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Acórdão do Tribunal Constitucional 418/2021, de 23 de Julho

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Sumário

Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica

Texto do documento

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 418/2021

Sumário: Declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica.

Processo 1101/20

Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de novembro, alterada por último pela Lei Orgânica 4/2019, de 13 de setembro, doravante LTC), a organização de processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva, para apreciação pelo Plenário da constitucionalidade da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral as custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica.

Alega o Requerente que tal norma foi julgada inconstitucional nos Acórdãos n.os 489/2020, 490/2020, 563/2020, 564/2020, 565/2020, 642/2020, 643/2020 e 644/2020, decisões transitadas em julgado.

2 - O Presidente da Assembleia da República, notificado nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, ofereceu o merecimento dos autos.

3 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.

II - Fundamentação

4 - A generalização do juízo de inconstitucionalidade tem por base mais de três decisões em sede de fiscalização concreta, que incidiram sobre a norma extraída do n.º 4 do artigo 248.º do CIRE, aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março, com o sentido indicado pelo Requerente.

Essas decisões assentaram em fundamentação idêntica, proferida no Acórdão 489/2020, cujo conteúdo foi reproduzido nos Acórdãos n.os 490/2020, 563/2020, 564/2020, 565/2020, 642/2020, 643/2020 e 644/2020 (bem como nos Acórdãos n.os 8/2021, 9/2021 e 10/2021), na qual foi ponderado o seguinte:

«5 - O sentido normativo aqui questionado encontra-se contido no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE, o qual comporta disciplina específica em matéria de proteção jurídica no âmbito do processo de insolvência.

A sua compreensão e alcance não dispensa, porém, a convocação de outros elementos do sistema normativo em que se enquadra, designadamente aqueles que definem a responsabilidade por custas no âmbito do processo de insolvência, na sua globalidade, abrangendo o processo principal e os seus incidentes, com destaque para o procedimento de exoneração. Importa, então, começar por atentar no enunciado do artigo 248.º e, bem assim, dos artigos 240.º, n.º 1, 303.º e 304.º, todos do CIRE com os quais se articula na dimensão problematizada no presente recurso.

'Artigo 240.º

Fiduciário

1 - A remuneração do fiduciário e o reembolso das suas despesas constitui encargo do devedor.

2 - ...'

Artigo 248.º

Apoio judiciário

1 - O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado.

2 - Sendo concedida a exoneração do passivo restante, o disposto no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais é aplicável ao pagamento das custas e à obrigação de reembolso referida no número anterior.

3 - Se a exoneração for posteriormente revogada, caduca a autorização do pagamento em prestações, e aos montantes em dívida acrescem juros de mora calculados como se o benefício previsto no n.º 1 não tivesse sido concedido, à taxa prevista no n.º 1 do artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais.

4 - O benefício previsto no n.º 1 afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono». [negrito aditado]

Artigo 303.º

Base da tributação

Para efeitos da tributação, o processo de insolvência abrange o processo principal, a apreensão dos bens, os embargos do insolvente, ou do seu cônjuge, descendentes, herdeiros, legatários ou representantes, liquidação do ativo, a verificação do passivo, o pagamento aos credores, as contas da administração, ou incidentes do plano de pagamentos, da exoneração do passivo restante, de qualificação da insolvência e de quaisquer outros incidentes cujas custas hajam de ficar a cargo da massa, ainda que processados em separado.

Artigo 304.º

Responsabilidade pelas custas do processo

As custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado.'

6 - O instituto da exoneração do passivo restante, cujo regime consta dos artigos 235.º a 248.º, constitui solução inovadora introduzida pelo CIRE, inspirada no modelo de fresh start, votado a proteger o «honest but unfortunate debtor», há muito consagrado no ordenamento dos Estados Unidos da América e que se mantém princípio retor do capítulo 7 do U.S. Bankruptcy Code. Tem subjacente o propósito de conjugar o interesse dos credores no ressarcimento com a atribuição aos devedores singulares de boa-fé da possibilidade de se libertarem das suas dívidas, propiciando a reeducação financeira do devedor e o combate ao sobre-endividamento, assegurando, do mesmo passo, a manutenção da capacidade produtiva, o regular funcionamento do tecido económico e a criação de riqueza, bens de interesse geral.

