vez, que a pena de 6 anos e 10 meses de prisão imposta ao Recorrente nos autos de processo comum colectivo de que estes emergem reflectiu, na modulação dos artigos 40.º e 71.º do CP, as necessidades da protecção dos bens jurídicos em jogo - a ideia da prevenção geral positiva ou de integração - e as necessidades de reintegração do agente na sociedade - a ideia da prevenção especial positiva ou de reintegração -, com atenção aos limites impostos pelo grau de culpa revelado na conduta e ao que, à margem do tipo, agravou ou atenuou a sua responsabilidade, tudo aferido à luz da imagem global da actuação desenvolvida entre 7.9.2017 e 19.4.2018. E idênticas afirmações se poderiam ter feito com relação à arguida BB e à pena de 1 ano e 8 meses de prisão que lhe foi imposta no processo que esteve na base do Acórdão-Fundamento, pelos actos de tráfico desenvolvidos entre princípios de 2013 e 9.5.2014.
Mas se assim, isto é, se a subsunção da conduta ao tipo criminal e a determinação do quantum da pena (cor)responderam àquela imagem global, a todo aquele pedaço da vida do agente, segue-se que o complexo factual, incriminação e pena tal como definidos na decisão condenatória constituem vectores de uma estrutura lógica e ontológica cuja coesão e coerência exigem a sua absoluta estabilidade, sob risco de sobrevirem graves disfuncionalidades como, v. g., a de os factos deixarem de suportar a incriminação ou de a pena na sua medida ou até na sua espécie, deixar de reflectir, em si e na sua interdependência, as exigências preventivas, a culpa e as demais circunstâncias extra-típicas atendidas. Bem como sob risco de - e isto será o que aqui mais importará realçar -, depois, no momento da construção superveniente de uma pena única por acção do artigo 78.º do CP, não se conseguir que esta espelhe, como lhe cumpre nos termos do artigo 77.º n.º 1 do CP e como se sublinhou em 13. supra, uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a sopesar a gravidade desse ilícito global enquanto enquadrada na personalidade unitária do agente, tudo devendo passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.
Ora, constituindo, assim, a integridade da conduta criminosa enquanto crime único um pressuposto material do concurso superveniente, bem se compreende que, também por isso, o artigo 78.º n.º 2 do CP(108) não prescinda da sua estabilização processual, exigindo que as condenações a englobar tenham transitado em julgado - isto é que, segundo o artigo 628.º do CPC(109), (já) não sejam passíveis de recurso ordinário ou de reclamação e que, por isso sejam (ordinariamente) imodificáveis -, o mesmo é dizer, se mostrem cristalizadas pela força do caso julgado previsto no artigo 619.º n.º 1 do CPC(110) que sobre elas se formou e que lhes confere força obrigatória dentro do processo e fora dele.
E, igualmente, bem se compreende que, nessa linha de raciocínio, seja entendimento indisputado na jurisprudência deste STJ que «o tribunal que procede ao cúmulo jurídico, por conhecimento superveniente de um concurso de crimes cometido pelo arguido, só tem competência para a aplicação de uma pena única, não podendo modificar nenhuma das decisões definitivas que no mesmo processo e nos demais processos condenou o arguido em penas parcelares pela prática dos crimes resultantes do concurso, seja quanto à matéria de facto fixada, seja quanto à qualificação jurídica dos factos, seja quanto ao número de crimes cometidos, seja quanto à responsabilidade do arguido», isso pois que «qualquer alteração de algum destes segmentos das decisões condenatórias já transitadas em julgado onde foram decretadas as penas parcelares ofenderia o caso julgado, po[ndo] em causa a segurança e a paz jurídica»(111).
Mas, como já se convirá, a tese preconizada no Acórdão-Fundamento e que o Recorrente quer que aqui prevaleça, em nada se compatibiliza com esta unicidade criminosa, com esta estabilidade da decisão cuja pena se quer englobar, com esta força do caso julgado que a recobre e com esta visão restritiva das competências do tribunal da cumulação.
Bem pelo contrário, ao supor, e pressupor, uma partição do fluir unitário da actividade criminosa pelo meridiano da primeira consumação típica, não pode deixar de, na economia do acórdão cumulatório, equivaler a uma alteração proibida da decisão condenatória, por em infracção ao caso julgado e por estranha, mesmo, ao leque de atribuições do tribunal.
Havendo - insiste-se - a condenação posterior de ser considerada qua tale(112) nas operações próprias da cumulação superveniente de penas, será com atenção ao período temporal global da infracção, à universalidade dos actos ilícitos típicos nele praticados e ao momento do último deles que deverá ser apreciada a existência da situação de concurso de crimes e sempre tendo presente que a barreira delimitadora é o trânsito em julgado da primeira condenação.
Com a consequência de que, continuando o ilícito a «ser executado, praticado, prolongando-se e estendendo-se para além d[aquele] trânsito, [...] não deve ser cumulado juridicamente com os crimes praticados antes daquele» porquanto a «parcela da atividade praticada antes do trânsito em julgado não pode ser autonomizada, porque se trata de um só crime»(113), sendo caso, não de concurso nos termos dos artigos 78.º e 77.º do CP, mas de sucessão de crimes, como tudo foi entendimento do Acórdão Recorrido.
40 - Mas não só por estes motivos a preferência deve ir para este aresto.
Com efeito:
«O conhecimento posterior, referido no artigo 78.º, n.º 1, do C.P., apenas define o momento de apreciação, processual e contingente, sendo que a superveniência do conhecimento "do concurso" não pode, no âmbito material, produzir uma decisão que não pudesse ter sido proferida no momento da primeira apreciação da responsabilidade penal do agente se os factos fossem então conhecidos. Em termos processuais, todos os factos poderiam ter sido, se fossem conhecidos ou tivesse existido contemporaneidade processual, apreciados e avaliados em conjunto, num dado momento»(114). Acudindo, exactamente, o artigo 78.º do CP à anormalidade ocorrida, estabelecendo para efeitos da determinação da pena única como que uma ficção de contemporaneidade.
