Recomendação sobre o prolongamento da escolaridade universal e
obrigatória até ao 12.º ano ou até aos 18 anos
Preâmbulo
No uso das competências que por lei lhe são conferidas e nos termos regimentais, após apreciação do projeto de Recomendação elaborada pelo Conselheiro Joaquim Azevedo, o Conselho Nacional de Educação, em reunião plenária de 9 de julho de 2012, deliberou aprovar o referido projeto, emitindo assim a sua primeira Recomendação no decurso do ano de 2012.Recomendação O Conselho Nacional de Educação teve oportunidade de se pronunciar diversas vezes sobre o alargamento da escolaridade obrigatória para 12 anos ou até aos 18 anos de idade.
Do conjunto de observações e recomendações feitas destacam-se as que se prendem com:
A criação de condições de universalização do acesso ao nível secundário (Parecer 1/2003) O combate aos atrasos sistemáticos na escolaridade dos alunos:
«O desfasamento etário dos alunos na frequência dos anos de escolaridade está generalizado a todos os graus de ensino, o que evidencia o recurso frequente à retenção em detrimento de outras medidas mais eficazes que possam agir sobre o problema de fundo que afeta a sua capacidade de aprendizagem. Este fenómeno é gerador de desmotivação e abandono escolar precoce, o que reverte em desfavor da equidade e da eficácia do sistema, das condições para a universalização da escolaridade obrigatória de 12 anos e das nossas possibilidades de cumprimento das metas com que nos comprometemos a nível europeu.» (Estado da Educação 2011).
O reforço das aprendizagens, apostando em estratégias pedagógicas atempadas e diferenciadas em função das necessidades dos alunos (Parecer 8/2008), o que não deverá implicar a orientação precoce para vias vocacionais (Pareceres 2/2004 e 8/2008);
A necessidade de se melhorar a qualidade do ensino e da formação de nível secundário (Debate Nacional sobre Educação, 2007);
A aposta na diversificação, flexibilidade e qualidade dos percursos de formação de modo a evitar o abandono escolar (Parecer 2/2004, Debate Nacional sobre Educação, 2007, Estado da Educação 2010);
A criação de plataformas territoriais, reguladoras das várias ofertas de ensino e formação existentes, de forma a potenciar todos os recursos locais e regionais disponíveis e a evitar o desperdício da capacidade instalada (Parecer 3/2009 e Estado da Educação 2010);
A definição de uma política geral de orientação escolar e profissional que aposte no reforço da capacidade instalada e na qualidade e flexibilidade dos serviços prestados (Pareceres 2/2004, 3/2009 e Estado da Educação 2010 e 2011).
Através da publicação do «Estado da Educação» (edições de 2010 e 2011), o CNE tem vindo a divulgar um conjunto de dados sobre a evolução do nível secundário de ensino e de formação. Relembramos alguns, como enquadramento a esta recomendação:
Tem prosseguido o crescimento da frequência das vias chamadas de «dupla certificação», em considerável aumento desde meados da década anterior;
A oferta de cursos profissionais nas escolas secundárias cresceu muito, neste mesmo período, abrangendo, em 2010, mais de 107 000 jovens (num total de 243.000 alunos que frequentam o nível secundário);
Cerca de 31 % dos alunos das escolas secundárias recebem apoio da Ação Social Escolar, em 2010/11;
A taxa de escolarização no nível secundário de ensino e formação tem evoluído favoravelmente, tendo passado de 60 %, em 2006/07, para 71 %, em 2009/10;
A frequência escolar por idades, é de 100 % aos 15 e 16 anos, e de 91 % aos 17. No entanto, cerca de 26 % dos alunos de 16 anos ainda frequentam o ensino básico (2009/10);
Se considerarmos a população entre 18 e 24 anos que não se encontra a frequentar o sistema de ensino e que obteve no máximo o 3.º ciclo do ensino básico, verificamos que enquanto na UE27, a média é de 13,54 %, em Portugal é de 23,29 %, o terceiro valor mais elevado da UE27 (2011), a seguir a Malta e a Espanha. A meta europeia para 2020 é menos de 10 %;
Outra medida internacional refere que a população que tem 20-24 anos e que completou pelo menos o ensino secundário representa 79,5 % na média da UE27 e 64,4 % em Portugal (2011). A meta europeia para 2010 era de 85 %.
