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Recomendação 2/2019, de 17 de Julho

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Sumário

Recomendação para uma política de Educação e Formação de Adultos

Texto do documento

Recomendação 2/2019

Sumário: Recomendação para uma política de Educação e Formação de Adultos.

Recomendação para uma política pública de Educação e Formação de Adultos

Preâmbulo

No uso das competências que por lei lhe são conferidas, e nos termos regimentais, após apreciação do projeto de Recomendação elaborado pelos Conselheiros Rui Canário, Cristina Vieira e Luís Capucha o Conselho Nacional de Educação, em reunião plenária de 4 de junho, deliberou aprovar o referido projeto, emitindo a presente Recomendação que é complementada pelo Relatório Técnico disponível em www.cnedu.pt

Aprender sempre

Aprender sempre é um imperativo das sociedades contemporâneas. O caráter inacabado do ser humano obriga-o a aprender, num processo permanente que engloba todo o ciclo de vida e está presente em todos os momentos e lugares da experiência humana. Está em causa aprender ao longo e ao largo da vida num processo educativo de construção da autonomia que deveria ser função de toda a sociedade e que é transversal a todas as dimensões do social. É esta visão ampla da educação que permite equacionar os problemas inerentes ao campo extremamente diverso que é hoje a Educação e Formação de Adultos (EFA). Numa perspetiva de valorização da aprendizagem, reconhecendo que muito do que se aprende não é intencionalmente ensinado, o que é verdadeiramente importante é multiplicar as oportunidades de aprendizagem, tendo em conta a diversidade de domínios e a pluralidade de contextos, práticas e metodologias que fazem parte do património da EFA. Uma tal finalidade implica articular de forma virtuosa as modalidades de educação formal, não formal e informal, articular as iniciativas do Estado, das empresas e da sociedade civil, visar a totalidade da população adulta, conferindo uma particular atenção e prioridade aos menos qualificados que são também, geralmente, os mais desfavorecidos socialmente.

Estamos perante um desígnio de natureza civilizacional que pretende instituir-se como um pilar central de construção do futuro, em resposta aos grandes problemas com que se confronta hoje a humanidade: mutações do mundo do trabalho e da economia, revolução digital, desigualdade social, económica, de género, étnica e linguística, evolução demográfica e fluxos migratórios, sustentabilidade do planeta, afirmação de uma cultura de diálogo e paz, com base no respeito pelos direitos humanos e no reforço da democracia. O conhecimento desempenha um papel central na configuração de todos estes problemas e também na luta para os combater. Nesta perspetiva, a EFA afirma-se como o instrumento de excelência capaz de dotar as pessoas de competências para o exercício de uma atitude cidadã, informada e responsável face a todos eles. A EFA afirma-se, assim, no mundo atual como uma prioridade educativa que exige ser traduzida em políticas públicas, coerentes e sistemáticas que englobem numa mesma visão humanista a educação e a formação de quem exerce a sua cidadania numa sociedade plural onde somos todos responsáveis pelo bem comum.

Em Portugal tem faltado, como tem sido assinalado em várias tomadas de posição do CNE (desde o último quartel do século XX), bem como em trabalhos científicos de autores de referência (Alves e outros 2016; Lima, 2005, Melo, Lima e Almeida, 2002), uma política pública de EFA global, continuada e sistemática. O setor da EFA, em Portugal, tem sido historicamente marcado por uma marginalidade que acompanha medidas políticas parciais, fragmentadas, descontinuadas e com insuficiente massa crítica. A situação pode, contudo, ser superada com o recurso a um riquíssimo património de experiências e de sabedoria acumulada ao longo do nosso regime democrático, como aliás comprova um curto período da nossa história recente, entre 2000 e 2011, em que foi dotada de objetivos, meios e visibilidade que lhe permitiu ganhar uma escala que se aproxima da dimensão do problema (Capucha, 2013). Contribuir para dar resposta a esta omissão, em termos de política pública de EFA, representa o principal objetivo e a principal preocupação subjacentes a esta Recomendação.

