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Acórdão 69/2012, de 12 de Março

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma do n,º 2 do artigo 384.º do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei n.º 26/2010, de 30 de agosto, interpretada no sentido que compete ao juiz de instrução criminal proferir decisão de suspensão provisória do processo, quando requerida pelo arguido no início da audiência de discussão e julgamento, sem oposição do Ministério Público.

Texto do documento

Acórdão 62/2012

Processo 630 11

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1 - Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, em que é recorrente o Ministério Público, foi interposto recurso obrigatório de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da decisão daquele tribunal, na parte em recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 384.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), na redação introduzida pela Lei 26/2010, de 30 de agosto, segundo a qual é o juiz de instrução o competente para dar a concordância à suspensão provisória do processo, nos casos em que o arguido é antes apresentado para julgamento em

processo sumário.

2 - O recorrente apresentou alegações onde conclui o seguinte:

«1 - Tendo a iniciativa de suspender provisoriamente o processo partido do arguido, imediatamente à abertura da audiência de discussão e julgamento, concordando o Ministério Público e aceitando aquele as injunções propostas por este magistrado, a norma do n.º 2 do artigo 384.º do CPP, na redação dada pela Lei 26/2010, de 30 de agosto, na interpretação segundo a qual é o juiz de instrução o competente para concordar ou discordar da aplicação daquela medida (artigo 281.º, n.º 1, do CPP), não viola o princípio do juiz natural, consagrado no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição, nem qualquer outro preceito constitucional, designadamente os artigos 202.º, 203.º, 209.º, n.º 1, alínea a), 210.º, n.º 3, e 211.º, n.º 2, não sendo, por isso, inconstitucional.

2 - Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso.» 3 - Dos autos emergem os seguintes elementos, relevantes para decisão:

Na sequência do ordenado pelas autoridades policiais, o arguido José Pedro Oliveira Moura apresentou-se no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia, a fim de

ser julgado em processo sumário.

O Ministério Público junto daquele Tribunal, promoveu que se procedesse a julgamento sumário, imputando ao arguido a prática de um crime de condução de veículos em estado de embriaguez, p.e p. pelos artigos 69.º e 292.º do Código Penal.

Declarada aberta a audiência de discussão e julgamento, logo o arguido apresentou um requerimento pedindo a suspensão provisória do processo.

Nada tendo a opor o Ministério Público e obtida a concordância do arguido quanto à injunção proposta por aquele Magistrado, o Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia determinou a remessa dos autos ao Tribunal de Instrução Criminal do Porto, por entender ser este o competente para apreciar a suspensão provisória do processo, nos termos dos artigos 281.º e 384.º do CPP, dando sem efeito a audiência

de julgamento.

O Tribunal de Instrução Criminal do Porto recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade (violação dos artigos 202.º, 203.º, 209.º, n.º 1, alínea a), 210.º, n.º 3 e 211.º, n.º 2, da Constituição), da norma do artigo 384.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei 26/2010, de 30 de agosto, enquanto atribui competência ao Juiz de Instrução Criminal «a competência reservada a Juiz dos

Juízos Criminais de Vila Nova de Gaia».

É desta decisão que, pelo Ministério Público, vem interposto, obrigatoriamente, recurso

para o Tribunal Constitucional.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

4 - O artigo 384.º do Código de Processo Penal (CPP), na redação introduzida pela Lei 26/2010, de 30 de agosto, estabelece o seguinte:

«Artigo 384.º

Arquivamento ou suspensão do processo

1 - É correspondentemente aplicável em processo sumário o disposto nos artigos 280.º, 281.º e 282.º, até ao início da audiência, por iniciativa do tribunal ou a requerimento do Ministério Público, do arguido ou do assistente, devendo o juiz

pronunciar-se no prazo de cinco dias.

2 - Se, para efeitos do disposto no número anterior, não for obtida a concordância do juiz de instrução, o Ministério Público notifica o arguido e as testemunhas para comparecerem numa data compreendida nos 15 dias posteriores à detenção para apresentação a julgamento em processo sumário, advertindo o arguido de que aquele se realizará, mesmo que não compareça, sendo representado por defensor.

