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Acórdão 852/2014, de 10 de Março

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Sumário

Julga inconstitucional a norma retirada do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, na relação deste com o n.º 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do n.º 2, ou ao critério de agravação a ela subjacente

Texto do documento

Acórdão 852/2014

Processo 1359/13

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Por acórdão do Tribunal do Júri da Comarca do Baixo-Vouga - Juízo de Instância Criminal de Oliveira do Bairro, António Ferreira da Silva foi condenado, em 7 de Dezembro de 2012, pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1, do Código Penal (doravante, CP), e 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, e ainda no pagamento de indemnização civil a cada um dos assistentes (fls. 5063 a 5216, Volume XVII).

A mesma decisão declarou extinto o procedimento criminal, por descriminalização, quanto ao crime de detenção de arma proibida, constante do artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da referida Lei 5/2006.

2 - O recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (fls. 5284 a 5292, Volume XVII) que, por acórdão de 8 de Maio de 2013 - e com exceção da procedência pontual relativa à condenação em indemnização civil em que havia sido condenado, dela absolvendo o arguido -, o considerou improcedente (fls. 7173 a 7329, Volume XXIII).

3 - O arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (doravante, STJ) que, por acórdão de 30 de Outubro de 2013, e no que respeita à parte criminal, deu parcial provimento ao recurso, quanto à medida concreta da pena, reduzindo-a para dezasseis anos de prisão (fls. 7785 a 7859, volume XXV).

4 - Inconformado com a decisão do STJ, de 30 de Outubro de 2013, o recorrente interpôs, em 15 de Novembro de 2013, recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 7869 a 7877, Volume XXV), suscitando a fiscalização da constitucionalidade de várias normas.

5 - Em 30 de Dezembro seguinte a Relatora proferiu despacho (fls. 7900 a 7901, vol. XXV), ordenando a notificação para alegações para apreciação das normas indicadas nos pontos I. alínea a) e III, alínea d), do requerimento de interposição de recurso:

«Ponto I - Do homicídio qualificado atípico

a) inconstitucionalidade da norma do artigo 132.º, n.º 1, do Código penal relacionada com as várias alíneas do n.º 2 do mesmo preceito, na interpretação concreta que daquele normativo foi efetuada no sentido de nela (artigo 132.º, n.º 1, do CP) se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, por apelo direto à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, quando se não tenha verificado nenhuma das circunstâncias previstas no n.º 2 do mesmo preceito, assim se tendo violado, no entender do recorrente, os princípios constitucionais da tipicidade, da legalidade, da segurança jurídica, da igualdade e da estrutura democrática do Estado de Direito, garantidos pelos artigos 2.º, 13.º, 29.º, n.os 1, 3 e 4 e 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa.

Ponto III - Do homicídio privilegiado

d) O recorrente solicita ainda a fiscalização da constitucionalidade do artigo 133.º do Código Penal, designadamente do segmento em que se exprime o conceito de compreensibilidade referente ao pressuposto ou elemento da compreensível emoção violenta aí tipificado, na interpretação que de tal preceito se faça no sentido de exigir para verificação de tal pressuposto ou elemento, qualquer relação causal de proporcionalidade entre o facto injusto do provocador e o facto ilícito provocado por tal interpretação esvaziar aquele conceito de sentido e de possibilidade de aplicação, com autêntica negação da tipicidade e aniquilamento do tipo legal criado pelo legislador, assim fazendo padecer aquele preceito (artigo 133.º do CP), no segmento invocado, do vício de inconstitucionalidade material, por violação dos princípios constitucionais da separação de poderes, da igualdade, da legalidade, da confiança e da segurança jurídicas, previstos nos arts. 2.º, 13.º, 29.º, n.os 1, 3 e 4 e 27.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa.»

6 - No mesmo despacho decidiu não tomar conhecimento das questões de constitucionalidade postas nos pontos I, alínea b), II., alínea c), IV, alínea e), e V, alínea f), decisão que não foi impugnada pelo recorrente.

7 - O recorrente apresentou alegações (fls. 7903 a 7912, Volume XXV), restritas aos pontos I. a) e III d).

8 - O Ministério Público contra-alegou (fls. 7915 a 7943, Volume XXV), nos seguintes termos:

«O Tribunal Constitucional não deve conhecer da questão de constitucionalidade do ponto III, alínea d), uma vez que a interpretação normativa do artigo 133.º do Código Penal cuja constitucionalidade é questionada não foi aplicada no douto aresto recorrido, não tendo constituído ratio decidendi da decisão do Supremo Tribunal de Justiça.»

Em síntese, refere o Ministério Público que:

«Efetivamente, o ora recorrente alicerça o seu juízo de inconstitucionalidade da norma legal ínsita no artigo 133.º do Código Penal, na contestação à interpretação judicial do conceito de "compreensibilidade" referente à emoção violenta suscetível de diminuir sensivelmente a culpa do autor de um homicídio.

Acontece que, conforme já adiantámos, ainda que o venerando tribunal recorrido possa ter feito qualquer referência ao critério de preenchimento do conceito de "compreensibilidade", tal referência não pode deixar de representar um mero obter dictum, uma vez que o Supremo Tribunal de Justiça declarou, no último parágrafo de páginas 120 do seu douto acórdão (fls. 7844 v.º dos autos), que "[n]em da matéria fáctica provada se retira que o arguido agisse dominado por emoção violenta".

Ora, se o tribunal recorrido aceitou como provado que o arguido não agiu dominado por emoção violenta, tal implica que a discussão sobre a compreensibilidade ou incompreensibilidade da inexistente emoção violenta é totalmente ociosa, atenta a não aplicação, pelo julgador, do segmento normativo cuja interpretação era reputada inconstitucional pelo recorrente.»

No que respeita ao ponto I, alínea a), o Ministério Público conclui que:

«Verifica-se, pois, que os conceitos indeterminados de especial censurabilidade e perversidade contidos na norma ínsita no n.º 1, do artigo 132.º do Código Penal, apresentam um grau suficiente de precisão e determinabilidade, compatível com as exigências do princípio constitucional da legalidade na sua vertente de princípio da tipicidade.

Em face do acabado de expor, entendemos que a norma contida no n.º 1, do artigo 132.º do Código Penal não viola qualquer preceito constitucional, devendo, consequentemente, nesta parte, ser negado provimento ao presente recurso.»

9 - Contra-alegaram ainda os recorridos, Modesto Alves Mendes e Isabel do Rio Dias Oliveira Mendes, assistentes e demandantes, pugnando pela improcedência do recurso (fls. 7958 a 7977, vol. XXV).

10 - Foi proferido despacho pela Relatora (vol. XXV, fls. 7957) com o seguinte teor:

«Notifique o recorrente e os recorridos para, caso queiram, se pronunciarem sobre as questões de não conhecimento do objeto do recurso, na parte que se refere ao artigo 133.º do Código Penal, levantadas pelo recorrido Ministério Público».

11 - Notificado deste despacho, o recorrente veio pugnar pelo conhecimento daquela parte do recurso, sustentando que «a recusa da aplicação do preceito por via de interpretação do mesmo contra a Constituição constitui assim uma componente essencial da ratio decidendi que negou provimento, nessa parte, ao recurso interposto pelo recorrente».

12 - Tendo cessado funções neste Tribunal a Relatora originária, procedeu-se à redistribuição do processo.

II. Fundamentação

13 - No requerimento de interposição de recurso foram indicadas, como objeto do mesmo, seis "questões".