Recentemente, a partir de 2016, o lançamento do Programa Qualifica constituiu um sinal de esperança na retoma de um investimento público na EFA que conheceu, desde 2011, um notório desinvestimento, bem documentado em termos estatísticos, traduzido numa acentuada queda do número de pessoas adultas inscritas em ofertas públicas de EFA. O reconhecimento da natureza positiva do Programa Qualifica não obsta a que se considere que é necessário reforçá-lo e ir mais além, alargando e diversificando as ofertas, chegando a todos os públicos, sobretudo os mais pobres, tanto nas regiões mais urbanas e densas do litoral, como nas mais deprimidas do interior.

O ponto de partida para a elaboração da presente Recomendação foi a organização e realização, pelo CNE, de um importante colóquio, realizado em setembro de 2018, sobre a situação da EFA em Portugal, subordinado ao lema de "não deixar ninguém para trás". O conjunto de intervenções e os debates realizados nesse colóquio representam uma massa de informação preciosa que é uma das bases de fundamentação do presente documento. Em segundo lugar, a realização no CNE, em dezembro de 2018 e janeiro de 2019, de uma importante série de audições a entidades e individualidades relevantes no campo da EFA, em Portugal, permitiu um conhecimento próximo dos problemas e expectativas que atravessam este campo de práticas sociais. Finalmente, apoiamo-nos ainda no Relatório Técnico sobre Educação e Formação de Adultos elaborado pelos serviços de assessoria do CNE, com a finalidade expressa de dar suporte à elaboração do presente documento.

EFA: uma "chave para o século XXI"

O final do milénio representou um período muito rico, em termos da importância decisiva da EFA e do seu enquadramento numa política global de educação ao longo de toda a vida (CNE Parecer 3/2001). Assim, 1996 foi proclamado "Ano Europeu da Educação e Formação ao Longo da Vida" para o qual foi preparado um "Livro Branco" pela Comissão Europeia. Por outro lado, no quadro da designada "Estratégia de Lisboa", foi elaborado um memorando sobre "Aprendizagem ao Longo da Vida" que deu origem ao Parecer do CNE, supracitado. Nesta fase de transição do milénio houve um debate generalizado em Portugal, no qual o CNE desempenhou um papel de referência, emergindo a política de EFA como objetivo central no processo de construção do projeto de integração europeia. O evento mais marcante deste período terá sido a realização, em Hamburgo, em 1997, de uma Conferência Internacional sobre EFA (UNESCO, 1997) que propôs como agenda fazer da Educação de Adultos uma chave para o futuro que, mais que um direito, se afirma como a consequência de uma cidadania ativa e de uma participação plena na vida da sociedade.

Portugal participou nesta importante realização internacional e essa participação foi rica de consequências para decisões políticas que, em Portugal, marcaram positivamente, a EFA durante a primeira década do século XXI. Referimo-nos à criação da ANEFA (Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos) que, embora efémera, veio a concretizar duas inovações muito importantes e que perduraram: O Processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, bem como os Cursos EFA. Nessa mesma década estas inovações ganhariam uma larga escala, graças à criação de uma rede fina de Centros Novas Oportunidades que concretizou, segundo o ponto de vista do CNE (Estado da Educação, 2011), reiterado em 2012 (Estado da Educação) e no Parecer do CNE 2/2013, uma "evolução muito positiva", com uma adesão "muito significativa" e com "resultados expressivos". A dimensão e a escala de massa do Programa Novas Oportunidades estão bem documentadas em Capucha (2013). O lançamento, em 2016, da rede de Centros Qualifica (Portaria 232/2016 de 29 de agosto) representa uma tentativa para o retomar da continuidade do Programa Novas Oportunidades, interrompida durante a legislatura de 2011-2015, em que Portugal esteve sujeito a um programa de ajustamento económico pelos credores externos. Assinale-se que, apesar de uma melhoria clara, depois de 2016 ainda não foram atingidos os níveis de inscrição das pessoas adultas em ofertas formativas e da respetiva certificação alcançados entre 2007 e 2010, ou seja, mais de um milhão de inscritos nos CNO (Centros Novas Oportunidades), dos quais 340.370 foram certificados, quer no nível básico, quer no nível secundário de educação (CNE, Estado da Educação, 2011).