Ora, bem vistas as coisas, em casos como os aqui em jogo, não se pode dizer que, no momento do trânsito da condenação anterior, poderia ter sido efectuada a apreciação global da responsabilidade penal do agente que por via do concurso superveniente se quer ficcionar, pela simples, e comezinha, razão de que, a essa data, a conduta criminosa ainda se encontrava em curso, não tendo o ilícito (ainda) atingido a sua máxima gravidade concreta(115) apenas alcançável no momento da terminação. O que significa que o que sobreveio àquele primeiro trânsito não foi o conhecimento da prática de outro crime em data anterior que autoriza, e reclama, o concurso superveniente previsto no artigo 78.º do CP, foi, isso sim, a prática do próprio crime, que não figura mais do que uma sucessão de ilícitos geradora de penas de cumprimento autónomo.
Insistindo, também aqui, para enfatizar:
Se no momento do trânsito da primeira condenação continuavam a ser executados actos típicos de tráfico, não se pode afirmar que o concurso efectivo entre esse crime e o daquela já existia àquela data e que, apenas, era desconhecido pelo tribunal.
O que faltava, isso sim, era o próprio ilícito, (ainda) não inteiramente praticado, por isso nunca podendo o agente queixar-se de qualquer prejuízo em termos de pena, por não ter havido - que não podia haver! - uma reacção imediata do sistema de justiça a uma pluralidade de infracções simultâneas ou sucessivas.
Entender, como entendeu o Acórdão-Fundamento, que, não obstante, nada disso estorva figuração do concurso superveniente é, por mais uma vez, ignorar, salvo o muito devido respeito, os pressupostos, fundamentos e finalidades desse instituto.
41 - Mas mais do que alheia à teleologia que informa o concurso superveniente de crimes e mais do que à margem dos fundamentos e pressupostos em que ele se apoia, uma solução como a adoptada no Acórdão-Fundamento, levada às suas últimas consequências, implica um resultado hoje inequivocamente rejeitado pela jurisprudência.
Explique-se.
Propõe-se, então, o concurso superveniente neutralizar as consequências negativas das ineficiências do sistema de justiça, não prejudicando o arguido que cometeu vários crimes antes de ter transitado a condenação por qualquer um deles e pelos quais foi condenado em penas de cumprimento sucessivo, intentando alcançar, qual reconstituição actual hipotética, uma pena única ou conjunta como a que teria sido alcançada se todos os ilícitos tivessem sido julgados no mesmo acto.
Sempre que em tal operação confluam crimes cometidos antes e depois daquela condenação, imprescindível é, por isso, separar entre «uma primeira fase, em que o agente não foi censurado, atempadamente, muitas vezes por deficiências do sistema de justiça, ganhando assim, confiança na possibilidade de outras prevaricações com êxito, sem intersecção da acção do sistema» - que só esta justifica a reconstituição -, da «outra que se lhe segue, já após advertência de condenação transitada em julgado», em que se abre «um ciclo novo, autónomo, em que o figurino não será já o de acumulação de crimes, mas de sucessão, em sentido amplo»(116).
Confrontado, então, com uma situação em que, iniciada antes da primeira condenação, a actividade de tráfico prosseguiu depois dela, o Acórdão-Fundamento, ao optar pela demarcação daquela linha divisória pelo momento da consumação formal do ilícito, deu azo, na sua lógica, a que, afinal, num mesmo concurso se possam engobar factos típicos anteriores e posteriores àquela admonição judicial e que uns e outros venham, afinal, a ser reflectidos numa mesma pena única.
Sucede, todavia, que, mesmo abstraindo do que se disse em 38. e 39. acerca da inadmissibilidade legal da partição do crime unitário que incontornavelmente pressupõe, uma tal solução acaba por equivaler, como muito lucidamente se observa no AcSTJ de 26.6.2019(117), a um cúmulo jurídico por arrastamento, ou seja, acaba por equivaler a uma solução inequivocamente rejeitada desde há cerca de duas décadas por este STJ, porquanto, como com inteira actualidade se disse no Acórdão de 4.12.1997(118) «O cúmulo dito "por arrastamento", não só contraria os pressupostos substantivos previstos no artigo 77, n.º 1, do CP de 1995, como também ignora a relevância de uma condenação transitada em julgado como solene advertência ao arguido, quando relativamente aos crimes que se pretende abranger nesse cúmulo, uns são anteriores e outros posteriores a essa condenação, pelo que como tal, não deve ser aceite»(119).
E, tudo assim, para além de viabilizar a consequência, pouco menos do que absurda, de integrarem um mesmo concurso crimes que, por, pelo menos, parcialmente praticados após o primeiro trânsito condenatório, poderiam ter constituído à luz do artigo 56.º n.º 1 al.ª b) do CP fundamento de revogação de pena de substituição da suspensão executiva de pena de prisão que ali tivesse sido decretada.
Razões que, se ainda necessário fosse, desaconselhariam o entendimento do Acórdão-Fundamento e evidenciariam a superior valia da tese do Acórdão Recorrido, decidindo definitivamente - pensa-se - em favor deste.
III. CONCLUSÃO.
42 - Vale, então, tudo o que precede por dizer que, no confronto do Acórdão-Fundamento e do Acórdão Recorrido a propósito do momento que, no crime de tráfico de estupefacientes que se realiza em actos reiterados, releva para a aferição da relação concurso de conhecimento superveniente prevista no artigo 78.º do CP - momento da prática do primeiro acto típico da previsão da norma ou da consumação formal, para aquele; momento da prática do último daqueles actos, ou da consumação material ou terminação, para este - o tribunal sufraga o entendimento do segundo, que resume na seguinte proposição interpretativa:
- No crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93, de 22.1, que se realiza em actos reiterados, o momento que, por referência à data do trânsito em julgado da primeira condenação anterior, releva para aferir a existência da relação de concurso de conhecimento superveniente prevista no artigo 78.º do Código Penal, é o da prática do último acto típico.
Entendimento ao abrigo do qual, e para os efeitos do artigo 445.º n.º 1 do CPP, vai confirmar, mantendo-o, o Acórdão Recorrido.
