Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 465/2019
Sumário: Pronuncia-se pela inconstitucionalidade, por violação do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família, em consequência de uma restrição excessiva dos mesmos, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com os artigos 1.º e 26.º, n.º 1, por um lado, e com o artigo 36.º, n.º 1, por outro, todos da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 2.º do Decreto 383/XIII da Assembleia da República: a) na parte em que reintroduz o n.º 8 do artigo 8.º da Lei 32/2006, de 26 de julho, alterada pelas Leis 59/2007, de 4 de setembro, 17/2016, de 20 de junho, 25/2016, de 22 de agosto, 58/2017, de 25 de julho, 49/2018, de 14 de agosto e 48/2019, de 8 de julho, fazendo-o transitar para o n.º 13 daquele mesmo artigo, de acordo com a renumeração simultaneamente efetuada; e, em consequência, b) na parte em que, através do aditamento do n.º 15, alínea j), ao artigo 8.º da citada Lei, prevê que os termos da revogação do consentimento prestado pela gestante tenham lugar em conformidade com a norma mencionada em a).
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1 - O Presidente da República vem, ao abrigo do artigo 278.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, submeter à apreciação deste Tribunal, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, duas normas constantes do artigo 2.º do Decreto que procede à "Sétima alteração à Lei 32/2006, de 26 de julho, que regula a procriação medicamente assistida" (Lei da Procriação Medicamente Assistida, doravante «LPMA»), aprovado pela Assembleia da República em 19 de julho de 2019, que lhe foi enviado para promulgação como lei.
Tais normas são as seguintes:
a) a norma constante do artigo 2.º do Decreto, na parte em que mantém em vigor o n.º 8 do artigo 8.º da Lei 32/2006, de 26 de julho, alterada pelas Leis 59/2007, de 4 de setembro, 17/2016, de 20 de junho, 25/2016, de 22 de agosto, 58/2017, de 25 de julho, 49/2018, de 14 de agosto e 48/2019, de 8 de julho, que passa a constar do n.º 13 daquele artigo 8.º, de acordo com a renumeração efetuada pelo Decreto em apreciação;
b) a norma constante do artigo 2.º do Decreto, na parte em que adita a alínea j) ao n.º 15 do artigo 8.º da citada lei.
2 - É o seguinte o conteúdo das normas em causa:
«Artigo 2.º
Alteração à Lei 32/2006, de 26 de julho
Os artigos 8.º e 39.º da Lei 32/2006, de 26 de julho, passam a ter a seguinte redação:
Artigo 8.º
[...]
[...]
13 - (Anterior n.º 8.)
[...]
15 - A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição é feita através de contrato escrito, estabelecido entre as partes, supervisionado pelo CNPMA, onde consta, obrigatoriamente, entre outras, cláusulas tendo por objeto:
[...]
j) Os termos de revogação do consentimento ou do contrato em conformidade com a presente lei;
[...]».
3 - Segundo o requerente, a alteração legislativa operada pelas normas objeto do pedido que formulou «não cumpre a decisão do Tribunal Constitucional» constante do Acórdão 225/2018, padecendo do vício de inconstitucionalidade material «por violação do direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família, em consequência de uma restrição excessiva dos mesmos, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com os artigos 1.º e 26.º, n.º 1, por um lado, e com o artigo 36.º, n.º 1, por outro, todos da Constituição da República Portuguesa».
Concretizando os fundamentos do pedido, o requerente invoca, para o efeito, os seguintes argumentos:
«[...]
3.º Através do citado Acórdão, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de diversas normas da referida Lei 32/2006, de 26 de julho.
4.º De entre estas, e com interesse para o caso vertente, importa reter o determinado na alínea b) da decisão:
"b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 8 do artigo 8.º da Lei 32/2006, de 26 de julho, em conjugação com o n.º 5 do artigo 14.º da mesma Lei, na parte em que não admite a revogação do consentimento da gestante de substituição até à entrega da criança aos beneficiários, por violação do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família, em consequência de uma restrição excessiva dos mesmos, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com os artigos 1.º e 26.º, n.º 1, por um lado, e com o artigo 36.º, n.º 1, por outro, todos da Constituição da República Portuguesa";
5.º Deste modo, no citado Acórdão 225/2018, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do regime que permitia a revogação do consentimento dado pela gestante de substituição até ao início dos tratamentos de PMA, e não até à entrega aos "beneficiários" da criança assim gerada, dando assim maior relevância aos direitos da gestante.
6.º Entendeu o Tribunal que a solução então em vigor era contrária à dignidade da pessoa humana e ao livre desenvolvimento da personalidade da gestante, impedida que estava de revogar o consentimento, bem como não assegurava o seu direito à interrupção voluntária da gravidez.
7.º O conteúdo normativo que operava uma tal limitação, inconstitucional na decisão do Tribunal, resultava da remissão para o n.º 8 do artigo 8.º para o n.º 5 do artigo 14.º, na medida em que era desta remissão que decorria a aludida restrição.
8.º É o seguinte o conteúdo das normas declaradas inconstitucionais:
"Artigo 8.º
Gestação de substituição
8 - No tocante à validade e eficácia do consentimento das partes, ao regime dos negócios jurídicos de gestação de substituição e dos direitos e deveres das partes, bem como à intervenção do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e da Ordem dos Médicos, é aplicável à gestação de substituição, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 14.º da presente lei.
Artigo 14.º
Consentimento
4 - O consentimento dos beneficiários é livremente revogável por qualquer deles até ao início dos processos terapêuticos de PMA.
5 - O disposto nos números anteriores é aplicável à gestante de substituição nas situações previstas no artigo 8.º".
9.º Ora, como se vê, o conteúdo normativo declarado inconstitucional resultava da remissão do artigo 8.º para o artigo 14.º e, reversamente, do n.º 5 do artigo 14.º para o artigo 8.º Deste modo, da decisão do Tribunal decorria a inconstitucionalidade de ambas as remissões, na parte em que implicava a impossibilidade de a gestante revogar o consentimento após o início dos processos terapêuticos de PMA.
10.º No Decreto 383/XIII mantém-se em vigor o referido n.º 8 do artigo 8.º, agora renumerado em n.º 13, é acrescentada a alínea j) ao n.º 15.º do artigo 8.º, e deixa-se intocado o artigo 14.º, sendo certo que, quanto ao n.º 5, importa ter presentes os efeitos da inconstitucionalidade acima citada.
11.º Com relevo para a questão vertente, é a seguinte a redação agora adotada para o artigo 8.º:
"«Artigo 8.º
[...]
1 - [...]
13 - (Anterior n.º 8.)
[...]
15 - A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição é feita através de contrato escrito, estabelecido entre as partes, supervisionado pelo CNPMA, onde consta, obrigatoriamente, entre outras, cláusulas tendo por objeto:
[...]
j) Os termos de revogação do consentimento ou do contrato em conformidade com a presente lei."
12.º O n.º 8 do artigo 8.º que o legislador agora expressamente retoma, determina expressamente a aplicação à gestação de substituição do disposto no artigo 14.º, o qual não é alterado pelo presente Decreto.
13.º O artigo 14.º acolhe, recorde-se, a revogabilidade do consentimento até ao início das terapêuticas de PMA e não, como havia considerado o Tribunal Constitucional, até à entrega da criança aos "beneficiários".
14.º Deste modo, nesta parte, a alteração legislativa não cumpre a decisão do Tribunal Constitucional, a qual era clara e precisa no seu âmbito.
15.º Na verdade, da decisão que fez vencimento afigura-se resultar que uma solução de revogação do consentimento da gestante só será conforme ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito ao livre desenvolvimento da personalidade, caso possa ocorrer até à entrega da criança aos "beneficiários" o que, manifestamente, não sucede no caso do regime agora aprovado.
16.º Nem se afirme, por outro lado, que tal resultado se alcança, inequivocamente, através do disposto na citada alínea j) do n.º 15.º do artigo 8.º, tal como aprovado pelo Decreto, já que apenas contém uma norma de remissão genérica para o conteúdo da Lei, desprovida de substância própria.
17.º Acresce que a não alteração ao artigo 14.º, cujo n.º 5 havia sido declarado inconstitucional, na parte em que não admite a revogação do consentimento da gestante de substituição até à entrega da criança aos beneficiários - entretanto esvaziado de conteúdo -, e a manutenção ao n.º 8 do artigo 8.º, agora n.º 13, são suscetíveis de criar uma situação de incerteza para a criança, para os "beneficiários" e para a gestante, podendo produzir, eventualmente, uma insegurança jurídica, inconstitucional.
18.º Dir-se-ia, assim, que a alteração "sub iudicio" não só pode manter, como, porventura, acentuar a violação inconstitucional, na visão do Tribunal, do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, na medida em que reforça a desproteção da gestante relativamente ao seu regime de revogação do consentimento, como pode criar uma situação de incerteza para todos os envolvidos e, desde logo, a criança.
[...]»
4 - Notificado para o efeito previsto no artigo 54.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (doravante, «LTC»), o Vice-Presidente da AR, em substituição do respetivo Presidente, ofereceu o merecimento dos autos.
5 - Elaborado o memorando a que alude o artigo 58.º, n.º 2 da LCT e fixada a orientação do Tribunal, importa agora decidir, conforme previsto no artigo 59.º da mesma Lei.
II - Fundamentação
A. Conhecimento do pedido
6 - Considerada a legitimidade do requerente, a circunstância de o pedido conter todas as indicações a que se refere o artigo 51.º, n.º 1, da LTC e a observância dos prazos aplicáveis (artigo 278.º, n.º 3, da Constituição e artigos 54.º, 56.º, n.º 4, 57.º, n.os 1 e 2, e 58.º da LTC), nada obsta ao conhecimento da questão de constitucionalidade formulada nos presentes autos.