Quando nos referimos, nesta recomendação, a «ensino e formação de nível secundário», em vez de «ensino secundário» queremos significar todas as modalidades de frequência das escolas secundárias, das escolas profissionais e dos centros de formação profissional que conferem cursos de uma única ou dupla certificação, mas que são globalmente equivalentes.
No ano de 2012, o Conselho Nacional de Educação, no quadro do acompanhamento das políticas educativas em curso, efetuou uma audição de escolas com ensino secundário, através da realização de um inquérito.
Assim, no mês de março, foi enviado um questionário a 36 diretores de escolas secundárias (sendo 28 desses diretores membros do Conselho das Escolas) de diferentes regiões do país, a que responderam 25 dos inquiridos (o que corresponde a 69 % de respostas obtidas). Alguns dos resultados são aqui recuperados.
Após este conjunto de pareceres e reflexões do CNE e diante quer da iminente necessidade de implementação da Lei 85/2009, de 27 de agosto, quer do facto de passar a ser obrigatória a frequência do 10.º ano de escolaridade, já em setembro próximo, para todos os jovens que acabam de concluir o 9.º ano, o CNE vem de novo alertar a sociedade portuguesa e o Governo para a necessidade de nos mobilizarmos, todos e do melhor modo, para este tão importante passo que temos de dar.
1 - O prolongamento da escolaridade obrigatória até ao 12.º ano ou até aos 18 anos constitui uma decisão política plenamente legítima, que corresponde a uma vontade social em irmos mais longe, como Nação, na nossa capacidade coletiva de escolarizarmos e qualificarmos adequadamente as novas gerações, num momento em que o conhecimento constitui cada vez mais um fator distintivo das pessoas, dos povos e das economias.
2 - A decisão política de prolongar a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano ou até aos 18 anos só se revela politicamente sustentável, em liberdade e democracia, se a ela estiver ligado um real projeto de mobilização social, capaz de proporcionar a todos os portugueses quer o acesso a este benefício cultural quer a sua efetiva concretização em condições de sucesso.
Nesta linha, seria muito importante que a ênfase política que se coloca em torno da obrigatoriedade fosse acompanhada por igual ênfase na universalidade desta mesma medida de política, pois a obrigatoriedade só é moralmente justificável se a ela corresponder uma real e muita clara capacidade de todos os poderes públicos e forças da sociedade portuguesa criarem todas as condições para a sua universalização, sem qualquer exceção.
3 - De outro modo, se esta mobilização social não ocorrer ou se não forem geradas as condições efetivas de cumprimento por parte de todos os jovens, a nova obrigatoriedade escolar pode tornar-se um fator acrescido de cristalização das desigualdades sociais, penalizando aqueles que se encontram em piores condições culturais, económicas e geográficas. Estes jovens e as suas famílias, que já investiram muito numa escolaridade de nove anos, podem passar, de um momento para o outro, para uma situação de incumpridores; mais do que isso, os jovens passarão doravante a ser social e legalmente considerados desqualificados.
4 - A universalidade da escolaridade obrigatória anda a par com a sua gratuitidade. Torna-se necessário definir os termos em que o Estado garante esta gratuitidade, agora para o nível secundário de ensino e de formação, quer em termos de frequência escolar, incluindo a rede de escolas abrangidas, quer em termos de ação social escolar e ainda de certificação.
5 - A garantia de condições de acesso parece ser efetiva na generalidade do território (embora existam exceções, que devem ser atendidas prioritariamente), pois a taxa de escolarização de jovens no ensino secundário entre os 15 e os 17 anos já é significativa e as escolas reúnem, em geral, condições físicas adequadas. Por idades, as taxas de escolaridade (2009/10) são de 100 % aos 15 anos (43 % no ensino básico e 57 % no ensino secundário), 100 % aos 16 anos (26 % no ensino básico e 74 % no ensino secundário), 91 % aos 17 anos (11 % no ensino básico e 80 % no ensino secundário) e 76 % aos 18 anos (4 % no ensino básico, 45 % no ensino secundário e 27 % no ensino superior).