Hoje, a argumentação em favor da necessidade de uma política educativa global que abranja o conjunto da população adulta mantém ou viu crescer o grau de importância que assumia no início do milénio. Convergem argumentos de natureza económica (OCDE, 2018), com argumentos de natureza demográfica, ambiental, social, de defesa da democracia e dos direitos humanos. É neste sentido que a UNESCO (2015), numa recente recomendação sobre aprendizagem e educação de adultos, incita os Estados-Membros a que desenvolvam políticas públicas de educação de adultos abrangentes, inclusivas e integradas. Estas são "ferramentas cruciais", quer para "promover o crescimento económico sustentável e inclusivo", quer para "reduzir a pobreza, melhorar a saúde e o bem-estar, contribuir para sociedades de aprendizagem sustentáveis" (UNESCO, 2015, 8).

A problemática da EFA equaciona-se nos tempos atuais em torno do conceito de "literacia" que define um "continuum" de capacidades necessárias para enfrentar os problemas do mundo contemporâneo. As competências solicitam um permanente investimento, por um lado pela erosão a que são sujeitas e, por outro lado, pelo facto de as metas em termos de saberes e aptidões se colocarem em níveis de complexidade crescente que remetem para patamares sempre mais exigentes. O horizonte recua à medida que vamos cumprindo metas mais imediatas. Acresce que a crescente qualificação escolar das gerações mais jovens contribui para produzir uma desqualificação relativa da população adulta. Esta "agenda das competências" não diz respeito, portanto e apenas, nem aos menos qualificados, nem à designada "população ativa", envolvendo todo o conjunto da população adulta, nomeadamente, entre outros, dos jovens adultos que não estudam, nem trabalham ("nem-nem")

O "défice" de literacia e de competências também não é um exclusivo de Portugal, mas sim um problema candente ao nível europeu. Segundo a União Europeia (CE, 2016), 70 milhões de cidadãos europeus carecem de competências adequadas de leitura e escrita e mais de metade dos 12 milhões de desempregados de longa duração tem um baixo nível de competências. Está em curso na União Europeia uma ação orientada para elevar o nível de competências dos cidadãos, em que Portugal está empenhado e que diz respeito a um leque alargado de competências-chave, requeridas pelo mundo atual. Os problemas de baixo nível de literacia situam-se, em Portugal, quer ao nível da população assalariada, quer ao nível da população empregadora, e dizem igualmente respeito a setores academicamente bem qualificados. O Relatório Anual referente à formação contínua, em 2017, convida a que seja melhorada a oferta de formação de empregadores nos setores das pequenas, médias e micro empresas. Por outro lado, as dinâmicas rápidas de mudança científica e tenológica conduzem à necessidade de planear um sistema de educação e formação que dê resposta à rápida obsolescência do que se aprendeu. Por este conjunto de razões, a presente Recomendação converge positivamente com o Programa do atual Governo (2015-2019) no qual se reconhece:

O défice estrutural de qualificações escolares (cerca de dois terços dos adultos entre 25-64 anos não completaram o ensino secundário e é curta a percentagem de adultos com qualificação ao nível do ensino superior);

A desadequação entre as competências profissionais da população ativa face às mudanças ocorridas e em curso à escala global no tecido produtivo;

A inexistência de uma intervenção, em escala e profundidade na EFA, como aquela que se necessita no País para enfrentar a situação real;

O Programa do atual Governo conclui que os problemas de EFA representam "um dos mais graves défices que prejudica o País e os portugueses" sendo "crucial" "criar um Programa de EFA que consolide um sistema de aprendizagem ao longo da vida e a sua ação estratégica para a próxima década (p. 113).