B. Normas a apreciar e respetivo enquadramento
7 - Conforme referido pelo requerente, através do Acórdão 225/2018, proferido em 24 de abril de 2018, este Tribunal declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de diversas normas da Lei 32/2006, de 26 de julho, que «regula utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (PMA)», designadamente, no que aqui releva, «da norma do n.º 8 do artigo 8.º da Lei 32/2006, de 26 de julho, em conjugação com o n.º 5 do artigo 14.º da mesma Lei, na parte em que não admite a revogação do consentimento da gestante de substituição até à entrega da criança aos beneficiários, por violação do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família, em consequência de uma restrição excessiva dos mesmos, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com os artigos 1.º e 26.º, n.º 1, por um lado, e com o artigo 36.º, n.º 1, por outro, todos da Constituição da República Portuguesa».
Na sequência do julgamento levado a cabo no Acórdão 225/2018, diversas iniciativas legislativas foram apresentadas, entre as quais o Projeto de Lei 1030/XIII/4.ª, do Bloco de Esquerda, tendo por objetivo a «alteração ao regime jurídico da gestação de substituição», «no modelo que foi proposto e publicado pela Lei 25/2016, de 22 de agosto», de modo a conformá-lo «com o Acórdão do Tribunal Constitucional, nomeadamente nas matérias da revogabilidade do consentimento da gestante, da nulidade do negócio jurídico e da determinabilidade quanto ao contrato de gestação de substituição», passando a prever-se, designadamente, «que a gestante de substituição possa revogar o seu consentimento até ao momento de registo da criança nascida do processo de gestação de substituição, em vez do atualmente previsto (até ao início dos procedimentos de procriação medicamente assistida)».
Tal Projeto foi discutido conjuntamente com uma série de outras iniciativas legislativas, que tiveram lugar no âmbito do acesso à identidade civil de dadores de gâmetas por pessoas nascidas em consequência de tratamentos ou procedimentos de procriação medicamente assistida (Projeto de Lei 1007/XIII/4.ª, do Bloco de Esquerda, Projeto de Lei 1010/XIII/4.ª, do Partido Social Democrata, Projeto de Lei 1024/XIII/4.ª, do Partido Socialista, Projeto de Lei 1031/XIII/4.ª, do Partido Comunista Português, e Projeto de Lei 1033/XIII/4.ª, do Partido Pessoas-Animais-Natureza), tendo o processo legislativo culminado na aprovação do articulado de substituição apresentado pela Comissão de Saúde, relativo ao Projeto de Lei 1030/XIII/4.ª, do Bloco de Esquerda, dando finalmente origem ao Decreto da Assembleia da República n.º 383/XIII, objeto do presente pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
Ao invés do que acabou por vir a ser acolhido no referido Decreto, a alteração do regime de gestação de substituição contemplada no Projeto de Lei 1030/XIII compreendia a modificação dos artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5, da LPMA, no sentido de reconhecer a possibilidade de a gestante de substituição revogar o seu consentimento até ao momento legalmente previsto para o registo da criança nascida em consequência do processo de gestação de substituição.
Nesse sentido, propunha-se a seguinte redação para o artigo 8.º, n.º 8, da LPMA:
«8 - No tocante à validade e eficácia do consentimento das partes, ao regime dos negócios jurídicos de gestação de substituição e dos direitos e deveres das partes, bem como à intervenção do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e da Ordem dos Médicos, é aplicável à gestação de substituição, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 14.º da presente lei, com exceção do previsto no n.º 4 sobre o consentimento livremente revogável que nos casos de gestação de substituição pode acontecer, por vontade da gestante, até ao final do prazo legalmente previsto para o registo da criança nascida».
Previa-se igualmente um novo n.º 6, a introduzir no artigo 14.º da LPMA:
«6 - Nos casos de gestação de substituição previstos no artigo 8.º, a gestante de substituição pode livremente revogar o seu consentimento até ao momento previsto na parte final do n.º 8 desse artigo 8.º».
Vicissitudes várias ao longo do procedimento legislativo determinaram, contudo, que tais alterações não viessem a ser aprovadas.
Assim, apesar de introduzir diversas alterações no artigo 8.º da LPMA e de aditar à referida Lei dois novos artigos, referentes aos direitos e deveres da gestante de substituição (respetivamente, os artigos 13.º-A e 13.º-B), o Decreto 383/XIII mantém incólume a redação do n.º 8 do referido artigo, na versão resultante da Lei 25/2016, limitando-se a transpô-lo, por efeito da renumeração operada, para o respetivo (e novo) n.º 13. Para além disso, a revisão do regime jurídico da gestação de substituição que o Decreto consubstancia não contempla qualquer modificação do artigo 14.º da LPMA, pelo que, nos termos estabelecidos nos seus n.os 4 e 5, o consentimento da gestante continuará a ser livremente revogável somente «até ao início dos processos terapêuticos de PMA».
8 - Na redação conferida pelas Leis 17/2016, de 20 de junho e 25/2016, de 22 de agosto, o artigo 8.º, n.º 8, dispõe o seguinte:
«Artigo 8.º
Gestação de substituição
[...]
8 - No tocante à validade e eficácia do consentimento das partes, ao regime dos negócios jurídicos de gestação de substituição e dos direitos e deveres das partes, bem como à intervenção do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida e da Ordem dos Médicos, é aplicável à gestação de substituição, com as devidas adaptações, o disposto no artigo 14.º da presente lei.
[...]».
Nos seus n.os 4 e 5, o 14.º da LPMA prescreve, por sua vez, o seguinte:
«Artigo 14.º
Consentimento
[...]
4 - O consentimento dos beneficiários é livremente revogável por qualquer deles até ao início dos processos terapêuticos de PMA.
5 - O disposto nos números anteriores é aplicável à gestante de substituição nas situações previstas no artigo 8.º».
O regime resultante da concatenação dos referidos preceitos legais foi submetido à apreciação deste Tribunal em processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade, tendo o Tribunal, através do Acórdão 225/2018, declarado «a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 8 do artigo 8.º da Lei 32/2006, de 26 de julho, em conjugação com o n.º 5 do artigo 14.º da mesma Lei, na parte em que não admite a revogação do consentimento da gestante de substituição até à entrega da criança aos beneficiários, por violação do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família, em consequência de uma restrição excessiva dos mesmos, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com os artigos 1.º e 26.º, n.º 1, por um lado, e com o artigo 36.º, n.º 1, por outro, todos da Constituição da República Portuguesa».
Tal juízo assentou nos seguintes fundamentos:
«[...]
30 - Saber se estas garantias procedimentais e organizatórias são suficientes para uma efetiva proteção da liberdade de ação da gestante ao longo de todo o processo de gestação de substituição é uma questão diferente, mas que já não interfere com a admissibilidade constitucional de princípio do próprio instituto da gestação de substituição, tal como modelado pelo legislador nos seus traços essenciais (cf. supra os n.os 8, 9 e 28). Nesse caso, poderão estar em causa aspetos concretos do regime jurídico, que, por força das exigências constitucionais quanto ao direito ao desenvolvimento da personalidade - o qual, recorde-se, é um direito fundamental concretizador do respeito pela dignidade da pessoa -, e atendendo à própria dinâmica da gestação, coloquem problemas de constitucionalidade. Ou seja, no plano das soluções jurídicas concretas consagradas nos vários números do artigo 8.º da LPMA, haverá que avaliar se as mesmas salvaguardam adequadamente o direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante de substituição, nomeadamente em situações de potenciais conflitos de direitos, ainda que esta tenha, no momento inicial, de livre vontade e num exercício de autodeterminação, prestado o seu consentimento para o concreto procedimento de gestação de substituição em que é participante e aceitado vincular-se contratualmente perante os beneficiários do mesmo.
Nessa sede, deverá o Tribunal verificar se a disciplina da gestação de substituição estabelecida pelo legislador nas citadas normas realiza uma ponderação adequada entre o direito contratual dos beneficiários - mas que também não deixa de corresponder a um interesse fundamental dos mesmos - à concretização do seu projeto de procriação e de constituir família, o superior interesse da criança que nascer na sequência do processo de gestação, o direito ao desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação em matéria reprodutiva de todos os envolvidos e a necessidade de proteção da dignidade da mulher que assume o papel de gestante de substituição, seja no momento em que celebra o contrato com os beneficiários ou no momento em que lhe são aplicadas as técnicas de PMA, seja durante o período em que efetivamente se encontra grávida e até depois do parto. Além da criança, esta mulher é, como referido, a parte mais vulnerável, se se atender aos riscos já assinalados de coerção e aos riscos inerentes a uma gravidez, designadamente, riscos de aborto, gravidez ectópica, pré-eclâmpsia e outras complicações obstétricas, que tendem a aumentar com o número de gestações. De resto, a natureza da gravidez enquanto fenómeno biológico, psíquico e potencialmente afetivo, e o seu dinamismo próprio, são igualmente aptos a justificar reponderações.
[...]
B. 6. Questões de inconstitucionalidade suscitadas por certos aspetos do regime da gestação de substituição lícita
38 - A inexistência de uma incompatibilidade de princípio do modelo português de gestação de substituição com a Constituição não significa que determinados aspetos do seu regime jurídico não possam suscitar questões de inconstitucionalidade. A ser assim, não estará em causa o modelo, em si mesmo considerado, mas tão-somente certas soluções adotadas na sua concretização legislativa. Desde que as soluções em causa se compreendam no âmbito objetivo do pedido - os n.os 1 a 12 do artigo 8.º da LPMA e demais normas da mesma Lei que se refiram à gestação de substituição - nada obsta a que o Tribunal aprecie a sua eventual inconstitucionalidade (cf. o já citado artigo 51.º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional).
[...]