3 - Nos casos previstos no n.º 4 do artigo 282.º, o Ministério Público deduz acusação para julgamento em processo abreviado no prazo de 90 dias a contar da verificação do

incumprimento ou da condenação.»

No presente recurso está em causa a norma do n.º 2 deste preceito, segundo a qual é o juiz de instrução o competente para dar a concordância à suspensão provisória do processo, nos casos em que o arguido é antes apresentado para julgamento em

processo sumário.

As reiteradas recusas de aplicação de normas extraíveis deste preceito, por banda do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, têm dado azo a numerosos recursos de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da LTC.

Até ao Acórdão 7/2012 (3.ª Secção), o Tribunal Constitucional, tanto em decisões sumárias como em acórdãos de secção, decidiu não tomar conhecimento do objeto desses recursos. Assim foi nas decisões sumárias n.os 223/2011, 235/2011, 241/2011, 299/2011, 300/2011, 330/2011 e 331/2011, e nos acórdãos n.os 325/2011, 326/2011, 364/2011, 433/2011 e 473/2011. Como fundamento dessas decisões esteve o entendimento de que não tinha ocorrido uma efetiva e verdadeira desaplicação da norma por inconstitucionalidade, bem como, nos dois últimos casos, de o juízo de constitucionalidade ser insuscetível de conduzir a uma alteração de sentido da decisão

recorrida.

Pode ler-se, por exemplo, no Acórdão 433/2011, desta 2.ª Secção:

«Aliás, pode concluir-se, ainda, que se não está perante uma concreta situação de desaplicação de normas - os artigos 10.º e 384.º, n.º 2 do CPP - por inconstitucionalidade, porquanto, como se deixou referido, o que concretamente resulta é um afastamento da aplicação das ditas normas processuais na medida em que a questão (processual), segundo o entendimento perfilhado na decisão recorrida, deve ser analisada e decidida à luz das normas da organização judiciária (LOFT), designadamente, no caso, do disposto no artigo 102.º da Lei 3/99, de 13 de janeiro (LOFT), em que se define a competência específica dos Juízos de Pequena Instância Criminal, competência essa que não poderia ser afastada pela lei adjetiva - os artigos 10.º e 384.º, n.º 2 do CPP - e que, consequentemente, não aplica».

Uma dada interpretação das normas infraconstitucionais perfilhada pelo tribunal recorrido, a saber, a prevalência dos critérios gerais de organização judiciária, em matéria de competência dos tribunais, sobre as normas processuais penais (no que a decisão sumária n.º 299/2011 apodou de «uma espécie de relação de especialidade 'invertida'»), conduziu ao afastamento da aplicação da norma do 384.º, n.º 2 do CPP, sendo o bastante para fundamentar a recusa da sua aplicação, independentemente das considerações de inconstitucionalidade. Esta constatação levou à conclusão de que não se encontrava preenchido o pressuposto do recurso interposto ao abrigo da alínea a)

do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.

Sucede, porém, que o Tribunal de Instrução Criminal do Porto, como já acontecera no processo que findou pelo Acórdão 7/2012, apresenta agora uma nova versão do seu discurso fundamentador, depurada de quaisquer razões de direito infraconstitucional e exclusivamente centrada numa apreciação segundo parâmetros constitucionais. Ainda que mencione, de passagem, a violação do artigo 100.º da LOFTJ, fá-lo num contexto de avaliação da constitucionalidade da norma do artigo 384.º, n.º 2, sem que estas duas disposições sejam confrontadas entre si, como acontecia nas decisões que motivaram anteriores recursos. Nenhuma ilação se pode retirar dessa referência no sentido de que a norma, cuja aplicação se recusou, deve ceder em face daquela outra. Daí que a alegada inconstitucionalidade constitua a única razão para a sua não aplicação, não podendo o tribunal recorrido, de acordo com a posição agora assumida na fundamentação, manter a mesma decisão, se ao presente

recurso vier a ser concedido provimento.