6 - Todavia, a garantia das condições de acesso por parte da oferta não equivale automaticamente à garantia das condições de equidade na procura social, nem assegura que todos os jovens alunos realizem com qualidade os três anos complementares de ensino e formação. Muitas vezes nos encontramos longe disso; por um lado, a igualdade de oportunidades encontra-se dificultada por múltiplos entraves, desde os de ordem cultural aos de tipo económico, geográfico e familiar. Podemos destacar aqui: o débil «capital cultural» de muitas famílias que, possuindo níveis elementares de escolaridade, tendem a desvalorizar a educação escolar; a pobreza atinge muitas (e cada vez mais) famílias, conduzindo muitas delas a situações de exclusão social, impedindo-as de projetar um futuro melhor para as crianças e os jovens que inclua uma educação escolar prolongada; as longas distâncias que muitos adolescentes têm de percorrer para chegarem às escolas e centros de formação que oferecem ensino e formação de nível secundário.
Por outro, a qualidade da estadia prolongada na educação escolar só ficará assegurada se forem reunidas múltiplas condições de sucesso para todos os jovens (a que nos referiremos adiante), mormente para os que se deparam com os entraves acabados de referir.
7 - É ainda muito elevado o insucesso escolar no conjunto do ensino básico e no próprio ensino secundário.
Em 2009/10, os alunos matriculados com 16 e mais anos, no 10.º ano (Continente), representavam 53 % do total dos matriculados (47 % das mulheres e 58 % dos homens apresentam um desfasamento etário de pelo menos 1 ano).
Os níveis de retenção/desistência nos três anos do nível secundário atingem os seguintes valores (Portugal, 2009/2010): 10.º ano - 18.3 %, 11.º ano - 10.4 %, 12.º ano - 30.4 %. Esta situação é muito preocupante, na hora de se tornarem obrigatórios e de se quererem universais o ensino e a formação de nível secundário. A obrigatoriedade, de per si, se não for convenientemente acompanhada por uma maior capacidade para lidar com a heterogeneidade cultural e social que passará a estar mais presente nas escolas e centros de formação, conduzirá inexoravelmente ao aumento destes níveis de insucesso, eventualmente acompanhados por outras manifestações de desagrado dos estudantes para com a escola obrigatória.
8 - A audição realizada pelo CNE para este efeito identifica, pela voz dos diretores das escolas, um conjunto significativo de preocupações, na hora de alargar a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano. Destacam-se: falta de motivação dos alunos para o prosseguimento de estudos; receio do aumento da indisciplina e do absentismo; necessidade de rever e reforçar o apoio social escolar dos alunos e das famílias com mais carências económicas;
resistência das famílias em situação de pobreza e com baixo capital cultural;
a inadequação entre a oferta que as escolas estão em condições de promover e aquilo que seria justificado para criar oportunidades educativas de qualidade para todos; as sérias limitações de recursos escolares em matéria de orientação escolar e vocacional, de mediação familiar e de apoio especializado a alunos com necessidades educativas especiais.
9 - As escolas com ensino secundário ouvidas pelo CNE sentem-se, em geral, motivadas e capacitadas para acolher o novo prolongamento da escolaridade obrigatória. As principais dificuldades relacionam-se com a sua muito débil autonomia curricular (60 % diz que é pouca ou nenhuma e 32 % diz que é razoável), com o reconhecimento da pouca motivação de muitos alunos para o prolongamento da sua permanência na escola e com um eventual aumento da indisciplina nas escolas. A maioria destas escolas não tomou qualquer decisão específica para fazer face à nova obrigação legal.
10 - Escolarizar prolongadamente as crianças e os jovens requer que seja levantada uma arquitetura de ensino e de formação de nível secundário não só capaz de acolher todos como, e sobretudo, capaz de proporcionar a cada um, numa fase crucial da vida de descoberta de si, dos outros e do mundo, um percurso educativo de qualidade. Está social e politicamente em causa a capacidade de evoluirmos de um ciclo de estudos marcado pela seletividade para um novo nível secundário em que a exigência seja capaz de gerar lugar para todos. Este é o maior desafio político e social que esta medida de política educativa encerra.
Na atual fase de preparação do lançamento do primeiro ano em que se tornará obrigatória a matrícula no 10.º ano para todos os alunos que concluem o 9.º ano, importa sublinhar que se assiste a várias tentativas de redução do leque de oportunidades de realização destes percursos diferenciados - em contraciclo com a evolução recente da oferta de ensino e formação de nível secundário, que fez crescer a sua procura social - seja porque a tutela ordena a redução do número de cursos profissionais que se podem manter abertos, seja porque, deste modo, os alunos que terminaram Cursos de Educação e Formação (CEF), no ensino básico, podem ficar sem perspetivas de continuidade de estudos.
