Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
Relatório
A 29 de Outubro de 2008 o Magistrado do Ministério Público, em representação do menor Gabriel Manhone Costa, instaurou, junto do Tribunal da Comarca de Santarém, acção de regulação do exercício do poder paternal contra Pedro Jorge Rodrigues do Espírito Santo e Maria Adelaide Manhone Costa, progenitores do referido menor.Realizada a 24 de Novembro a conferência a que alude o artigo 175.º, n.º 1, da lei da Organização Tutelar de Menores, e não tendo sido possível obter o acordo dos progenitores, procedeu-se à fixação de um regime provisório de regulação do poder
paternal.
Nenhum dos requeridos apresentou alegações
Após junção de prova documental, realização de inquérito social e emissão de parecer pelo Ministério Público, foi proferida sentença em 6 de Fevereiro de 2009 em que sedecidiu o seguinte:
"Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 13.º, 204.º e 277.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, decide-se desaplicar por inconstitucionalidade material o artigo 9.º da Lei 61/2008, de 31 de Outubro e, em consequência, ao abrigo do disposto nos artigos 1912.º, n.º 1 e 1906.º do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei 61/2008, de 31 de Outubro e dos artigos 2003.º, 2004.º e 2005.º, todos do Código Civil, regula-se o exercício das responsabilidades parentais relativo a Gabriel Manhone Costa, nascido a 29 de Agosto de 2008, filho de Pedro Jorge Rodrigues do Espírito Santo e Maria Adelaide Manhone Costa, nos termos quese seguem:
a) Gabriel Manhone Costa fica a residir na companhia de sua mãe, competindo a esta o exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente da criança ou ao progenitor com quem a criança se encontrar temporariamente, não devendo este, ao exercer as suas responsabilidades, contrariar as orientações educativas mais relevantes, tal como elas são definidas pelo progenitor com quem o filho reside habitualmente, sendo as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho exercidas em comum por ambos os progenitores, salvo nos casos de manifesta urgência, em que qualquer dos progenitores poderá agir sozinho, devendo prestar informações ao outro, logo que possível;b) Pedro Jorge Rodrigues do Espírito Santo poderá visitar Gabriel Manhone Costa sempre que lhe aprouver, com respeito das exigências de descanso e dos estudos do menor, quando for caso disso, mediante aviso prévio à mãe do menor c) Pedro Jorge Rodrigues do Espírito Santo fica obrigado a prestar alimentos a Gabriel Manhone Costa no montante mensal de setenta e cinto euros. a pagar até ao dia quinze do mês a que disser respeito, importância acrescida, durante quinze meses, do montante de cinco euros e no décimo sexto mês do montante de quatro euros e oitenta e quatro cêntimos, montantes que deverão ser entregues à mãe do menor, a Sra. Maria
Adelaide Manhone Costa;
d) a pensão alimentar ora fixada será anualmente actualizada, com início em 01 de Março de 2010 e com referência aos índices de preços ao consumidor, com habitação, divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística para o ano anterior àquele em queoperar a actualização."
Esta decisão teve em consideração que os progenitores do menor em causa não eram casados, nem viviam em união de facto, e não estavam de acordo quanto à forma de exercício do poder paternal, residindo o menor com a mãe.A recusa de aplicação da norma do artigo 9.º, da Lei 61/2008, de 31 de Outubro,
baseou-se na seguinte argumentação:
"[...]
A 30 de Novembro de 2008, entrou em vigor a Lei 61/2008, de 31 de Outubro, que procedeu, entre outras alterações, à alteração do regime do exercício do poder paternal, procedendo a uma sua redenominação, passando a referência ao "poder paternal" a considerar-se substituída pela designação "responsabilidades parentais" nas epígrafes da secção II e da sua subsecção IV, do capítulo II, do título III, do livro IV do Código Civil e em todas as disposições da secção II, do capítulo II, do título III, dolivro IV do Código Civil.
[...]
