Acórdão 49/86
Processo 200/85
Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O Sr. Procurador-Geral-Adjunto em exercício neste Tribunal vem, nos termos do artigo 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, conjugado com o artigo 281.º, n.º 2, da Constituição, requerer se declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma do artigo 49.º (3.º trecho) do Decreto-Lei 35007, de 13 de Outubro de 1945, com o fundamento de que ela já fora julgada inconstitucional em quatro casos de fiscalização concreta [Acórdãos n.os 148/85 (processo 155/84), 149/85 (processo 152/84), 193/85 (processo 191/84) e 196/85 (processo 156/84)].
Juntou cópias dos citados acórdãos.
2 - Notificado, nos termos do artigo 54.º da citada Lei 28/82, para responder, querendo, veio o Sr. Primeiro-Ministro oferecer o merecimento dos autos e juntar um parecer dos serviços da Auditoria Jurídica da Presidência do Conselho de Ministros, no qual lançou o despacho de «Concordo». Nesse parecer, ao mesmo tempo que se adere à doutrina firmada nos acórdãos indicados pelo magistrado do Ministério Público para fundamentar o pedido, põe-se em destaque que a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, há-de ter o alcance desses julgados.
3 - Cumpre agora decidir a questão de saber se é (ou não) inconstitucional a norma do artigo 49.º do Decreto-Lei 35007, de 13 de Outubro de 1945 (3.º trecho), na parte em que permite que, em processo de transgressão, o julgamento se possa fazer sem que ao réu se nomeie defensor oficioso, quando ele apenas tenha sido notificado editalmente e não se encontre presente.
Esse foi, de facto, o âmbito dos julgamentos de inconstitucionalidade proferidos por este Tribunal nos arestos indicados pelo magistrado do Ministério Público.
Vejamos então.
II - Fundamentos
1 - O artigo 49.º do Decreto-Lei 35007, de 13 de Outubro de 1945, reza assim:
O arguido pode constituir advogado em qualquer altura do processo.
É obrigatória a nomeação de defensor oficioso, se ainda não houver advogado constituído, no despacho de pronúncia provisória, em processo de querela. Nos processos correccionais e de polícia deve ser nomeado para julgamento.
Nos processos de transgressão e sumários o juiz só é obrigado a nomear defensor oficioso se o arguido o pedir ou se houver lugar à aplicação de medidas de segurança.
Questionado é, pois, tão-só, e na medida atrás apontada, o 3.º trecho do preceito acabado de transcrever, que se pôs em itálico.
A norma em causa - ao menos numa certa interpretação, que é a que foi adoptada nas decisões de, que se recorreu para este Tribunal - consente que, em processo de transgressão, o julgamento se faça sem que ao réu se nomeie defensor oficioso, mesmo que ele seja revel. Questão é que não haja lugar à aplicação de medidas de segurança.
Assim interpretada, foi a norma julgada inconstitucional por este Tribunal, nos casos apontados no pedido, como já se disse. Esses casos são os seguintes:
Processo 155/84 (Acórdão 148/85, de 31 de Julho de 1985, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 18 de Dezembro de 1985);
Processo 152/84 (Acórdão 149/85, de 3 de Julho de 1985, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 18 de Dezembro de 1985);
Processo 191/84 (Acórdão 193/85, de 30 de Outubro de 1985, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 10 de Fevereiro de 1986);
Processo 156/84 (Acórdão 196/85, de 30 de Outubro de 1985, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 14 de Fevereiro de 1986).
Posteriormente, foi essa norma julgada inconstitucional por este Tribunal nos casos seguintes:
Acórdão 203/85, de 13 de Novembro de 1985 (processo 183/84), publicado no Diário da República, 2.ª série, de 30 de Janeiro de 1986;
Acórdão 308/85, de 11 de Dezembro de 1985 (processo 165/84), ainda por publicar.
O Tribunal Constitucional, em todos os arestos indicados, pronunciou-se no sentido de que a norma questionado viola o artigo 32.º, n.os 1, 3 e 5, da Constituição.
Vejamos então, seguidamente, cada uma destas questões.
2 - A questão da violação do n.º 3 do artigo 32.º da Constituição (direito à escolha e assistência por defensor oficioso):
2.1 - Dispõe o artigo 32.º, n.º 3, da lei fundamental:
3 - O arguido tem direito a escolher defensor oficioso e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que essa assistência é obrigatória.
A este propósito, escreveu-se no citado Acórdão 148/85:
O arguido tem, por conseguinte, o direito de escolher um defensor, constituindo advogado de sua confiança, em qualquer altura do processo criminal. E tem o direito de ser por ele assistido em todos os actos desse processo, mesmo ainda na fase da pré-instrução ou inquérito preliminar [v. os Acórdãos da Comissão Constitucional n.os 9 e 11 (Apêndice ao Diário da República, de 25 de Outubro de 1977)].