A medida assenta na concessão ao devedor de uma oportunidade de reabilitação financeira através da libertação do peso (total ou em parcial) do passivo acumulado, que se revelou incapaz de satisfazer, ultrapassado que seja um período alargado - cinco anos - durante o qual os seus rendimentos disponíveis são destinados ao pagamento dos credores. Assim decorre do preâmbulo do Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março, que aprovou o regime vigente:

"O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da 'exoneração do passivo restante'.

O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.

A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica."

7 - No seu desenvolvimento procedimental, o incidente de exoneração do passivo restante comporta dois momentos fundamentais: o despacho inicial e o despacho de exoneração. Em traços gerais, apresentado o pedido de exoneração - que pode ser deduzido pelo devedor juntamente com a apresentação à insolvência, como sucedeu nos presentes autos, ou, sendo a insolvência requerida por terceiro, nos 10 dias posteriores à citação daquele (artigo 236.º, n.º 1) - é proferido despacho inicial, o qual, ausente qualquer dos fundamento de indeferimento liminar, elencados nos artigo 238.º, determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência - designado período da cessão -, o rendimento disponível que advenha a qualquer título ao devedor é cedido ao fiduciário (artigo 239.º, n.os 1, 2 e 3). Não se trata, ainda, de conceder ao devedor a pretendida libertação do passivo, tão-somente, na expressão de Assunção Cristas, 'de aferir o preenchimento de requisitos, substantivos, que se destinam a perceber se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada. Ainda não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado de dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável' ('Exoneração do devedor pelo passivo restante', in Themis - Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição especial, pp. 169-170).

Uma vez declarado o encerramento do processo de insolvência, verificado que seja um dos fundamentos elencados nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 230.º (realização do rateio final; trânsito em julgado da decisão de homologação de plano de insolvência; pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento; constatada a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente), ou seja proferido o despacho a que alude o artigo 239.º, tem início o período de cessão, com a duração de cinco anos. No decurso desse tempo, todo o rendimento disponível do devedor insolvente deve ser afeto pelo fiduciário ao pagamento de quantias em dívida, em conformidade com a ordem estabelecida no artigo 241.º, n.º 1: (i) pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida [alínea a)]; (ii) depois, reembolso ao organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário, que por aquele tenham sido suportadas [alínea b)]; (iii) em seguida, pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efetuadas [alínea c)]; (iv) e, por último à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência que não tenham sido integralmente satisfeitos [alínea d)].

Não ocorrendo a cessação antecipada do procedimento (artigo 243.º), e decorrido o referido lapso temporal, é então proferida a decisão final sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor (artigo 244.º). Caso concedida, a exoneração importa a extinção dos créditos sobre a insolvência que ainda subsistam, mesmo os que não tenham sido reclamados e verificados (245.º, n.º 1), e que, de outro modo, seriam exigíveis ao devedor até ao limite do prazo de prescrição, a qual, porém, não é absoluta, pois comporta as exceções consignadas no n.º 2 do artigo 245.º: crédito por alimentos; indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor; créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contraordenações; e, por último, os créditos tributários.

8 - Como se viu, o mecanismo de afetação do rendimento disponível cedido, ainda que funcionalmente orientado à satisfação dos interesses dos credores, torna precípuo o pagamento das custas do processo em todas as suas vertentes, seja relativamente às custas em sentido estrito do processo de insolvência ainda em dívida, seja relativamente aos encargos com a remuneração e despesas dos órgãos da insolvência com intervenção no processo principal ou nos procedimentos incidentais, designadamente aos montantes pagos ou a pagar ao administrador de insolvência e/ou ao fiduciário. Acautelou o legislador, desse modo, os casos em que a massa insolvente tenha sido insuficiente para satisfazer as custas da insolvência, pelas quais responde principalmente nos termos do n.º 1 do artigo 248.º, e, na perspetiva da obtenção de recursos financeiros imputáveis ao pagamento de créditos exigíveis ao insolvente por via da cessão do rendimento disponível durante cinco anos, atribuiu precedência ao pagamento da taxa de justiça e encargos do processo principal e incidentes, só depois podendo ser pagos os créditos da insolvência ainda por satisfazer. Trata-se, aliás, de solução normativa orientada pela garantia de pagamento das custas processuais, incluindo honorários, encargos e despesas, transpondo para o CIRE, enquanto disciplina de uma execução universal e de liquidação de todo o património do devedor, a regra de precipuidade das custas na destinação do produto dos bens penhorados, consagrada no âmbito do processo executivo (artigo 541.º do CPC).