B.6.1. A questão dos limites à livre revogabilidade do consentimento da gestante
39 - A essencialidade do consentimento da gestante para a eficácia do contrato de gestação de substituição já foi devidamente sublinhada. Se o contrato, para além da regulação de diferentes aspetos das relações entre as partes, traduz a adesão da gestante a um projeto parental dos beneficiários, aceitando, perante estes, que se submete a um conjunto de operações que visam, no final, dar à luz uma criança que seja tida como filha deles (cf. supra os n.os 24 e 28), o referido consentimento destina-se a garantir que as obrigações assumidas em ordem a permitir alcançar tal finalidade - obrigações essas que interferem com direitos fundamentais da gestante, nomeadamente o direito à integridade física, o direito à saúde e até o direito a constituir família e a ter filhos - não violentam a gestante, ficando salvaguardada a sua dignidade ao longo de todo o processo (cf. supra os n.os 8, 28 e 29). Com efeito, qualquer uma das obrigações características do contrato de gestação de substituição - a submissão a uma técnica de PMA, a gravidez e o parto suportados no interesse dos beneficiários e a entrega a estes da criança nascida - só é juridicamente admissível porque consentida pela gestante. E este consentimento livre e esclarecido - é essa a razão de ser do estabelecimento de certas garantias procedimentais e organizatórias para a sua prestação -, que a vincula, tem de valer enquanto for condição indispensável à salvaguarda da dignidade da gestante, pois só desse modo pode desempenhar a função específica que lhe compete no âmbito do regime da gestação de substituição.
Dada a natureza jurídica do consentimento enquanto negócio jurídico unilateral, não é fácil a sua articulação jurídico-formal com o regime do contrato - um negócio jurídico bilateral. E o modo como a referência expressa ao contrato foi introduzida na lei também não ajuda (cf. supra o n.º 29). De todo o modo, é seguro que a previsão legal do contrato e o seu regime não pode prejudicar a função própria e específica do consentimento, em particular o da gestante, sob pena de pôr em causa a própria admissibilidade constitucional da gestação de substituição. Recorde-se que uma das condições de admissibilidade do modelo português de gestação de substituição é, precisamente, a consideração de que o mesmo não põe em causa a dignidade da gestante (cf. supra os n.os 28 e 29).
40 - As aludidas dificuldades de articulação jurídico-formal do consentimento e do contrato transparecem, desde logo, na própria LPMA. Não obstante, e como referido, o legislador conservou a respetiva autonomia, assegurando que, pelo menos «até ao início dos processos terapêuticos de PMA», o regime do contrato não pode pôr em causa as garantias legais conexas com a liberdade do consentimento. Com efeito, a aplicabilidade do disposto no artigo 14.º, n.º 4, daquele diploma no âmbito da gestação de substituição, tanto aos beneficiários como à gestante - resultando tal aplicabilidade das remissões contidas no artigo 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5 -, significa que, mesmo existindo já contrato assinado entre as partes, qualquer uma delas pode revogar o consentimento previamente dado, fazendo desaparecer o pressuposto da celebração do próprio contrato e, consequentemente, determinando a sua total ineficácia.
O n.º 10 do artigo 8.º da LPMA estatui que a «celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição é feita através de contrato escrito estabelecido entre as partes», os beneficiários e a gestante. É nesse acordo, supervisionado pelo CNPMA, que devem estar reguladas certas questões («as disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez» - n.º 10); por outro lado, o mesmo acordo «não pode impor restrições de comportamentos à gestante de substituição, nem impor normas que atentem contra os seus direitos, liberdade e dignidade» (n.º 11 do mesmo artigo) nem prever pagamentos à gestante que ultrapassem «o valor correspondente às despesas decorrentes do acompanhamento de saúde efetivamente prestado, incluindo em transportes, desde que devidamente tituladas em documento próprio» (ibidem, n.º 5). Em ordem a verificar a observância dos requisitos de legalidade do contrato, este tem de ser previamente autorizado pelo CNPMA (ibidem, n.º 4).
Mas o n.º 8 do mesmo artigo 8.º refere-se expressamente à «validade e eficácia do consentimento das partes», autonomizando-o do «regime dos negócios jurídicos de gestação de substituição», e determinando que a tal matéria seja aplicado o disposto no artigo 14.º da LPMA. Este preceito, concebido especificamente para a aplicação das técnicas de PMA, tem como epígrafe «Consentimento» e disciplina as condições, termos e conteúdo de uma declaração negocial desse tipo, que, por natureza é unilateral. Como se referiu supra no n.º 8, o consentimento prestado no quadro da gestação de substituição não se limita a autorizar a aplicação de uma dada técnica de PMA; o mesmo vincula o emitente em relação a todo o processo de gestação de substituição, sendo, por isso, mais complexo e abrangente.
É mais complexo, porque exige uma declaração de consentimento dos beneficiários e outra da gestante, as quais não se dirigem apenas ao médico responsável, mas também aos próprios interessados: os beneficiários consentem, também perante a gestante, que nesta seja implantado um embrião constituído com recurso a gâmetas de, pelo menos, um deles; e a gestante consente, também perante os beneficiários, em que lhe seja implantado esse mesmo embrião.
O consentimento em apreço é também mais abrangente, uma vez que o seu objeto é não só a aplicação de uma técnica de PMA, mas todo o processo gestacional e o próprio parto. Daí a previsão no artigo 14.º, n.º 6, de que «os beneficiários e a gestante de substituição [sejam] ainda [- isto é, para além das informações respeitantes aos benefícios e riscos conhecidos resultantes da utilização de técnicas de PMA, bem como das suas implicações éticas, sociais e jurídicas -] informados, por escrito, do significado da influência da gestante de substituição no desenvolvimento embrionário e fetal».
Deste modo, o consentimento dos beneficiários implica a vontade positiva de que o embrião criado com recurso ao seu material genético, implantado na gestante, desenvolvido por esta durante a gravidez e por ela dado à luz, seja tido como seu filho. Do mesmo modo, o consentimento da gestante traduz a vontade positiva de que a criança que vier a trazer no seu ventre e que vier a dar à luz não venha a ser sua filha, mas dos beneficiários. Esta autovinculação direcionada inerente ao consentimento prestado no âmbito da gestação de substituição explica a dificuldade em separá-lo de um acordo entre as partes. E, na verdade, faz todo o sentido acomodar as exigências relativas ao consentimento no próprio contrato.
41 - Aliás, isso mesmo parece ter sido tentado no Decreto Regulamentar 6/2017, de 31 de julho, que veio regulamentar a Lei 25/2016, e no contrato-tipo entretanto aprovado, mas com o objetivo de reduzir ao mínimo as referências autónomas ao consentimento e fazer coincidir o acordo com a declaração unilateral de consentimento.
Nos termos do artigo 3.º, n.º 1, daquele diploma, o CNPMA aprova o contrato-tipo de gestação de substituição, do qual devem constar obrigatoriamente cláusulas tendo por objeto matérias enunciadas nas alíneas do n.º 3 do mesmo preceito. Entre estas, cumpre salientar, pela sua conexão com a questão do consentimento, as alíneas e) («[a] prestação de informação completa e adequada sobre as técnicas clínicas e os seus potenciais riscos para a saúde») e f) («[a] prestação de informação ao casal beneficiário e à gestante sobre o significado e as consequências da influência do estilo de vida da gestante no desenvolvimento embrionário e fetal»), porquanto respeitam, respetivamente, às informações destinadas a garantir um consentimento informado previstas nos n.os 2 e 6 do artigo 14.º da LPMA. Verifica-se, deste modo, o esforço de lograr que, por via da aceitação de um contrato que obedeça ao contrato-tipo, se preste simultaneamente o consentimento exigido.
Ainda assim, este surge autonomizado logo na alínea j), respeitante aos «termos da revogação do consentimento ou do contrato e as suas consequências» (itálicos aditados). E, sobretudo, no seguinte preceito:
«Artigo 4.º
Declaração negocial
Sem prejuízo do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, as declarações negociais da gestante de substituição e dos beneficiários manifestadas no contrato de gestação de substituição, são livremente revogáveis até ao início dos processos terapêuticos de PMA.»
Recorde-se que o preceito citado do Código Penal respeita à interrupção voluntária da gravidez realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas de gravidez.
No contrato-tipo aprovado pelo CNPMA, já só se fala em «revogação do contrato», não para referir um acordo de revogação, mas a possibilidade de «qualquer uma das partes» livremente pôr termo ao contrato «até ao início do processo terapêutico de PMA» (cláusula 8.ª, n.º 1). Admite-se também a resolução (unilateral) do contrato nos casos de realização de interrupção voluntária da gravidez (cláusula 8.ª, n.os 1, parte final, e 2, só pela gestante, com referência à hipótese prevista no artigo 142.º, n.º 1, alínea e), do Código Penal; cláusula 11.ª, por qualquer das partes, nas situações das alíneas a) ou b) do mesmo preceito). Os deveres de informação, assim como o consentimento prestado perante o médico constituem um pressuposto da assinatura do contrato, conforme referido no considerando g) do contrato-tipo (ainda que depois, nas cláusulas 2.ª, n.º 2, alínea a), e 5.ª, alínea a), se afirme constituírem direitos, respetivamente, da gestante e do casal beneficiário, serem informados de acordo com a previsão do artigo 14.º, n.º 2, da LPMA):
«O casal beneficiário e a gestante foram informados por escrito dos benefícios e dos riscos conhecidos resultantes da utilização das técnicas de PMA, das suas implicações éticas, sociais e jurídicas e do significado da influência da gestante de substituição no desenvolvimento embrionário e fetal, tendo prestado expressamente o seu consentimento para a realização dos necessários procedimentos de PMA de forma livre e esclarecida.»
42 - Simplesmente, há que não confundir uma legítima acomodação contratual com uma indiferenciação ilegítima, atenta a assimetria existente entre o que é consentido pelos beneficiários e pela gestante e a autonomia funcional do consentimento de cada uma das partes no contrato.
Concentrando a atenção na gestante, verifica-se que é a saúde desta que corre maiores riscos e durante mais tempo e é ela que se vincula a suportar a gravidez e o parto e, depois deste, a entregar a criança aos beneficiários. Para a gestante, o seu consentimento cobre um significativo período de tempo, durante o qual o seu corpo e a sua saúde psicológica e emocional vão sofrendo alterações várias. Em termos funcionais, e como mencionado, a validade jurídica de qualquer uma das obrigações essenciais do contrato de gestação pressupõe a validade e eficácia do consentimento prévio da gestante, sob pena de a dignidade desta ficar comprometida. Por isso mesmo, o seu consentimento traduz o exercício do seu direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade com referência a cada uma das fases do processo de gestação de substituição (cf. supra o n.º 28).