Esse direito de assistência de defensor deve abranger, designadamente, «o interrogatório do arguido, os actos que atinjam a reserva da sua intimidade pessoal e familiar, a entrada no seu domicílio com o seu assentimento e a inspecção de coisas e pessoas, as peritagens e as provas ad perpetuam rei memoriam» [v. o Acórdão da Comissão Constitucional n.º 39 (Apêndice ao Diário da República, de 30 de Dezembro de 1977)]. Um tal direito constitui a dimensão formal do direito de defesa que, na sua dimensão substancial, se traduz no direito de «autopatrocínio» das próprias razões [v. o Acórdão da Comissão Constitucional n.º 434 (Apêndice ao Diário da República, de 18 de Janeiro de 1983)].
A assistência de um defensor é, pois, em todos os casos, um direito do arguido. E nalgumas hipóteses essa assistência é, por imposição constitucional expressa, necessária ou obrigatória. E é-o porque ela é considerada essencial para a realização dos próprios fins do processo criminal: essencial, de facto, para servir os direitos do acusado e, assim, melhor contribuir para a realização da justiça e do direito. E tão essencialque, em tais casos, se o arguido não constituir advogado que o defenda, será o próprio juiz quem terá de suprir a sua passividade, nomeando-lhe um defensor oficioso (v. o artigo 49.º, 1.º e 2.º trechos, do Decreto-Lei 35007).
Quais sejam «os casos e as fases em que essa assistência é obrigatória», há-de ser a lei a dizê-lo - preceitua o mencionado n.º 3 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
O legislador goza, aí, de uma certa liberdade, mas terá de ter sempre presente que há uma estreita conexão entre a existência de um autêntico Estado de direito e a presença, no processo criminal, de um defensor, que, enquanto pugna pelos interesses da defesa, colabora com o tribunal na realização da justiça.
Por isso, conquanto o direito de defesa se não identifique sempre com a necessidade indefectível de assistência técnica de um defensor, essa assistência surgirá, na maioria dos casos, como um instrumento processual indispensável para garantir a substância de um tal direito fundamental ao arguido.
Existem, porém, situações onde, em regra, se debatem questões de tão escasso conteúdo jurídico e de implicações punitivas tão diminutas que se aceita que se entregue à livre decisão do arguido o fazer-se ou não assistir por um defensor.
Trata-se de minimis, onde - para nos expressarmos com Jorge Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, vol. 1.º, Coimbra, 1981, p. 475) - «nem sempre o material processual, de facto e de direito, é tão complexo, nem a personalidade do delinquente tão difícil de avaliar, que imponham incondicionalmente a intervenção do defensor».
Situações deste tipo serão certamente, em regra, os julgamentos por transgressão.
Isso é, de resto, o que acontece noutros ordenamentos jurídicos. Assim, em Itália, o Codice di Procedura Penale, no seu artigo 125.º, preceitua:
No julgamento, o acusado deve, sob pena de nulidade, ser assistido pelo defensor, salvo tratando-se de contravenções puníveis com multa não superior a 30000 liras ou com prisão não superior a 1 mês, ainda que cominadas conjuntamente. [Usou-se o itálico.]
Também em Espanha, a Ley de Enjuiciamiento Criminal estabelece, no artigo 970.º, que no julgamento das transgressões («faltas») não é necessário a presença de defensor.
A ideia de que, tratando-se de minimis, a presença de um defensor já não é obrigatória não deve, porém, levar-se longe de mais.
De facto - como adverte Jorge Figueiredo Dias (ob. cit., p. 476) -, a assistência de defensor deve ser obrigatória, designadamente «quando o arguido tenha particular dificuldade em contribuir relevantemente para a sua defesa, v. g. por surdez, mudez, analfabetismo e situações análogas».
Ora uma situação em que o arguido não poderá, realmente, contribuir de forma relevante para a sua defesa é seguramente a situação de revelia própria ou de ausência justificada, ou seja, aquela em que ele se não acha presente na audiência de julgamento, para a qual não fora notificado senão editalmente.
Na verdade, não se achando presente, nem havendo garantias de que pudesse estar, não seria razoável considerar suficiente, no caso, a autodefesa, que nem tão-pouco pode ter lugar.
A possibilidade de o arguido ser assistido por defensor tem que ser «real e concreta» [Acórdão da Comissão Constitucional n.º 164 (Apêndice ao Diário da República, de 16 de Abril de 1981)], tal como tem que o ser a possibilidade de se defender ou de ser ouvido.
Ora isso não é de modo algum o que acontece quando o réu não está presente na audiência e nem sequer se sabe se dela teve conhecimento: num tal caso, não se lhe assegura a possibilidade de organizar a sua defesa, se não se lhe nomeia defensor oficioso sequer.
2.2 - O arguido só será respeitado na sua dignidade de pessoa se for tratado como sujeito do processo, e não como simples objecto de uma decisão judicial. Isso exige que ele seja ouvido toda a vez que haja de se tomar qualquer decisão susceptível de afectar os seus direitos. Só nesse caso, na verdade, se lhe dará a oportunidade de «influenciar» o processo e o seu resultado. Mas ser ouvido há-de significar para o arguido, além do mais, poder ele dispor do apoio de um jurista para, se necessário, estar em condições de, com «igualdade de armas», se opor à argumentação de um outro jurista (o Ministério Público).