Contudo, no exame preliminar da Relatora (artigo 78.º-A da LTC), a par da notificação para alegar quanto a duas das questões que originariamente integravam o objeto do recurso, o recorrente foi simultaneamente notificado para se pronunciar sobre a possibilidade de não conhecimento das restantes quatro, por não verificação dos respetivos pressupostos processuais.

Nesta sequência, o recorrente apresentou alegações apenas quanto às duas questões que o Tribunal Constitucional entendeu estarem em condições processuais de prosseguir para apreciação de mérito. Neste contexto, considerando que o recorrente aceitou a exclusão das restantes quatro questões, o objeto do recurso ficou limitado às duas questões identificadas no ponto 5. supra.

Contudo, já na fase de alegações, o Ministério Público veio sustentar que a segunda dessas questões, que diz respeito à interpretação do artigo 133.º do CP, também não pode ser conhecida, por não estar verificado um dos pressupostos de que depende o conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.

O preenchimento do tipo privilegiado do artigo 133.º do CP exige a verificação de uma situação de compreensível emoção violenta.

A questão é enunciada pelo recorrente a respeito do «segmento em que se exprime o conceito de compreensibilidade referente ao pressuposto ou elemento da compreensível emoção violenta aí tipificado», sustentando que é inconstitucional a «interpretação que de tal preceito se faça no sentido de exigir para verificação de tal pressuposto ou elemento, qualquer relação causal de proporcionalidade entre o facto injusto do provocador e o facto ilícito provocado».

Analisando o acórdão recorrido, verifica-se que o Supremo Tribunal de Justiça, depois de confirmar o enquadramento jurídico das instâncias no tipo do homicídio qualificado, passa a apreciar cada uma das hipóteses de qualificação jurídica dos factos equacionadas pelo recorrente nas conclusões de recurso (para o STJ): legítima defesa, legítima defesa de terceiro, legítima defesa putativa e excesso de legítima defesa e, por fim, o tipo privilegiado constante do artigo 133.º do CP.

A fundamentação do tribunal para concluir pela não verificação de tais situações assentou na matéria de facto provada: não só da mesma não resultam elementos que suportem os requisitos legalmente previstos naqueles institutos, como os factos que resultaram provados apontam no sentido oposto - por isso alicerçaram o enquadramento no tipo penal agravado.

14 - Especificamente a respeito do artigo 133.º, citando a decisão de 1.ª instância, diz-se no acórdão recorrido:

«Ainda a respeito da qualificação jurídica dos factos, refira-se o seguinte: na contestação, o arguido pugnou pela integração da sua conduta na figura do homicídio privilegiado. p. e p. pelo artigo 133.º do Código Penal. Para tal, alegou ter atuado num estado de perturbação psicológica, humilhação, sofrimento e revolta que lhe foi causado pelas atuações de Cláudio Mendes, ao longo de três anos e no próprio dia dos factos, ou seja, dominado por uma compreensível emoção violenta que lhe afetou a capacidade de atuar.

Essa alegação escorava-se, nomeadamente, num vasto conjunto de atuações que o arguido imputou a Cláudio Mendes ao longo do referido período, designadamente agressões físicas e verbais, sobretudo à sua filha, mas também a si e restantes familiares, bem como num estado de doença mental atribuído àquele que o tomava perigoso, nomeadamente para com a própria menor. Porém, tais factos ficaram, na sua grande maioria, por demonstrar, apenas se tendo provado, em traços gerais, duas situações em que Cláudio Mendes, ao telefone, injuriou e ameaçou o arguido, outra em que lhe disse que a filha dele se tinha prostituído consigo, um episódio de violência, ocorrido em Santa Maria da Feira, para com o veículo deste e a agressão física, com uma bofetada, que, nos dias dos factos, desferiu contra a tia do arguido.

Mais se provou que, em consequência desses comportamentos de Cláudio Mendes, inseridos no conflito mantido com a filha do arguido sobre a descendente de ambos, este sentia humilhação, dor e mágoa, bem como receio que aquele pudesse atentar contra a sua integridade física e dos seus familiares.

Porém, deste conjunto factual, mais pormenorizado e contextualizado na descrição da matéria de facto provada - nomeadamente no que concerne à motivação do episódio de violência contra o veículo do arguido e à expressão de que a filha deste se prostituíra consigo - não é de modo algum possível concluir por um estado de perturbação suscetível de demonstrar que o arguido, ao disparar sobre Cláudio Mendes da forma que o fez, agiu dominado por uma compreensível emoção violenta.

Como tal, fica arredada a hipótese de integrar a sua conduta no tipo privilegiado do artigo 133.º do Código Penal.»

Em jeito de conclusão, o STJ termina com a seguinte afirmação: «nem da matéria fáctica provada se retira que o arguido agisse dominado por emoção violenta».

Ora, como resulta destas passagens, a hipótese de qualificação da conduta no tipo do artigo 133.º do CP foi afastada por não ter qualquer apoio na factualidade provada e não devido a uma determinada interpretação daquele preceito - no que respeita ao conceito de compreensibilidade - no sentido apontado pelo recorrente. É por isso que, socorrendo-se de uma passagem da resposta do Ministério Público às motivações do recurso, o Tribunal afirma claramente: «Com efeito, o recorrente a dado passo das suas motivações parece estar a tirar conclusões com referência, não à matéria provada, mas em relação à matéria alegada por si e que não se provou».

Nestas circunstâncias, não tendo a norma sido aplicada pelo Tribunal, resultaria inútil ponderar a sua eventual inconstitucionalidade. Com efeito, ainda que se viesse a concluir pela desconformidade constitucional da interpretação perfilhada no acórdão acerca do segmento compreensível, subsistiria sempre a não integração da conduta do arguido no tipo previsto no artigo 133.º do CP, com fundamento na falta de prova de elementos que a pudessem alicerçar.

Este Tribunal tem entendido que, «[...] não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso» (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 366/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).

Tendo em conta o exposto, também nesta parte não deverá o recurso ser conhecido.

O objeto do recurso restringe-se assim à questão da constitucionalidade relativa à interpretação do artigo 132.º do CP.

15 - Tal como identificada pelo recorrente, a questão consiste na suposta inconstitucionalidade da norma do artigo 132.º, n.º 1, do CP, relacionada com as várias alíneas do n.º 2 do mesmo preceito, quando interpretada«no sentido de nela (artigo 132.º, n.º 1, do CP) se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, por apelo direto à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, quando se não tenha verificado nenhuma das circunstâncias previstas no n.º 2 do mesmo preceito», por violação dos princípios constitucionais da tipicidade, da legalidade, da segurança jurídica, da igualdade e da estrutura democrática do Estado de Direito, garantidos pelos artigos 2.º, 13.º, 29.º, n.os 1, 3 e 4 e 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP).

16 - Importa fazer uma outra precisão relativamente ao objeto do recurso, desta feita no que respeita aos parâmetros de fiscalização de constitucionalidade.

Quanto às normas ou princípios constitucionais violados, o recorrente menciona «os princípios constitucionais da tipicidade, da legalidade, da segurança jurídica, da igualdade e da estrutura democrática do Estado de direito, garantidos pelos artigos 2.º, 13.º, 29.º, n.os 1, 3 e 4, e 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa».