E entendimento que, de resto, tem por si, o favor muito claramente maioritário da jurisprudência, como o testemunham, entre outros, os Ac'sSTJ de 26.9.2019 - Proc. n.º 206/16.0PALGS.S2(120), de 25.10.2017 - Proc. n.º 3/12.2GAAMT.1.S1(121) - ambos já citados - e de 11.12.2012 - Proc. n.º 14/10.2GCFLG.S1(122), os Ac'sTRE de 27.4 2021 - Proc. n.º 992/16.8PAOLH-E.E1(123) e de 23.6.2020 - Proc. n.º 992/16.8PAOLH-C.E1(124), os Ac'sTRC de 11.10.2017 - Proc. n.º 840/11.5JACBR-B.C1(125) e de 21.5.2014 - Proc. n.º 158/07.8JAAVR-C.C1(126) e o AcTRG de 31.1.2011 - Proc. n.º 2/04.8GDFNF-A.G1(127). Sendo que em abono do Acórdão-Fundamento não se encontrou qualquer aresto.
IV. DISPOSITIVO.
43 - Em face do exposto, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, confirmando o Acórdão Recorrido, fixa a seguinte jurisprudência:
- No crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º n.º 1 do Decreto-Lei 15/93, de 22.1, que se realiza em actos reiterados, o momento que, por referência à data do trânsito em julgado da primeira condenação anterior, releva para aferir a existência da relação de concurso de conhecimento superveniente prevista no artigo 78.º do Código Penal, é o da prática do último acto típico.
(1) Doravante, Recorrente.
(2) Doravante, Acórdão Recorrido.
(3) Doravante CPP.
(4) Doravante, CP.
(5) Diploma a que pertencerão os preceitos que a seguir se citarem sem menção de origem.
(6) Doravante, Acórdão-Fundamento.
(7) Doravante, por facilidade de exposição, concurso superveniente ou relação de concurso superveniente.
(8) Doravante, STJ.
(9) [Nota 13 no original] Detenção de estupefacientes por parte do Recorrente e venda por co-arguido de cocaína e de cannabis a dois consumidores, em conluio com quatro outros, um deles o Recorrente, em funções de vigilância relativamente à aproximação de entidades policiais.
(10) [Nota 14 no original] Venda por co-arguido de cocaína a uma consumidora, em conluio com outros, um deles o Recorrente, em funções de vigilância.
(11) [Nota 15 no original] Venda por co-arguido de cocaína a um consumidor, em conluio com outros, um deles o Recorrente, em funções de vigilância.
(12) [Nota 16 no original] Vendas por dois co-arguidos de cannabis e de cocaína a dois consumidores, em conluio com outros, entre eles o Recorrente, este com funções de guarda dos produtos estupefacientes destinados à venda numa casa sita nas imediações.
(13) [Nota 17 no original] Venda por co-arguido de cocaína a um consumidor, em conluio com outros, um deles o Recorrente, e detenção, por todos, na casa referida na nota anterior, de cannabis nos quantitativos de 3028,4 g e de 92,111 g, de heroína nos de 17,06 g e de 1,146 g, de cocaína nos de 4,456 g, de 12,203 g, de 155,185 g e de 390 g, e de fenacetina no de 104,255 g.
(14) Figueiredo Dias, in "Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime", 1993, pp. 277 a 278.
(15) Idem, ibidem nota anterior, pp. 291 e 292.
(16) Idem, ibidem, nota anterior.
(17) Idem, ibidem, notas anteriores.
(18) AcSTJ de 9.10.2019 - Proc. n.º 600/18.2JAPRT.P1.S1, in SASTJ.
(19) «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.».
(20) In DR - I, de 9.6: «O momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso.».
(21) Figueiredo Dias, in "Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime", 1993, p. 278.
(22) AcSTJ de 24.2.2010 - Proc. n.º 676/03.7SJPRT.S1, consultável in www.dgsi.pt, como, de resto, todos os que se vierem a indicar sem outra especificação.
(23) AcSTJ de 18.1.2012 - Proc. n.º 34/05.9PAVNG.S1. No mesmo sentido, Tiago Milheiro, in "Cúmulo Jurídico Superveniente, Noções Fundamentais", Almedina, 2016, p. 21.
No mesmo sentido e entre muito outros, AcSTJ de 16.12.2010 - Proc. n.º 11/02.1PECTB.C2.S1: «A partir do trânsito em julgado da primeira decisão condenatória, os crimes cometidos depois dessa data deixam de concorrer com os que os precedem, isto é, já não estão em concurso com os cometidos anteriormente à data do trânsito, havendo a separação nítida de uma primeira fase, em que o agente não é censurado, atempadamente, muitas vezes por deficiências do sistema de justiça, ganhando assim, confiança na possibilidade de outras prevaricações com êxito, sem intersecção da acção do sistema, de uma outra que se lhe segue, abrindo-se um ciclo novo, autónomo».
(24) Doravante, AcSTJ.
(25) Proc. n.º 34/05.9PAVNG.S1.
(26) No mesmo sentido, v. g., Tiago Milheiro, ibidem, afirmando que o trânsito em julgado é «um ponto de possível turn-over, em que o agente poderá refletir e repensar a conduta anterior, mantê-la ou alterá-la, submeter-se ao Direito ou continuar a desrespeitá-lo. Perante a pena que lhe foi aplicada, exequível em virtude do trânsito, o agente pode escolher dois caminhos: o do respeito pelo ordenamento jurídico, ou continuar com uma atitude anti-jurídica».
(27) Neste sentido, Dá Mesquita, "O Concurso de Penas", Coimbra Editora, 1997, p. 69.
(28) Neste sentido, v. g., AcSTJ de 13.9.2018 - Proc. n.º 37/10.1GDODM.S1, onde se refere que «[o] caso de cúmulo jurídico por conhecimento superveniente de concurso de crimes tem lugar, quando posteriormente à condenação no processo de que se trata - o da última condenação transitada em julgado - se vem a verificar que o agente, anteriormente a tal condenação, praticou outro ou outros crimes, que tem ou têm conexão temporal com o último a ser julgado, sem que, entretanto, o sistema de justiça tenha logrado funcionar, de forma, a que, numa atempada, cirúrgica condenação, tenha lançado um alerta, um aviso, uma solene advertência, no sentido de que não valerá prosseguir na senda do crime, sob pena de com a repetição o arguido incorrer na figura da reincidência, ou da sucessão de crimes».