Já para os beneficiários, depois da recolha dos gâmetas exigidos e da concretização da transferência uterina, um eventual passo atrás no que se refere ao seu consentimento, já não pode interferir com as aludidas obrigações essenciais do contrato. O caráter vinculativo do seu consentimento justifica-se em razão de tais obrigações recaírem sobre a gestante, e não sobre eles. Uma eventual desistência do projeto parental que assumiram inicialmente apenas poderia culminar, caso a gestação de substituição fosse bem sucedida, numa entrega para adoção. Assim, e diferentemente do que acontece no caso da gestante, o consentimento dos mesmos não está necessariamente conexionado com o exercício de direitos fundamentais seus. Aliás, como referido anteriormente, os beneficiários não têm um direito fundamental à procriação por via de gestação de substituição; esta última corresponde tão só a uma opção do legislador no sentido de possibilitar a concretização de um projeto parental que, de outro modo, não seria viável (cf. supra o n.º 27).
O legislador manteve a referência expressa e autónoma ao consentimento e à sua livre revogabilidade no artigo 14.º, n.º 4, da LPMA, determinando que tal preceito «é aplicável à gestante de substituição nas situações previstas no artigo 8.º» (v. o n.º 5 do mesmo artigo 14.º). É que, apesar de todas as conexões, a aceitação do contrato de gestação de substituição por parte da gestante não garante necessariamente a continuidade do seu consentimento por todo o tempo da execução do contrato. Como mencionado, o contrato pode acomodar as exigências relacionadas com o consentimento, em especial com os seus limites, mas também pode não o fazer. Neste caso, as exigências do consentimento, atenta a respetiva importância para a admissibilidade jurídica do próprio contrato, têm de prevalecer. E o legislador até o reconheceu no artigo 14.º, n.º 4, da LPMA: o consentimento é livremente revogável até ao início dos processos terapêuticos de PMA. A questão que este preceito suscita, depois, é a de saber se tal garantia, do ponto de vista da salvaguarda da dignidade da gestante, é suficiente.
43 - Tal como conformado pela lei em vigor, o consentimento da gestante é prestado ex ante relativamente ao início do processo terapêutico de PMA e, a fortiori, à própria gravidez e ao parto, mais exatamente antes da celebração do contrato de gestação de substituição ou nesse momento. Tal consentimento baseia-se nas informações a que se reportam os n.os 2 e 6 do artigo 14.º: respetivamente, benefícios e riscos conhecidos resultantes da utilização das técnicas de PMA, bem como das suas implicações éticas, sociais e jurídicas; e significado da influência da gestante no desenvolvimento embrionário e fetal. E o consentimento só pode ser revogado até ao início do dito processo terapêutico de PMA.
Sucede que a gestação é um processo complexo, dinâmico e único, em que se cria uma relação entre a grávida e o feto que se vai desenvolvendo no seu seio. Daí poder questionar-se até que ponto é que um consentimento prestado ainda antes da gravidez, relativamente a todo o processo da gestação de substituição, desde a implantação do embrião até ao parto e, mesmo depois, até à entrega da criança aos beneficiários, é verdadeiramente informado quanto à totalidade desse mesmo processo.
No Relatório sobre Procriação Medicamente Assistida e Gravidez de Substituição, elaborado pelo Conselheiro-Presidente Miguel Oliveira da Silva em vista do Parecer 63/CNECV/2012, evidencia-se que a gestante não é neutra nem biológica nem afetivamente em relação ao feto e que existe uma interação entre ambos muito significativa:
«3.4 - O ambiente uterino e sua influência determinante na pessoa humana
O microambiente uterino condiciona o funcionamento da placenta e o desenvolvimento do epigenoma fetal, isto sem alterar a sequência do DNA, leva a modificações do epigenoma (conjunto das modificações na cromatina [...], por metilação da DNA, modificações na histona e no micro RNA não codificante (non-coding).
A gravidez é um tempo vulnerável e constitui, entre outros aspetos, o momento por excelência de ativa programação do epigenoma do embrião-feto, condicionando e definindo a expressão dos genes do embrião/feto, para sempre: a expressão dos genes (ativação e desativação) do embrião/feto/criança é moldada pela gestação intrauterina, ativando uns genes, desativando outros, muito se jogando logo desde a própria implantação do embrião no útero. A implantação é um fenómeno cientificamente cada vez mais determinante no futuro do embrião-feto e que, obviamente, varia de útero para útero.
O recém-nascido não é a mesma pessoa de acordo com o útero em que é gerado: há uma diferente identidade (até epigenética).
A mulher grávida altera a expressão genética de cada embrião.
E inversamente: o embrião/feto altera a mãe gestatória, para sempre (até no simples plano biológico, já para não falar nos aspetos emocional e espiritual) - nenhuma mulher é a mesma pessoa (considerando apenas a biologia, já sem falar na vida psíquica e espiritual) depois de cada gravidez, dado o DNA fetal em circulação materna.
A grávida de substituição pode entregar a criança após o parto à mãe "legal-social", mas terá toda a sua vida na respetiva circulação DNA desse ser humano, possivelmente com consequências na respetiva saúde e comportamento - a relação não termina com o cumprimento do contrato.
A grávida não se limita a "alimentar" o feto, altera-lhe a expressão dos genes; o microambiente uterino dá-lhe muito mais do que nutrientes e oxigénio: dá-lhe anticorpos, emoções, reprograma-lhe os genes (condicionando, possivelmente, futuras patologias e talvez comportamentos da pessoa que vai nascer)» (pp. 29-30).
A partir destas considerações, bem como do conhecimento da possibilidade de ocorrência de malformações do feto ou doenças fetais ou de que qualquer gravidez envolve, em maior ou menor grau, riscos para a saúde física ou psíquica da grávida (cf. o artigo 8.º, n.º 10 da LPMA e o artigo 142.º, n.º 1, do Código Penal), pode concluir-se com referência ao processo de gestação:
Que se trata de um fenómeno dinâmico e imprevisível quanto a uma série de vicissitudes possíveis quer quanto ao feto-nascituro, quer quanto à grávida;
Que no seu âmbito se constitui uma relação biológica e potencialmente afetiva entre a grávida e o feto;
Que tal processo também pode interferir com a autocompreensão da própria gestante.
Estas características da gravidez condicionam decisivamente a possibilidade de um esclarecimento cabal ou de uma informação completa ex ante e, consequentemente, a própria posição da gestante face aos beneficiários: não sendo possível antecipar e prever o que vai ocorrer nas várias fases, desde a implantação do embrião até à entrega da criança, pode duvidar-se da existência de um consentimento suficientemente informado e, como tal, adotado com plena consciência de todas as possíveis consequências. Inexistindo um esclarecimento suficiente, a escolha realizada também não poderá considerar-se verdadeiramente livre. Em tais condições, caso a gestante se venha a opor à execução do contrato de gestação de substituição, é de concluir que uma eventual execução forçada do mesmo, ou uma penalização pecuniária pelo seu incumprimento devem ser consideradas, como uma afetação não realmente consentida da sua personalidade.
Em qualquer caso, as referidas características da gestação também não permitem excluir - bem pelo contrário, antes justificam - uma eventual alteração das circunstâncias que subjetivamente determinaram o consentimento da gestante, fazendo com que o projeto parental inicial não corresponda mais à sua vontade. A consequência da verificação de tal hipótese será, uma vez mais, que as obrigações da gestante decorrentes do contrato de gestação de substituição, no momento da sua execução, já não correspondam à vontade da gestante, em termos de a mesma ter de ser forçada a cumpri-las, eventualmente por via direta - como poderá suceder com a entrega da criança -, ou, porventura mais frequentemente, por via indireta, mediante o pagamento de indemnizações compensatórias. Porém, dada a natureza pessoalíssima de tais obrigações, as mesmas só são compatíveis com a dignidade da gestante, na medida em que o seu cumprimento corresponda a uma atuação por si voluntariamente assumida.
Na verdade, e como mencionado anteriormente, do ponto de vista da gestante, o que legitima a sua intervenção na gestação de substituição é a afirmação livre e responsável da sua personalidade - um modo de exercício do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, que, em última análise se funda na sua dignidade (cf. supra o n.º 28). Ora, tal direito tem de ser assegurado ao longo de todas as fases em que se desdobra o processo de gestação de substituição: celebração do contrato, aplicação das técnicas de PMA, gravidez, parto e entrega da criança aos beneficiários. Consequentemente, quer a insuficiência de informação eventualmente viciante do consentimento inicial da gestante, quer a alteração posterior e imprevisível da sua vontade em razão de vicissitudes ocorridas durante a gestação ou o parto, justificam a possibilidade da ocorrência de situações não consideradas no consentimento por ela previamente prestado e, por isso mesmo, incompatíveis com a afirmação da sua personalidade. Ou seja, tendo a gestante deixado de querer continuar no processo de gestação de substituição tal como delineado no correspondente contrato, deixa também de poder entender-se que a sua participação em tal processo corresponde ao exercício do seu direito ao desenvolvimento da personalidade.
Deste modo, atentas as aludidas características físicas, biológicas, psíquicas e potencialmente afetivas da gravidez e do parto, a revogabilidade do consentimento inicialmente prestado é a única garantia de que o cumprimento das obrigações específicas de cada fase daquele processo continua a ser voluntário e, por isso, a corresponder ao exercício de tal direito. A pura e simples autovinculação antes do início do processo de gestação de substituição não permite acautelar suficientemente tal voluntariedade ao longo de todo o processo. Por outras palavras, a aludida revogabilidade corresponde a uma garantia essencial da efetividade do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante, o qual constitui um alicerce fundamental do modelo português de gestação de substituição. E à semelhança das exigências de gratuitidade e de não subordinação económica para garantir a liberdade de consentimento inicial, a revogação em causa também tem de ser livre, no sentido de excluir, pelo menos, qualquer indemnização. Com efeito, as obrigações contratuais pressupõem o consentimento, pelo que, desaparecendo este, aquelas também deixam de poder subsistir, não havendo lugar para qualquer incumprimento contratual.