Não obstante tais indicações, os termos em que a questão concreta foi suscitada no requerimento de recurso, assim como a argumentação expendida nas alegações, fundamentalmente centrada no plano da determinabilidade do tipo legal, evidenciam que o parâmetro pertinente para aferir de uma eventual inconstitucionalidade é o princípio da legalidade, na sua vertente de tipicidade. Aliás, quanto ao princípio da igualdade, como refere o Ministério Público, o recorrente nem sequer avança argumentos que pudessem alicerçar a invocada violação. E, no que respeita aos princípios da segurança jurídica e da estrutura democrática do Estado de Direito, as alegadas violações, tal como estão formuladas, sempre decorreriam da ofensa ao princípio da legalidade.

Nestes termos, limitar-nos-emos a analisar a (eventual) violação do princípio constitucional da legalidade criminal, na sua dimensão de tipicidade.

O artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP) submete a intervenção penal ao princípio da legalidade, no sentido preciso de que não pode haver crime nem pena ou medida de segurança que não resultem de lei prévia, escrita, certa e estrita, estando, consequentemente, proibido o recurso à analogia.

É a seguinte a redação desta disposição constitucional:

«Artigo 29.º

Aplicação da lei criminal

1 - Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior"

2. [...]

3 - Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior.

4 - Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido.

5. [...]

O artigo 132.º do CP, pelo seu lado, tem a seguinte redação:

«Artigo 132.º

Homicídio qualificado

1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

a) Ser descendente ou ascendente, adotado ou adotante, da vítima;

b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau;

c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;

d) Empregar tortura ou ato de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima;

e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil;

f) Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima;

g) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime;

h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum;

i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;

j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas;

l) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ou ministro de culto religioso, juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas;

m) Ser funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.»

17 - Antes de nos debruçarmos sobre a questão de constitucionalidade importa fazer uma breve análise dos traços fundamentais do regime do homicídio qualificado.

Limitar-nos-emos, porém, aos aspetos cuja clarificação se revele indispensável e decisiva para o nosso caso, deixando de lado outros problemas, designadamente de categorização, como seja o de saber se o artigo 132.º, em particular os exemplos-padrão, configuram elementos do tipo de ilícito, elementos do tipo de culpa ou meras circunstâncias determinantes da medida da pena. Não olvidamos que a questão tem implicações práticas relevantes, designadamente nos planos do dolo, da tentativa e da comparticipação. Contudo, no que respeita ao problema da compatibilização da norma com as exigências do princípio da legalidade, não será pela qualificação assentar num tipo de culpa que a incriminação ficará imune ao controlo por aquele princípio. Com efeito, é hoje praticamente unânime o entendimento de que as exigências relativas a este princípio não se limitam ao tipo de ilícito mas abrangem o tipo de culpa, assim como as circunstâncias agravantes da medida da pena (neste sentido Augusto Silva Dias, Crimes contra a Vida e Integridade Física, AAFDL, 2007, p. 27).

A este respeito, Figueiredo Dias refere-se ao tipo legal ou tipo de garantia como «o tipo formado pelo conjunto de elementos cuja fixação se torna necessária para uma correta observância do princípio da legalidade». Nas palavras deste Autor, no plano da determinabilidade «aquilo que importa é que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos» (in Direito Penal. Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 185-186).

18 - Para construir o homicídio qualificado o legislador recorreu à técnica chamada dos exemplos-padrão. Nas palavras de Teresa Serra (Homicídio Qualificado: Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, Coimbra, 1990, pp. 120-125), «esta técnica estrutura-se sobre uma cláusula geral (prevista no n.º 1 do artigo 132.º), concretizada através de uma enumeração casuística exemplificativa de circunstâncias agravantes de funcionamento não automático (elencados no n.º 2 do mesmo preceito)».

Adiantamos também que, apesar de toda a polémica em torno deste tipo penal, é unânime - ou pelo menos, não se registam divergências doutrinárias sensíveis -, que o procedimento traduzido em fazer um apelo direto à cláusula da especial censurabilidade ou perversidade, prescindindo por completo da intervenção (ou mediação) dos exemplos-padrão, violaria o princípio da legalidade penal.

Para a generalidade da doutrina a compatibilidade do preceito com as exigências do princípio da legalidade reside na particular conexão que se estabelece - se tem de estabelecer -entre a cláusula geral do n.º 1 e os exemplos-padrão do n.º 2. É essa imbricação que vai assegurar o respeito pelas exigências que decorrem daquele princípio.

Isto porque, entregue a si própria, a cláusula geral, inscrita no n.º 1, ao deitar mão aos conceitos de especial censurabilidade ou perversidade, necessariamente generalizadores e indeterminados, atrairia sobre si a suspeita de ofensa daquele princípio. É que a legalidade penal não pode ser uma legalidade integrada por conceitos cujo grau de generalidade ou de vacuidade requer, como condição indispensável de aplicação, uma escolha valorativa do juiz dentro de parâmetros tão vastos que lhe conferem uma amplíssima margem de ponderação e decisão.

Pelo seu lado, os exemplos-padrão também não podem operar isoladamente, consagrada que está a proibição da analogia em direito penal.

19 - A especial relação que se estabelece entre a cláusula geral do n.º 1 e os exemplos-padrão do n.º 2 traduz-se no seguinte e delicado mecanismo, que se procura dilucidar:

a) A mera verificação de um exemplo-padrão não é, por si só, suficiente para fazer operar a qualificação; e

b) Até pode não ser necessária;

c) A verificação da especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente, pelo seu lado, será sempre necessária;

d) Mas não é nunca suficiente.

A fórmula «não só nem sempre», adotada por Silva Dias, é, parece, aquela que melhor espelha esta dinâmica subtil (op. cit., pp. 24).

Segundo a maioria da doutrina (Teresa Serra, Figueiredo Dias, Costa Andrade, Silva Dias), o preenchimento de um exemplo-padrão dos incluídos no n.º 2 do artigo 132.º desencadeará apenas um efeito indiciário, que pode vir a ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias do facto e da atitude do agente nelas expressa; ou, inversamente, neutralizado e infirmado.

Partindo desta compreensão do tipo do artigo 132.º do CP, a questão que se coloca é a de saber se e em que medida - dentro de que «balizas de legitimidade constitucional» (na expressão de Costa Andrade, constante de parecer anexo aos autos, a fls. 25) - é possível punir pelo crime de homicídio qualificado constelações fácticas que estão para além do teor expresso das normas que prescrevem os singulares exemplos-padrão.

20 - A doutrina tem vindo a aceitar que ainda é compatível com o princípio da legalidade a punibilidade naqueles casos em que a situação concreta revela um conteúdo de desvalor ou uma estrutura axiológica idêntica ou similar a algum dos exemplos-padrão ali consagrados. É consensual que a qualificação terá sempre que passar pela filtragem ou mediação através do exame de correspondência axiológica concreta com algum dos exemplos-padrão elencados no n.º 2.

Vejamos algumas posições doutrinárias.

Para Figueiredo Dias, o respeito pelo princípio da legalidade exige a comprovação de uma situação valorativamente análoga a um caso expressamente previsto no artigo 132.º E não tem dúvidas de que «violador da legalidade se revelará qualquer procedimento que se traduza num apelo direto à cláusula da especial censurabilidade ou perversidade, sem passar pelo "crivo" dos exemplos-padrão» (Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pp. 52).

Na mesma linha, para Silva Dias (ob. cit. p. 25), «a compatibilização da abertura possibilitada pela expressão "entre outras" com o princípio da legalidade só é assegurada se ela não conduzir à dissolução do vínculo do juiz à lei, como disse, e se os exemplos das diversas alíneas puderem funcionar como padrão ou regra e não como exemplificação avulsa». Este autor sublinha que, por respeito às exigências de legalidade e de vinculação à lei, «ao juiz apenas é concedido integrar nas alíneas do n.º 2 circunstâncias que, embora não estejam aí expressamente previstas, correspondam à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo-padrão.»