(29) Neste sentido, Rodrigues da Costa, "O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ," Revista do CEJ, 1.º semestre de 2016, n.º 1, pp. 80 e 81.
(30) Neste sentido, Figueiredo Dias, in "Direito Penal - Parte Geral", I, 2.ª ed., p. 314
(31) «Artigo 21.º
[...]
2 - Quem, agindo em contrário de autorização concedida nos termos do capítulo II, ilicitamente ceder, introduzir ou diligenciar por que outrem introduza no comércio plantas, substâncias ou preparações referidas no número anterior é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.
3 - Na pena prevista no número anterior incorre aquele que cultivar plantas, produzir ou fabricar substâncias ou preparações diversas das que constam do título de autorização.
4 - Se se tratar de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV, a pena é a de prisão de um a cinco anos.».
(32) «Agravação
As penas previstas nos artigos 21.º e 22.º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se:
a) As substâncias ou preparações foram entregues ou se destinavam a menores ou diminuídos psíquicos;
b) As substâncias ou preparações foram distribuídas por grande número de pessoas;
c) O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória;
d) O agente for funcionário incumbido da prevenção ou repressão dessas infracções;
e) O agente for médico, farmacêutico ou qualquer outro técnico de saúde, funcionário dos serviços prisionais ou dos serviços de reinserção social, trabalhador dos correios, telégrafos, telefones ou telecomunicações, docente, educador ou trabalhador de estabelecimento de educação ou de trabalhador de serviços ou instituições de acção social e o facto for praticado no exercício da sua profissão;
f) O agente participar em outras actividades criminosas organizadas de âmbito internacional;
g) O agente participar em outras actividades ilegais facilitadas pela prática da infracção;
h) A infracção tiver sido cometida em instalações de serviços de tratamento de consumidores de droga, de reinserção social, de serviços ou instituições de acção social, em estabelecimento prisional, unidade militar, estabelecimento de educação, ou em outros locais onde os alunos ou estudantes se dediquem à prática de actividades educativas, desportivas ou sociais, ou nas suas imediações;
i) O agente utilizar a colaboração, por qualquer forma, de menores ou de diminuídos psíquicos;
j) O agente actuar como membro de bando destinado à prática reiterada dos crimes previstos nos artigos 21.º e 22.º, com a colaboração de, pelo menos, outro membro do bando;
l) As substâncias ou preparações foram corrompidas, alteradas ou adulteradas, por manipulação ou mistura, aumentando o perigo para a vida ou para a integridade física de outrem.».
(33) «1 - Quando, pela prática de algum dos factos referidos no artigo 21.º, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até três anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.
2 - A tentativa é punível.
3 - Não é aplicável o disposto no n.º 1 quando o agente detiver plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias.».
(34) «Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.»
(35) Proc. n.º 08P2961.
(36) Neste sentido, Maia Costa, "O crime de tráfico de estupefacientes: o direito penal em todo o seu esplendor", in Revista do Ministério Público, Abril-Junho de 2003, p. 93.
(37) Neste sentido, v. g., AcSTJ de 21.10.2008 - Proc. n.º 08P1314.
(38) AcSTJ de 15.9.2010 - Proc. n.º 1977/09.6JAPRT.S1.
No mesmo sentido, v. g., AcTConst n.º 426/91, acessível no site do Tribunal Constitucional - «o escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia. Assim, o tráfico põe em causa uma pluralidade de bens jurídicos: a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores de estupefacientes; e, demais, afecta a vida em sociedade, na medida em que dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos.» - e Lourenço Martins, in "Droga e Direito", 1994, p. 122 - «O bem jurídico primordialmente protegido pelas previsões do tráfico é o da saúde e integridade física dos cidadãos vivendo em sociedade, mais sinteticamente, a saúde pública. Protecção da própria humanidade [...] se encarada a sua destruição a longo prazo. Há quem fale ainda na protecção da liberdade do cidadão, em alusão implícita à dependência que a droga gera.».
Realçando, em particular, o valor da liberdade individual, Pedro Patto, in "Comentário das Leis Penais Extravagantes", II, 2011, p. 483 - «a toxicodependência atinge a dignidade da pessoa como ser livre. Há mesmo quem considere que é a liberdade, mais do que qualquer outro, o bem jurídico protegido através da criminalização do tráfico de estupefacientes.».
(39) AcSTJ de 15.1.2020 - Proc. n.º 23/17.0PEBJA.S1.
(40) AcSTJ de 15.1.2020 citado.
(41) In Preâmbulo do Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei 400/82, de 23.9.
(42) AcSTJ de 29.10.2008 - Proc. n.º 08P2961.
(43) Pedro Patto, in "Comentário das Leis Penais Extravagantes", 2011, II, p. 487.
(44) Ou, para usar as palavras do AcTConst n.º 426/91, de 6.11.191, in www.tribunalconstitucional.pt., porquanto não pressupõe «nem o dano, nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo para um desses bens jurídicos».
(45) Faria Costa, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", 1999, II, p. 867.
(46) Neste sentido, AcTRC de 24.11.2004 - Proc. n.º 2701/04.
(47) Pedro Patto, ibidem.
(48) AcSTJ de 15.1.2020 - Proc. n.º 23/17.0PEBJA.S1 já citado.
(49) Helena Moniz, "'Crime de trato sucessivo' (?)", in JULGAR Online, Abril 2018, p. 5; realce a negrito acrescentado.
(50) Pedro Patto, ibidem, p. 487.
(51) Helena Moniz, ibidem, p. 6.
(52) Para usar a expressão de Figueiredo Dias - ibidem, p. 687 - e de Helena Moniz - ibidem, p. 6.
(53) "Lições de Direito Penal", Parte Geral I, 1988, p. 291 (citação colhida em Helena Moniz, ibidem, p. 8).
(54) Helena Moniz, ibidem, p. 10.
(55) In "" Da Unidade à Pluralidade de Infracções no Direito Penal Português", 2005, p. 545 a 546,.
(56) Helena Moniz, ibidem, p. 8.