EFA em Portugal: "não deixar ninguém para trás"

Portugal apresenta, do ponto de vista das qualificações e saberes da população adulta, uma fragilidade estrutural relacionada com a tardia escolarização de massas e que se traduz num baixo nível de qualificações, aliado a uma fraca valorização da aprendizagem na idade adulta, sobretudo em relação a quem é menos escolarizado. Uma dimensão extremamente importante da fragilidade estrutural aqui referida está relacionada com a anacrónica existência, hoje, em Portugal, de cerca de meio milhão de analfabetos, sobre representados nas regiões marcadas pela "interioridade". A esta fragilidade associa-se uma outra, traduzida em históricos e baixíssimos níveis de literacia, amplamente documentados no conhecido estudo de final do século XX (Benavente, 1995). Do ponto de vista demográfico verifica-se uma diminuição da população global acompanhada de um claro acréscimo do índice de envelhecimento (Relatório Técnico, Fig. 4) o que confere cada vez mais peso à população mais idosa, em termos absolutos e relativos. Este processo de envelhecimento da população representa uma das tendências mais significativas do século XXI. Portugal é o 4.º país da União Europeia com maior percentagem de pessoas idosas. Estima-se que o número de pessoas com 80 anos ou mais virá a duplicar entre 2016 e 2060 (Ferreira, 2018, 23).

Paradoxalmente, estatísticas oficiais, nacionais e internacionais, tendem a fazer "desaparecer" mais de um quinto da população, cerca de dois milhões de cidadãos com mais de 64 anos. Estamos perante aquilo que Natália Alves (2018) designou por um "genocídio estatístico" que tende a apenas considerar os adultos que estão em idade ativa. A idade transforma-se, então, num processo de discriminação conhecido por "idadismo" e corre-se o risco de, por via legislativa, este poder ser reforçado (ENEAS, 2017). O facto de as estatísticas limitarem o conceito de adulto aos ativos com menos de 65 anos implica, objetivamente, desconsiderar uma camada cada vez mais significativa da população, cuja "insignificância estatística" é inversamente proporcional ao seu crescente "significado social" (Amiguinho,2018). Acresce que, segundo o mesmo autor, não se confirma a crença de que a maior parte da população acima dos 64 anos estaria institucionalizada. Ora, dizem as estatísticas disponíveis, a institucionalização dos mais velhos (viver 24 horas em estrutura residencial) ficará abaixo dos 10 %. Em contrapartida, uma parte significativa desta população idosa vive em condições económicas desfavoráveis, quer no plano material e económico, quer no plano da participação social e cívica, da imagem e da autonomia.

Numa sociedade profundamente desigual, a população adulta apresenta, em Portugal, sinais de grande heterogeneidade. Esse corpo social heterogéneo distribui-se de forma muito assimétrica em termos territoriais. Nas zonas urbanas "periféricas" e nas regiões marcadas pelo fenómeno da "interioridade" estão concentrados os setores mais idosos, mais pobres e menos qualificados da população adulta. Nenhuma política pública pode ignorar esta diversidade territorial, social e etária que tende a gerar desigualdades no acesso a bens e recursos, nomeadamente o acesso a oportunidades de educação e de formação.