Para Teresa Quintela de Brito (in Teresa Quintela de Brito e outros autores, Direito Penal-Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, Coimbra Editora, 2007, pg. 178) «a aceitação de outras circunstâncias agravantes, não expressamente previstas na lei, depende da possibilidade de vislumbrar, na nova situação, o grau de desvalor e a estrutura valorativa de algum dos exemplos-padrão. Obviamente, o juiz não pode apelar diretamente à cláusula geral do n.º 1 para afirmar um homicídio qualificado atípico. Não pode acrescentar novas alíneas ao n.º 2 do artigo 132.º Só lhe é permitido identificar um homicídio qualificado atípico, por via de uma conclusão por analogia do caso em apreço com um dos exemplos-padrão da lei.»

No mesmo sentido, Teresa Serra escreve (cit., p. 123): «A admissão de outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente está perfeitamente delimitada aos casos em que tais circunstâncias exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente ao Leitbild dos exemplos-padrão enunciados n.º 2.»

De igual forma, Fernanda Palma e Rui Pereira (parecer junto aos autos, fls. 7163) afirmam claramente que «Respeitar o princípio da legalidade ao interpretar e aplicar o artigo 132.º do Código Penal implica que se dê por não escrita a expressão "nomeadamente", constante do seu n.º 2. Na hipótese interpretativa mais ousada, poder-se-ia admitir a aceitação de casos de homicídio qualificado construídos, alínea a alínea, através de uma espécie de analogia legis, que parta da razão de ser da respetiva virtualidade qualificativa. Segundo esta orientação, poder-se-á questionar, por exemplo, se poderá ser punido como "parricida" alguém que mata a madrinha por quem foi criado e educado como filho. De todo o modo, a construção de "homicídios atípicos" numa lógica que se desprende das próprias alíneas é inequivocamente incompatível com a legalidade penal e, portanto, inconstitucional».

Neste quadro parece unânime o entendimento de que qualquer interpretação que tente fugir ou escapar das balizas acima indicadas não só ignora o sentido e a estrutura lógico-sistemática da técnica dos exemplos-padrão mobilizada pelo legislador neste âmbito, como viola de forma clara o princípio da legalidade em direito penal (artigo 29.º, n.º 1, da CRP). [v. ainda Faria e Costa, parecer anexo aos autos a fls. 7686]

Nesta compreensão só podem punir-se por homicídio qualificado atípico as condutas que, embora não correspondendo ao teor expresso de qualquer dos exemplos-padrão, seja, todavia, possível, por via de interpretação extensiva (assente numa indiscutível comunicabilidade teleológico-axiológica), incluir no "tipo orientador" de ilícito (danosidade social/desvalor de ação) e de culpa de um dos exemplos-padrão. Só depois de uma prévia, e necessariamente positiva, resposta às exigências de um exemplo-padrão será admissível, num segundo momento, questionar a especial censurabilidade ou perversidade.

21 - O princípio da tipicidade dos crimes, vertido na conhecida formulação romana nullum crimen nula poena sine lege, pode ser visto como corolário de outro princípio, o da legalidade.

A CRP, no seu artigo 29.º, n.º 1, dispõe que «ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou omissão...» A melhor doutrina constitucional descobre nesta norma uma tripla exigência:

a) A suficiente densidade da norma incriminadora, proibindo-se o uso de conceitos vagos ou insuficientemente determinados (nullum crimen nula poena sine lege certa);

b) A proibição da interpretação extensiva das normas penais incriminadoras (nullum crime nulla poena sine lege stricta);

c) A determinação legal da pena correspondente a cada tipo de crime (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 495; também, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 672).

A doutrina penal, que se indica exemplificativamente, não se distancia desta posição.

As exigências de suficiente densidade da norma penal são condição de «um direito criminal objetivo que adequadamente cumpra a repartição de competências entre a legislação e a jurisdição - imposta pelo princípio da separação dos poderes -, que atue como fundamento normativo das decisões jurídicas concretas - imposta, por sua vez, pelo princípio da vinculação jurídica das mesmas decisões - e ofereça a prática possibilidade de controle ainda dessas decisões - como impõe o princípio da objetividade jurídica ou da exclusão do arbítrio» (A. Castanheira Neves, «O princípio da legalidade criminal», in Digesta, volume 1.º, Coimbra, 1995, p. 380).

Também Taipa de Carvalho (Constituição Portuguesa Anotada, cit., Tomo I, pág. 672,) escreve que «dada a necessidade de prevenir as condutas lesivas dos bens jurídico-penais e igualmente de garantir o cidadão contra a arbitrariedade ou mesmo contra a discricionariedade judicial, exige-se que a lei criminal descreva o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime. Só assim o cidadão poderá saber que ações e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser qualificado criminoso, com a consequência de lhe vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança».

Sousa Brito («A lei penal na Constituição», in Estudos sobre a Constituição, II, Lisboa, 1978, pp. 197 ss, 243, 244), reconhecendo tratar-se de problema de difícil solução, sustenta que «que alguma determinação terá que haver, resulta já dos princípios da legalidade das penas e da conexão entre crime se a lei que a impõe não determinasse com suficiente segurança os pressupostos genéricos a que está ligada. Previsões legais vagas, ou de outro modo indeterminadas são um modo de desvirtuar a função de garantia da reserva de lei e do princípio da legalidade por inteiro. Isto vale tanto para os crimes, como para as contravenções, como para os pressupostos das medidas de segurança.»

22 - O Tribunal Constitucional já teve oportunidade, por mais de uma vez, de se pronunciar sobre o sentido e alcance do princípio da tipicidade dos crimes. Vejam-se, a título de exemplos significativos:

«...Averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucionalmente ilegítima.»(Acórdão 168/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).

«... O princípio da tipicidade exprime-se, em direito penal, na exigência de normas prévias, escritas e precisas. As normas incriminadoras - e, mais amplamente, as normas penais positivas, isto é, as normas que geram ou agravam a responsabilidade - só podem cumprir a sua finalidade preventiva geral e satisfazer o desígnio da segurança jurídica que enforma o princípio da legalidade e o próprio Estado de direito democrático se houverem entrado em vigor antes da prática das condutas criminosas e forem efetivamente cognoscíveis pelos destinatários» (Acórdão 449/02, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).

«...Num Estado de direito democrático a prevenção do crime deve ser levada a cabo com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, estando sujeita a limites que impeçam intervenções arbitrárias ou excessivas, nomeadamente sujeitando-a a uma aplicação rigorosa do princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege). É neste sentido que o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, dispõe que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.

Essa descrição da conduta proibida e de todos os requisitos de que dependa em concreto uma punição tem de ser efetuada de modo a que "se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos"(Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2007, p. 186). Daí que, incindivelmente ligado ao princípio da legalidade se encontre o princípio da tipicidade, o qual implica que a lei deve especificar suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime (ou que constituem os pressupostos de medida de segurança), bem como tipificar as penas (ou as medidas de segurança). A tipicidade impede, assim, que o legislador utilize fórmulas vagas, incertas ou insuscetíveis de delimitação na descrição dos tipos legais de crime, ou preveja penas indefinidas ou com uma moldura penal de tal modo ampla que torne indeterminável a pena a aplicar em concreto. É um princípio que constitui, essencialmente, uma garantia de certeza e de segurança na determinação das condutas humanas que relevam do ponto de vista do direito criminal.» (Acórdão 397/2012, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).