9 - Apurados os traços gerais do sistema normativo em que se inscreve a norma questionada, importa retomar o problema colocado à apreciação do Tribunal, começando por assinalar que o recorrente não interpela a conformidade constitucional do mecanismo de alocação do rendimento disponível cedido ou a precipuidade das custas quando a essa disciplina jurídica atinge o desiderato de satisfação da dívida de custas.

Com efeito, a questão de inconstitucionalidade radica nas hipóteses em que o funcionamento do aludido mecanismo de cessão não permite o pagamento das custas em dívida, a saber, quando a massa insolvente é insuficiente para a respetiva liquidação até ao encerramento da insolvência, e, concomitantemente, o mecanismo de cedência do rendimento disponível não confere ao fiduciário meios financeiros idóneos para pagar tais créditos. A que, pela natureza das coisas, postulada a exiguidade ou mesmo ausência de rendimentos granjeados pelo devedor, se irá juntar, por força do artigo 303.º, outra dívida de custas, em sentido amplo, incluindo encargos e despesas, também ela da responsabilidade do devedor insolvente, gerada pela tramitação do procedimento de exoneração do passivo restante durante os cinco anos do período de cedência. Assim sucedeu no caso vertente, conforme relatado supra, na medida em que a massa insolvente não permitiu sequer o pagamento das custas da insolvência, a que se seguiu o decurso do período de cedência sem que fosse recebido qualquer rendimento disponível, inexistindo, por conseguinte, qualquer afetação ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida ou ao pagamento/reembolso dos montantes de remunerações e despesas do administrador da insolvência ou do próprio fiduciário, nos termos prescritos pelo artigo 241.º

Por conseguinte, a crítica de inconstitucionalidade assenta na conjugação da permanência da responsabilidade por custas do devedor insolvente nesse quadro de circunstâncias com o regime especial em matéria de apoio judiciário consagrado pelo legislador no artigo 248.º do CIRE.

10 - Efetivamente, o regime referido comporta um benefício especial, atribuído ope legis e sem necessidade de qualquer iniciativa por parte do devedor, consubstanciado no diferimento da exigibilidade da dívida de taxa de justiça e encargos processuais para momento posterior à decisão final do pedido de exoneração do passivo restante, uma vez recuperada a plena disponibilidade dos rendimentos angariados (n.º 1 do preceito), a que acresce a possibilidade de pagamento faseado do remanescente a pagar, através de remissão para o disposto no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais (n.º 2), que estatui os pressupostos e limites para a autorização judicial do pagamento das custas em prestações em qualquer processo.

A ratio de tal normação radica no propósito de reforçar a proteção jurídica do devedor insolvente que requeira a exoneração do passivo restante, em atenção à forte compressão de recurso financeiros que o próprio e o seu agregado familiar passa a estar sujeito. Entendeu o legislador do CIRE que a exigência do pagamento imediato de taxa de justiça ou encargos ao próprio devedor (e não à massa insolvente ou ao acervo patrimonial gerado pela cedência de créditos futuros), significaria uma restrição adicional de recursos, e inerente acréscimo de dificuldades em fazer face às despesas comuns, em antinomia com o princípio da salvaguarda dos meios de sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, consagrado no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), inciso i), do CIRE.

Neste quadro normativo, feita a liquidação da dívida remanescente, atinente a taxa de justiça e encargos, e notificada a parte para a pagar, com subsequente invocação por esta de que lhe havia sido concedido apoio judiciário, na modalidade de dispensa de tal pagamento, entendeu o tribunal a quo que esse benefício não podia ser reconhecido na fase do processo em questão, por a tal obstar o disposto no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE. Na expressão da decisão recorrida, a norma legal deve ser tida como aplicável a casos como o presente, e interpretada como vedando, de forma absoluta e liminar, o benefício do apoio judiciário ao requerente de exoneração do passivo restante, salvo na modalidade de nomeação e pagamento de honorários de patrono, incluindo nos casos previstos no n.º 1 do mesmo preceito, ou seja, nas hipóteses em que, proferida a decisão final sobre esse pedido, persistem em dívida montantes de taxa de justiça e encargos.