Pelas piores razões, o interior do país foi colocado na agenda política, a partir do verão de 2017 e o respetivo Estado da Educação dedicou-lhe uma atenção particular. As regiões marcadas pela "interioridade" viveram uma redução drástica da população entre 1960 e 2016, passando de 38 % da população para menos de 20 %, enquanto o índice de envelhecimento aumentou 50 %, com três dezenas de municípios acima de 100 % (Lourtie, 2018). Como refere o mesmo autor, o designado Movimento pelo Interior preconiza a construção de Plataformas de Desenvolvimento Regional, visando nomeadamente a EFA, a qual contribui para criar um sentido de pertença ao território. O atual Governo Constitucional assumiu entre os seus objetivos prioritários, a afirmação do "interior" como aspeto central do desenvolvimento económico e da coesão territorial (Resolução do Conselho de Ministros n.º 72/2016). Nestas regiões as abordagens educativas e nomeadamente a EFA têm que se diferenciar em função das características dos contextos locais. As recentes situações de catástrofe fizeram evidenciar a necessidade de modalidades de educação/formação em questões territoriais, nomeadamente aprender a enfrentar e prevenir situações de risco, como por exemplo os incêndios (Salgado, 2019), bem como questões de fundo associadas ao ordenamento do território.

Às desigualdades sociais, demográficas e territoriais somam-se processos de discriminação no acesso a modalidades de educação e a processos de fruição dos bens educativos, artísticos e científicos. Os mais pobres, mais velhos e mais idosos são também os que menos aproveitam os recursos e as oportunidades educativas. Esta situação convida à necessidade de ter uma política pública de indução da procura educativa, principalmente nos setores do que é habitualmente designado como "não públicos". Para "chegar" a estas populações é indispensável um trabalho de animação educativa, combinando processos de educação formal e não formal (Melo, 2004). Não se revela adequada, nem eficaz, uma política unidimensional e de "formato único". É fundamental promover a proximidade, valorizar as diversas modalidades de EFA e afirmar a promoção da imagem pública da ALV, tendo em conta a centralidade da questão das qualificações.

Uma política pública coerente e sistemática de EFA terá de superar três equívocos: a EFA não pode ser reduzida à formação profissional de mão-de-obra, embora também a possa incluir; não corresponde a um "equipamento individual" de competências, cuja construção é sempre um processo coletivo e contextual, embora se exijam políticas capazes de responder às características específicas de cada pessoa; não se limita a qualificar indivíduos, mas também a qualificar organizações (empresas, famílias) e territórios. Assim, a ação pública terá de ser territorialmente diferenciada e metodologicamente adequada à diversidade de contextos.

EFA: uma estratégia de territorialização educativa

O desafio fundamental que uma estratégia de EFA nos coloca é o de imperativamente pensarmos a um nível global que terá a ver com os saberes e competências universais e com os objetivos de aprendizagem, remetendo para o nível loca a sua operacionalização. Importa por isso convocar para a ação as entidades que possuem um forte conhecimento dos territórios e das especificidades das pessoas que neles vivem, numa lógica de "corresponsabilização, partilha de práticas e de conhecimento, otimização de meios e redes" (ENIND, 2018, 2226) para o desenho e execução das políticas. Assim, as mudanças que urge introduzir deverão claramente demarcar-se de uma tradição centralista e redutora, que tem como base o decreto-lei, fazendo apelo, pelo contrário, a processos indutivos e endógenos cujo ponto de partida se baseia naquilo que já existe no terreno das práticas. Situamo-nos perante uma estratégia construída de baixo para cima (bottom/up) que corresponde a processos de mudança mais lentos, em que a paciência que exigem é recompensada pela eficácia, a prazo, dos resultados obtidos.

A estratégia de que apresentamos um sintético esboço já existe parcialmente e de forma embrionária nas experiências de terreno, desenvolvidas por uma multiplicidade de atores a nível local, os quais transcendem, largamente, a esfera do Estado. Tal realidade transparece, claramente do conjunto de audições realizadas no CNE em dezembro/2018 e janeiro/2029 e que, maioritariamente se situam no que habitualmente se designa por "sociedade civil". Tal não significa retirar importância às instituições públicas que atuam no terreno, o que poderia ser equivocadamente lido como fruto da rejeição do Estado. Com efeito, o nosso ponto de partida não é o zero, mas antes um património historicamente rico de experiência, bem ancorado na nossa realidade nacional do presente milénio. São particularmente importantes, por um lado, a criação de uma rede nacional de Centros de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (CRVCC) e, por outro lado, os Cursos de Educação e Formação de Adultos (Cursos EFA), em particular na sua dupla vertente de certificação escolar e profissional. Estes, quando funcionaram em pleno, foram maioritariamente promovidos por escolas e centros de formação profissional.