Simetricamente, o estabelecimento de limites legais à revogabilidade do consentimento da gestante não pode deixar de corresponder à definição de outras tantas restrições do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, nomeadamente para salvaguarda do interesse dos beneficiários e do respetivo projeto parental. Apesar de vinculante desde o início, o consentimento da gestante, para garantia da sua dignidade pessoal, tem de se manter atual ao longo de todo o processo de gestação de substituição, nomeadamente enquanto aquela cumpre as obrigações essenciais do contrato de gestação de substituição (cf. supra os n.os 39 e 42). Consequentemente, a imposição sem exceção da vinculatividade de tal consentimento - que é prestado ainda antes da transferência do embrião -, até ao fim do processo de gestação de substituição, apesar de o mesmo não se poder ter como totalmente esclarecido - dada a imprevisibilidade de todas as vicissitudes que podem ocorrer durante o período de gestação e durante o próprio parto -, nem poder antecipar alterações de circunstâncias subjetivas essenciais ocorridas durante o mesmo período, revela-se como uma limitação severa da mencionada exigência de atualidade. Com efeito, a vinculação ao consentimento anteriormente prestado não impede que, por razões atendíveis inerentes à necessária incompletude da informação inicial ou à própria dinâmica da gravidez, em algum momento até depois do parto, a gestante seja confrontada com uma obrigação - continuar a suportar gravidez de um filho destinado aos beneficiários ou proceder à sua entrega após o parto - cujo cumprimento já não corresponde à sua vontade mais profunda e antes constitua, para si, uma violência. Ora, o consentimento que lhe é exigido para participar num processo de gestação de substituição visa também prevenir tal tipo de situações, uma vez que as mesmas convertem - e degradam - o que foi concebido como ato de solidariedade ativa numa instrumentalização atentatória da sua dignidade pessoal.
O artigo 14.º, n.º 4, da LPMA, aplicável à gestante por remissão do artigo 8.º, n.º 8, daquela Lei, e confirmada pelo disposto no n.º 5 do mesmo artigo 14.º («o disposto nos números anteriores é aplicável à gestante»), só admite a livre revogação do seu consentimento «até ao início dos processos terapêuticos de PMA». Neste caso, está em causa a defesa dos interesses dos beneficiários perante uma eventual "mudança de ideias" ou o "arrependimento" da gestante, que se traduz na vontade de a mesma se afastar do projeto parental daqueles e no qual se dispusera a participar (cf. supra os n.os 24 e 28).
44 - A gestante pode afastar-se do projeto parental dos beneficiários por não querer levar a gestação até ao fim, realizando uma interrupção voluntária da gravidez, ou por, inversamente, querer levar a gravidez até ao fim e assumir um projeto parental próprio. Em razão do exposto, cumpre analisar se - e em que casos - a proibição de revogação do seu consentimento estatuída no citado artigo 14.º, n.º 4, da LPMA é legítima ou excessiva, atentos os interesses em causa.
Naturalmente que também os beneficiários podem querer afastar-se, por razões supervenientes, do seu próprio projeto parental (nomeadamente, em hipótese de divórcio, de doença incurável ou mesmo da morte de um deles, mas também de malformações do feto ou de doenças fetais entretanto detetadas). Simplesmente, a aludida assimetria das obrigações assumidas pelos beneficiários e pela gestante no âmbito da gestação de substituição (cf. supra o n.º 42), bem como a circunstância de nenhuma mulher poder ser obrigada a realizar uma interrupção voluntária da gravidez contra a sua vontade, ainda que se encontrem reunidos os pressupostos legais para o efeito, tem como consequência que, depois da transferência uterina, isto é, da implantação do embrião no útero da gestante, os primeiros já não possam voltar atrás nem exigir à gestante que o faça, mesmo no caso desta não querer assumir um projeto parental próprio relativamente ao nascituro que traga no seu ventre. A única solução, nesses casos, será, portanto, a entrega pelos beneficiários da criança nascida na sequência do recurso a gestação de substituição - e que é sua filha, nos termos do n.º 7 do artigo 8.º da LPMA - para adoção (cf., sobre as questões suscitadas pelas várias hipóteses de arrependimento das partes no contrato de gestação de substituição, Vera Lúcia Raposo, "Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação (mas o legislador teve medo de responder)" in Revista do Ministério Público, n.º 149 (janeiro-março de 2017), pp. 9 e ss., em especial, pp. 15 e ss. e 31 e ss.).
Haveria ainda a considerar a possibilidade de as partes quererem revogar por acordo o contrato de gestação de substituição, já depois de realizada a transferência uterina - hipótese não expressamente prevista e que poderia suscitar dificuldades em virtude de o mesmo não ser inteiramente livre, uma vez que tem de ser previamente autorizado. Contudo, bem vistas as coisas, tal possibilidade acaba por se reconduzir à situação em que a gestante revoga o seu consentimento, seja por não querer levar a gestação até ao fim, seja por querer assumir um projeto parental próprio. A única diferença consiste em tal revogação ocorrer numa situação em que não existe qualquer conflito com a vontade dos beneficiários.
45 - No que se refere ao afastamento da gestante relativamente ao projeto parental dos beneficiários em virtude de não querer levar a gravidez até ao fim, poderia pensar-se que os mesmos são objeto de disciplina legal no artigo 8.º, n.º 10 da LPMA. Contudo este preceito limita-se a estabelecer que do contrato de gestação de substituição «devem constar obrigatoriamente, em conformidade com a legislação em vigor, as disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez». Ou seja, na sua letra, o mesmo preceito não assegura à gestante a possibilidade de, por si só, e sem consequências indemnizatórias, decidir realizar uma interrupção voluntária da gravidez ("IVG") nas situações em que a mesma se encontra legalmente garantida, conforme previsto no artigo 142.º do Código Penal e na Lei 16/2007, de 17 de abril.
Tal interpretação é confirmada pelo Decreto Regulamentar 6/2017, que, em todo o caso, ressalva a possibilidade de realização de IVG, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez (cf. o artigo 4.º, com referência à alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal). Para as demais situações legalmente previstas, vale a determinação de que o contrato-tipo contenha cláusulas tendo por objeto as «disposições a observar em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez em conformidade com a legislação em vigor» (v. ibidem, artigo 3.º, n.º 3, alínea h)).
No contrato-tipo já aprovado, aquela ressalva também se encontra prevista, a título de «revogação do contrato», sem prejuízo da obrigação de reembolsar o casal beneficiário das despesas realizadas (cf. a cláusula 8.ª). Admite-se também a «resolução do contrato por qualquer das partes, sem que haja lugar ao pagamento de qualquer indemnização», em caso de IVG realizada ao abrigo das alíneas a) ou b) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal: remoção ou prevenção do perigo de morte ou de grave e irreversível (ou duradoura) lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida.
Porém, já no que se refere às situações previstas na alínea c) do mesmo preceito do Código Penal (existência de «seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excecionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo»), a cláusula 9.ª estabelece que a decisão da concretização da IVG «caberá em conjunto ao casal beneficiário e à gestante» (itálico aditado). E, se a gestante, «contra a vontade declarada do casal beneficiário» (itálico aditado), não concretizar a IVG nessas mesmas situações, fica obrigada a indemnizar os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo casal beneficiário em consequência do nascimento de uma criança naquelas condições (cf. a cláusula 10.ª).
Em suma, as referências às disposições sobre IVG contidas no referido artigo 8.º, n.º 10, da LPMA não permitem assegurar que em todas as circunstâncias que, de acordo com a lei vigente, excluem a ilicitude da IVG realizada por escolha da mulher grávida (deixando de lado, por não relevante in casu, a situação prevista na alínea d) do artigo 142.º, n.º 1, do Código Penal - gravidez resultante de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual), a gestante também o possa fazer, sozinha e sem penalizações, num estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido. Deste modo, a limitação à revogabilidade do seu consentimento estatuída no artigo 14.º, n.º 4, da mesma Lei, aplicável por força das remissões constantes dos seus artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5, abre espaço para uma intervenção condicionadora dos beneficiários neste domínio. A anterior análise de algumas cláusulas do contrato-tipo comprova isso mesmo.
Mais importante ainda é verificar que todas as situações de facto antes consideradas em que a IVG não é punível - opção da mulher grávida até às 10 semanas, perigo de vida ou perigo para a saúde física ou psíquica da mulher grávida ou risco grave de que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita - representam circunstâncias atendíveis e justificativas de uma mudança de ideias da gestante de substituição quanto à sua gravidez, designadamente no sentido de não querer levá-la até ao fim. No quadro da gestação de substituição, dir-se-á que a opção de realizar uma IVG, nos casos e nos termos em que a lei geral a admite, corresponde a uma garantia essencial da efetividade do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante. Mas essa opção, devido à impossibilidade de revogação do consentimento, não se encontra salvaguardada em toda a sua amplitude (desde logo, por exemplo, no que se refere à exclusão de penalizações - cf., no sentido da responsabilização da gestante em caso de abortamento voluntário, Vera Lúcia Raposo, "Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação..." cit., pp. 33-34).
46 - Ora, tal limite à revogação do consentimento, não se revelando inadequado nem desnecessário à proteção do projeto parental dos beneficiários e dos seus interesses e expectativas, apresenta-se, todavia, excessivo, pelo sacrifício que impõe a um direito fundamental da gestante de substituição.
Recorde-se que é esta quem, no exercício da sua autonomia pessoal, aceita participar no projeto parental dos beneficiários, viabilizando-o (cf. supra os n.os 24 e 28). Estes últimos apenas gozam da faculdade legal (cf. supra o n.º 27) de, por via da gestação de substituição, tentarem concretizar um projeto parental próprio, que, todavia, depende da disponibilidade de alguém que, por razões exclusivamente altruístas, se disponha a assumir obrigações pessoais que, não fora o reconhecimento desse altruísmo enquanto exteriorização livre da respetiva personalidade, representariam uma instrumentalização inadmissível da sua pessoa. Ou seja: o projeto parental em causa não assenta exclusivamente no desejo de parentalidade dos beneficiários; não menos essencial é a vontade da gestante de que os mesmos sejam pais da criança que esta vier a dar à luz. Os beneficiários e a gestante de substituição não podem, assim, deixar de estar cientes de que o caráter voluntário das obrigações características do contrato de gestação de substituição é essencial ao respetivo cumprimento.