Cabe observar que a aplicabilidade desse regime a tais casos, designadamente da norma restritiva da primeira parte do n.º 4 do preceito, tem sido discutida na jurisprudência, obtendo resposta maioritariamente negativa, de que são exemplo os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 6 de fevereiro de 2018 (Proc. n.º 749/16.6 T8OAZ.P2), de 13 de junho de 2018 (Proc. n.º 1525/12.0TBPRD.P1), de 11 de setembro de 2018 (Processo 1825/12.0TBPRD.P1), de 25 de setembro de 2018 (Processo 2075/12.0TBFLG.P1), de 15 de novembro de 2018 (Processo 1741/11.2TBLSD-C.P1), de 15 de novembro de 2018 (Processo 2079/12.3TJPRT.P1) e de 11 de abril de 2019 (Processo 3933/12.8TBPRD.P1), o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21 de novembro de 2019 (Processo 1780/13.9TBOLH.E1), e os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 17 de maio de 2012 (Processo 1617/11.3TBFLG.G1) e de 10 de maio de 2018 (Processo 2645/13.0TBBRR.L1-6), todos acessíveis em www.dgsi.pt. Em sentido contrário posicionou-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de novembro de 2018 (Processo 944/12.7 TBAMT.P1), acessível no mesmo sítio. Não cabe, porém, a este Tribunal tomar posição sobre a correção da determinação do direito infraconstitucional aplicável, impondo-se nesta sede de fiscalização concreta tomar o entendimento adotado pelo tribunal a quo como um dado.

Certo é que, nesse pressuposto, entendeu-se na decisão recorrida que um tal sentido normativo ofende os princípios da igualdade e do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efetiva, com referência aos artigos 13.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da Constituição, por comportar denegação de acesso à justiça e tratamento discriminatório do requerente de exoneração de passivo restante que padeça de insuficiência de meios económicos para satisfazer a tributação e encargos processuais, face aos requerentes da declaração de insolvência que não formulem idêntico pedido.

11 - O artigo 20.º, n.º 1, da Constituição consagra o princípio de que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, estabelecendo a garantia de que a justiça não pode ser denegada a quem não disponha de meios económicos para suportar as custas da litigância. Desse modo, sem consagrar a gratuidade dos serviços de justiça, a Lei Fundamental é incompatível com tributação processual que, pela sua onerosidade, impeça ou dificulte de forma desproporcionada o acesso aos tribunais, ao mesmo tempo que impõe ao legislador a consagração de um sistema adequado de apoio judiciário, injunção a que o regime do acesso ao direito e aos tribunais, regulado pela Lei 34/2004, de 29 de julho, procura dar cumprimento. É vasta a jurisprudência do Tribunal sobre a dimensão prestacional do instituto do apoio judiciário. Diz-se, entre muitos outros, no Acórdão 411/2008:

"Trata-se, deste modo, de um instrumento jurídico-financeiro que dá cumprimento à dimensão 'prestacional' compreendida naquele direito fundamental, devendo cumprir a função constitucional de 'garantir uma igualdade de oportunidades no acesso à justiça, independentemente da situação económica dos interessados', como tem sido reconhecido em vários momentos pelo Tribunal Constitucional (cf., a título de exemplo, os Acórdãos n.os 433/87 e 352/91).

Mas se é assim, temos que a igualdade de oportunidades no acesso à justiça que releva é uma igualdade material referida aos elementos pertinentes do sistema de justiça que são suscetíveis de impedir ou dificultar a motivação do cidadão de recorrer a ela, na defesa dos seus direitos e interesses legítimos, decorrendo, desde logo, do artigo 13.º, n.º 2, da Constituição.

E perante o nosso sistema de justiça são, essencialmente, dois os fatores que são suscetíveis de motivar os cidadãos no acesso e utilização do sistema de justiça: a possibilidade de motivar os cidadãos: a possibilidade económica de suportar os honorários do patrono jurídico ou judiciário e a de arcar com as custas da respetiva ação judicial, no caso de se ter de recorrer a juízo.

Daí que a previsão do benefício, por parte do legislador ordinário, se traduza nas modalidades de informação jurídica e de proteção jurídica, decompondo-se esta, por seu turno, na consulta jurídica e no apoio judiciário (cf. artigos 4.º e 6.º da Lei 34/2004, de 29 de julho)."