(57) Helena Moniz, ibidem, p. 10, citando o seguinte trecho do Acórdão de 8.11.1995 - Proc. n.º 47714, e identificando outros espécimes da época concordantes: «[A] figura da continuação criminosa é incompatível com a própria natureza do crime de tráfico de estupefacientes. Com efeito, trata-se de um crime de trato sucessivo que se desenrola no tempo e é constituído por uma pluralidade de acções. Isto é, trata-se de um crime naturalmente "continuado", que não necessita do recurso à figura da continuação criminosa para se unificar as acções que o integram».
(58) Cfr. AcSTJ de 18.12.2008 - Proc. n.º 07P020, falando a propósito de infracções contínuas sucessivas.
(59) Cfr. AcSTJ de 21.2.2008 - Proc. n.º 2035/07, in SASTJ.
(60) Cfr. AcSTJ de 5.5.1993 - Proc. n.º 42 290, citado por Helena Moniz, ibidem, p. 2.
(61) No testemunho de Cristina Almeida e Sousa, in "A inconstitucionalidade da jurisprudência do «trato sucessivo» nos crimes sexuais", in JULGAR, Outubro de 2019, a primeira identificação de crimes sexuais - no caso, os de coacção sexual e de violação - como de trato sucessivo surgiu no AcSTJ de 2.10.2003 - Proc. n.º 03P2606.
(62) Que, recorde-se, referenciando-se à figura da continuação criminosa prevista no n.º 2, passou de «O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima» que vinha da Lei 59/2007, de 4.9, para «O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.».
E alteração, generalizadamente, interpretada como de proibição ope legis da aplicação do crime continuado aos ilícitos contra bens jurídicos eminentemente pessoais, como, v. g., documentado nos Ac'STJ de 24.3.2022 - Proc. n.º 808/19.3SYLSB.L1.S1 (roubo), de 13.5.2020 - Proc. n.º 396/18.SPBLRS.L1.S1 (crimes sexuais) e de 15.10.2020 - Proc. n.º 1498/19.9JAPRT.P1.S1 (crimes sexuais).
(63) Constatando o abandono, já, em 22.3.2018, AcSTJ - Proc. n.º 467/16.5PALSB.L1-S1: «A jurisprudência do STJ, já antes maioritária, é presentemente praticamente unânime, ao afastar a figura de "trato sucessivo" dos casos de crimes contra a autodeterminação sexual do art. 171.º e 172.º, ambos do CP».
Mais recentemente, Ac'sSTJ de 12.1.2022 - Proc. n.º 1079/20.4PASNT.S1 - «I - A aplicabilidade da figura do "trato sucessivo" aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual foi defendida, nos nossos tribunais superiores, em situações em que está presente uma actividade repetida, prolongada no tempo. II - Mais recentemente, este STJ tem vindo a decidir, de forma uniforme, pela inaplicabilidade de tal figura a este tipo de crimes.» -, de 24.3.2022 - Proc. n.º 500/21.9PKLSB.L1.S1 - «Embora a jurisprudência do STJ se tenha mostrado dividida quanto à aplicação da figura do crime exaurido ou de trato sucessivo aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, atualmente e desde há alguns anos atrás, consolidou-se jurisprudência, cremos que unanimemente, no sentido da integração da pluralidade de condutas integradoras de crimes de abuso sexual de crianças, na figura do concurso efetivo de crimes previsto no art. 30.º, n.º 1, do CP, afastando-se a possibilidade de subsunção a outras figuras, designadamente ao crime de trato sucessivo» - ou de 23.11.2022 - Proc. n.º 754/20.8JABRG.G1.S1 - «É atualmente uniforme e consolidada a jurisprudência deste tribunal que afasta o recurso à figura do denominado "crime de trato sucessivo" em relação aos crimes contra a autodeterminação sexual.».
(64) Para uma panorâmica da discussão, veja-se Helena Moniz, ibidem - principalmente a partir de fls. 13 - e Cristina Almeida e Sousa, ibidem, principalmente a partir de fls. 11.
(65) De feição mais pragmática, na sua origem, foi a questão que espoletou na jurisprudência a procura de uma resposta como a do crime de trato sucessivo em matéria de crimes sexuais, nem mais nem menos do que a dificuldade de efectuar a contagem dos crimes - e a arbitrariedade de qualquer contagem, na afirmação, v. g., do AcSTJ de 29.11.2012 Proc. n.º 862/11.6TAPFR.S1 - «quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo».
(66) Helena Moniz, ibidem, pp. 10 a 11,
(67) AcSTJ de 22.1.2013 - Proc. n.º 182/10.3TAVPV.L1.S1, tirado em caso de crime sexual, em cuja área a discussão do ponto foi, em geral, mais aprofundada.
(68) Neste sentido, Acórdão STJ de 29.11.2012 já citado - também em caso de crime sexual, mas a que expressamente assimila o do tráfico de estupefacientes - e Helena Moniz, ibidem, p. 15.
(69) Neste sentido, v. g., AcSTJ de 23.1.2008 - Proc. n.º 07P4830 - ainda em caso de crime sexual. E também, Cristina Almeida e Sousa, in "A inconstitucionalidade da jurisprudência do «trato sucessivo» nos crimes sexuais", JULGAR Online, Outubro de 2019, p. 13, com indicação de vários espécimes jurisprudenciais: «A nível subjectivo, esta jurisprudência adita à pluralidade de condutas sexuais típicas, um particular nexo de imputação, que designa, ou de unidade resolutiva, não na acepção de uma única resolução criminosa, mas na de que a estreita conexão temporal que liga um facto típico ao outro é de tal ordem que, à luz dos dados da experiência psicológica, permite aceitar que o agente executou todos os actos que integram a actividade criminosa sem ter de renovar o correspondente processo de motivação [...], ou na acepção de uma única "resolução determinada e persistente" do agente, em que o dolo "abarca ab initio uma pluralidade de actos sucessivos que ele se dispõe logo a praticar, para tanto preparando as condições da sua realização, estando-se no plano da unidade criminosa.".