Esta tendência, a manter-se, pode provocar quer uma nova diminuição da procura, o que contradiz totalmente o objetivo político da universalidade da nova obrigatoriedade escolar, quer um aumento do insucesso escolar, que já hoje é elevado.
11 - Proporcionar percursos educativos de qualidade para todos e para cada um responsabiliza de sobremaneira as escolas mas implica e compromete toda a sociedade portuguesa. Será na medida em que esta responsabilidade e este compromisso se articularem, em cada contexto territorial, que poderemos almejar a consecução de tão importante desiderato educativo. No limite, as escolas e os centros de formação podem ser profissionalmente os mais qualificados; se não houver as condições e a capacidade para gerar um leque variado, atrativo e qualificado de oportunidades educativas para todos, o objetivo do prolongamento de escolaridade não se cumprirá. O pior que nos poderá acontecer, neste contexto de crise económica acentuada e de empobrecimento progressivo de muitos milhares de famílias, é promover uma escolaridade de 12 anos ou até aos 18 anos de idade só para os que estão, à partida, socialmente aptos a frequentá-la.
12 - A gestão curricular vai tornar-se muito mais exigente, seja em termos de flexibilidade e de autonomia no sentido de construir as melhores oportunidades para todos os jovens, seja em termos de supervisão dos percursos realizados por cada um, desde o acompanhamento dos professores pelos departamentos, até à avaliação interna e externa dos alunos.
Esta gestão curricular é bastante mais exigente do que uma mera adaptação à escola dos planos de estudo estandardizados, pois requer, para ser eficaz, a conceção e a aplicação de muitas outras medidas de flexibilização e diferenciação curricular; só deste modo será possível, em cada contexto, criar oportunidades educativas para todos, incluindo medidas personalizadas e excecionais, desde que escapem a uma orientação vocacional precoce das crianças e dos jovens, tal como o CNE tem vindo a defender.
13 - Um particular cuidado terá de ser colocado na geração de oportunidades educativas para todos, necessariamente diversificadas nos seus modos e tempos, nos seus lugares e ambientes de ensino e formação, tendo em vista a imperiosa necessidade de evitar que se cristalizem, pela via escolar, desigualdades sociais e culturais, se fechem ainda mais os grupos sociais sobre si mesmos, em «comunidades de mesmidade», e que o insucesso escolar volte a aumentar no nível secundário de ensino e formação.
14 - Todavia, a construção destas oportunidades educativas, capazes de suscitar maior envolvimento e trabalho dos alunos, faz apelo a muito mais capacidade de gestão autónoma dos currículos, em cada escola e agrupamento. Ora, esta autonomia tem estado a ser muito limitada, apesar das competências educativas e escolares que as escolas congregam. Sem essa autonomia, devidamente inscrita num quadro geral nacional de referência que contenha objetivos, metas e recursos disponíveis, será impossível que cada escola consiga conceber, aplicar, acompanhar e avaliar os itinerários educativos mais adequados para que cada jovem realize o seu percurso, com relevância e qualidade, dentro de um amplo leque de possibilidades.
A referida restrição das oportunidades e das vias de realização dos três anos de ensino e formação de nível secundário pode dificultar muito a capacidade de as escolas promoverem as adaptações que considerariam as mais adequadas aos jovens que as procuram. Ela surge no pior momento. Dentro do quadro de escassez de recursos em que estamos imersos, é fundamental a perceção política e a capacidade de agir por antecipação, que permitam tomar medidas que, não aumentando sempre a despesa, possibilitem às escolas oferecer não só as duas vias dominantes, os cursos científico-humanísticos e os cursos profissionais, como também outros cursos, tais como CEF, cursos em regime de aprendizagem ou estágios profissionais acompanhados.
15 - Muitos diretores de escolas temem que ao alargamento do período de obrigatoriedade escolar corresponda um aumento da indisciplina nas escolas.
Este temor é tanto mais elevado quanto mais reconhecem que não reúnem condições para oferecer, com autonomia, melhores oportunidades de ensino e de formação para cada jovem, vendo-se por isso limitadas a reforçar sobretudo o caráter compulsivo da lei e o regime de institucionalização compulsiva daí decorrente. A desmotivação e a indisciplina podem, assim, crescer mais rapidamente do que a diversificação e a ampliação dos meios de as prevenir.