«No dever jurídico geral do Estado de salvaguardar a dignidade humana, na sua expressão concreta de dever assegurar a garantia de ser ouvido e na garantia de um processo 'leal' de acordo com o princípio da 'igualdade de armas', revela-se, então [escreve Karl-Heinz Gössel, 'A posição do defensor no processo penal de um Estado de direito', in Boletim da Faculdade de Direito, vol. LIX, 1983, pp. 242 e segs.], o fundamento do direito do arguido a nomear um defensor.»
2.3 - Assim, pois, a norma que vem posta em causa, na parte em que permite que, num processo de transgressão, o julgamento se possa fazer sem que ao réu se nomeie defensor oficioso, quando ele, havendo sido notificado editalmente para a audiência, se não encontre presente, viola o n.º 3 do artigo 32.º da Constituição.
Num tal caso, é manifesto que o réu não se acha em condições de, por si próprio, assegurar a defesa dos seus direitos, e só então o defensor poderia ser dispensado (cf. Karl-Heinz Gössel, ob. cit., p. 282).
3 - A questão da violação do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição (princípio das garantias de defesa):
O n.º 1 do artigo 32.º preceitua: «O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa.»
Estas garantias, que - como adverte J. Figueiredo Dias («A revisão constitucional e o processo criminal», in A Revisão Constitucional, o Processo Criminal e os Tribunais, pp. 43 e segs.) - se «vão multiplicando à medida que a consciência dos homens se vai afinando», são violadas toda a vez que ao arguido se não assegura, de modo efectivo, a possibilidade de organizar a sua defesa. E isto é, como se viu, o que acontece quando, em situações como as descritas, não se lhe nomeia, sequer, um defensor.
Eduardo Correia (Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 115.º, pp. 293 e 294), depois de dizer que, «em princípio, a ausência do arguido na audiência de julgamento parece inconstitucional, por envolver uma violação do direito à defesa, da garantia da obtenção da verdade material [...]», escreve:
A possibilidade da não presença ou da não manutenção da presença do arguido na audiência justifica-se ainda nas hipóteses das contra-ordenações sociais, dada a falta da sua ressonância criminal. O mesmo se diga para o caso das pequenas violações (bagatelas) e nas contravenções não puníveis com prisão. [...] Em todo o caso, nestas hipóteses, a presença do defensor oficioso ou voluntário não pode dispensar-se. [Usou-se o itálico.]
4 - A questão da violação do artigo 32.º, n.º 5, da Constituição (subordinação da audiência de julgamento ao princípio do contraditório):
Dispõe o referido n.º 5 do artigo 32.º:
5 - O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
Escreveu-se, a propósito, no já citado Acórdão 148/85:
A norma questionada viola também o princípio do contraditório, a que, por força do disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, se acha subordinada a audiência de julgamento.
De facto, independentemente da questão de saber se um tal princípio é ou não violado quando se procede ao julgamento sem que para ele o réu tenha sido notificado a não ser editalmente, por virtude de, num tal caso, mesmo quando se lhe nomeia defensor oficioso, ele se não poder defender pessoalmente - coisa que aqui não há que dilucidar (sobre o ponto e dando-lhe resposta afirmativa, v. Eduardo Correia, ob. cit., loc. cit.) -, independentemente disso, a verdade é que, uma vez que, como se viu, o direito de defesa é infringido pela norma aqui questionada, então também o é o dito princípio do contraditório.
Esse princípio, «traduzindo-se, ao menos, num direito à defesa, num direito a ser ouvido» (v. Eduardo Correia, ob. cit., ano 114.º, p. 365), só pode, com efeito, ser eficazmente assegurado mediante um adequado funcionamento da dialéctica processual - o que, como é óbvio, exige que as «partes» (Ministério Público e arguido) se encontrem colocadas em posição de perfeita igualdade.
Ora isso é justamente o que se não verifica quando um réu, que só foi notificado editalmente para audiência e a ela não compareceu, é julgado sem defensor.
III - Decisão
Por todo o exposto, com fundamento na violação dos n.os 1, 3 e 5 do artigo 32.º da Constituição, declara-se, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que se contém no 3.º trecho do artigo 49.º do Decreto-Lei 35007, de 13 de Outubro de 1945, na parte em que permite que, num processo de transgressão, o julgamento se faça sem que ao réu se nomeie defensor oficioso, quando ele, havendo sido notificado editalmente para a audiência, se não encontre presente.
Lisboa, 4 de Março de 1986. - Messias Bento - Antero Alves Monteiro Dinis - José Martins da Fonseca - Mário de Brito - Raul Mateus - José Manuel Cardoso da Costa - Costa Mesquita - José Magalhães Godinho - Mário Afonso - Vital Moreira - Armando Manuel Marques Guedes.