(70) Como parece ser o caso dos Ac'sSTJ de 3.9.2015 - Proc. n.º 272/11.5TELSB.L1.S1, 15.1.2020 - Proc. n.º 23/17.0PEBJA.S1, 1.10.2014 - Proc. n.º 75/14.5YFLSB e de 12.7.2006 - Proc. n.º 06P1709.
(71) Proc. n.º 2430/13.9JAPRT.S1; tirado em caso de crime sexual mas com validade, por assim dizer, geral.
(72) Neste sentido, Figueiredo Dias, in "Direito Penal - Parte geral", 2007, t. 1, p.1033.
Identicamente, Lobo Moutinho, ibidem, p. 593 - «figura diversa da estrita unidade de crime mas simultaneamente do diversa do concurso de crimes».
(73) Pinto de Albuquerque, in "Comentário do Código Penal", 2.ª ed., p. 159.
Identicamente, Miguez Garcia, in "O Risco de Comer uma Sopa e Outros Casos de Direito Penal", 2.º ed., p. 748.
(74) A este propósito, recorde-se o que se disse em 28. supra.
(75) Cfr., v. g., Ac'sSTJ de 15.1.2020 - Proc. n.º 23/17.0PEBJA.S1,
(76) Idem, ibidem, pp. 617 a 622
(77) O crime habitual referenciado na al.ª b) respectiva.
(78) O crime que se consuma por actos reiterados.
(79) Idem, ibidem, p. 617.
(80) Idem, ibidem, p. 604.
(81) Idem, ibidem, pp. 617 e 649.
(82) Idem, ibidem nota anterior.
(83) Cfr. al.as a) e b) do n.º 2 primeiro e o n.º 3 do segundo, neste, no segmento em que se alude ao crime que se consuma por actos sucessivos. Cabendo a propósito o esclarecimento de que o Autor - ibidem, p. 605 - descortina na expressão crime continuado daquela al.ª b) uma noção distinta da do artigo 30.º n.º 2, ali, um «crime cuja consumação se protrai mediante a prática de uma pluralidade de "actos" sucessivos (no sentido de praticados em imediata sequência temporal)» a que parece preferir chamar crime contínuo e que corresponde a uma forma de realização ou modalidade do que apelida de crime estritamente unitário, aqui, uma pluralidade de realizações típicas ficcionadamente unificadas pela menor inexigibilidade do comportamento conforme do agente.
(84) Proc. n.º 234/15.3JAAVR.S1.
(85) Sublinhado acrescentado.
(86) Como parece ser o caso de Helena Moniz, ibidem, pp. 4, 9 e 11.
(87) Segundo Figueiredo Dias, in "Direito Penal - Parte Geral" citado, pp. 983 a 984, existirá uma unidade típica da acção «em todos aqueles casos em que um tipo legal de crime reduz a uma unidade típica uma pluralidade de atos como tal externamente reconhecível». O que, v. g., «sucederá desde logo quando um tipo legal integra, por necessidade, aquela pluralidade de actos [...]. O mesmo sucede quando um tipo legal é formulado tal maneira que, não exigindo necessariamente para a sua integração uma pluralidade de actos singulares, reconduz todavia uma tal pluralidade à unidade sempre que aquela pluralidade tenha lugar dentro de uma certa unidade contextual ou espácio-temporal [...].».
(88) Helena Moniz, ibidem, pp. 11 a 12.
(89) Neste sentido, Cristina Almeida e Sousa, A inconstitucionalidade da jurisprudência do "trato sucessivo" nos crimes sexuais, Revista Julgar, Outubro de 2019, p. 18
(90) «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, [...].» - sublinhados acrescentados.
(91) Neste sentido, AcSTJ de 19.6.2019 - Proc. n.º 98/17.2GAPTL.S1, tirado em caso de crimes de abuso sexual de crianças e de pornografia de menores, mas com lição transponível para o crime de tráfico de estupefacientes.
(92) Ibidem, pp. 619 a 620.
(93) Ibidem, pp. 11 a 12.
(94) "Direito Penal - Parte Geral", t. 1, pp. 988 a 990.
(95) Ibidem, pp. 620 a 622 e 606 a 607.
(96) Ou, talvez mais correctamente, a contiguidade dos actos típicos.
(97) Neste sentido, v. g., Carlos Almeida, in "Legislação Penal sobre Droga: Problemas de Aplicação", Revista do Ministério Público, n.º 44, p. 89.
(98) Detenção de estupefacientes por parte do Recorrente e venda por co-arguido de cocaína e de cannabis a dois consumidores, em conluio com quatro outros, um deles o Recorrente, em funções de vigilância relativamente à aproximação de entidades policiais, recorde-se, também, no pormenor.
(99) «A consumação do crime de tráfico de estupefacientes dá-se com o primeiro acto que preenche os elementos típicos do crime e não com o último», são as suas palavras
(100) Englobando o ilícito «uma série de actos de tráfico praticados ao longo do tempo, a consumação de tal crime só se verificou quando a prática de todos esses actos terminou, ou seja, no caso em apreço, em 19.4.2018. [...] Sendo o crime de tráfico de estupefacientes objecto do processo 123/16, um crime integrado por vários actos sucessivos ou reiterados no tempo, a sua consumação material apenas ocorre no momento da prática do último acto de execução»
(101) Altura em que, recorde-se, ocorreu «[d]Detenção de estupefacientes por parte do Recorrente e venda por co-arguido de cocaína e de cannabis a dois consumidores, em conluio com quatro outros, um deles o Recorrente, em funções de vigilância relativamente à aproximação de entidades policiais.».
(102) Neste sentido, AcSTJ de 27.4.2022 - Proc. n.º 281/20.3PAPTM.S1.
(103) Neste sentido, AcSTJ de 27.4.2022 citado.
(104) Veja-se 25 e 26 supra.
(105) AcSTJ de 27.4.2022 citado.
(106) «O prazo de prescrição só corre: [...] Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto» - sublinhado acrescentado.
(107) «Para conhecer de crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados, ou por um só acto susceptível de se prolongar no tempo, é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último acto ou tiver cessado a consumação» - sublinhado acrescentado.
(108) «O disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado.»
(109) «A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação»; disposição aplicável em processo penal por via do artigo 4.º do CPP.