16 - A gravidade da crise económica que Portugal atravessa, com as profundas repercussões sociais que conhecemos, constitui um fator de contexto que irá criar dificuldades inesperadas e particularmente gravosas ao prolongamento da escolaridade obrigatória até ao 12.º ano ou até aos 18 anos. Corremos sérios riscos de não reunirmos as condições quer para que muitas famílias cumpram a obrigatoriedade de matricular os seus filhos, quer para que o Ministério da Educação e Ciência (e todos os que são corresponsáveis pelos sistemas de formação profissional) cumpra as suas obrigações de reforço de recursos, oportunidades e condições, sobretudo no que se refere à ação social escolar e à orientação escolar profissional.
17 - Neste contexto, o desemprego e a pobreza aumentam velozmente, no exato momento em que se tem de proceder ao cumprimento da nova lei. As escolas, nesta difícil encruzilhada, tenderão a ser olhadas por todos os atores sociais como as instituições sociais mais aptas, em contraciclo, a acolher, orientar, qualificar e até ocupar e apoiar os jovens.
Se, por um lado, as escolas não podem negar esta responsabilidade social e cultural, por outro, não podem, no exercício dessa mesma responsabilidade social e cultural, negar a sua vocação e missão de ensinar e fazer aprender.
Ora, este novo contexto socioeconómico em que se vai ter de cumprir a nova escolaridade requer da parte do Governo medidas sensatas e enérgicas no sentido de dotar as escolas de meios e as famílias mais carenciadas dos necessários apoios para que seja possível cumprir universalmente o prolongamento da escolaridade, tornar esse benefício acessível a todos e realizar o aumento de três anos de escolarização e qualificação de todos os jovens, com dignidade institucional e qualidade escolar.
Como referiu o Conselheiro Adriano Moreira no debate, a nova «fronteira da pobreza» já passou o Mediterrâneo e atinge atualmente o Sul da Europa. O regresso do trabalho infantil e o aumento do abandono escolar precoce não deverão ser retirados do horizonte das práticas sociais, neste tempo de escassez de recursos.
Todavia, mesmo num contexto de escassez de recursos financeiros, há prioridades do Estado Social que se torna indispensável manter vivas, como a que se aplica à educação, pois só um povo muito e bem qualificado poderá sair honrada e dignamente desta crise. Seria muito grave que esta oportunidade não fosse aproveitada e que se transformasse as escolas secundárias em meros depósitos de ocupação temporária dos jovens, adiando apenas a sua entrada no mercado de trabalho.
18 - A tendência para a diminuição do leque de ofertas, nomeadamente cursos profissionais e CEF, a consolidar-se, pode representar um sério entrave não só ao prosseguimento de estudos com motivação e sucesso para muitos alunos que recusam os cursos «liceais», muitos deles oriundos de meios culturalmente mais desfavorecidos, como também ao insucesso nos cursos científico-humanísticos, que passariam a ser a porta quase exclusiva de frequência deste nível de ensino e formação, após tantos anos de investimento na sua diversificação. Apesar das correções que importa introduzir nesta oferta de cursos profissionais e CEF, esta hesitação constante nas políticas da educação transmite sinais de insegurança e inquietação a muitas famílias, pois denota uma falta de rumo e uma ausência de credibilidade nas políticas nacionais.
19 - Por outro lado, o adiamento demasiado prolongado da realização de qualquer experiência de trabalho (para depois dos 18 anos) representa para alguns alunos um violento adiamento de um importante fator de motivação para o seu desenvolvimento e crescimento como pessoa e como cidadão ou cidadã. Seria, por isso, de não colocar de um lado a escola e do outro o trabalho; há muitos processos de envolvimento dos jovens no trabalho, mormente aqueles para quem este constitui um acrescido fator de motivação para a sua qualificação, que podem e devem ser considerados pelas escolas, desde simples visitas de estudo, estágios curtos, bolsas de horas de qualificação pelo trabalho, desde que supervisionado como processo formativo, até às situações de trabalho e estudo que reportam a modelos como a formação em alternância.
20 - É neste quadro que ganha particular acuidade a rede escolar local, concelhia e intermunicipal. Importa salvaguardar tanto a inexistência de duplicações desnecessárias das mesmas ofertas, entre os subsistemas público, privado e cooperativo, como a necessidade de se aumentar o leque de possibilidades de prosseguimento do ensino e da formação para todos os jovens que doravante terminam a sua escolaridade de nove anos. A conceção, o planeamento e a avaliação desta rede, em consonância com os critérios nacionais gerais, devem ser realizados com a participação de todas as instituições educativas do território, não devendo nenhuma ser preterida, uma vez que todas são sempre limitadas na sua capacidade de responder a esse desígnio gigantesco de criar oportunidades educativas de qualidade para todos os jovens até aos 12 anos de escolaridade ou até aos 18 anos de idade.