23 - Dúvidas não existem quanto à razão de ser da exigência da tipicidade. A incriminação de condutas humanas é absolutamente excecional, fundada como é na necessidade de prevenir e reprimir comportamentos antissociais que, pela sua gravidade, ameaçam a vida em sociedade. Mesmo quando as condutas humanas afetam negativamente direitos e interesses de outros membros da sociedade, causando-lhes prejuízo, a reação penal é uma patologia, apenas ocorrendo quando aqueles direitos e interesses são objeto de proteção constitucional (v., neste sentido, sublinhando que a sanção penal deve constituir o derradeiro recurso jurídico para o enquadramento de uma conduta humana, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., pp. 493-494; Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, cit., p. 671).

Ora, se apenas podem ser crimes comportamentos especialmente graves e censuráveis; e se estes comportamentos, para constituírem crimes, têm de ser previamente identificados como tais pelo legislador (e, acrescentamos, definidos de modo a poderem ser percebidos como tais pelos destinatários da norma), compreendem-se as dimensões constitucionais do princípio da tipicidade penal, tal como se referiram noutro ponto, nomeadamente as exigências de lei certa e de lei estrita.

A lei penal que institui uma conduta humana em crime não pode fazer apelo a conceitos vagos e de determinação difícil, a exigir do aplicador uma atividade perturbada e perturbadora.

24 - A análise estrutural do artigo 132.º do CP suscitou naturais dúvidas quanto à sua compatibilidade com o princípio da tipicidade. Isso mesmo foi assumido no decurso dos trabalhos de revisão do Código. Aí se pode ler (Reforma do Código Penal. Trabalhos Preparatórios, Volume I, Lisboa, 1995, p. 145.):

«A técnica dos exemplos-padrão, que a jurisprudência vem considerando compatível com o princípio da legalidade, sempre provocou resistências em vários sectores da doutrina.»

Ora, se a técnica dos exemplos-padrão, em si mesma, é, ou foi, controversa, compreende-se muito bem que a generalidade da doutrina, referida noutro ponto, sustente uma aplicação muito prudente do artigo 132.º, no sentido de exigir para verificação do homicídio qualificado atípico, um juízo de especial perversidade e censurabilidade concretizado numa estrutura valorativa semelhante a uma das alíneas do n.º 2 do artigo 132.º É elucidativa, a este propósito, a análise que Teresa Serra, faz, alínea a alínea, em busca de exemplos de extensão aplicativa da estrutura valorativa de cada exemplo-padrão (cf. «Homicídios em série», incluído na coletânea Jornadas sobre a revisão do Código Penal, Lisboa, 1998, pp. 126 a 135):

Na verdade, as noções de especial perversidade e censurabilidade, desapoiadas de qualquer elemento concretizador extraído de uma das alíneas do n.º 2 do artigo 132.º, ficam à mercê das pré-compreensões do legislador, construídas com base nas suas convicções, morais, sociais, culturais, filosóficas, religiosas, etc., introduzindo um fator de incerteza intolerável na lei penal.

Uma norma penal incriminatória tem, de alguma forma, de dividir o universo dos destinatários em dois compartimentos, tanto quanto possível, estanques: um, onde se encontram aqueles (muitos) que não adotaram a conduta proibida e sancionada; outro, onde estão aqueles (poucos) que incorreram nela. A fronteira entre ambos tem de ser - tem de procurar ser - uma linha separadora da luz e das trevas, não devendo ser uma zona de penumbra.

Estamos agora em condições de verificar se a interpretação normativa que foi dada ao artigo 132.º do CP, que fundamentou a punição do recorrente por homicídio qualificado, respeita ou não os limites apontados ao princípio da legalidade criminal.

25 - Assente que a situação em causa não se reconduz diretamente a qualquer um dos exemplos-padrão previstos no n.º 2 (o que foi reconhecido pela decisão recorrida e pelas anteriores instâncias), tudo está em saber se a punição por homicídio qualificado assentou no reconhecimento judicial de uma situação reconduzível a uma estrutura valorativa comparável àquele que subjaz a algum ou a alguns dos exemplos-padrão específica e individualmente considerados.

É a seguinte, na parte que ora interessa, a fundamentação do acórdão recorrido, do STJ:

«Ora como bem salientou o acórdão da Relação, em sua fundamentação "sobre a concreta qualificação do homicídio discutido no processo."

"O arguido estava pronunciado pela prática de um crime de homicídio qualificado, do artigo 132.º, n.º 1 e 2, alínea e) e j), por se ter entendido que a sua ação foi determinada por motivo torpe ou fútil e que agiu com frieza de ânimo e com reflexão sobre os meios empregados.

Entendendo como torpe o motivo infame, indecoroso, repugnante, baixo, sórdido, ignóbil, asqueroso, profundamente imoral, que repugna à generalidade das pessoas, e fútil aquele que é incompreensível para a generalidade das pessoas, que não tem relevo, que é insignificante, gratuito, frívolo, sem valor, que não pode razoavelmente explicar o tribunal recorrido afastou qualquer uma destas circunstâncias porque inserindo-se a conduta do arguido num contexto de conflitualidade crescente, que perdurou por mais de três anos, entre a sua filha e a vítima, conflitualidade essa que se estendeu a outros membros da família desta, decidiu «que a existência desse conflito, a sua natureza, dimensão e situação subjacente, retiram à conduta do arguido as características que permitiriam considerar que foi determinada por um motivo torpe ou fútil».

Quanto à segunda circunstância, o tribunal também a afastou porque, não obstante o arguido ter ido armado para o encontro combinado com a vítima para que este visse a filha, entendeu que «não se apurou que o arguido tenha tomado a decisão de atentar contra a vida da vítima anteriormente a ter sacado do revólver e muito menos quanto tempo antes. O facto de se ter munido de uma arma para um encontro deste tipo, não significa necessariamente, desacompanhado de outros elementos, que logo nesse momento tenha tomado a decisão de a vir a usar para matar ou sequer que tenha admitido essa possibilidade, embora em muitas situações assim seja efetivamente ...» não permitindo a matéria de facto provada «afirmar que o arguido tenha refletido sobre o desígnio criminoso, a ponto de revelar tenacidade, firmeza, persistência e intensidade da vontade criminosa, integradoras de uma especial perversidade».

Não obstante, o tribunal recorrido qualificou o crime cometido pelo arguido na base da seguinte argumentação e partindo do entendimento que a qualificação do crime por circunstância não prevista no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal só é possível se se situar num espaço de congruência com os exemplos padrão, a ponto de justificar também, como sucede nestes, uma especial desaprovação da conduta:

«... a matéria de facto provada revela várias circunstâncias que tornam o homicídio em causa altamente invulgar ou incomum, a ponto de o comportamento do arguido revelar especial censurabilidade ou perversidade.

Por um lado, a circunstância de ter assassinado o pai da sua própria neta, que tinha apenas três anos e 8 meses de idade, bem sabendo que ele nutria pela filha um enorme afeto, batalhando até à exaustão para conseguir conviver com a mesma como pretendia, por forma a acompanhar de perto o seu crescimento e desenvolvimento, o que, ao longo de três anos, foi frequentemente impedido de fazer pela progenitora da menor, filha do arguido. Assim, este privou a neta muito precocemente do afeto, do apoio e do acompanhamento do pai, seguramente com reflexos negativos no seu normal desenvolvimento psicológico e emocional. Para além disso, durante os treze anos em que Cláudio Mendes foi namorado e, nos últimos tempos antes do nascimento da menor, mesmo companheiro da sua filha, as relações entre aquele e o arguido processaram-se de um modo cordial e afetivo, chegando este a declarar a várias pessoas que o considerava como filho ... E mesmo quando aquela relação afetiva terminou e se instalou um quadro de conflitualidade crescente por causa do exercício das responsabilidades parentais ... o arguido inicialmente adotou uma atitude pacificadora e de mediação, tendo sido amigo de Cláudio Mendes.