Estamos, pois, perante uma autêntica recusa de aplicação e nada consta da decisão recorrida que possa contrariar a utilidade da decisão do recurso de constitucionalidade, uma vez que nela não foi enunciado qualquer outro obstáculo à aplicação da regra de competência fixada no artigo 384.º, n.º 2.

Há a concluir que estão reunidas as condições para apreciação do mérito do recurso.

5 - A única decisão em que anteriormente o Tribunal se pronunciou quanto ao fundo de uma questão de constitucionalidade idêntica à dos presentes autos foi a que consta do

Acórdão 7/2012.

Merece-nos inteira concordância o sentido dessa decisão e a fundamentação em que se apoia. Na parte que para aqui mais releva, o aresto discorre nestes termos:

«A decisão recorrida considera inconstitucional a norma em causa por violação dos artigos 202.º (função jurisdicional), 203.º (independência dos tribunais), 210.º, n.º 2 e 211.º, n.º 2 (competência e especialização dos tribunais judiciais) e 32.º, n.º 9 (princípio do juiz natural) da Constituição. Vislumbra todas estas desconformidades com a Constituição a partir de um comum pressuposto: o de que a norma recusada permite subtrair ao tribunal competente para o julgamento em processo sumário uma

causa que já lhe estava afeta.

Ora, este pressuposto é insubsistente. Na dimensão normativa em apreciação - como adverte o Ministério Público, outras situações com as correspondentes hipóteses normativas são configuráveis, colocando problemas específicos que aqui não cumpre apreciar - o processo encontra-se na chamada 'fase pré-judicial' do processo sumário, em que o Ministério Público exerce importantes poderes processuais, aliás reforçados pela Lei 48/2007, de 29 de agosto e pela Lei 26/2010, de 30 de agosto (cf.

Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª ed.

Atualizada, pág. 992).

Com efeito, o arguido detido que deva ser julgado em processo sumário é apresentado (ou apresenta-se, quando tenha sido previamente libertado com essa notificação) ao Ministério Público (n.º 1 do artigo 382.º do CPP). O Ministério Público, depois de interrogar o arguido se o julgar conveniente, apresenta-o ao juiz para sujeição a julgamento em processo sumário, acompanhado de um ato acusatório formal ou equivalente (n.º 2 do artigo 382.º do CPP). Mas também pode, sem contar com a faculdade de realização de diligências essenciais à descoberta da verdade, introduzida pela Lei 26/2010, optar pelo arquivamento imediato ou diferido dos autos ou pela tramitação sob a forma de processo comum ou abreviada, se não estiverem reunidos os pressupostos para julgamento em processo sumário ou se justificar a dispensa de pena ou a suspensão provisória do processo (P. Pinto de Albuquerque, loc cit., p. 993).

Assim, como quer se classifique esta fase do procedimento, enquanto o Ministério Público não promover o julgamento em processo sumário, não pode dizer-se que a causa já estava afeta a um determinado tribunal, de modo a que corresponda a um discurso jurídico razoável convocar os princípios constitucionais relativos à organização e independência dos tribunais e a garantia inerente ao princípio do juiz natural pelo facto de o juiz chamado a intervir não ser o juiz que seria competente para o julgamento. Na verdade, para que tivesse sentido colocar uma questão de violação da independência dos tribunais ou de subtração da causa ao juiz designado por lei, seria, antes do mais, necessário que a pretensão punitiva já tivesse sido transmitida pelo Ministério Público ao juiz do tribunal competente para julgamento em processo sumário, de tal modo que viesse a ser privado desse concreto poder judicativo ou da inerente autonomia decisória por virtude da atribuição da competência em causa a um outro juiz. A circunstância de o processo ter dado entrada nos serviços administrativos do tribunal de pequena instância criminal - sejam eles da secretaria do Ministério Público ou na secretaria judicial desse tribunal - é, para este efeito, irrelevante. Poderá gerar dificuldades burocráticas quanto à competência para o processamento, mas não passa disso mesmo, de uma questão organizatória dos serviços de secretaria. Se o feito não chega a ser introduzido em juízo, não há risco de desconsideração da competência ou da independência do juiz respetivo. E os problemas que pode levantar a intervenção do juiz de instrução nas circunstâncias da hipótese normativa sujeita a apreciação são os mesmos que essa competência para o despacho de concordância com a suspensão provisória do processo em geral suscita e que não estão aqui em discussão.