A cooperação entre os agrupamentos escolares e as escolas, por um lado, e os centros de formação profissional, por outro, deve ser particularmente cuidada, pois essas instituições constituem duas redes complementares da maior importância na hora de dar oportunidades a todos para realizar o nível secundário de ensino e de formação.
Aos Conselhos Municipais de Educação, nos locais onde eles sejam um efetivo instrumento de concertação educacional, deve ser reconhecido um importante papel neste exercício territorial de alinhamento estratégico em torno das prioridades educativas em prol do desenvolvimento pessoal e social, em cooperação com as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens em Risco (CPCJ).
21 - A orientação escolar e vocacional dos jovens é uma das áreas de atividade das escolas que mais é colocada à prova no cumprimento desta nova meta política e social. Importará melhorar as condições em que tal serviço é proporcionado aos alunos no termo da escolaridade básica e ao longo da nova escolaridade obrigatória, bem como as estratégias de trabalho com os alunos e as suas famílias, tendo em vista a redução do absentismo e do insucesso escolar.
Já no Estado da Educação de 2011 o CNE recomendava que a orientação escolar e profissional fosse reforçada nas suas estruturas e integrasse as necessidades decorrentes da expansão e diversificação do sistema de educação e formação.
22 - No contexto desta orientação dos jovens e na sequência de posições veiculadas por alguns dos diretores ouvidos pelo CNE, será de prever que os conselhos pedagógicos e os conselhos de turma das escolas estabeleçam, no termo da escolaridade básica, programas específicos e recomendações às famílias para que os jovens prossigam os estudos mais adequados às suas competências, às suas disposições e interesses, tendo como horizonte o incremento do seu sucesso escolar.
23 - Na realidade, criar oportunidades educativas de qualidade para todos e para cada um dos jovens responsabiliza os próprios jovens e as escolas e implica e compromete não só os decisores políticos, mas também as famílias, as autarquias e o conjunto dos atores sociais de cada território. A geração de dinâmicas de solidariedade social territorial impõe-se, face à grandeza dos objetivos. Vejamos por partes.
a) Responsabilidades dos decisores políticos
Dos decisores políticos espera-se que, além da declaração da obrigatoriedade escolar, sejam capazes de criar as condições para a sua universalidade, ou seja, para que as escolas possam oferecer os melhores percursos para todos os seus alunos e que mobilizem todas as energias e recursos das comunidades para apoiarem os alunos e as suas famílias no cumprimento do seu dever e no exercício do seu direito de realizar uma escolaridade de qualidade.
Também deles se espera o estabelecimento de padrões nacionais de referência, que permitam dotar cada escola e agrupamento desse instrumento ou racional para o estabelecimento das suas prioridades e do seu plano de iniciativas.
b) Responsabilidade dos jovens
Dos jovens, que cumprem um dever e exercem um direito, espera-se assiduidade, esforço e dedicação ao trabalho escolar, uma presença ativa, alegre e cooperante com os professores e os seus colegas.
c) Responsabilidade das escolas/ agrupamentos:
Às escolas/agrupamentos e centros de formação que reúnem condições adequadas para oferecerem cursos de ensino e formação de nível secundário é exigido:
Um plano de iniciativas para a nova escolaridade obrigatória, tendentes a criar percursos de qualidade para cada aluno, a partir do ano letivo de 2012/13;
Um atempado esclarecimento da população acerca destes percursos;
O reforço dos mecanismos de informação e orientação escolar e vocacional dos alunos que terminam o ensino básico;
A diversificação curricular adequada à ainda maior heterogeneidade sociocultural que povoa as escolas;
O controlo do absentismo escolar, em cooperação com as famílias e outras instituições sociais do território;
Uma avaliação rigorosa das aprendizagens e o consequente reforço do ensino aos alunos com maiores dificuldades, tendo em vista prevenir o insucesso.
d) Responsabilidades das famílias
Às famílias e aos encarregados de educação é exigida uma adequada informação acerca da nova obrigatoriedade escolar e uma aposta na prolongada escolarização dos seus filhos. Aos pais e encarregados de educação compete assegurar o cumprimento do dever de frequência escolar dos seus filhos e educandos e o acompanhamento cuidado dos percursos a realizar.