No entanto, mais importante do que esta redenominação, é a alteração introduzida no leque dos poderes-deveres dos progenitores não unidos pelo casamento e que não vivem em condições análogas às dos cônjuges, prevendo-se na Lei 61/2008, como regime regra, o exercício em comum das responsabilidade parentais por ambos os progenitores relativamente às questões de particular importância, exercício em comum que só é passível de ser afastado por decisão judicial fundamentada (artigos 1906.º, n.os 1 e 2 e 1912.º, n.º 1, ambos do Código Civil).No regime anterior, no caso de progenitores não unidos entre si pelo casamento e que não vivessem em união de facto, ou havia acordo dos progenitores no sentido do exercício em comum por ambos ou, não existindo tal acordo, o exercício do poder paternal competiria ao progenitor que tivesse a guarda do menor, presumindo-se iuris tantum que tal guarda cabia à mãe do menor. Ao progenitor a quem não competia o exercício do poder paternal assistia o poder de vigiar a educação e as condições de vida do filho (artigo 1906.º, n.º 4, do Código Civil, na redacção anterior à introduzida
pela Lei 61/2008).
Apesar desta verdadeira revolução copernicana, no que tange o regime do exercício das ora denominadas responsabilidades parentais, ou talvez por isso, o legislador previu no artigo 9.º da Lei 61/2008, de 31 de Outubro, que tal regime não se aplica aosprocessos pendentes em tribunal.
[...]
A questão que a referida norma transitória coloca é a de saber se é sustentável, do ponto de vista do princípio constitucional da igualdade, que o conteúdo dos poderes-deveres dos progenitores relativamente a seus filhos possa depender duma circunstância tão aleatória como é a propositura de uma acção.A mesma norma suscita também a questão de saber quais os poderes-deveres dos progenitores que viram a sua situação resolvida antes da entrada em vigor da Lei 61/2008, de 31 de Outubro. Será que continuarão a ter os mesmos poderes-deveres, não lhes sendo aplicável o novo regime e nem podendo tal alteração legislativa, por si só, fundamentar uma alteração da regulação do exercício do poder paternal (neste sentido que decididamente repudiamos veja-se, Tomé d'Almeida Ramião, O Divórcio e Questões Conexas, QuidJuris 2009, página 164); ou, ao invés, em homenagem ao princípio constitucional da igualdade que impõe que situações iguais devam ser igualmente tratadas, bem como considerando as regras gerais sobre aplicação no tempo de normas relativas ao conteúdo de uma relação jurídica, abstraindo dos factos que lhe deram origem (artigo 12.º, n.º 2, 2.ª parte do Código Civil), deve o novo
regime aplicar-se aos processos pendentes-
[...]
A nosso ver, a norma transitória em análise introduz um tratamento discriminatório, desigual e injustificado dos progenitores em função da simples propositura da acção e conduz ao absurdo do conteúdo dos poderes-deveres dos progenitores poder divergir tão só por causa daquele critério temporal. Pode até suceder que o mesmo progenitor tenha poderes-deveres distintos relativamente a filhos diferentes e de mães diversas, apenas porque os processos nos quais vieram a ser regulados o exercício do poder paternal/responsabilidades parentais foram instaurados em momentos diversos.Em nosso entender, tal disposição transitória, com tal alcance, atenta contra o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa), na medida em que progenitores colocados na mesma situação de facto terão poderes-deveres diversos no que respeita as ora denominadas responsabilidades parentais, tão-só por causa do momento em que foi proposta a acção para tal regulação. Afigura-se-nos deste modo que aquela norma transitória enferma de inconstitucionalidade material e deve por isso ser desaplicada (artigos 13.º, 204.º e 277.º, n.º 1, todos da Constituição da República
Portuguesa).
Assim, desaplicando-se pelos referidos fundamentos o artigo 9.º da Lei 61/2008, de 31 de Outubro, aplicar-se-á ao caso dos autos a nova lei.
[...]".
Desta decisão interpôs recurso o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, "porquanto o Senhor Juiz, na douta sentença de 6 de Fevereiro de 2009, recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade material, do artigo 9.º da Lei 61/2008 [...] por entender que esta norma transitória introduz um tratamento discriminatório, desigual e injustificado dos progenitores, no que concerne aos poderes-deveres das ora denominadas responsabilidades parentais."Após apresentação de alegações foi proferido em 9 de Novembro de 2010 Acórdão, com o n.º 407/2010, que negou provimento ao recurso, julgando inconstitucional, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, a norma de direito transitório contida no artigo 9.º, da Lei 61/2008, de 31 de Outubro, na parte em que impede a aplicação imediata do novo regime de exercício das responsabilidades parentais a situações em que os progenitores do menor não tenham sido casados, nem vivam ou tenham vivido em condições análogas às dos cônjuges.