(110) «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º»; disposição (também) aplicável em processo penal por via do artigo 4.º do CPP, com a devida harmonização.
(111) AcSTJ de 7.7.2022 - Proc. n.º 133/22.2T8PDL.L1.S1. Afirmando o mesmo entendimento, entre muitos outros, acórdãos de 23.3.2023 - Proc. n.º 316/19.2GBVNO.S1, 28.9.2017 - Proc. n.º 302/10.8TAPBL.S1, de 14.1.2016 - Proc. n.º 8/12.3PBBGC-B.G1-S1, de 12.11.2015 - Proc. n.º 1/09.3JAPTM.S1, de 15.10.2015 - Proc. n.º 3442/08.0TAMTS.S1, de 13.11.2014 - Proc. n.º 72/14.0YFLSB e de 21.11.2012 - Proc. n.º 153/09.2PHSNT.S1.
(112) Salvo nos segmentos que, v. g., tenham decidido sobre a pena única ou sobre pena de substituição, em que, como é jurisprudência consolidada neste STJ, a força do caso julgado fica condicionada à cláusula rebus sic stantibus, como se pode ver, por todos, no AcSTJ de 2.6.2021 - Proc. n.º 626/07.1PBCBR.S1.
(113) Tiago Caiado Milheiro, ibidem, p. 26.
(114) AcSTJ de 17.3.2004 - Proc. n.º 03P4431.
(115) Para utilizar a expressão de Lobo Moutinho, ibidem, p. 547.
(116) AcSTJ de 25.10.2017 - Proc. n.º 3/12.2GAAMT.1.S1.
(117) Proc. n.º 206/16.0PALGS.S2
(118) Proc. n.º 97P909.
(119) Citação colhida no sumário disponível em SASTJ.
(120) Do sumário:
- «I - O crime de tráfico de estupefacientes é um crime que, muitas vezes, compreende uma multiplicidade de atos em que cada um, em si mesmo preenche todos os elementos da infracção.
II - Assim, ainda que a consumação ocorra logo consuma com a realização de uma qualquer das acções tipificadas, isto é, com a prática do primeiro ato, a cessação da actividade, a terminação da execução do crime, frequentemente, só se verifica mais tarde.
III - Se em sede de tentativa a terminação não tem relevância na medida em que a tutela penal se antecipa ao momento da prática do primeiro dos atos da conduta incriminada, o mesmo não deve entender-se para efeitos de cúmulo jurídico de penas, onde o que releva é o desrespeito pela admonição que deveria ter representado o trânsito em julgado da primeira condenação. Prosseguindo na prática de actos do crime exaurido, após essa admonição não pode senão considerar-se que o arguido a desconsiderou. Interpretação que obsta a que se acabe numa solução, se não exactamente igual, pelo menos bem próxima do denominado cúmulo por arrastamento que não é admitido no nosso regime penal.
[...].».
(121) Do sumário:
- «I - Nos crimes de trato sucessivo, a data em que cessou a actividade de tráfico - Julho de 2010 - será a data relevante a ponderar para a existência de uma relação de concurso. Esta é a solução mais conforme com a natureza do crime habitual em que um crime de tráfico de estupefacientes em trato sucessivo se pode inserir, podendo, ademais, ser convocada a regra prevista no art. 119.º, n.º 2, al. b), do CP, quanto ao início do prazo da prescrição do procedimento criminal.
[...].».
(122) Do sumário:
- «[...].
IV - O crime de tráfico de estupefacientes caracterizar-se como crime exaurido, com o que se pretende afirmar que, estando em causa uma progressão no iter criminis que levaria a um certo resultado, o primeiro ato praticado, que já caiba na previsão típica do art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, é suficiente para que se tenha o crime por consumado. Porém, estando em causa uma mesma intenção inicial que englobe um conjunto de práticas repetidas autonomizáveis, estaremos perante um crime cuja consumação se vai reiterando ao longo do tempo.
V - Assim, os atos subsequentes à primeira conduta que já constitua um crime, não podem ser ignorados com a relevância que lhes é devida, e de modo algum podem ser considerados atos praticados depois da consumação do crime.
VI - No caso estamos perante um comportamento criminoso que se estende de finais de dezembro, princípios de Janeiro de 2010, até 18 de Março seguinte. A reiteração não impede que a conduta seja unificada pelo dolo inicial do agente, sem se poder falar de continuação criminosa, porque nada nos diz que houvesse um circunstancialismo exterior que diminuísse sensivelmente a culpa da agente. Assim sendo, para a questão que nos ocupa, que é de saber se estamos perante um concurso ou uma sucessão de crimes, haverá que ter em conta a data do último ato de execução, que foi bem depois do trânsito em julgado da condenação do Proc. 1 ..., razão pela qual as referidas penas não se encontram entre si numa relação de cúmulo jurídico.».
(123) Do sumário:
- «1 - Salvaguardada a consumação com a prática do primeiro facto ilícito típico, ocorre nova consumação material de cada vez e todas as vezes que é praticado um novo facto ilícito típico que, por si só, já preenche o tipo legal do crime de tráfico mas que é tratado unitariamente por razões de política criminal.
2 - Assim, se o crime de tráfico de estupefacientes foi praticado durante o período que mediou entre Dezembro de 2016 e 22/5/17, tendo o primeiro acto de execução (Dezembro de 2016) sido praticado antes do trânsito da condenação proferida noutro processo e o último (22/5/2017) mais de 4 meses depois daquela data, a data relevante para aferir da existência de concurso de crimes é o dia 22/5/17.
3 - Sendo esta última data posterior àquela em que transitou o acórdão condenatório proferido no outro processo, há que concluir que não existe concurso de crimes e, por isso, não há lugar ao cúmulo jurídico das penas aplicadas nos dois processos.».
(124) Do sumário:
- «- Nos casos em que a execução do crime se prolonga no tempo, o momento temporal relevante a considerar para efeitos de cúmulo jurídico é o da data da cessação da consumação ou o da prática do último ato.
- De outro lado, o momento a atender para efeitos da verificação da existência de concurso de crimes que impõe a realização de cúmulo jurídico é o do trânsito em julgado da primeira condenação.».