e) Responsabilidades das autarquias e do conjunto dos atores sociais
de cada território
As autarquias têm um papel crucial na mobilização das comunidades locais para a consecução dos novos objetivos e metas. Além da sua intervenção mais específica em termos de ação social escolar, os eleitos locais devem também incentivar e apoiar a participação ativa de outros interesses locais, com destaque para os agentes económicos e culturais.As famílias e os encarregados de educação com maiores dificuldades sociais irão requerer particular atenção por parte das escolas, de todas as instituições sociais e serviços da Administração Pública, para que possam vir a exercer esta sua responsabilidade e dever de cumprimento de uma nova e longa escolaridade.
24 - É particularmente inquietante o desajustamento normativo que existe entre a idade legal de acesso à prestação de trabalho (16 anos) e o novo limite etário para o cumprimento da escolaridade obrigatória (18 anos). Os incumprimentos desta obrigatoriedade escolar podem vir a ser socialmente sancionados pela admissão dos jovens no mercado de trabalho. Assim, há que encontrar uma solução que garanta que o acesso ao trabalho antes dos 18 anos se realize em contexto formativo e com intencionalidade educativa.
25 - O prolongamento legal da obrigatoriedade escolar até ao 12.º ano vem também criar novas e prementes necessidades de revisão e de reorientação das prioridades de educação e formação de adultos, tendo em vista permitir que todos os cidadãos possam não só adquirir os novos patamares educacionais exigidos como também ver dignamente reconhecidos os níveis de educação e formação já adquiridos ao longo da vida.
Recomendações
26 - O CNE, na sequência do conjunto de considerandos aqui enunciados, recomenda ao Governo e a toda a sociedade portuguesa uma particular atenção ao cumprimento da nova obrigatoriedade escolar, em condições de equidade e de justiça e mobilizando os recursos humanos, físicos e financeiros condignos. Em particular, o CNE recomenda que:a) A nova escolaridade universal e obrigatória até ao 12.º ano ou até aos 18 anos de idade seja aproveitada como uma excelente oportunidade para o país investir mais e melhor na educação e qualificação do seus jovens, em equidade e justiça, oportunidade esta que não deve ser desperdiçada, pese embora o contexto de forte escassez de recursos;
b) O Governo e a Assembleia da República devem tudo promover para facilitar o cumprimento das principais metas europeias para o horizonte 2020, com destaque para as que facilitam a execução desta nova meta: a percentagem de alunos de 15 anos com aproveitamento insuficiente em leitura, matemática e ciências deverá ser inferior a 15 %; a percentagem de alunos que abandonam precocemente o ensino e a formação deverá ser inferior a 10 %;
c) O cumprimento da nova escolaridade universal e obrigatória é um dever de toda a sociedade portuguesa e não apenas dos jovens, dos professores ou dos governantes, sendo necessário que todos os atores sociais se impliquem e participem, cada um no seu domínio específico e de modo o mais possível articulado, tendo em vista ganhos de eficiên-cia e eficácia;
d) É preciso regulamentar as condições em que se vai processar a universalização do acesso à nova escolaridade obrigatória, mormente as condições da sua gratuitidade, desde o acesso e frequência das várias alternativas de ensino e formação, até à ação social escolar, à mobilidade entre vias e percursos e à certificação, pois é fundamental não deixar de fora da escolarização aqueles que à partida revelam maiores dificuldades de acesso e sucesso;
e) É urgente, em cada agrupamento/escola/centro de formação, colocar de pé as adequadas medidas tendentes a proporcionar, desde setembro próximo, as melhores condições de acolhimento de todos e de cada um dos jovens que concluiu a sua escolaridade básica, sendo aconselhável que cada instituição estabeleça um programa específico de iniciativas tendentes ao cumprimento universal da nova escolaridade obrigatória;
f) Se gerem oportunidades educativas de qualidade para todos os alunos, o que requer que os agrupamentos escolares, as escolas e os centros de formação estejam apetrechadas com os adequados recursos e que se preparem com tempo e muita ponderação para flexibilizar a gestão curricular, pois torna-se necessário enfrentar uma grande heterogeneidade social e cultural, que vai aumentar, e motivar os alunos, combatendo o insucesso que ainda é bastante elevado;