Por força das características próprias da gravidez, enquanto fenómeno biológico, psicológico e potencialmente afetivo com caráter dinâmico e imprevisível quanto a diversas vicissitudes, não se pode ter como certo que a vontade inicialmente manifestada pela gestante seja totalmente esclarecida e insuscetível de sofrer modificações em virtude de desenvolvimentos não previstos ocorridos durante o próprio processo gestacional (cf. supra o n.º 43). Consequentemente, as obrigações contratualmente assumidas e consentidas a priori, podem a partir de um dado momento deixar de corresponder à vontade da gestante, de modo tal que o respetivo cumprimento deixe de traduzir uma afirmação da sua liberdade de ação e autodeterminação. O consentimento inicial deixa, assim, de ser atual, por razões atendíveis.
Nestas circunstâncias, forçar o cumprimento de tais obrigações - no caso ora considerado, condicionar de algum modo o abandono do projeto parental que deixou de ser partilhado pela gestante com o objetivo de que o mesmo seja levado até ao parto - implicaria instrumentalizar a gestante ao mesmo projeto parental, interferindo gravemente com a sua capacidade de autodeterminação e, em última análise, com a sua dignidade pessoal. O quadro em que a gestante, no exercício do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, consentiu na gestação de substituição mostra-se alterado em termos tais, que a prossecução da mesma gestação já não traduz uma manifestação de tal direito. Porém, e como referido, esse é o pressuposto fundamental da legitimidade da intervenção e participação da gestante de substituição: na ausência de vontade positiva atual, a sua participação degrada-se em instrumento ao serviço da vontade dos beneficiários. Daí a importância de acautelar a permanência de tal vontade ao longo de todo o processo, o que só é possível mediante a admissão da livre revogabilidade do consentimento da gestante até ao cumprimento integral de todas as obrigações essenciais do contrato de gestação de substituição.
Do lado dos beneficiários, a admissão de tal revogação implica subordinar o destino do projeto parental por eles concebido - e para o qual também contribuíram decisivamente fornecendo gâmetas essenciais à formação do embrião transferido para o útero da gestante - a uma disposição de vontade da gestante, frustrando, desse modo, expectativas legítimas quanto à possibilidade de ter uma família com filhos seus.
Mas, a verdade é que o projeto em causa depende desde o início da solidariedade ativa da gestante; nunca é autónomo. Com se referiu acima, o mesmo até é, em certo sentido, partilhado pelos beneficiários e pela gestante (cf. supra os n.os 8 e 24). Sendo certo, por outro lado, que tal partilha fundada na solidariedade ativa se mantém ao longo de todo o processo. De acordo com esta perspetiva - a única que permite legitimar o projeto parental dos beneficiários à luz do princípio da dignidade humana da gestante (cf. supra o n.º 28) -, a revogação do consentimento no caso de a mencionada solidariedade desaparecer não constitui um elemento estranho ao próprio projeto parental, sendo antes uma possibilidade ineliminável que o mesmo necessariamente integra.
Acresce que, num quadro como o descrito, o afastamento da gestante do projeto parental a que inicialmente aderira, designadamente a vontade de não levar a gestação até ao fim em qualquer uma das situações em que a lei geral não pune a IVG, é motivado por razões ponderosas e atendíveis, de resto assim consideradas por essa mesma lei, pelo que a gravidade da decisão da gestante não pode ser desvalorizada nem ignorada.
Confrontando o peso das expectativas dos beneficiários protegidas pela irrevogabilidade do consentimento da gestante, com o sacrifício, momentaneamente quase total, do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade desta última determinado por tal irrevogabilidade, sempre que estejam em causa as citadas situações, a desproporção é manifesta. Os inconvenientes e frustrações dos primeiros não justificam a instrumentalização da segunda em ordem a evitá-los. A verificar-se tal instrumentalização, seria violado o dito direito fundamental da gestante, interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. E, a única garantia de que tal não suceda, é, como referido anteriormente, salvaguardar a possibilidade de a gestante revogar o seu consentimento para além do início dos processos terapêuticos de PMA.
Deste modo, a limitação à revogabilidade do consentimento da gestante estabelecida em consequência das remissões dos artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5, da LPMA para o n.º 4 deste último, é inconstitucional por restringir desproporcionadamente o respetivo direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (artigos 1.º e 26.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, todos da Constituição).
47 - Estas considerações também são aplicáveis no caso da gestante de substituição se afastar do projeto parental dos beneficiários em virtude de querer levar a gravidez até ao fim e assumir um projeto parental próprio. Simplesmente, a existência de um concurso positivo de pretensões quanto à parentalidade da criança que vier a nascer ou já nascida torna as ponderações muito mais complexas, desde logo porque é necessário considerar também o interesse da criança. Com efeito, num tal quadro, a gravidez é levada até ao seu termo, e, uma vez nascida a criança, tanto os beneficiários, como a gestante pretendem assumir responsabilidades parentais quanto à mesma.
Uma tal hipótese não é admitida pela lei não só por causa do limite à revogabilidade do consentimento da gestante consagrado no artigo 14.º, n.º 4, da LPMA e já analisado, como também devido à regra especial de estabelecimento da filiação consagrada no artigo 8.º, n.º 7, da mesma Lei, no pressuposto da existência de um contrato de gestação de substituição válido e eficaz: a «criança que nascer através do recurso à gestação de substituição é tida como filha dos respetivos beneficiários».
Tal como anteriormente analisado, estas regras não são inadequadas nem desnecessárias à salvaguarda da posição dos beneficiários. Contudo, as mesmas não têm em atenção que durante a gravidez e até ao parto a única relação que existe com a criança que vai nascer é aquela que se estabelece entre a gestante e o nascituro, com relevância nos planos biológico e epigenético, bem como nos planos afetivo e emocional: a mulher grávida altera a expressão genética de cada embrião e, inversamente, o embrião-feto altera a grávida para sempre; e é durante a gestação que se estabelece uma vinculação afetiva entre o nascituro e a grávida (cf. supra o n.º 43). As regras em apreço também desconsideram que, a partir do nascimento, o interesse da criança deve ser o principal critério de todas as decisões que sejam tomadas em relação ao destino da mesma (cf. o artigo 3.º, n.º 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança e supra o n.º 33).
Para a análise da validade daquelas normas, não é decisivo se a pretensão concorrente da gestante se manifesta antes ou depois do parto. O momento crítico é o do cumprimento da última obrigação essencial do contrato, ou seja, o da entrega da criança aos beneficiários. Com efeito, além de ser nessa altura que a gestante executa a parte que faltava do contrato de gestação de substituição que lhe corresponde, tal ato, sendo praticado voluntariamente, é comparável ao consentimento para adoção (cf. o 1981.º, n.º 1, do Código Civil). Por conseguinte, o que releva é a revogação pela gestante do seu consentimento inicial antes de entregar voluntariamente a criança que deu à luz ao casal beneficiário. Depois desse momento, estabelece-se uma nova relação entre estes últimos e o recém-nascido, deixando a gestante de ter argumentos que justifiquem voltar atrás (analogamente, quanto à adoção, v. o artigo 1983.º, n.º 1, do Código Civil).
Por outro lado, a solução a dar ao problema do concurso de projetos parentais também não é influenciada pela circunstância de ambos os beneficiários serem progenitores genéticos da criança, em virtude de o embrião ter sido formado com gâmetas de ambos, ou só de um deles. Está em causa uma escolha apenas entre o projeto parental dos beneficiários ou o projeto parental assumido pela gestante.
Cumpre analisar separadamente as posições da gestante e da criança nascida.
Quanto à gestante, valem as considerações feitas supra no n.º 46, a propósito da ponderação do seu direito ao desenvolvimento da personalidade com o interesse dos beneficiários na defesa do respetivo projeto parental. Só que no caso ora considerado, as razões do afastamento de tal projeto por parte da gestante já não visam somente a proteção de bens pessoais dela (eventualmente, conjugados com a sua perceção sobre o que poderia ser o bem ou mal da criança que viesse a dar à luz) - como sucedia em relação à opção até às 10 semanas, ao perigo de vida ou perigo para a sua saúde física ou psíquica ou risco grave de que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita -, mas também a continuação de uma relação com a criança nascida no quadro de um projeto parental que concorre com aquele em função do qual os beneficiários, num momento inicial, contribuíram com o seu material genético para que tal relação se pudesse estabelecer.
Decerto que, do lado da gestante, pesam os citados argumentos decorrentes do seu direito ao desenvolvimento da personalidade e das exigências de atualidade do consentimento, por forma a assegurar que o cumprimento das obrigações essenciais do contrato de gestação de substituição traduza uma afirmação da sua liberdade de ação e autodeterminação. Na hipótese ora considerada, a sua posição até se reforça em virtude de, com base num projeto parental próprio para a criança que se desenvolveu no seu ventre e que por si foi dada à luz, pretender exercer também o seu direito de constituir família, ainda que com uma criança relativamente à qual não pode ser considerada progenitora genética. Pese embora esta nova pretensão, também é menos evidente que as suas razões devam prevalecer sempre sobre as dos beneficiários. Afinal, o que está em causa para estes também é a afirmação de um projeto parental próprio que viabilize uma família com um filho geneticamente seu, ao menos em parte.
Contudo, as soluções normativas em análise impõem a consequência contrária: a prevalência absoluta das razões dos beneficiários, não deixando qualquer espaço para ponderar, em cada caso, também aquelas que legitimamente a gestante pudesse invocar. A consequência dessa desconsideração total é o risco de instrumentalização da gestante, nos termos já referidos, incompatível com o respeito do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, sempre que, em função das vicissitudes ocorridas durante a gravidez ou o parto e do próprio comportamento dos beneficiários, não fosse de excluir que a separação da criança da gestante representasse para esta um sacrifício maior do que aquele que representaria para os beneficiários a não entrega da criança.
