Acórdão 2/92
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1 - O Ministério Público interpôs recurso extraordinário, para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, a reagir ao Acórdão da Relação de Coimbra de 13 de Maio de 1991, prolatado no processo 666/90. E a aduzir, fundamentalmente, a respeito, oposição em face do Acórdão do mesmo Tribunal de 12 de Julho de 1990, publicado na Colectânea de Jurisprudência (ano XV, t. 4.º, p. 95).
O aresto recorrido decidiu que, «em processo crime por emissão de cheque sem cobertura, a procuração onde se concedem ao mandatário 'os mais amplos poderes forenses em direito permitidos e ainda os poderes para fazer participação crime e deduzir acusação' [...]» não legitima a actuação do Ministério Público, no exercício da acção penal, por se tratar de caso em que a lei exige queixa ou denúncia do ofendido e ser necessário «identificar o processo, 'ou, mais propriamente, quais os actos delituosos que se pretenda denunciar, qual o autor ou o agente dos mesmos ou da prática de tais actos', devendo a procuração conter, por modo inequívoco e seguro, a identificação do objecto para que foi conferida e mencionar os actos para cuja finalidade foi outorgada». De outra maneira, o aresto que serve de fundamento à impugnação, a resolver sobre hipótese idêntica, entendera que «contém poderes especiais para apresentação de uma queixa crime a procuração que confere ao advogado os mais amplos poderes forenses [...] bem como para deduzir queixas crime».
Segura a legitimidade do recorrente, e com adesão à occasio, às razões e ao regime recurso, ocorreu despacho de admissão (artigos 437.º, 438.º e 440.º, n.º 3, do Código de Processo Penal). Em conferência se verificou a oposição invocada e a instância prosseguiu (artigo 441.º do mesmo diploma).
Assim, e tudo visto ...
2 - Está em causa a interpretação do n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal, que, na perspectiva da «legitimidade em procedimento dependente de queixa», dispõe deste modo:
A queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais.
E as duas decisões ora em jogo correspondem às duas correntes que, a propósito, se estabeleceram.
É a denúncia dos crimes semipúblicos ou quase públicos, cuja existência se justifica, na lição de Figueiredo Dias, pela não inserção de certas infracções ao nível das violadoras de bens jurídicos fundamentais da comunidade «de modo tão directo e imediato que aquela sinta, em todas as circunstâncias da lesão - v. g., atenta a sua insignificância -, necessidade de reagir contra o infractor», pela consideração da «ideia de que em certas infracções (por exemplo, no adultério, nos crimes sexuais, no furto entre parentes) a promoção processual contra ou sem a vontade do ofendido pode ser inconveniente ou mesmo prejudicial para interesses seus dignos de toda a consideração, porque estreitamente relacionados com a sua esfera íntima ou familiar», ou pelo intuito de evitar «que os tribunais se vejam submergidos por um sem-número de processos penais de duvidoso valor e interesse comunitário» (Direito Processual Penal, I, p. 121). É, por outro lado, um terreno onde, a partir do texto da lei, se há-de encontrar solução idónea para todos os casos.
3 - Acentua-se, correntemente, que o conceito de poderes especiais não é privativo do direito processual penal, por ter sido importado do direito civil, «com o mesmo alcance e conteúdo». Em consonância se diz que a exigência de poderes especiais especificados é susceptível de beliscar direitos fundamentais dos cidadãos, podendo gerar défices na certeza do direito e até mesmo quebras sobre a imagem das instituições judiciárias.
Na verdade, entende-se que «procuração com poderes especiais é aquela em que o mandante confere ao mandatário poderes para a pratica de certa categoria ou classe de actos (que poderão ser os de apresentar denúncia criminal), sem necessidade de os individualizar». E argumenta-se até com a nova redacção do artigo 37.º do Código de Processo Civil, dada pelo Decreto-Lei 457/80, de 10 de Outubro, que suprimiu a obrigatoriedade de individualizar a causa, nas procurações onde se conferem poderes especiais, à luz do escopo de normalizar a actividade processual e de dignificar os seus protagonistas.