Desta decisão foi interposto recurso pelo Ministério Público para o Plenário do Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 79.º-D, da LTC, invocando a sua contraditoriedade com o juízo de não inconstitucionalidade proferido pela 2.ª Secção deste Tribunal no Acórdão 153/2010.
Admitido o recurso foram apresentadas alegações pelo Ministério Público no sentido de se julgar que não é inconstitucional a norma do artigo 9.º, da Lei 61/2008, de 31 de Outubro, na parte em que impede a aplicação imediata do novo regime de exercício das responsabilidades parentais a situações em que os progenitores do menor não tenham sido casados, nem vivam ou tenham vivido em condições análogas às dos
cônjuges.
Fundamentação
1 - Do conhecimento do recurso
O artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC, admite o recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional quando alguma das suas secções venha a julgar uma questão de constitucionalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado.O Acórdão 407/2010, proferido nestes autos, julgou inconstitucional a norma do artigo 9.º, da Lei 61/2008, de 31 de Outubro, na parte em que impede a aplicação imediata do novo regime de exercício das responsabilidades parentais a situações em que os progenitores do menor não tenham sido casados, nem vivam ou tenham vivido
em condições análogas às dos cônjuges.
Em 14 de Abril de 2010, no Acórdão 153/2010, a 2.ª Secção deste Tribunal tinha julgado não inconstitucional o artigo 9.º, da Lei 61/2008, de 31 de Outubro, na dimensão em que proíbe a aplicação aos processos pendentes, do disposto nos artigos 1906.º e 1907.º, por remissão do artigo 1912.º, n.º 1, todos do Código Civil, naredacção daquela lei.
O artigo 1912.º, n.º 1, do Código Civil, na redacção da Lei 61/2008, de 31 de Outubro, regula precisamente o exercício das responsabilidades parentais quando a filiação se encontre estabelecida e os progenitores não sejam casados, nem vivam em condições análogas às dos cônjuges, pelo que as duas pronúncias são contraditórias.Verificando-se o pressuposto do recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional, importa conhecer do seu mérito.
2 - Do mérito do recurso
No momento em que foi proposta a presente acção, o artigo 1911.º, do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, dispunha, relativamente ao exercício do poder paternal por pais que não tivessem contraído casamento, nem vivessem maritalmente, que, na falta de acordo, aquele pertencia ao progenitor que tivesse a guarda do filho, presumindo-se que era a mãe que tinha essa guarda. O outro progenitor podia apenas vigiar a educação e as condições de vida do filho (artigo1906.º, n.º 4, do Código Civil).
Esta solução, de raiz eminentemente realista, procurou nestas situações conferir certeza e eficácia à representação dos interesses do menor que exigem nos primeiros anos de vida a tomada de decisões de particular importância, atribuindo, em exclusivo, o poder paternal a quem de facto tem a guarda do menor, presumindo, em atenção aos dados estatísticos, que essa pessoa era a mãe. Esta presunção, no caso de não corresponder à realidade, só podia ser ilidida em acção judicial (vide, sobre este regime, José Carlos Moitinho de Almeida, em Efeitos da filiação, em Reforma do Código Civil, pág.161-162, ed. de 1981, da Ordem dos Advogados, Pires de Lima/Antunes Varela, em Código Civil anotado, vol. V, pág. 412-413, da ed. de 1995, da Coimbra Editora, Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, em Curso de direito de família, vol. I, pág. 130, da ed. de 2008, da Coimbra Editora, e Carlos Olavo, em Sobre a aplicação do processo de regulação do exercício do poder paternal aos filhos dos pais não unidos pelo matrimónio e que não hajam convivido maritalmente, na Colectânea de Jurisprudência, Ano XI, tomo 1, pág. 21-22).
Com as alterações introduzidas pela Lei 61/2008, de 31 de Outubro, na mesma situação, o regime regra passou a ser o exercício em comum das responsabilidades parentais por ambos os progenitores, relativamente às questões de particular importância para a vida do filho, salvo se decisão judicial fundamentada estabelecer que essas responsabilidades sejam exercidas por apenas um dos progenitores (artigo
1906.º, n.º 1 e 2, do Código Civil).