Ora, o arguido foi profundamente indiferente a todas estas circunstâncias de ordem afetiva, que não foram suficientes para refrear o seu propósito de atentar contra a vida da vítima, vencendo facilmente as contramotivações éticas habitualmente derivadas desses laços, o que, em nosso entender, é especialmente censurável.

[...]

Por outro lado, é claramente chocante a circunstância de Cláudio Mendes ter sido morto na presença da própria filha, com 3 anos e 8 meses de idade, que inclusivamente se encontrava ao colo do arguido, assistindo, assim, ao assassinato do pai pelo avô materno, o que também não foi suficiente para dissuadir este do seu comportamento, revelando uma atitude altamente censurável e reprovável, muito para além do que é normal encontrar num homicida.

Para mais, tendo presente o circunstancialismo em que os factos ocorreram, ou seja, num parque público, no decurso de uma visita de exercício das responsabilidades parentais, cuidadosamente estipulada pelo tribunal, com a recomendação expressa, por parte da juíza, cerca de quinze dias antes, na conferência de pais, que a pessoa da família materna da menor que a levasse para o local tivesse o mínimo grau de conflitualidade possível com Cláudio Mendes, tendo então a filha do arguido respondido que tal pessoa poderia ser este último, por ser calmo e ter bom relacionamento com aquele.

E não obstante tudo isso ser do conhecimento do arguido, que tinha então um papel pacificador, ao dirigir-se para o parque de lazer, a fim de estar presente na visita, muniu-se de um revólver, completamente municiado, que ocultou no vestuário...

Ainda que este facto, pelas razões supra expostas, não seja suficiente para preencher o exemplo padrão da al. j), não deixa de ser um forte indício de frieza de ânimo e de reflexão sobre os meios empregados. Com efeito, ainda que na mera atitude do arguido, ao munir-se da arma, não se possa ver, indiscutivelmente, a formulação da intenção de matar, desconhecendo-se, pois, quando a tomou, milita fortemente nesse sentido o facto de levar uma arma de fogo para uma visita daquela natureza e com aqueles contornos. Tanto mais que o arguido tem uma personalidade que lhe permitiria facilmente resolver de forma racional um eventual conflito que surgisse durante a visita. Com efeito, provou-se que revela tendência para reagir com níveis de ansiedade adequados, mesmo quando confrontado com situações de maior tensão emocional, e possui estratégias de resolução de problemas, o que lhe permite lidar com as situações de ameaça, dano e desafio com que se depara e para as quais não tem respostas de rotina preparadas, tendendo a reagir adequadamente em situações de stress.

E refira-se aqui que o alegado receio do arguido de que Cláudio Mendes atentasse contra a sua vida e dos seus familiares, não ficou comprovado, nem tão pouco a doença mental que ele e a sua filha lhe atribuíam. Aliás, do conjunto da prova produzida resulta, à saciedade, que o propósito de Cláudio Mendes era, única e exclusivamente, estar com a sua filha, de forma tranquila e pacífica, interagindo com ela durante os períodos limitados das visitas, pelo que se apresenta completamente desproporcionada a circunstância de o arguido ir para um desses momentos armado, tornando a sua conduta especialmente censurável. Note-se que, aqui, estamos somente a valorar o facto de ele se ter munido da arma e não de a ter utilizado no cometimento do crime, circunstância esta valorável autonomamente nos termos do artigo 86.º, n.º 3, da Lei 5/2006, de 23/02.

Por outro lado, contrastando com a posição dominante e de superioridade do arguido, que estava rodeado de três familiares (a filha, a mulher e a tia), um amigo e um conhecido a quem pedira especialmente para estar presente para evitar eventuais agressões físicas por parte da vítima (das quais, aliás, não tinha razões fundadas para suspeitar, atenta a forma como tinham decorrido as visitas no último ano), Cláudio Mendes encontrava-se apenas acompanhado pela então namorada, grávida de seis meses, e por uma sobrinha desta. Além disso, o encontro destinava-se exclusivamente a ele conviver com a sua filha menor, num parque público e infantil, onde pretendia estar com ela à vontade, não sendo de esperar um comportamento violento como o que o arguido protagonizou, reduzindo as suas hipóteses de reação, até porque o arguido tinha a menor ao colo, apresentando-se, pois, Cláudio Mendes numa posição indefesa.

Por seu turno, parece claro que a motivação para a conduta do arguido assentou na relação de conflito crescente entre a sua filha e Cláudio Mendes por causa do exercício das responsabilidades parentais da filha de ambos.

Tal motivação, embora sem poder ser considerada, como já referimos, um motivo fútil, não deixa de revelar uma grande desproporção, revelando um código de valores individuais que se afasta dos padrões éticos socialmente aceitáveis, constituindo um ato altamente censurável.

Por fim, mencione-se a muito forte persistência na intenção de matar, tendo o arguido efetuado seis disparos, cinco deles depois de já ter atingido a vítima com o primeiro e após esta se ter virado de costas e posto em fuga, indo o arguido no seu encalço e continuando a disparar sobre ela mesmo depois de esgotar as seis munições do revólver. Acresce que disparou a curta distância e em direção ao tórax, onde era de esperar com maior certeza o efeito pretendido e a eficácia do disparo.

Igualmente impressivo é o facto de, imediatamente após os disparos, o arguido ter proferido a expressão "acabou", por pelo menos três vezes, o que traduz inegável brutalidade e forte insistência em consumar o ato. E não afasta esta conclusão o facto de também ter dito "isto é insuportável, bateu na minha tia, isto é insuportável", atenta a enorme desproporção entre essa agressão e aquela persistência na execução do ato.

Isto revela um acentuadíssimo desvalor da personalidade do arguido, suficientemente caracterizador de especial perversidade e traduzindo um grau de gravidade equivalente à estrutura valorativa dos exemplos padrão.

[...]

O arguido foi para o encontro destinado a efetivar a visita da vítima à filha, conforme havia sido decidido pelo tribunal, com uma arma escondida.

O que é que determinou o arguido a levar aquela arma completamente municiada?

Confessamos que não vimos outra possibilidade que não o seu uso. Mesmo que o arguido, no momento em que decidiu levar a arma, não tenha decidido, também, matar Cláudio Mendes, seguramente que decidiu a possibilidade de usar essa arma, pois só assim se entende que a tenha levado.

A certa altura esta possibilidade passou a certeza.

Sobre esta situação o acórdão recorrido diz que uma vez que não se apurou que o arguido tenha tomado a decisão de matar a vítima anteriormente a ter sacado do revólver, dado que o facto de ele se ter munido de uma arma para um encontro deste tipo não significava necessariamente que logo nesse momento tenha tomado a decisão de a vir a usar para matar, então não se podia falar em reflexão sobre os meios empregados.

Concordamos com o decidido. Efetivamente os factos não permitem afirmar que a decisão de matar foi contemporânea com a decisão de levar a arma ou quão anterior o foi relativamente à sua utilização.