Pondera-se, com efeito, que a exigência de denúncia individualizada, pela especificação dos factos, «esvazia de conteúdo o exercício do mandatário», retirando-lhe a «autonomia técnica do mandato». Para se referir que, assim, se situa aquele «a par do núncio», com evidente recusa da «valorização da função e intervenção do advogado ...».
Vejamos, por conseguinte ...
4 - A lei atribui o direito de queixa a pessoas determinadas, que, directa ou indirectamente, se relacionam com crimes semipúblicos ou quase públicos. E é irrecusável, a respeito, a primazia do titular dos interesses especialmente protegidos através da incriminação (artigo 111.º do Código Penal).
A apresentação da queixa corresponde ao exercício de um direito pessoal (Luís Osório, Comentário ao Código de Processo Penal, I, p. 150, e Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, p. 139) ou à prática de um acto pessoal (Leal-Henriques e Simas Santos, O Código Penal de 1982, I, p. 555). De outra banda, como assim e desde logo, o mandato a que se refere o n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal é essencialmente representativo.
Ora, «a representação traduz-se na prática de um acto jurídico em nome de outrem, para na esfera desse outrem se produzirem os respectivos efeitos». E o certo é que «o representante, ao contrário do núncio, nunca recebe, nem mesmo quando a procuração é especialíssima, um mandato absolutamente especificado e imperativo» (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pp. 410 e seguintes). O que, de todo o ponto, contraria a exposta equiparação do mandatário munido de poderes especiais especificados ao mero núncio.
Como ensina Andrade, «o representante pondera e decide alguma coisa em lugar do representado. Determina a sua vontade por conta e em nome dele. Mesmo que as condições do negócio sejam totalmente preordenadas pelo representado, fica-lhe, todavia, quanto mais não seja, a possibilidade de o concluir ou não, como lhe parecer mais conveniente, dadas as circunstâncias» (Teoria Geral da Relação Jurídica, II, pp. 291 e 292). A representação, no entanto, não pode exprimir-se através da substituição da vontade do representado pela do representante. E isto é particularmente sensível no terreno dos direitos pessoais, como o direito de queixa. Já que se mostra seguro serem as pessoas indicadas na lei, e não quaisquer outras, quem pode justamente sopesar os interesses em jogo na comissão da denúncia e valorar os efeitos negativos da mesma emergentes.
5 - Paradigmático é, a propósito, o caso dos crimes sexuais. Nestes, com efeito, a integração no limbo dos crimes semipúblicos ou quase públicos impõe, decisivamente, que a faculdade de resolver sobre o exercício do direito de queixa seja exclusiva do titular correlato. Na verdade, a divulgação de factos ligados à vida íntima do mesmo titular ou de um seu familiar mobiliza circunstâncias que só aquele sabe apreciar. Em termos tais que, a todas as luzes, não pode admitir-se o representante a decidir sobre a apresentação de queixa, independentemente da vontade do representado.
A queixa, assim, não há-de ser posta em prática pelo mandatário sem prévia decisão do titular do respectivo direito no sentido da apresentação. Porque se impõe uma inequívoca relação de harmonia entre a vontade do representado e o acto praticado pelo representante. E aquela tem de ser uma vontade real, que não apenas uma incerta vontade hipotética.
Lembremos, na área em que nos encontramos, a doutrina de Manso Preto: a denúncia de crimes sexuais relaciona-se «directamente, por forma especial, não apenas com a infracção, bem se compreendendo, por isso, que razões de intimidade ou de decoro influenciem a ofendida no sentido de se abster de provocar o procedimento criminal quando estão em jogo certas pessoas. Seria o caso, por exemplo, de a violação ter sido levada a cabo por um irmão ou pelo pai da ofendida» (Pareceres do Ministério Público, p. 317). É evidente, de toda a maneira, que a procuração para denúncia de crimes sexuais há-de assegurar a vontade de deduzir queixa, por banda da pessoa representada. Não será, ainda assim, de exigir, em todos os casos e em ordem à certeza de que existe vontade da apresentação de queixa, a indicação, no instrumento através do qual se conferem poderes representativos para a mesma apresentação, da identidade das pessoas contra as quais se deseja procedimento criminal. Esta, aliás, não é de menção obrigatória na denúncia, se não for possível (artigo 246.º, n.º 3, do Código de Processo Penal). E a regra há-de ser a da indicação, por forma directa ou indirecta, da pessoa contra quem se produz queixa, sempre que a mesma seja possível.