Conforme resulta da leitura do Preâmbulo do Projecto de Lei 509/X, a imposição do exercício conjunto das responsabilidades parentais, visou combater o afastamento dos pais homens e a fragilização da sua relação afectiva com os filhos, promovendo a igualdade do género e garantindo a concretização do direito das crianças à manutenção de laços afectivos com ambos os pais (vide sobre o novo regime, Guilherme de Oliveira, em Linhas gerais da reforma do divórcio, em Lex Familiae, Ano 5.º (2008), n.º 10, pág. 63 e seg., Maria Clara Sottomayor, em Exercício conjunto das responsabilidades parentais: igualdade ou retorno ao patriarcado?, em E foram felizes para sempre...? Uma análise crítica ao novo regime jurídico do divórcio, pág. 113 e seg., da ed. de 2010, da WoltersKluver/Coimbra Editora, Hugo Leite Rodrigues, em Questões de particular importância no exercício das responsabilidades parentais, pág.85 e seg., da ed. de 2011, da Coimbra Editora, Rita Lobo Xavier, em Recentes alterações ao regime jurídico do divórcio e das responsabilidades parentais: Lei 61/2008, de 31 de Outubro, pág. 69-70, da ed. de 2009, da Almedina, Tomé D'Almeida Ramião, em O divórcio e questões conexas, pág. 139-140, da ed. de 2009, da Quid iuris, Helena Gomes de Melo e outros, em Poder paternal e responsabilidades parentais, pág. 23 e seg. da ed. de 2009, da Quid iuris, Helena Bolieiro/Paulo Guerra, em A criança e a família...Uma questão de Direito(s): visão prática dos principais institutos do direito da família e das crianças e jovens, pág., 29-31, da ed. de 2009, da
Coimbra Editora).
A Lei 61/2008, de 31 de Outubro, que entrou em vigor a 30 de Novembro do mesmo ano, inclui uma norma que regula especificamente a sua aplicação no tempo, determinando que a mesma não se aplica aos processos pendentes (artigo 9.º), o que abrange as acções de regulação do exercício das responsabilidades parentais já propostas, como sucede com o presente processo.A sentença recorrida recusou a aplicação desta norma por entender que a mesma violava o princípio constitucional da igualdade, ao "introduzir um tratamento discriminatório, desigual e injustificado dos progenitores em função da simples propositura da acção e conduz ao absurdo do conteúdo dos poderes-deveres dos progenitores poder divergir tão só por causa daquele critério temporal".
É necessário começar por dizer que a mera sucessão de leis no tempo, em matéria de direitos familiares, não afecta, só por si, o princípio da igualdade.
Apesar de uma alteração legislativa poder operar uma modificação do tratamento normativo em relação a uma mesma categoria de situações, implicando que realidades substancialmente iguais passem a ter soluções diferentes, isso não significa que essa divergência seja incompatível com a Constituição, visto que ela é determinada, à partida, por razões de política legislativa que justificam a definição de um novo regime legal. Visando as alterações legislativas conferir um tratamento diferente a determinada matéria, a criação de situações de desigualdade, resultantes da aplicação do quadro legal revogado e do novo regime, é inerente à liberdade do legislador do Estado de Direito alterar as leis em vigor, no cumprimento do seu mandato democrático.
Daí que, conforme tem referido o Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade não opere diacronicamente (v. g. acórdãos n.º 34/86, em ATC, 7.º vol., pág. 42, n.º 43/88, em ATC, 11.º vol., pág. 565, n.º 309/93, em ATC, 24.º vol., pág. 185, n.º 188/09, no Diário da República, 2.ª série, de 18-5-09, e n.º 3/2010, no Diário da República, 1.ª
série, de 2-2-2010).
São as normas de conflitos que, numa situação de sucessão de leis, determinam qual o âmbito de aplicação no tempo da nova lei, existindo normas gerais que fixam os princípios que fornecem ao julgador um critério permanente de solução dos conflitos (v.g. o artigo 12.º, do Código Civil), e normas específicas, estabelecendo a solução de um conflito particular surgido a propósito duma alteração legislativa determinada, normalmente inseridas na própria lei nova, como sucede relativamente à norma aqui sob
fiscalização.