Socorrendo-nos do acórdão do S.T.J. proferido no processo 508/10.0JAFUN [de 23-11-2011 relatado pelo Sr. Conselheiro Souto de Moura], diremos que o modo de cometimento do crime, a motivação que a ele presidiu, a forma e a intensidade com que foi executado, a ligação que havia entre a vítima e o arguido - recordemos que tiveram uma relação íntima, familiar, harmoniosa, durante 14 anos, que as desavenças que surgiram não se deveram a Cláudio Mendes e que, para além de tudo, este era o pai da sua neta -, tornam este crime mais grave porque a conduta do agente é mais reprovável, isto é, a distância que separa este crime dos demais crimes de homicídio, que continuam a ser inaceitáveis, é maior porque nestes muitas vezes ocorre uma convicção de que os motivos que os determinaram eram atendíveis ou mais difíceis de resistir.

Por isso, não há dúvida que o crime cometido pelo arguido reveste-se da especial censurabilidade e perversidade do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal.

Por todas as razões apontadas no acórdão recorrido, ponderando todas as circunstâncias do caso, bem como a personalidade do agente, resulta que a gravidade do facto cometido pelo arguido equivale à gravidade dos casos mencionados nos exemplos-típicos das alíneas a), b), e) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal: a imagem global do facto é, em tudo, semelhante aos casos concretizados naquelas alíneas como justificadora da agravação; o desvalor do facto é correspondente à daqueles exemplos-padrão, derivado da especial censurabilidade e perversidade demonstradas pelo agente no cometimento do crime.» (fls. 7841-7842 Volume XXV).

26 - Das expressões utilizadas no acórdão recorrido do STJ - parece resultar que o Tribunal terá entendido que a conduta do autor do crime teria revelado uma gravidade equivalente à que se poderia identificar conjuntamente nos exemplos-padrão das alíneas a), b), e) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do CP - e não específica e individualmente nalgum ou nalguns deles.

Assim se compreende que afirme que «a gravidade do facto cometido pelo arguido equivale à gravidade dos casos mencionados nos exemplos-típicos das alíneas a), b), e) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do CP: a imagem global do facto é, em tudo, semelhante aos casos concretizados naquelas alíneas como justificadora da agravação; o desvalor do facto é correspondente ao daqueles exemplos-padrão, derivado da especial censurabilidade e perversidade demonstradas pelo agente no cometimento do crime» (negrito nosso).

A leitura desta passagem do acórdão sugere que, no processo lógico de decisão, o tribunal terá identificado nas circunstâncias concretas do caso uma estrutura valorativa equivalente àquela que seria possível extrair do conjunto dos exemplos-padrão inscritos naquelas alíneas do n.º 2 do artigo 132.º do CP. Isto, não obstante em nenhum ponto da decisão recorrida ter feito referência a qual fosse esse "denominador comum",presente nas alíneas indicadas, suscetível de servir como ponto de ancoragem do juízo de especial censurabilidade ou perversidade. Adiante se voltará a este ponto.

O problema é que, a nosso ver, não se descobre uma estrutura valorativa comum às condutas enumeradas nas distintas alíneas do n.º 2 do artigo 132.º, em particular às mencionadas nos exemplos-típicos das alíneas a), b), e) e j) do mesmo preceito.

27 - Na verdade, as realidades contempladas em qualquer destas alíneas são de tal forma diversas umas das outras que não permitem a identificação de uma ideia condutora. O que há de valorativamente equivalente entre a «relação descendente ou ascendente, adotado ou adotante, da vítima» [alínea a) do n.º 2 do artigo 132.º] e a circunstância de «ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil» [alínea e) do n.º 2 do artigo 132.º]? Para além da especial censurabilidade e perversidade que todos eles parecem revelar, não se descortina qualquer dimensão valorativa comum suscetível de intensificar a censura penal.

Como escreve Teresa Serra (Homicídio Qualificado..., cit., p. 73), «esta estrutura valorativa deve ser surpreendida e extraída precisamente da ideia condutora agravante que subjaz a cada uma das circunstâncias mencionadas no n.º 2». E mais adiante: «No âmbito da estrutura valorativa de cada uma dessas circunstâncias, é possível enquadrar outras circunstâncias diversas das que estão exemplificadas, desde que revelem igualmente um especial grau de gravidade da ilicitude ou da culpa.»

Pensemos nos exemplos-padrão da alínea a) e da alínea b), que são aqueles que hipoteticamente maior afinidade teriam com o caso sub judice, dado que em ambos a ideia condutora agravante respeita a formas de relacionamento próximo entre o agente e a vítima. Mas nem por isso se pode afirmar que entre elas existe uma ideia condutora agravante "comum".

No primeiro, a ideia condutora agravante é o parentesco na linha reta ou situação similar. Já no segundo, o substrato de valoração respeita à relação conjugal ou a relação de natureza análoga. A diferente natureza dos laços de parentesco e de conjugalidade justifica a autonomização em alíneas diferentes. Foi, aliás, essa a razão pela qual o legislador, tendo entendido ser político-criminalmente aconselhável o alargamento da qualificação também às relações de conjugalidade, sentiu necessidade de as prever de forma expressa (cf. Figueiredo Dias/Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, p. 58):

«A clara diferença material dos laços e concomitantes deveres que numa e noutra destas relações ligam os familiares constituía obstáculo a que o exemplo-padrão do parricídio pudesse constituir supedâneo à concessão de natureza qualificadora ao conjugicídio.»

28 - O que ficou dito evidencia que não existe uma estrutura valorativa comum às condutas enumeradas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 132.º, pelo menos no sentido de poder ser conjuntamente extraído destas alíneas um "denominador comum". Como se demonstrou acima, cada uma tem a sua estrutura valorativa própria. O mesmo se passa com as alíneas e) e j), atentas as diversas realidades presentes.

Concordamos, pois, com Margarida Silva Pereira, quando afirma não lhe parecer «possível vislumbrar um denominador comum, um tertium comparationis, ou seja, uma regra capaz de aferir da estreita compatibilidade entre uma eventual circunstância nova latente e as já patentes na lei» (Direito Penal II: os homicídios, edição da AAFDL, 1998, p. 64).

E, não sendo possível, tal significa que, no plano da aplicação do artigo 132.º, tertium non datur entre (a) a direta e imediata aplicação da cláusula de especial censurabilidade ou perversidade e (b) a sua aplicação mediante o juízo de especial censurabilidade ou perversidade concretizado na estrutura valorativa específica de um dos exemplos-padrão ou numa estrutura valorativa equivalente à de um deles.

E, voltando um pouco atrás, ainda que se entendesse ser - teoricamente - possível identificar uma estrutura valorativa não de uma, mas do conjunto formado por algumas das alíneas do artigo 132.º, n.º 2 - o que já se recusou e apenas por mera exaustão de fundamentação se pondera -,tal exercício revelar-se-ia fútil, uma vez que o tribunal não identifica, na decisão recorrida, que ideia condutora agravante teria sido essa, suscetível de operar como elemento de conexão com as circunstâncias concretas do caso dos autos.

Não obstante o esforço feito na decisão recorrida para iluminar o juízo de especial censurabilidade e perversidade produzido sobre a conduta do agente, procurando encontrar algures no n.º 2 a centelha que vencesse a obscuridade, tal esforço não se revelou suficiente. Afirmar que «o desvalor do facto é correspondente ao daqueles exemplos-padrão, derivado da especial censurabilidade e perversidade demonstradas pelo agente no cometimento do crime», sem concretizar qual seja esse "desvalor" supostamente comum, não permite compreender que quid foi esse, que terá intensificado a especial censurabilidade e perversidade da conduta do agente (negrito nosso).