Deve, então, concluir-se pela ilegitimidade constitucional de medida 'sempre que, por insuficiência de [meios económicos], o cidadão pudesse ver frustrado o seu direito à justiça, tendo em conta o sistema jurídico-económico em vigor para o acesso aos tribunais na ordem jurídica portuguesa', pois a Constituição, 'indo além do mero reconhecimento de uma igualdade formal no acesso aos tribunais', propõe-se 'afastar neste domínio a desigualdade real nascida da insuficiência de meios económicos, determinando expressamente que tal insuficiência não pode constituir motivo para denegação da justiça' (Acórdão 602/2006).

12 - A esta luz, a interpretação normativa efetuada pelo tribunal a quo do preceituado no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE oferece motivos de censura constitucional, pela desproteção - e decorrente afastamento material do acesso ao sistema de justiça - que acarreta para o devedor exonerado do passivo restante na parte não amparada pelo mecanismo do diferimento do pagamento das custas.

Com efeito, a limitação à concessão do benefício do apoio judiciário mostra-se racionalmente justificada nos casos em que o devedor não se encontra obrigado a pagar qualquer taxa de justiça ou encargos, designadamente pela atuação do mecanismo de diferimento do pagamento das custas até à decisão final do pedido de exoneração passivo restante. Como é bom de ver, afastada a exigibilidade de qualquer pagamento a título de taxa de justiça ou encargos, o devedor que requeira simultaneamente a declaração de insolvência e a exoneração do passivo restante não carece do benefício do apoio judiciário nas modalidades em que a prestação consiste, justamente, na dispensa, total ou parcial, de tais pagamentos. A mesma solução preside, aliás, aos casos em que o legislador estabelece isenção de custas (artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais), relativamente aos quais não tem cabimento, por desnecessidade, a concessão ao interveniente processual isento do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa ou pagamento faseado das custas. Permanece, apenas, a carência da modalidade de apoio judiciário tendo com objeto a representação forense, sem a qual estaria impedida de pleitear em juízo a parte desprovida de meios económicos, incluindo o pagamento pelo Estado dos respetivos honorários.

Sucede, todavia, e ao contrário do que acontece com os casos de isenção, que o benefício concedido ao devedor insolvente que deduziu pedido de exoneração do passivo restante é apenas temporário, comportando não mais do que um diferimento; projeta, desse modo, o legislador, a exigibilidade e o cumprimento de tais obrigações de cariz pecuniário para momento posterior, uma vez concedida a exoneração do passivo restante e retomada a sua habilitação legal para a prática de atos que atinjam o seu património (o seu património é gerido em primeira linha pelo administrador de insolvência e, subsequentemente, pelo fiduciário, cabendo a cada um deles, na fase respetiva, efetuar o pagamento de dívida, mormente de dívidas resultantes de custas judiciais, nos termos do artigos 55.º, n.º 1, alínea a), e 241.º, n.º 1, alínea a), ambos do CIRE), mas fá-lo sem margem de aferição da suficiência da situação económica do devedor nessa fase da sua vida patrimonial para fazer face ao remanescente das custas judiciais.

Ora, decorrido o período de cessão, não existem garantias de que o devedor insolvente tenha melhorado substancialmente a sua capacidade de obter rendimentos, ao menos em termos equivalentes aos que legitimam, no âmbito do regime do apoio judiciário, o cancelamento da proteção jurídica e exigência ao beneficiário do pagamento de custas de que foi dispensado, integral ou parcialmente, a saber, a aquisição superveniente, pelo requerente ou respetivo agregado familiar, de 'meios suficientes' para dispensar o benefício [artigo 16.º, n.º 1, alínea a), da Lei 34/2004]. Pelo contrário, o funcionamento do mecanismo de cedência, e a sua imputação nos termos estipulados no artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, é de modo a fazer esperar que a condição de melhor fortuna permitirá extinguir pelo pagamento o remanescente da taxa de justiça e encargos da responsabilidade do devedor insolvente. Quanto tal não sucede, sendo parco ou inexistente o rendimento disponível suscetível de cessão (artigo 239.º, n.º 3), estamos, como os presentes autos ilustram, perante a manutenção de um quadro de baixos rendimentos, nos limites do razoavelmente necessário para sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar [artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i)]. Exigir, mesmo que em prestações, perante tal quadro de carência de rendimentos, ao sujeito processual, o pagamento do remanescente de custas e encargos que a massa insolvente e o período de cinco anos não permitiu satisfazer, significa recolocar o devedor na mesma situação de incapacidade que fundou a sua apresentação à insolvência, e inviabilizar o desiderato de criação de condições para uma nova vida económica (fresh start), a que está votada a exoneração do passivo restante, o que constitui, materialmente, frustração do seu direito à justiça por motivo de insuficiência de meios económicos.