Na determinação do conteúdo destas normas é reconhecida ao legislador uma apreciável margem de liberdade quanto ao estabelecimento do marco temporal relevante para aplicação do novo e do velho regime legal. Contudo, o critério escolhido terá que respeitar não só o princípio constitucional da segurança jurídica e da protecção da confiança, de modo a não violar direitos adquiridos ou frustrar expectativas legítimas, sem fundamento bastante, assim como também não poderá resultar na criação de desigualdades arbitrárias na aplicação da nova lei, após ela ter entrado emvigor.
Quando se diz que o princípio da igualdade não opera diacronicamente, apenas se abrange as desigualdades resultantes de aplicação de diferentes regimes legais durante a sua respectiva vigência, mas já não quando, após a entrada em vigor duma lei, o legislador restringe a sua aplicação a determinadas situações, mantendo a aplicação da lei antiga, relativamente a outras, sem que se vislumbre fundamento razoável para essa distinção. Neste último caso, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, da C.R.P., imporá um juízo de censura constitucional sobre essa opção.Segundo os princípios gerais estabelecidos no artigo 12.º, do Código Civil, nomeadamente o que consta do n.º 2, in fine, as leis que regulam o exercício do poder paternal deveriam ter uma aplicação imediata às relações de filiação já existentes (vide, neste sentido, Baptista Machado, em "Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil", pág. 144-145 da ed. de 1968, da Almedina).
Contudo, no presente caso, o legislador determinou que as alterações introduzidas pela Lei 61/2008, de 31 de Outubro, não se aplicariam aos processos pendentes no momento da sua entrada em vigor, impedindo que elas regulassem as situações cuja solução já havia sido solicitada aos tribunais, salvaguardando, desse modo, a aplicação da lei vigente no momento em que foi requerida ao tribunal a sua intervenção.
Desta norma de conflitos específica resulta que o exercício das responsabilidades parentais, relativo aos filhos de pessoas não unidas pelo matrimónio, nem vivendo em união de facto, nos processos entrados em juízo antes de 30 de Novembro de 2008, é regulado segundo o regime previsto para estas situações no Código Civil, na redacção do Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, enquanto nos processos entrados posteriormente àquela data, já o exercício das responsabilidades parentais é regulado segundo o novo regime do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei 61/2008,
de 31 de Outubro.
Apresentando estes dois regimes significativas diferenças, como acima se apontou, verifica-se um tratamento jurídico diferenciado para o exercício das responsabilidades parentais que seja judicialmente regulado já após a entrada em vigor da Lei 61/2008, de 31 de Outubro, nos processos iniciados anteriormente ao início da vigência deste diploma legal (30 de Novembro de 2008) e nos processos iniciados emdata posterior.
O estabelecimento desta diferença teve como fundamento a ponderação de que nos processos que se encontravam em curso quando ocorre a alteração legislativa já pode ter sido desenvolvida uma actividade de determinação do quadro fáctico relevante que necessariamente se orientou pelo conteúdo do direito substantivo então vigente. Na verdade, um processo judicial comporta fases de alegação de factos e produção de meios de prova que visam a determinação pelo tribunal da realidade que importa apurar para a aplicação do direito vigente, tendo em atenção o conteúdo deste. Ora, se essa actividade se orienta, tendo em vista um determinado regime legal que no momento da decisão não vem a ser aplicado, sendo substituído por um novo regime, o quadro fáctico apurado pode revelar-se desadequado face ao conteúdo da lei mais recente.A acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais é um processo de jurisdição voluntária em que, apesar de se superiorizar um interesse (do menor) que se visa regular, não deixa de existir um conflito de representações ou de opiniões sobre os termos dessa regulação, cujos sujeitos são os progenitores do menor e o Ministério Público. Sendo, por isso, partes neste processo, estes desenvolvem uma estratégia processual com vista a que a sua visão do interesse do menor venha a ser acolhida pelo tribunal, de acordo com as regras substantivas pré-estabelecidas, dando notícia apenas das realidades necessárias à aplicação dessas regras. Do mesmo modo age o próprio tribunal, no âmbito dos seus poderes inquisitórios, o qual tem a preocupação de apenas recolher os elementos que necessita para regular o exercício das responsabilidades parentais do menor no interesse deste, segundo as regras de direito substantivo que
vigoram.