6 - Como se referiu, o n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal rege para todos os casos em que o procedimento depende de queixa. O que se passa, assim, no caso particular dos delitos sexuais vale para todas as hipóteses de crimes semipúblicos ou quase públicos.
Se, pois, pelo exame do instrumento através do qual se atribuem poderes de representação para apresentar queixa se não conseguir apurar se a vontade do titular do respectivo direito abrange o crime concretamente denunciado, temos, de todo o ponto, insuficiência de poderes. É preciso, realmente, que os poderes especiais se concretizem em condições de permitirem a conclusão de que o titular do direito de queixa deseja procedimento criminal pelo delito concretamente denunciado e, se possível, com a indicação da pessoa ou das pessoas contra quem se visa a instauração de um processo de índole penal.
De resto, a procuração que confira simples poderes para «fazer participação crime» (cf., supra, n.º 1) deixa ao mandatário a faculdade de apresentar as queicas que quiser, por crimes de todos os tipos, contra as pessoas que ele próprio indicar. E este efeito é, de qualquer sorte, inaceitável, por razoavelmente ser de supor que o titular do direito de queixa não tenha, em determinados casos concretos, vontade de se queixar ou interesse em queixar-se. Em termos tais que a referida procuração significa ou pode conduzir ao absurdo de a vontade do representante se substituir ou sobrepor à vontade do representado.
A interpretação do n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal só se torna unívoca através de pensamento que assegure, sempre e em todos os casos, a satisfação plena dos fins respectivos. E este não é senão o da exigência de poderes especiais especificados.
7 - Não decorre, ademais, qualquer prejuízo do facto de a lei se referir a poderes especiais, e não a poderes especialíssimos. Na verdade, os poderes especialíssimos não deixam de ser poderes especiais. E a terminologia legal não afasta a especialidade dos poderes especiais espeficiados (cf., v. g., o artigo 1159.º do Código Civil).
De toda a certeza, a personalizada atribuição do direito de queixa só se cumpre, na via da atribuição de poderes representativos para a atinente actuação, quando a manifestação de vontade do representante, materializada na denúncia, tiver por base uma prévia decisão do titular daquele direito no mesmo sentido. O que, em regra, só resulta certificado se a respectiva procuração contiver elementos a partir dos quais se possa determinar o acto concreto que o representado pretende seja objecto de investigação criminal.
É claro que situações pode haver em relação às quais elementos exteriores à procuração assegurem a certeza da correspondência entre a apresentação da queixa e a vontade do titular do direito. Tais situações, porém, já escapam à determinação da medida dos poderes especiais referidos no n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal. E legitimam-se, em face deste preceito, com apoio na máxima cessante ratione legis cessat eius dispositio.
8 - São condições em que:
a) Se confirma o acórdão recorrido;
b) Se estabelece, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, a seguinte jurisprudência:
Os poderes especiais a que se refere o n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal são poderes especiais especificados, e não simples poderes para a prática de uma classe ou categoria de actos.
Lisboa, 13 de Maio de 1992. - Victor Manuel Lopes de Sá Pereira - Luís Vaz de Sequeira - Noel da Silva Pinto - José Saraiva - Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo - José Henriques Ferreira Vidigal - Manuel da Rosa Ferreira Dias - Armando Pinto Bastos - António Cerqueira Vahia - Agostinho Pereira dos Santos - José Alexandre Lucena Vilhegas do Valle - Bernardo Guimarães Fischer Sá Nogueira.