Estas duas inovações perduraram desde o início do milénio e estão hoje materializadas na rede do Programa Qualifica. Durante o recente colóquio organizado pelo CNE, Paulo Feliciano argumentou de forma muito documentada sobre a importância destas duas inovações na oferta educativa dirigida à população adulta sublinhando bem, na sua intervenção, "o papel relevante que os Cursos EFA têm assumido no portfólio de instrumentos dirigidos à aprendizagem ao longo da vida", nomeadamente nas suas potencialidades de organizar percursos formativos individuais, em articulação com referenciais de competências-chave, nomeadamente tecnológicos, do Catálogo Nacional de Qualificações. Foi igualmente concludente quanto à sua atualidade e importância o recurso aos processos de RVCC, combinados com os Cursos EFA e referenciados nas intervenções de Barros (2018); Cavaco (2018) e Rothes (2018).

Os elementos da estratégia que a seguir se esboça cobrem quatro grandes tópicos:

A Territorialização, o Município como unidade de referência, a Endogeneidade e um modelo metodológico Participativo. Sem esquecer que a estratégia não pode iludir a questão da universalidade do valor das competências e dos saberes.

Um primeiro tópico importante, em termos estratégicos, é o de encarar uma política global de EFA a partir da perspetiva da territorialização. Esta maneira de ver implica passar de uma lógica que é administrativa (descentralização) a uma outra lógica (política) que é a da territorialização. Implicando a forte valorização do local, a política pública deixa de ser uma mera ação normativa do Estado central, para passar a ser uma resposta ao problema de articular diferentes centros de decisão que operam num território. Desta forma, será possível "estabelecer medidas que visam adequar as políticas públicas às características e necessidades territoriais do país, reforçar e potenciar o trabalho de atores locais e em rede" (ENIND, 2018, 2226). Estamos assim perante um processo de "territorialização da ação pública" que corresponde à "construção de uma ordem educativa local" (Barroso, 2015). Segundo este autor, a territorialização liga-se por um lado a uma lógica de participação e, por outro lado, a uma lógica de democratização, na maneira de organizar e concretizar as políticas públicas. Esta nova ordem educativa local, ainda segundo o mesmo autor, obriga à prática de um processo compósito de regulação que mobiliza uma pluralidade de atores numa "geometria variável", adaptada às singularidades de cada contexto e que se opõe a qualquer pretensão de aplicar uma solução única e formatada.

A perspetiva de uma ação territorializada não representa propriamente uma novidade, antes se inscreve nas várias e sucessivas tentativas de conceber e executar uma política global de EFA. Desde logo no histórico PNAEBA (Plano Nacional de Alfabetização e Educação Básica de Adultos) que previa assegurar processos de participação da população com base em "uma rede de centros locais de suporte das ações de divulgação, animação e desenvolvimento sócio cultural das ações educativas de adultos" (Estêvão, 1984). Mas também, duas décadas depois na proposta de criação, no quadro da ANEFA, de uma rede de "Clubes Saber +" de base territorial e autárquica. As práticas de territorialização viriam ainda a estar presentes na rede de Centros Novas Oportunidades e constituem um objetivo inerente à atual rede de Centros Qualifica. A ideia de territorialização deve ser vista como congruente com a exigência da posse de competências (conhecimentos, atitudes, aptidões), com valor global, reconhecíveis universalmente e transferíveis entre territórios.