Ora, se essas regras se alteram durante o decurso do processo, não só as partes são surpreendidas, vendo frustrada a estratégia processual adoptada, como o quadro fáctico apurado pode ser insuficiente para permitir uma aplicação das novas regras que proteja os interesses do menor, uma vez que foi determinado em função de um regimelegal com um conteúdo diferente.
É certo que estando nós perante um processo de jurisdição voluntária, em que o tribunal dispõe de amplos poderes de flexibilização da tramitação processual, parece que nada impediria, mesmo nos processos que se encontrassem em fase de recurso, que o tribunal reabrisse a fase de alegação de factos e de produção de provas, de modo a adequar o quadro fáctico apurado ao novo conteúdo do direito substantivo.Mas esta repetição de procedimentos, que sempre estaria na disponibilidade do julgador, não só resultaria numa inutilização do anterior processado, como também implicaria um prolongamento do tempo da regulação do exercício das responsabilidades parentais, prejudicando o normal e eficaz funcionamento das instâncias judiciais e a satisfação dos interesses do menor.
A relevância da ponderação destas consequências no domínio da intervenção judicial na definição do conteúdo das relações familiares não é nenhuma novidade legislativa, tendo, por exemplo, igual disposição transitória sido adoptada pelo próprio Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro (artigo 177.º), que havia introduzido o
regime agora alterado.
Independentemente de sabermos se a protecção dos interesses acima apontados é exigida pelo princípio constitucional da segurança jurídica e da confiança, ou do direito a um processo equitativo, e sem apreciarmos a sua bondade, pode dizer-se que ela não deixa de ser um fundamento legítimo, compreensível e razoável para o critérionormativo escolhido.
Por isso, não é possível dizer que a diferenciação resultante da norma contida no artigo 9.º, da Lei 61/2008, de 31 de Outubro, se revela arbitrária, uma vez que não se verifica que da escolha do critério de aplicação da lei no tempo feita pelo legislador resultem diferenças de tratamento que não encontrem justificação em fundamentos perceptíveis, inteligíveis e razoáveis, tendo em conta a finalidade que, com a diferençaestabelecida, se visou almejar.
Ora, como ensinam J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 399, da 4.ª Edição revista, da Coimbra Editora), no apuramento das violações ao princípio da igualdade, na vertente da proibição doarbítrio, importa ter presente que:
«[...] a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só quando os limites externos da "discricionariedade legislativa" são violados, isto é, quando, a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma "infracção" do princípio do arbítrio.» Tendo sido apurado um suporte material bastante para o tratamento desigual apontado pela sentença recorrida, não se pode considerar que o disposto no artigo 9.º, da Lei 61/2008, de 31 de Outubro, na dimensão recusada, viole o princípio da igualdade plasmado no artigo 13.º, da C.R.P., pelo que, adoptando-se a posição perfilhada no Acórdão 153/2010, cuja fundamentação aqui se seguiu de perto, não se confirma o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo tribunal recorrido, o que conduz à procedência do recurso interposto pelo Ministério Público.
Decisão
Nestes termos decide-se:
a) Não julgar inconstitucional o artigo 9.º, da Lei 61/2008, de 31 de Outubro, na parte em que impede a aplicação imediata do novo regime de exercício das responsabilidades parentais a situações em que os progenitores do menor não tenham sido casados, nem vivam ou tenham vivido em condições análogas às dos cônjuges.b) e, consequentemente, julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o decidido no Acórdão 407/2010 e determinando-se a reforma da sentença recorrida, em conformidade com o presente julgamento.
Sem custas.
Lisboa, 22 de Setembro de 2011. - João Cura Mariano - Maria João Antunes - Joaquim de Sousa Ribeiro - Carlos Pamplona de Oliveira - J. Cunha Barbosa - Catarina Sarmento e Castro - José Borges Soeiro - Carlos Fernandes Cadilha - Gil Galvão - Vítor Gomes (vencido pelas razões do acórdão recorrido) - Maria Lúcia Amaral (vencida, pelas razões constantes do acórdão recorrido) - Rui Manuel
Moura Ramos.
205218258