Acresce a necessidade de considerar a criança entretanto nascida e cuja entrega está em causa, uma vez que é o seu interesse que deve presidir à solução do conflito entre os dois projetos parentais. É certo que, de acordo com as regras ora em análise, tal conflito nem deveria poder ocorrer. Mas, dado que se impõe a consideração da posição da gestante, tendo em conta as exigências do seu direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade e a relevância constitutiva da relação intrauterina, a importância da criança não pode ser obnubilada: a mesma não pode ser tratada como simples objeto numa disputa entre terceiros. A partir do momento em que o conflito entre o projeto parental dos beneficiários e o projeto parental da gestante não pode deixar de relevar juridicamente, atentos os interesses fundamentais da gestante, o critério principal para a respetiva solução tem de ser o superior interesse da criança. E tal só é possível no quadro de uma avaliação casuística, pois de outro modo negar-se-ia a condição de sujeito de direitos da criança, em violação da sua dignidade e o Estado violaria o seu dever de proteção da infância (artigos 1.º, 67.º, n.º 2, alínea e), e 69.º, n.º 1, todos da Constituição; cf. também supra o n.º 35).
Em suma, a limitação à revogabilidade do consentimento da gestante estabelecida em consequência das remissões dos artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5, da LPMA para o n.º 4 deste último, é inconstitucional por restringir excessivamente o direito da gestante ao desenvolvimento da personalidade, interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, e o seu direito de constituir família (artigos 1.º e 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, todos da Constituição), estendendo-se tal juízo consequencialmente, e pelas mesmas razões, à norma do n.º 7 do artigo 8.º daquela Lei, segundo a qual a criança que nascer através do recurso à gestação de substituição é sempre tida como filha dos respetivos beneficiários. Na verdade, esta última norma, ao estabelecer um critério especial de filiação da criança nascida através do recurso à gestação de substituição no pressuposto de que a gestante prestou o seu consentimento livre e esclarecido a tal modo de procriação, não ressalva a possibilidade de revogação desse mesmo consentimento - revogação essa que, por sua vez, implica a aplicabilidade do critério geral de filiação previsto no Código Civil - que, conforme referido, constitui uma condição necessária da salvaguarda do direito ao desenvolvimento da gestante ao longo de todo o processo de gestação de substituição».
C. Questão de constitucionalidade
9 - O pedido formulado pelo requerente tem por objeto o artigo 2.º do Decreto, que procede à alteração à Lei 32/2006, de 26 de julho, alterada pelas Leis 59/2007, de 4 de setembro, 17/2016, de 20 de junho, 25/2016, de 22 de agosto, 58/2017, de 25 de julho, 49/2018, de 14 de agosto e 48/2019, de 8 de julho, na parte em que: (i) reintroduz o n.º 8 do artigo 8.º da mencionada Lei, fazendo-o transitar para o n.º 13 do mesmo artigo; e (ii) adita a alínea j) ao n.º 15 do referido artigo 8.º
De acordo com as alterações preconizadas no artigo 2.º do Decreto, os n.os 13 e 15 do artigo 8.º da Lei 32/2006, de 26 de julho, passarão a ter a seguinte redação:
«Artigo 8.º
[...]
13 - (Anterior n.º 8.)
[...]
15 - A celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição é feita através de contrato escrito, estabelecido entre as partes, supervisionado pelo CNPMA, onde consta, obrigatoriamente, entre outras, cláusulas tendo por objeto:
[...]
j) Os termos de revogação do consentimento ou do contrato em conformidade com a presente lei».
O artigo 14.º da Lei 32/2006, de 26 de julho, por seu turno, não sofrerá qualquer alteração.
Ora, ao reproduzir, sem qualquer alteração, o teor do n.º 8 do artigo 8.º da LPMA, relativo à «gestação de substituição», sem introduzir concomitantemente qualquer modificação nos n.os 4 e 5 do respetivo artigo 14.º, referentes ao regime do «consentimento», o artigo 2.º do Decreto propõe-se reintroduzir na ordem jurídica o modelo decorrente das alterações levadas a cabo pela Lei 25/2016, de 22 de agosto, na parte em que limitava a possibilidade de revogação do consentimento prestado pela gestante ao início dos processos terapêuticos de procriação medicamente assistida.
Apesar de consubstanciar uma nova manifestação do poder legislativo no âmbito da definição do regime jurídico da gestação de substituição, o Decreto 383/XIII propõe-se retomar, assim, quanto à possibilidade de revogação do consentimento da gestante de substituição, a mesma exata solução que foi objeto de apreciação no Acórdão 225/2018. Isto é, «a limitação à revogabilidade do consentimento da gestante estabelecida em consequência das remissões dos artigos 8.º, n.º 8 [n.º 13, na renumeração operada pelo artigo 2.º do Decreto], e 14.º, n.º 5, da LPMA, para o n.º 4 deste último», que o Tribunal considerou ser inconstitucional «por restringir excessivamente o direito da gestante ao desenvolvimento da personalidade, interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, e o seu direito de constituir família (artigos 1.º e 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, todos da Constituição)».
A norma constante da alínea j) do n.º 15 do artigo 8.º da LPMA, aditado pelo artigo 2.º do Decreto, constitui uma mera decorrência dessa opção legislativa.
De acordo com a previsão da referida alínea, o clausulado que obrigatoriamente integrará o contrato escrito através do qual são celebrados os negócios jurídicos de gestação de substituição deverá contemplar «os termos da revogação do consentimento ou do contrato, em conformidade com a [referida] lei» - isto é, observando o limite à revogabilidade do consentimento da gestante que resulta das remissões dos artigos 8.º, n.º 8 [n.º 13, na renumeração operada pelo artigo 2.º do Decreto], e 14.º, n.º 5, da LPMA, para o n.º 4 deste último. Relativamente ao regime previsto para a revogação do consentimento da gestante, a norma constante da alínea j) do n.º 15, aditado pelo artigo 2.º do Decreto ao artigo 8.º da LPMA não dispõe, assim, de um qualquer conteúdo específico que justifique a sua consideração autónoma. Trata-se, na verdade, de uma norma puramente remissiva, cuja inconstitucionalidade, a ocorrer, será por isso, meramente consequencial.
Em síntese: ao retomar, no proposto n.º 13 do artigo 8.º da LPMA, a proibição de revogação do consentimento da gestante após o início dos processos terapêuticos de procriação medicamente assistida, o legislador optou por não consagrar a «única garantia» que o Tribunal Constitucional considerou apta a assegurar que «a gestante não seja instrumentalizada» no âmbito do processo de gestação de substituição - justamente a salvaguarda da «possibilidade de a gestante revogar o seu consentimento para além do início dos processos terapêuticos de PMA», sem a qual ocorreria a violação do seu «direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade», «interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana» (Acórdão 225/2018, ponto 46).
10 - Apesar de inexistir qualquer tipo de impedimento, processual ou de outra ordem, à possibilidade de reversão do sentido do julgamento levado a cabo no Acórdão 225/2018, o certo é que não se verificam quaisquer circunstâncias, objetiva ou subjetivamente supervenientes, que justifiquem a reabertura da discussão para que remetem as alterações ao regime da gestação de substituição a que se propõe a manifestação do exercício do poder legislativo consubstanciada no Decreto.
Com efeito, nos dezoito meses que mediaram entre a anterior pronúncia do Tribunal e o momento presente, não sobrevieram quaisquer novos dados, designadamente de natureza técnica, científica, sociológica, ou até mesmo jurídico-política, que confiram cabimento, designadamente em face dos imperativos de segurança jurídica e do critério de validade do direito neles implicado, a uma revisão do juízo formulado no Acórdão 225/2018, proferido em processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade.
Assim, o Tribunal deverá pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas que integram o objeto do pedido que deu origem aos presentes autos.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, ao abrigo do artigo 278.º da Constituição da República, o Tribunal Constitucional pronuncia-se pela inconstitucionalidade, por violação do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e do direito de constituir família, em consequência de uma restrição excessiva dos mesmos, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com os artigos 1.º e 26.º, n.º 1, por um lado, e com o artigo 36.º, n.º 1, por outro, todos da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 2.º do Decreto 383/XIII da Assembleia da República:
a) na parte em que reintroduz o n.º 8 do artigo 8.º da Lei 32/2006, de 26 de julho, alterada pelas Leis 59/2007, de 4 de setembro, 17/2016, de 20 de junho, 25/2016, de 22 de agosto, 58/2017, de 25 de julho, 49/2018, de 14 de agosto e 48/2019, de 8 de julho, fazendo-o transitar para o n.º 13 daquele mesmo artigo, de acordo com a renumeração simultaneamente efetuada; e, em consequência,
b) na parte em que, através do aditamento do n.º 15.º, alínea j), ao artigo 8.º da citada Lei, prevê que os termos da revogação do consentimento prestado pela gestante tenham lugar em conformidade com a norma mencionada em a).
Lisboa, 18 de setembro de 2019. - Joana Fernandes Costa (com declaração) - Lino Rodrigues Ribeiro (com declaração anexa) - Pedro Machete - José Teles Pereira - Maria de Fátima Mata-Mouros (com declaração) - Gonçalo Almeida Ribeiro (com declaração) - João Pedro Caupers - Maria José Rangel de Mesquita - Fernando Vaz Ventura (com declaração) - Mariana Canotilho (com declaração) - Claudio Monteiro (vencido, conforme declaração de voto junta) - Manuel da Costa Andrade.
Declaração de voto
Subscrevemos a pronúncia de inconstitucionalidade das normas que integram o objeto do processo, apesar de no Acórdão 225/2018 termos votado contra a declaração de inconstitucionalidade das normas homólogas então consagradas na Lei da Procriação Medicamente Assistida.
Fazemo-lo por respeito para com um princípio de estabilidade jurisprudencial.
Uma jurisdição constitucional responsável cultiva aquela estabilidade sem a qual o seu acervo decisório não consubstancia uma verdadeira jurisprudência. Não quer isto dizer que as inversões jurisprudenciais sejam ilegítimas, muito menos que o Tribunal Constitucional se encontra absolutamente vinculado aos juízos que proferiu no passado. Na verdade, mesmo nos sistemas jurídicos que acolhem o instituto do precedente - e em que, por isso mesmo, a estabilidade jurisprudencial obedece a um regime específico e tem uma força acrescida -, não é invulgar os tribunais superiores alterarem jurisprudência que reputam obsoleta ou injusta. A autorrevisibilidade dos juízos é uma faculdade fundada na renovação periódica da composição do órgão e no seu dever fundamental de administrar a justiça.