O segundo tópico de uma estratégia de EFA consiste em ter como unidade de referência territorial e política o município. Em diferentes momentos o CNE tem realçado a relevância da intervenção dos municípios na esfera educativa escolar, bem como nas políticas de aprendizagem ao longo da vida. Foi elemento consensual no conjunto de audições que realizámos a referência ao Município como o parceiro estratégico local e agente decisivo na criação e animação de parcerias e redes locais. A adesão de um número significativo de municípios portugueses ao projeto internacional das "Cidades Educadoras" constitui um exemplo dessa dimensão educativa. No contexto do atual processo de descentralização/regionalização, as novas competências educativas dos municípios aparecem bem especificadas no artigo 11.º, relativo à Educação, da Lei-quadro da transferência de competências para as autarquias locais (Lei 50/218 de 16 de agosto), mas estão também bem evidenciadas nos artigos 12.º, 13.º e 15.º, respetivamente sobre os domínios da Ação Social, da Saúde e da Cultura. Uma abordagem educativa sistémica ao nível local implicará sempre um grande protagonismo dos municípios. São estas as entidades mais competentes para fazer um mapeamento dos seus territórios, quer ao nível das especificidades das pessoas adultas que poderão vir a usufruir de um leque diversificado de ofertas de educação e formação, quer ao nível das organizações que poderão oferecer essas oportunidades de aprendizagem e de valorização pessoal e coletiva.

Um terceiro traço distintivo de uma tal estratégia será o de se basear no princípio da endogeneidade. Traduz-se este princípio na valorização dos saberes das pessoas adultas bem como dos saberes locais, enquanto obrigatórios pontos de partida para uma intervenção local de EFA. Esta deverá basear-se também no tecido associativo e empresarial local, bem como em instituições educativas não escolares como é o caso de museus, bibliotecas públicas, universidades seniores, associações e património local. A rede escolar de estabelecimentos do ensino básico e secundário representa um conjunto de recursos, fundamentais para a concretização a nível local de projetos de educação de adultos, como bem documenta a audição realizada à Escola Marquesa de Alorna. De igual modo, a importância da utilização da rede de estabelecimentos do ensino superior (universitário e politécnico), em estrita articulação com entidades parceiras da sociedade civil está bem documentada nas audições à Universidade Túlio Espanca, ao Projeto Letras Pr'à Vida, à Fundação Aga Khan, ao ICE (Instituto das Comunidades Educativas) e ao Município de Matosinhos. Também o papel de proximidade às populações das organizações não governamentais, que possuem muitas vezes um conhecimento muito específico das pessoas e grupos com quem trabalham, pode ser de especial relevância, quer para o desenho das políticas, quer para o usufruto por parte de públicos destinatários de medidas concretas de EFA. Esta dimensão foi bem evidenciada nas audições ao Moinho da Juventude e à Plataforma Portuguesa para os Direitos da Mulheres.

Um quarto e último traço definidor deste esboço de estratégia é a utilização de um processo metodológico estruturado pela articulação entre educação formal e não formal e um processo de participação. No código genético da EFA estão os processos de democracia participativa articulados com a construção e capacitação de comunidades educativas. São os traços desta conjugação entre educação formal e não formal, estruturada por processos de participação, que têm marcado alguns dos exemplos mais emblemáticos da experiência portuguesa em EFA. Nesta perspetiva de valorização da participação o que é necessário é promover em cada território um "encontro de saberes e gerações", nada deixando para trás. Como escreveu Bravo Nico (2018) "se queremos que ninguém fique para trás, então nada na vida dessas pessoas e comunidades pode ficar para trás".

Em conclusão: o CNE recomenda:

A criação de uma estrutura a nível nacional, um Fórum Permanente interministerial, sob a responsabilidade do Ministério da Educação, com a missão de, nomeadamente, definir e acompanhar o desenvolvimento de uma política pública global de respostas educativas e formativas, designadamente de processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências, Formações Modulares Certificadas (FMC) e Cursos de Educação e Formação (EFA), promover a divulgação de práticas bem sucedidas, organizar um evento anual consagrado à análise e debate da EFA em Portugal, procedendo-se a uma avaliação crítica do sistema, de três em três anos, objeto de Parecer do CNE;