Mas, mesmo que se entenda que não basta esta falência do pressuposto básico em que assenta a retórica argumentativa do despacho recorrido e se considere necessário analisar a relação da norma em causa com cada um dos princípios constitucionais invocados, ainda assim a improcedência dessa fundamentação é manifesta.

O artigo 203.º da Constituição dispõe que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei. Sendo independentes em relação aos demais poderes do Estado, os tribunais também são independentes entre si, salvo as relações de hierarquia ou supraordenação dentro de cada categoria de tribunais (artigos 210.º, 212.º e 221.º da CRP). No caso, o atentado que o despacho recorrido vê ao princípio da independência dos tribunais resultaria de a lei conduzir a que um tribunal se imiscua na prática de atos num processo que, segundo as regras gerais de organização judiciária,

seria da competência de um outro tribunal.

A independência dos tribunais materializa-se ou afere-se substancialmente pela independência dos respetivos juízes. Na vertente que pode ser relevante, traduz-se no dever de julgar apenas segundo a Constituição e a lei, sem sujeição a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores. Como dizem G. Canotilho e V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª ed., Coimbra, 2010, pág. 514, a independência dos tribunais e respetivos juízes 'convoca várias dimensões densificadoras da liberdade à independência no julgar: (i) liberdade contra injunções ou instruções de quaisquer autoridades; (ii) liberdade de decisão perante coações ou pressões destinadas a influenciar a atividade de jurisdictio; (iii) liberdade de ação perante condicionamento incidente sob a atuação processual; (iiii) liberdade de responsabilidade, pois só ao juiz cabe extrinsecar o direito a obter a solução justa do

feito submetido à sua apreciação'.

Ora, é manifesto que a circunstância de a competência para proferir despacho relativamente a determinada matéria, numa causa penal que não chegou a ser submetida ao juiz de julgamento pertencer a outro juiz é indiferente ao poder (ou ao dever) de o tribunal supostamente privado da competência julgar sem sujeição a qualquer ordens ou instruções. O juiz de instrução, ao dar ou negar a sua concordância à suspensão provisória do processo, não dá qualquer ordem nem afeta ou influi em qualquer julgamento que, no caso concreto, o juiz do tribunal de pequena instância criminal devesse proferir. Não pode, pois, considerar-se violados os artigos 202.º e 203.º da

Constituição.

Igualmente ostensiva é a improcedência da argumentação desenvolvida com base no

artigo 211.º da Constituição.

O n.º 2 do artigo 211.º permite que na primeira instância dos tribunais judiciais haja tribunais com competência específica e tribunais especializados para julgamento de matérias determinadas. Independentemente do sentido que deva conferir-se a esta distinção e que não interessa dilucidar, esta previsão não confere valor constitucional às normas de organização judiciária que, ao seu abrigo, tenham repartido a competência entre os diversos tribunais judiciais. E, por outro lado, também não reserva esse conteúdo para as leis específicas de organização judiciária, proibindo que as leis de processo se ocupem da matéria, porventura derrogando pontualmente o que daquelas

resultaria.

Deste modo, independentemente do mérito da solução adotada pelo n.º 2 do artigo 384.º do CPP, não é possível retirar desta norma constitucional qualquer vinculação do legislador quanto a saber se a concordância com a suspensão provisória do processo deve competir ao juiz de instrução ou ao tribunal do julgamento ou que proíba a lei de processo de se ocupar ela própria dessa matéria.

Finalmente, também não procede a argumentação de que a norma em causa viola o princípio do 'juiz legal' ou do 'juiz natural', consagrado no n.º 9 do artigo 32.º da

Constituição.