Porém, o ponto de referência da evolução jurisprudencial é o acervo decisório da própria instituição, sede da autoridade e autora das decisões. São por isso fortemente censuráveis as alterações de jurisprudência ditadas exclusivamente pelas contingências da opinião e da composição do colégio, sem que tenham surgido dados ou argumentos que não tenham sido ponderados nas decisões anteriores e sem que estas constituam, no entendimento expressamente fundamentado de cada juiz chamado a pronunciar-se, erros tão graves que o dever de promover a sua correção prevaleça sobre os imperativos de segurança jurídica, integridade institucional e igualdade de tratamento que reclamam o respeito pelo acquis jurisprudencial. Ora, apesar de termos dissentido do juízo que fez vencimento no Acórdão 225/2018, parece-nos impensável uma inflexão de jurisprudência num tão curto intervalo de tempo e numa matéria tão delicada e controversa, ainda para mais quando se trata de um processo de fiscalização preventiva, sujeito a um prazo apertado de decisão e em que a pronúncia do Tribunal não tem a força jurídica de uma declaração com força obrigatória geral.
Consideramo-nos, assim, tudo visto e ponderado, vinculados ao entendimento expresso naquele aresto sobre o alcance dos parâmetros constitucionais em que se baseia a presente pronúncia de inconstitucionalidade. Daí o sentido favorável do nosso voto. - Gonçalo de Almeida Ribeiro - Fernando Vaz Ventura - Joana Fernandes Costa - Lino Rodrigues Ribeiro.
Declaração de voto
1 - Votei favoravelmente a pronúncia pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2.º do Decreto 383/XIII da Assembleia da República, nas partes identificadas no pedido, mas afasto-me da fundamentação que conduziu à pronúncia pela inconstitucionalidade da norma em análise.
Efetivamente, voto favoravelmente a decisão por manter e reafirmar a posição expressa na minha declaração de voto ao Acórdão 225/2018. Não foi, portanto, apenas por «imperativos de segurança jurídica e do critério de validade do direito neles implicado» (ponto 10 do Acórdão), que acompanhei a decisão de inconstitucionalidade, antes por haver renovado, relativamente à nova norma, a conclusão de inconstitucionalidade a que anteriormente cheguei no que respeita a norma idêntica.
2 - O que me separa do caminho adotado pelo Tribunal não é uma divergência menor. Antes expressa uma diferente posição relativamente a um problema fundamentalmente constitucional: a relação entre o Tribunal Constitucional e o poder político.
Ao recusar entrar na «discussão para que remetem as alterações ao regime da gestação de substituição a que se propõe a manifestação do exercício do poder legislativo» por não se verificarem «quaisquer circunstâncias, objetiva ou subjetivamente supervenientes que justifiquem a [sua] reabertura» (ponto 10), o Acórdão parece sustentar-se de forma determinante na autovinculação do Tribunal Constitucional às decisões que produz com força obrigatória geral. Esta autovinculação suscita-me fortes reservas.
Desde logo, porque não nos devemos deixar fascinar pelo princípio do precedente anglo-saxónico (o "stare decisis" da "common law"), que não pertence à tradição constitucional nacional, importando-o acriticamente para a ordem constitucional da República Portuguesa. Receio que a presente decisão seja interpretada como representando um primeiro passo nesse sentido, do qual discordo.
Um dos papéis centrais de uma jurisdição constitucional é servir como fórum para questionar e debater as questões centrais para a sociedade. Uma solução como a adotada leva a uma cristalização da decisão anteriormente tomada, não permitindo uma renovação do debate e esbatendo a distinção entre quem ficou vencido e quem saiu vencedor da votação dessa decisão, sem convencer os vencidos da bondade da posição maioritária, o que empobrece intoleravelmente o debate constitucional.
Para além disso, ao erigir a certeza e a segurança jurídicas como o fundamento determinante da sua pronúncia, esta decisão atribui ao Tribunal Constitucional um predomínio sobre o legislador que a Constituição não lhe reconhece. A circunstância de no caso serem apenas «dezoito meses que mediaram entre a anterior pronúncia do Tribunal e o momento presente» (ponto 10 do Acórdão), não justifica a recusa de reabertura da discussão. Não cabe ao Tribunal Constitucional definir o prazo para a Assembleia da República voltar a legislar sobre a mesma matéria.
3 - Inegável é que, apesar da minha discordância com estes elementos da fundamentação adotada, subsiste sempre a interdição de aprovação de normas inconstitucionais. Assim, a inconstitucionalidade da nova norma não resulta diretamente do facto de constituir uma reedição de uma norma já julgada inconstitucional, antes da persistência da sua desconformidade com a Constituição.
Esta é a consequência que compreensivelmente se anuncia para o legislador que não presta a devida atenção às decisões do Tribunal. - Maria de Fátima Mata-Mouros.
Declaração de voto
Votei favoravelmente a decisão. Não tendo integrado a composição do Tribunal que proferiu o Acórdão 225/2018, este é, para mim, um juízo de ponderação inteiramente novo. Como é natural, o sentido da jurisprudência constitucional anterior, em particular de uma decisão tão recente, não pode deixar de ser tomado em consideração, enquanto elemento valorativo, atenta a necessidade de estabilidade da jurisprudência dos tribunais superiores, por razões de segurança jurídica e igualdade de tratamento dos seus destinatários.
Todavia, em qualquer caso, sempre relevariam, acima de tudo, e no meu entender, os fundamentos jurídico-constitucionais que sustentam quer o juízo de inconstitucionalidade do Acórdão 225/2018, quer a presente decisão. A solução legislativa ora reiterada, ao não admitir a revogação do consentimento da gestante de substituição até à entrega da criança aos beneficiários, configura uma lesão inadmissível dos seus direitos fundamentais ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e a constituir família, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com os artigos 1.º e 26.º, n.º 1, por um lado, e com o artigo 36.º, n.º 1 da Constituição.
A gestação de substituição, tal como foi concebida pelo legislador, funda-se num dom: na doação, voluntária e generosa, por parte da gestante, do seu corpo e de um período significativo de vida, com todos os incómodos e riscos inerentes à vivência de uma gravidez, sem que nada lhe seja dado em troca, além da satisfação de contribuir para a realização do projeto de parentalidade de outrem. Nestes termos, e não se ignorando a necessidade de tutela jurídica dos interesses dos beneficiários, entendo que no centro da solução jurídico-constitucional terão de estar, necessariamente, a dignidade da mulher gestante, a proteção da gravidez e o interesse do nascituro.
A questão do consentimento, nos termos em que agora se coloca, tem tido escassa relevância prática, como demonstram os trabalhos de direito comparado. Contudo, a sua solução, além de ter inegável importância autónoma, é também ponto de partida para a indispensável concordância prática entre direitos e valores em conflito que se colocarão, no futuro, em situações intermédias, e que exigirão soluções novas e ponderadas, quer do legislador, quer dos tribunais.
Assim, a dignidade aqui jusconstitucionalmente tutelada não deve ser uma dignidade entendida de forma abstrata, essencialística, que transforme a gestante em seu objeto. Deve, sim, ser compreendida como a dignidade concreta de cada mulher gestante, refletida nas suas vivências de liberdade e autodeterminação. A mulher só pode ser sujeito - e o sujeito central - da gestação de substituição.
Por isso, e ainda que a gestação de substituição tenha, inelutavelmente, de ser uma vivência partilhada entre gestante e beneficiários, um percurso interpessoal, mais do que a execução de um contrato jurídico ou a aplicação de uma técnica médica, parece-me inaceitável, do ponto de vista constitucional, uma solução que não reconheça a total liberdade e autonomia da gestante durante todo o processo. O seu consentimento - para ser, a todo o tempo, livre, - não pode deixar de ser um consentimento permanentemente renovado, em cada momento, dando-lhe direito "ao arrependimento", ou seja, à revogação do consentimento até à entrega da criança aos beneficiários. - Mariana Canotilho.
Declaração de voto
Votei vencido por não encontrar razões suficientemente fortes para mudar a posição que assumi na discussão e votação do Acórdão 225/2018, em que o Tribunal apreciou a mesma questão de direito. Reconheço que o facto de o Tribunal ter fixado recentemente uma orientação jurisprudencial sobre essa questão não pode deixar de ser ponderado na decisão do presente processo, mas aquele facto é apenas um dos elementos de ponderação a ter em conta, e não lhe atribuo o mesmo peso que lhe é atribuído no presente acórdão.
Não houve, realmente, uma alteração relevante das circunstâncias de facto e de direito em que a decisão anterior foi tomada, nem se verificaram alterações supervenientes à composição do Tribunal que sejam, por si só, suficientes para alterar o sentido da decisão então tomada. Mas ao contrário do que se possa pressupor, a perspetiva de que aquelas alterações têm um efeito marginal negligenciável na formação da vontade do colégio abre inevitavelmente maior espaço para que os juízes individualmente possam manter as posições anteriormente assumidas, sem com isso por em causa o respeito por um mínimo de estabilidade, e previsibilidade, que as decisões do Tribunal inquestionavelmente devem ter.
Dito por outras palavras, não sendo previsível que a decisão venha a ser diferente, não encontro razões fortes para me sentir "vinculado" a manifestar uma posição contrária às minhas convicções, até porque a estabilidade e a previsibilidade também são valores que se afirmam na pluralidade da composição do Tribunal. Mais do que às decisões anteriores do Colégio, que não tem um valor imutável, estou vinculado à Constituição e à interpretação que dela faço.
Deste modo, e com os fundamentos constantes da declaração de voto que subscrevi no Acórdão 225/20018, entendo que o Tribunal não se deveria ter pronunciado pela inconstitucionalidade das normas do decreto sub judice, que não permitem a revogação do consentimento da gestante de substituição após o início dos processos terapêuticos de Procriação Médica Assistida. - Claudio Monteiro.
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