A operacionalização local da política de EFA tendo como referência as freguesias, os municípios e as Comunidades Intermunicipais (CIM), como elementos estratégicos e essenciais de uma política assente em redes e parcerias educativas que atravessam o tecido social local (associativo, empresarial e institucional);

A ênfase numa política de fomento à procura de educação e formação por parte das pessoas adultas, refletindo sobre os constrangimentos que se colocam e construindo iniciativas que lhes deem resposta (por exemplo atrair ao ensino superior pessoas que trabalham, oferecendo um regime de frequência em período pós-laboral);

A criação a nível de cada Concelho (consoante a região poderá ser a freguesia, o município ou uma entidade de âmbito supra municipal) de uma estrutura que permita incentivar e animar a criação de uma rede educativa local, que inclua o conjunto dos parceiros sociais e um plano educativo local de educação de adultos, na qual se inscrevam as ofertas nacionais de segunda oportunidade promovidas pela Agência Nacional de Qualificações e Ensino Profissional (ANQEP) e pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP);

Articular modalidades educativas, formais e não formais, para facilitar o acesso a públicos mais "difíceis", mas prioritários, inseridos em zonas urbanas degradadas e zonas marcadas pela "interioridade";

Tomar como base a rede nacional de estabelecimentos de ensino Universitário e Politécnico para criar uma base regional de apoio ao desenho e desenvolvimento de projetos e programas locais de EFA, bem como à formação de profissionais devidamente qualificados para a formação de públicos adultos;

Desenvolver e reforçar a oferta formativa da rede nacional de Centros Qualifica, estruturada por procedimentos de RVCC e cursos EFA (escolares e profissionais), reforçando também a oferta de Formação em Competências Básicas e a oferta de Cursos EFA B1, revendo em baixa, a definição do número mínimo de 25 adultos, nomeadamente em territórios de fraca densidade populacional. O conceito de "turma" não é pertinente e mesmo a definição de mínimos é problemática porque pode representar a exclusão de muita gente a um direito essencial. É importante assegurar, após os procedimentos de RVCC, o encaminhamento para formação complementar à medida das necessidades individuais de cada adulto;

Evitando, embora, a escolarização da educação de adultos, potenciar a plena utilização, como recurso fundamental, da rede de estabelecimentos públicos e privados dos ensinos básico e secundário integrados no sistema educativo (e respetivo corpo docente, devidamente qualificado para o efeito), os quais deverão assumir como parte integrante do seu projeto a intervenção junto da população adulta;

Assegurar que a rede de promotores locais de EFA se mantém plural, incluindo, como referido, as escolas públicas e privadas integradas no sistema educativo, mas também centros de formação, empresas (de formação ou outras), autarquias, associações de desenvolvimento, parceiros sociais, IPSS e outras entidades. Do mesmo modo recomenda-se fortemente que, sob nenhum pretexto se feche o acesso ao exercício de funções profissionais nessas instituições, nomeadamente nos Centros Qualifica, a áreas de formação exclusiva, repondo a pluralidade das formações de base das equipas técnicas, o que constitui uma riqueza acrescida para o trabalho a realizar com os adultos;

Garantir um sistema de financiamento adequado, estável e previsível, combinando a utilização de fundos comunitários com a mobilização de verbas municipais e do Orçamento de Estado. É necessária a existência de financiamentos regulares e específicos para apoiar projetos de intervenção social e comunitária, destinados a públicos adultos;

Adotar uma metodologia participativa que contrarie a habitual tendência centralista e que se baseie numa ação territorial diversificada, recusando o formato único, tendo como referência estratégica e política as Freguesias, os Municípios e as Comunidades Intermunicipais, combinando a articulação de modalidades educativas formais e não formais.

Referências:

As referências bibliográficas da presente Recomendação estão inseridas no Relatório Técnico do CNE - Educação e Formação de Adultos.

4 de junho de 2019. - A Presidente, Maria Emília Brederode Santos.

312413058

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/3788669.dre.pdf .

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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