Como se disse no Acórdão 614/2003, "o princípio do 'juiz natural', ou do 'juiz legal', para além da sua ligação ao princípio da legalidade em matéria penal, encontra ainda o seu fundamento na garantia dos direitos das pessoas perante a justiça penal e no princípio do Estado de direito no domínio da administração da justiça. É, assim, uma garantia da independência e da imparcialidade dos tribunais (artigo 203.º da Constituição). Designadamente, a exigência de determinabilidade do tribunal a partir de regras legais (juiz legal, juiz predeterminado por lei, gesetzlicher Richter) visa evitar a intervenção de terceiros, não legitimados para tal, na administração da justiça, através da escolha individual, ou para um certo caso, do tribunal ou do(s) juízes chamados a dizer o Direito. Isto, quer tais influências provenham do poder executivo - em nome da raison d'État - quer provenham de outras pessoas (incluindo de dentro da organização judiciária). Tal exigência é vista como condição para a criação e manutenção da confiança da comunidade na administração dessa justiça, 'em nome do povo' (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição), sendo certo que esta confiança não poderia deixar de ser abalada se o cidadão que recorre à justiça não pudesse ter a certeza de não ser confrontado com um tribunal designado em função das partes ou do caso concreto. A garantia do 'juiz natural' tem, assim, um âmbito de proteção que é, em larga medida, configurado ou conformado normativamente - isto é, pelas regras de determinação do juiz 'natural', ou 'legal' (assim G. Britz, ob. cit, pág. 574, Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte II, 14.ª ed., Heidelberg, 1998, pág. 269). E, independentemente da distinção no princípio do juiz legal de um verdadeiro direito fundamental subjetivo de dimensões objetivas de garantia, pode reconhecer-se nesse princípio, desde logo, uma dimensão positiva, consistente no dever de criação de regras, suficientemente determinadas, que permitam a definição do tribunal competente segundo características

gerais e abstratas".

Ora (e prescindindo da referência a outros problemas que para a hipótese em apreciação não relevam e que são versados no referido acórdão), nenhum risco para este princípio assim entendido comporta uma norma como a do n.º 2 do artigo 384.º do Código de Processo Penal na dimensão a que foi recusada interpretação. A competência para o despacho em causa encontra-se predeterminada por lei geral e abstrata. É competente o tribunal de instrução que, segundo os fatores de conexão relevantes, o seria para proferir despacho da mesma natureza e conteúdo em qualquer outro tipo de processo, sem possibilidade de atuação de qualquer dos sujeitos processuais ou de terceiros que conduza à manipulação ou determinação discricionária do tribunal ou tribunais que hão de intervir no processo. Para que se considere observado o princípio do 'juiz natural' é suficiente a existência de regras que permitam a definição do tribunal competente segundo características gerais e abstratas, sendo indiferente que essa norma opte pelo "tribunal de instrução" ou pelo tribunal que seria competente para o julgamento se o processo houvesse de chegar a tal extremo».

6 - É esta orientação que se reitera e a que inteiramente se adere, o que nos leva a rejeitar a alegada inconstitucionalidade da norma do artigo 384.º, n.º 2, do CPP.

Estamos conscientes de que a situação que ocorreu nesse processo não coincide inteiramente com a que é objeto deste recurso, pois a iniciativa de suspensão provisória do processo pertenceu aí ao Ministério Público, logo que o arguido lhe foi apresentado.

Tendo este dado a sua concordância, aquele magistrado remeteu os autos ao juiz de

instrução criminal, para despacho a final.

No presente caso, a situação é diferente, pois o Ministério Público promoveu a realização do julgamento, tendo o arguido requerido a suspensão. Em face desse pedido, e obtida a concordância daquele magistrado, o juiz remeteu os autos ao

Tribunal de Instrução Criminal do Porto.