(125) Do sumário:
- «I - O que releva para efeitos da verificação dos pressupostos da realização do cúmulo jurídico de penas, não é a [data] da condenação e trânsito desta mas sim da data da ocorrência dos factos. O elemento preponderante e determinante a considerar é a data da prática do crime, da sua consumação.
II - Para efeitos da punição do concurso de crimes, como para efeitos da contagem do prazo prescricional e da determinação da competência territorial, há que distinguir os crimes instantâneos, dos crimes permanentes, continuados, ou habituais.
III - Nos crimes instantâneos a consumação coincide com a prática do acto criminoso e esgota-se neste «verificado o evento, verificada está a prática definitiva do mesmo», nos demais a execução prolonga-se no tempo e o momento temporal relevante a considerar é o da data da cessação da consumação ou o da prática do último acto.
IV - O momento a atender para efeitos da verificação da existência de concurso de crimes que impõe a realização de cúmulo jurídico, logo a aplicação de uma pena única, é o do trânsito em julgado da primeira condenação.
V - Porque quando transitou a sentença proferida no processo... ainda a arguida não tinha praticado todos os actos que constituem o objecto destes autos, não se verifica o pressuposto previsto no art. 78.º, n.º 1 do CP, e por isso as penas parcelares aplicadas em cada um dos dois processos não podem ser juridicamente cumuladas.».
(126) Do texto:
- «Na mesma data - 14 de Abril de 2009 - a arguida tinha praticado parte dos factos que constituem o objecto dos presentes autos [processo comum colectivo n.º 158/07...] mas não tinha ainda praticado a parte restante dos factos integradores do mesmo objecto. Com efeito, como se viu e como expressamente consta do acórdão recorrido, nestes autos a conduta da arguida consistiu em vários actos de tráfico de estupefacientes praticados reiteradamente, entre Novembro de 2007 e 8 de Junho de 2009, e pelos quais foi condenada como autora de um único crime de tráfico. Por isso, e ressalvado sempre o devido respeito, não é exacta a afirmação feita no acórdão recorrido, sem qualquer restrição ou explicação, de que os factos praticados nestes autos são anteriores à data do trânsito da sentença proferida no processo comum singular n.º 1318/06..., e que conduziu à inclusão das penas aplicadas à arguida nestes autos, no cúmulo efectuado e agora sindicado.
Pois bem, sendo o tráfico um crime habitual, a sua consumação só se estabilizou com a prática do último acto que, in casu, ocorreu em 8 de Junho de 2009 (cf. art. 119.º, n.º 2, b) do C. Penal). Por outro lado, o último acto relativo ao crime de branqueamento ocorreu em 16 de Abril de 2009, e o último acto relativo ao crime de condução de veículo sem habilitação legal ocorreu em Junho de 2009.
Assim, porque quando transitou a sentença proferida no processo comum singular n.º 1318/06... ainda a arguida não tinha praticado todos os actos que constituem o objecto destes autos, não se verifica o pressuposto previsto no art. 78.º, n.º 1 do C. Penal, e por isso as penas parcelares aplicadas em cada um dos dois processos não podem ser juridicamente cumuladas.».
(127) Do sumário:
- «I - O cúmulo jurídico por conhecimento superveniente de concurso de crimes a que alude o artigo 78.º do Código Penal tem como pressuposto a existência de uma situação de concurso de crimes, a qual apenas se verifica "quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles."
II - No âmbito do concurso de crimes o trânsito em julgado da condenação penal é um limite temporal intransponível à determinação de uma pena única, excluindo desta os crimes cometidos depois.
III - Os crimes de homicídio e detenção de arma proibida pelos quais o arguido foi condenado por acórdão de 11-6-2004, transitado em julgado em 10-2-2005, não se encontram em concurso com o crime de tráfico de estupefacientes cometido entre Abril de 2004 e 8 de Fevereiro de 2006 pelo qual o arguido foi posteriormente condenado por acórdão de 4-11-2008, transitado em 10-12-2009, porquanto a data da cessação da consumação deste último crime é posterior à data do trânsito em julgado da primeira condenação.
IV - Esta interpretação não viola o princípio da culpa nem o principio da igualdade.».
Oportunamente, cumpra-se o disposto no artigo 444.º n.º 1, do Código de Processo Penal.
Custas pelo Recorrente, fixando-se em 4 UC's a taxa de justiça.
Digitado e revisto pelo relator (artigo 94.º n.º 2 do CPP).
Supremo Tribunal de Justiça, em 29 de Junho de 2023. - Eduardo Gonçalves de Almeida Loureiro (relator) - António Gama - Sénio Alves - Ana Brito - Orlando M. J. Gonçalves - Maria do Carmo Silva Dias - Pedro Branquinho Ferreira Dias - Leonor Furtado - Teresa Almeida - Ernesto Carlos dos Reis Vaz Pereira - Agostinho Soares Torres - António Latas - José Eduardo Miranda Santos Sapateiro - Helena Moniz - José Luís Lopes da Mota - Nuno António Gonçalves - Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida.
116860129
Anexos
- Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5490469.dre.pdf .
Ligações deste documento
Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):
-
1982-09-23 -
Decreto-Lei
400/82 -
Ministério da Justiça
Aprova o Código Penal.
-
1993-01-15 -
Decreto-Lei
13/93 -
Ministério da Saúde
Regula a criação e fiscalização das unidades privadas de saúde.
-
1993-01-22 -
Decreto-Lei
15/93 -
Ministério da Justiça
Revê a legislação do combate à droga, definindo o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas.
-
2007-09-04 -
Lei
59/2007 -
Assembleia da República
Altera (vigésima terceira alteração) o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, e procede à sua republicação. Introduz ainda alterações à Lei n.º 31/2004, de 22 de Julho(adapta a legislação penal portuguesa ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional), ao Decreto-Lei n.º 19/86, de 19 de Julho (Sanções em caso de incêndios florestais), ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Julho (revê a legislação de combate à droga), à Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho (Procriação medicamente assist (...)
-
2010-09-03 -
Lei
40/2010 -
Assembleia da República
Altera (segunda alteração) a Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, que aprova o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e 26.ª alteração ao Código Penal.
Aviso
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