Não se pode ter por bastante a invocação do "crivo" dos exemplos-padrão - até porque não existe propriamente o "crivo dos exemplos-padrão": o que existe, em rigor, são os distintos "crivos de cada exemplo-padrão"). A invocação conjunta de todas, ou algumas, alíneas do n.º 2 do artigo 132.º, sem identificação clara do fator ou fatores exponenciadores da censura penal resultante da cláusula de especial censurabilidade ou perversidade inscrita no n.º 1, não pode deixar de ter um significado jurídico idêntico ao que resultaria da aplicação direta e imediata desta.

Ora, a interpretação/aplicação de um direito assim tornado equívoco e impreciso não satisfaz a exigência de «normas prévias, escritas e precisas», própria do direito penal (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 449/02, já citado), ofendendo, desta forma, os princípios da legalidade e da tipicidade penais, havendo de se considerar desconforme ao artigo 29.º, n.º 1, da CRP.

III - Decisão

Em face do exposto, decide-se:

a) Julgar inconstitucional a norma retirada do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, na relação deste com o n.º 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do n.º 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade penais, garantidos pelo artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;

b) Não conhecer das demais questões de constitucionalidade colocadas pelo recorrente;

c) Em consequência, conceder provimento ao recurso, ordenando a reforma da decisão recorrida em conformidade.

Lisboa, 10 de dezembro de 2014. - João Pedro Caupers - José Cunha Barbosa - Maria de Fátima Mata-Mouros - Maria Lúcia Amaral (vencida, conforme declaração que junta) - Joaquim de Sousa Ribeiro.

Declaração de voto

Vencida, pelas seguintes razões.

Até 2008 o Tribunal Constitucional entendeu maioritariamente que não deveria conhecer, em recursos de constitucionalidade, de questões relativas à eventual violação, por parte de decisões judiciais, do princípio da tipicidade penal, consagrado no artigo 29.º da CRP. Esta jurisprudência, decidida logo nos primeiros anos da sua atividade (Acórdão 353/86) e continuada num número assinalável de arestos (a título de exemplo: Acórdãos n.os 634/94, 154/98, 674/99, 331/03 e 524/07) sustentava-se no entendimento segundo o qual residiria aqui uma fronteira que o Tribunal Constitucional não poderia ultrapassar. Embora não fosse unânime tal entendimento (em sentido contrário: Acórdãos n.os 141/92, 205/99, 122/00, 412/03 e 110/07) vale bem a pena recordar as razões que então o sustentavam.

Entendia-se que, estando os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional limitados ao conhecimento de questões de constitucionalidade de normas e só de normas, e residindo a sua razão de ser na competência específica para administrar a justiça em matérias jurídico-constitucionais (artigo 221.º da CRP), quer um quer outro limite seriam ultrapassados caso se aceitasse conhecer de recursos em que se questionava a constitucionalidade de uma decisão judicial, com fundamento em violação do princípio da tipicidade, consagrado no artigo 29.º [ou 103.º] da Constituição. Por um lado, receava-se que, se tal acontecesse, o Tribunal deixaria de ser apenas um Tribunal de normas para passar a ser, também, um Tribunal de decisões, e isto à margem do seu estatuto constitucional; por outro lado, entendia-se que, com tal deriva, se poderia pôr em causa a própria especificidade da jurisdição constitucional, transformando-a (ou, melhor dito: desfigurando-a) em instância revisora das decisões dos tribunais comuns quanto à interpretação do direito infraconstitucional.

Quando, em 2008, se deu a "viragem" jurisprudencial, e o Tribunal deliberou, num Plenário fortemente dividido (Acórdão 183/08), passar a conhecer destas questões, fê-lo pelo entendimento segundo o qual, nelas, ainda estaria a exercer a sua competência de guardião último da Constituição, uma vez que, nos casos em que os tribunais comuns criassem normas aí onde só o legislador pudesse atuar (por lei escrita, estrita e certa) estaria o poder judicial a agir, invadindo um campo reservado pela Constituição ao poder legislativo. A assunção do controlo por parte do Tribunal Constitucional, neste entendimento maioritário, justificar-se-ia por duas razões fundamentais: primeira, porque se estaria ainda a garantir o cumprimento de princípios constitucionais de especial grandeza - os consagrados nos artigos 29.º e 103.º da CRP; segunda, porque se permaneceria no campo estrito do controlo de normas e só de normas, uma vez que o pressuposto da atuação do Tribunal residiria precisamente neste dado: o tribunal a quo, com a sua atividade interpretativa, teria nestas circunstâncias criado norma nova, não subsumível a qualquer outra já existente, aí onde a Constituição claramente proibia que o fizesse.

Subscrevi esta "viragem" jurisprudencial. Contudo, fi-lo com a consciência de que ela teria que ser vivida no futuro com especiais cautelas, uma vez que a partir daí se entrava (como sempre tinha sido sublinhado na jurisprudência anterior) numa zona de contornos fluídos, onde facilmente se poderia passar do controlo de normas para o controlo das decisões judiciais e do seu iter inmterpretativo, confundindo-se assim a competência específica do Tribunal Constitucional - e que é a da interpretação da Constituição - com aquilo que cabe aos tribunais comuns - e que é a interpretação do direito ordinário.

Votei vencida nesta decisão porque creio que, com ela, se passou esta fronteira.

O acórdão censura a decisão do tribunal a quo por ela ter seguido certa interpretação da norma pertinente do Direito Penal. Diz-se que, pelo facto de o ter feito, se violou o artigo 29.º da Constituição. Mas fica por esclarecer em que medida, ou por que motivo, tal legitima a intervenção do Tribunal Constitucional através do juízo de inconstitucionalidade com todas as suas consequências. Qual foi ao certo a norma nova, não subsumível a norma já existente, que o Tribunal a quo, através de um processo constitucionalmente proibido, com esta decisão criou? E em que preciso momento do iter interpretativo se terá passado a fronteira que separa a atividade de subsunção dos factos ao tipo legal - atividade própria e exclusiva da Jurisdição comum - da criação jurisprudencial de uma norma sem respaldo na lei escrita, estrita e certa? Como o Acórdão contém essencialmente uma crítica da decisão judicativa tendo em conta a communis opinio da doutrina sobre a matéria fica-se sem resposta para todas estas perguntas.

Por esse motivo, fica-se também sem saber o que é que legitimou a intervenção do Tribunal Constitucional neste domínio, com todas as consequências negativas que daqui decorrem. É que é absolutamente certo que compete exclusivamente aos tribunais comuns a atividade interpretativa que consiste na subsunção da factualidade concreta ao tipo legal. Sobre esta conclusão não há dúvidas; e ela é sempre válida, qualquer que seja o sistema de justiça constitucional que se tenha que aplicar (portanto, mesmo naqueles em que, diversamente do nosso, haja a figura da "queixa constitucional"). Ora, no caso, o Acórdão não demonstra que o processo interpretativo seguido pelo tribunal comum tenha sido diverso daquele que normalmente lhe compete: a subsunção (certa ou errada: a questão é irrelevante para efeitos do juízo de constitucionalidade) da factualidade concreta ao tipo legal. Dito por outras palavras, o Acórdão não demonstra que tenha sido seguido no caso um processo interpretativo que a Constituição absolutamente proíbe. A demonstração era no entanto necessária, na exata medida em que dela dependia a legitimidade de intervenção do Tribunal Constitucional. - Maria Lúcia Amaral.

208454184

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/524641.dre.pdf .

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    Aprova o novo regime jurídico das armas e suas munições.

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