Todavia, como bem assinala o representante do Ministério Público, este novo circunstancialismo não altera os dados essenciais da questão a ter em conta para a sua valoração, à luz dos parâmetros constitucionais pertinentes. Tanto num caso como no outro, o juiz de instrução criminal declinou a competência que, nos termos da norma recusada aplicar, lhe cabia, para conceder ou negar a aplicação daquela medida (artigo 281.º, n.º 1, do CPP). Como se escreveu nas alegações do recurso:

«O juiz do julgamento não teve qualquer intervenção para além daquela que consistiu, no exercício dos seus poderes de direção, em dar possibilidade ao arguido e ao Ministério Público de se pronunciarem, surgindo a ordem de remessa dos autos ao tribunal competente como a consequência lógica e natural do entendimento a que aqueles dois sujeitos processuais chegaram».

Sendo assim, essa remessa em nada contraria o princípio do juiz natural, pois resulta da aplicação de um regime normativamente predeterminado, em termos gerais e abstratos.

O que releva é o facto de o juiz de instrução, tendo-lhe sido remetidos, por uma ou outra via, os autos com todos os elementos necessários para emitir despacho quanto à suspensão provisória do processo, se tenha recusado a fazê-lo, com fundamento na inconstitucionalidade da norma atributiva de competência para tal.

Também não se observa identidade total dos parâmetros constitucionais invocados.

Contrariamente ao que sucedeu no processo do Acórdão 7/2012, não é aqui feito apelo expresso, como fundamento da recusa, ao princípio do juiz natural (artigo 32.º, n.º 9, da CRP); inversamente, nos presentes autos faz-se menção ao artigo 209, n.º 1, alínea a), da CRP, norma ignorada na fundamentação da decisão recorrida, naquele

outro processo.

Mas nem uma nem outra destas discrepâncias obsta à identidade substancial dos padrões valorativos convocados pelos termos da questão posta e da sua repercussão no sentido da decisão. De facto, verdadeiro pano de fundo da posição tomada na decisão recorrida é, como vimos, a ideia de que a atribuição de competência ao juiz de instrução criminal, quanto à suspensão do processo, subtrai ao juiz do julgamento uma decisão a tomar no âmbito de uma causa de que é titular. Tendo partido do princípio de que estamos perante a consagração legal de uma espécie de desaforamento, o tribunal recorrido preocupou-se em invocar normas e princípios constitucionais impeditivos da validade dessa solução. O princípio do juiz natural - expressamente convocado nos autos do Acórdão 7/2012 e na generalidade dos processos em que foi recusado aplicar a norma do artigo 384.º, n.º 2, do CPP - enfileira na primeira linha dos critérios apreciativos da questão assim posta, pelo que a argumentação que procedentemente sustenta que a disposição o deixa absolutamente incólume - posto que não integrando o âmbito necessário da pronúncia que estes autos exigem - só abona e reforça o fundamento do presente juízo de não inconstitucionalidade.

Quanto ao invocado artigo 209.º, n.º 1, alínea a), da CRP, basta referir que a norma é, em si mesma, inócua quanto ao âmbito de competências dos tribunais que nela estão identificados, nem longinquamente se podendo retirar dela qualquer diretriz vinculativa para o legislador, na delimitação, em concreto, das esferas de competência aqui em

conflito.

III - Decisão

Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:

Não julgar inconstitucional a norma do artigo 384.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (CPP), na redação introduzida pela Lei 26/2010, de 30 de agosto, na interpretação segundo a qual é ao juiz de instrução criminal que cabe proferir decisão de suspensão provisória do processo, requerida pelo arguido no início da audiência de discussão e julgamento, sem oposição do Ministério Público;

Consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.

8 de fevereiro de 2012. - Joaquim de Sousa Ribeiro - J. Cunha Barbosa - João Cura Mariano - Catarina Sarmento e Castro - Rui Manuel Moura Ramos.

205830156

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2012/03/12/plain-290396.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/290396.dre.pdf .

Ligações deste documento

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  • Tem documento Em vigor 1999-01-13 - Lei 3/99 - Assembleia da República

    Aprova a lei de organização e funcionamento dos Tribunais Judiciais.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-29 - Lei 48/2007 - Assembleia da República

    Altera (15.º alteração) e republica o Código de Processo Penal.

  • Tem documento Em vigor 2010-08-30 - Lei 26/2010 - Assembleia da República

    Altera (décima nona alteração) o Código de Processo Penal.

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