13 - Por outro lado, a solução normativa em exame também merece censura à luz do princípio da igualdade, pela discriminação que opera relativamente aos devedores que requeiram e vejam concedida a exoneração do passivo restante face aos demais devedores que não impulsionem esse instituto. Como referido supra, e assinalado na decisão recorrida, ao direito a obter uma decisão justa e equitativa para a tutela da respetiva posição jurídico-subjetiva de quem reúne os requisitos para uma tal libertação patrimonial, associa o legislador, em caso de insuficiência da massa insolvente, a permanência da responsabilidade por custas e encargos dessa categoria de devedores, impondo-lhes, mesmo em caso de insuficiência económica (no quadro dos critérios legais que definem o que deve entender-se por tal insuficiência), o pagamento dessas quantias e correspondente sacrifício patrimonial. Diferentemente, os demais devedores decretados insolventes, que escolham não requerer o benefício da exoneração do passivo restante ou não reúnam os respetivos pressupostos, nunca são chamados a suportar qualquer montante, a título de custas e encargos, as quais recaem unicamente sobre a massa insolvente [artigos 51.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 304.º do CIRE], qualquer que seja a evolução do respetivo património nos anos subsequentes ao decretamento da insolvência. Opera-se, pois, na norma em exame, uma desvantagem infundada dos requerentes da exoneração do passivo restante, onerados por presunção de capacidade económica que não têm meios de ilidir através do instituto do apoio judiciário, diferenciação que se tem como ofensiva da proibição das discriminações com base nas categorias subjetivas contidas no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição, na vertente da proibição de discriminação fundada na situação económica do sujeito.»

5 - Esse entendimento deve aqui ser reafirmado, não se prefigurando razões para dele subtrair o juízo de generalização peticionado. Mantém-se válida a conclusão de que a dimensão normativa em exame não garante o acesso à justiça, com referência ao incidente de exoneração do passivo restante, por parte daqueles que careçam de meios económicos suficientes para suportar os encargos inerentes ao respetivo desenvolvimento processual, ofendendo a garantia de não denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, e comportando tratamento discriminatório ilegítimo fundado na situação económica do sujeito, violando os artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição.

Deste modo, reiterando o sentido daquela jurisprudência, resta afirmar a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma em exame.

III - Decisão

Pelo exposto, decide o Tribunal Constitucional declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição, da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica.

O relator atesta o voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Lino Ribeiro e José Teles Pereira. Fernando Vaz Ventura.

Lisboa, 15 de junho de 2021. - Fernando Vaz Ventura - Pedro Machete - Mariana Canotilho - Maria de Fátima Mata-Mouros - José João Abrantes - Joana Fernandes Costa - Maria José Rangel de Mesquita - Gonçalo Almeida Ribeiro - Assunção Raimundo - João Pedro Caupers.

114418465

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/4601135.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 2004-03-18 - Decreto-Lei 53/2004 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Altera o Código de Processo Civil, o Código do Registo Comercial, o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, o Código Penal, o Código de Registo Civil e o Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado.

  • Tem documento Em vigor 2004-07-29 - Lei 34/2004 - Assembleia da República

    Estabelece um novo regime de acesso ao direito e aos tribunais e transpõe parcialmente para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2003/8/CE (EUR-Lex), do Conselho, de 27 de Janeiro, relativa à melhoria do acesso à justiça nos litígios transfronteiriços através do estabelecimento de regras mínimas comuns relativas ao apoio judiciário no âmbito desses litígios.

  • Tem documento Em vigor 2019-09-13 - Lei Orgânica 4/2019 - Assembleia da República

    Aprova o Estatuto da Entidade para a Transparência e procede à nona alteração à Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, que aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional

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