g) O Governo dedique uma especial atenção à execução desta prioridade política do país, pois em tempo de forte estrangulamento financeiro e de crise económica é imperioso e prioritário investir na educação e qualificação dos jovens, com qualidade, equidade e justiça social. Este investimento revela-se crucial seja para nos aproximarmos ainda mais dos nossos parceiros europeus, seja para criarmos as condições para que Portugal possa sair desta crise com uma população mais qualificada e com mais confiança e determinação;
h) Sejam proporcionadas novas possibilidades, pelas escolas e pelas instituições sociais locais, de orientação escolar e profissional dos jovens que dela necessitem, com cuidado acompanhamento personalizado e local;
i) Aos agrupamentos/escolas/centros de formação seja dada a necessária e real autonomia para que seja possível construir, em cada local, em redes articuladas de compromissos sociais territoriais, os cursos e os percursos de qualidade para cada jovem aluno, desde os mais estandardizados aos mais adaptados a cada contexto e aluno;
j) Este momento requer uma ponderada revisão da rede de ofertas de ensino e formação, mas tal revisão não pode traduzir-se na diminuição da oferta de cursos profissionais, de formação em alternância e de formações modulares, percursos que estavam em crescimento e que constituem alternativas aos cursos científico-humanísticos, que não respondem às expectativas e necessidades de muitos jovens e onde o insucesso escolar é bastante elevado;
k) Sejam maximizados os recursos humanos e financeiros existentes e todas as capacidades instaladas, quer por interação local entre todos, quer por especialização dinâmica, sobretudo entre as ofertas escolares e as outras ofertas de formação profissional de jovens e de adultos, pois todos não seremos demasiados para proporcionar processos educativos de qualidade para todos;
l) É necessário assegurar que para os alunos que terminam um Curso de Educação e Formação no ensino básico existam as adequadas vias de prosseguimento de estudos, devendo as escolas ponderar educativamente cada caso de modo a prevenir que se proceda a uma «orientação pela negativa», pois de outro modo estes jovens não se encontram em condições de cumprir o seu dever de observância da nova escolaridade obrigatória;
m) É preciso que todos os atores sociais sensibilizem e motivem os jovens alunos para um novo e importante período de frequência da escolaridade obrigatória, convocando-os a realizar percursos educativos pessoalmente relevantes e significativos, o que resultará também em grande medida do seu trabalho e da sua dedicação ao estudo;
n) Às autarquias locais seja pedida uma redobrada atenção à nova obrigatoriedade escolar, mobilizando os seus recursos próprios, interagindo com as escolas e outras instâncias educativas e em tudo as apoiando, e incentivando outros atores sociais locais para que todos se impliquem e comprometam, cada um na sua área específica de atuação, com os objetivos e metas da mesma escolaridade;
o) Os Conselhos Municipais de Educação e as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens em Risco (CPCJ) trabalhem conjuntamente para que todos os jovens, sem exceção, particularmente os que têm maiores dificuldades em aceder e suceder dentro do nível secundário de ensino e formação, tenham acesso a percursos educativos de qualidade;
p) Às famílias se peça um especial cuidado e um esforço acrescido no prolongamento da escolarização dos seus filhos, pois sabemos todos que de uma maior e melhor escolarização podem resultar múltiplos benefícios pessoais e sociais;
q) Aos professores sejam proporcionadas melhores condições para o trabalho cooperativo e para uma formação em serviço, profundamente ligada ao trabalho docente diário, apoiando assim uma escolaridade de qualidade;
r) Se resolva o desajustamento que existe entre a idade legal de acesso ao trabalho (16 anos) e o novo limite etário para o cumprimento da escolaridade obrigatória (18 anos), cumprindo o disposto na Lei 85/2009, de 27 de agosto, relativo à necessidade de aprovar legislação complementar (artigo 6.º);
s) Sejam encontradas, entretanto, as melhores soluções educativas que garantam que o acesso ao trabalho, a existir antes dos 18 anos, se realize em contexto formativo e com intencionalidade educativa;
t) Que se proceda à revisão e à reorientação das prioridades de educação e formação de adultos, tendo em vista permitir que todos os cidadãos possam não só adquirir os novos patamares educacionais exigidos como também ver dignamente reconhecidos os níveis de educação e formação já adquiridos ao longo da vida.
27 - O CNE entende, finalmente, que se torna decisivo, no quadro das suas competências específicas, proceder a um acompanhamento permanente da execução desta prioridade política do país.
9 de julho de 2012. - A Presidente, Ana Maria Dias Bettencourt.
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