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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 7/2011, de 31 de Maio

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Sumário

Fixa a seguinte jurisprudência: no crime de dano, previsto e punido no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa «destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada», e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição. (Processo n.º 456-08.3GAMMV - FJ)

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2011

Processo 456-08.3GAMMV FJ

Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

1 - António Fernandes Gomes Monteiro Fonseca interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do artigo 437.º, n.os 1 e 4, do Código de Processo Penal, do Acórdão da Relação de Coimbra de 17 de Março de 2010 (processo 456/08.3GAMMV-A.C1), que pronunciou o recorrente pela prática de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, invocando as seguintes razões:

No acórdão recorrido, estando em causa a apreciação da legitimidade da assistente para exercer o direito de queixa relativamente à danificação pelo arguido de um bem (veículo automóvel), do qual era apenas mera detentora e não proprietária, decidiu-se que, estando a assistente «no gozo da coisa é directamente atingida no seu gozo, fruição e uso, pelo que deve poder defender esse seu direito, sem estar na dependência de uma eventual queixa da titular do registo de propriedade», e que «sendo a detentora do direito de gozo de que é possuidora, é titular do interesse juridicamente protegido no crime de dano», tendo por isso «legitimidade para apresentar a respectiva queixa».

Esta decisão, por ter sido proferida em recurso pelo Tribunal da Relação de Coimbra, não admitia recurso ordinário, e transitou em julgado.

Porém, sobre a mesma questão de direito - legitimidade para apresentação de queixa no crime de dano - e no domínio da mesma legislação, a Relação de Coimbra decidiu em sentido oposto por Acórdão de 6 de Dezembro de 2006 (processo 61/04.3TAFIG.C1), transitado em julgado (acórdão fundamento), considerando que, de acordo com o direito positivo vigente, a área de protecção da norma só inclui o proprietário, pelo que, em consequência, o ofendido típico será o portador do concreto bem jurídico tutelado - o proprietário.

No entender do recorrente resulta manifesta a contradição entre os julgados, devendo ser declarada a oposição.

2 - Nos termos do artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a secção, por Acórdão de 17 de Novembro de 2010, julgou verificada a oposição de julgados, ordenando o prosseguimento do recurso.

Foram notificados os sujeitos processuais interessados - o recorrente e o Ministério Público - para os efeitos do artigo 442.º, n.º 1, do mesmo Código.

O recorrente alegou, remetendo para os termos da motivação que apresentou para fundamentar a interposição de recurso.

3 - O magistrado do Ministério Público apresentou alegações, que termina com a formulação das seguintes conclusões:

1.º «Ofendido», por definição legal contida no artigo 113.º do Código Penal, é o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação;

2.º O advérbio «especialmente» não é sinónimo de «exclusivamente», significando «de modo especial», «particularmente»;

3.º Para preenchimento do tipo legal do crime de dano do artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, é necessário que a conduta do agente afecte o fim ou função da coisa;

4.º Evidencia-se, assim, uma especial consideração tida pelo legislador quanto ao aproveitamento e utilidade que a coisa pode proporcionar, ou seja, o valor de poder retirar da coisa a sua normal utilidade;

5.º O legítimo possuidor ou detentor da coisa, sendo titular da disponibilidade de fruição das utilidades (do gozo) da própria coisa, é directa e imediatamente atingido pelo dano, ou seja, é a sua vítima concreta;

6.º Ora, pretendendo-se tutelar a função social de relevo que a propriedade encerra em si (o valor intrínseco, que não deverá ser confundido com o direito real - propriedade), deverá considerar-se que o interesse do detentor merece tutela penal à luz das necessidades de direito criminal, na medida em que o mesmo coincide com o interesse especialmente protegido pela norma;

7.º Assim, nesta interpretação, admissível em função do elemento sistemático e da conexão do sentido objectivo da lei com as novas circunstâncias da vida real, o legítimo detentor da coisa tem legitimidade para apresentar queixa contra o agente que a danificou, lesando a disponibilidade de fruição das suas utilidades.

Propõe, em consequência, que o conflito de jurisprudência existente seja resolvido nos seguintes termos:

«No crime de dano previsto no artigo 212.º do Código Penal, o possuidor legítimo da coisa tem legitimidade, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, para apresentar queixa pela lesão do gozo, uso ou fruição da mesma».

4 - Colhidos os vistos, o processo foi apresentado ao pleno das secções criminais, cumprindo decidir.

5 - A decisão da secção que concluiu pela existência da oposição de julgados não vincula o pleno das secções criminais, que deve pronunciar-se autonomamente reexaminando o pressuposto - oposição de julgados - do artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal sobre a questão de saber se a legitimidade para exercer o direito de queixa em caso de crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.º do Código Penal, supõe e exige a qualidade de proprietário, ou se também detém legitimidade quem, não sendo proprietário, tem sobre a coisa danificada, no momento da prática da infracção e por título legítimo, a disponibilidade de fruição das respectivas utilidades.

Pelos termos em que se encontra formulada a controvérsia, existe, tal como decidiu a secção, efectiva oposição de julgados, como especificamente resulta da identificação precisa da questão controvertida, que consistia em ambos os acórdãos (recorrido e fundamento) em saber se o mero detentor/possuidor (não proprietário) de bem móvel (automóvel), do qual tem o uso, gozo e fruição, é ou não titular do interesse juridicamente protegido pelo crime de dano, como condição de legitimidade para efeito apresentar queixa, independentemente de eventual queixa do titular do respectivo direito de propriedade.

A questão sobre que foi reconhecida a oposição de julgados consiste, assim, em determinar se o possuidor ou detentor de uma coisa, que não é proprietário, pode ser considerado ofendido para efeitos do disposto no artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal relativamente ao crime de dano, previsto no artigo 212.º, n.os 1, 2 e 3, do Código Penal.

6 - Por regra, quando o procedimento criminal depender de queixa, de acordo com o disposto no artigo 113.º do Código Penal, especificamente no n.º 1, o procedimento não pode ser iniciado sem ser validamente formulada a queixa, que constitui uma condição de procedibilidade.

Estando em causa um crime de dano, previsto no artigo 212.º do Código Penal, que assume natureza semipública (com excepção das situações contempladas nos artigos 207.º, ex vi do n.º 4 do artigo 212.º, 213.º e 214.º do Código Penal), o procedimento criminal está dependente da apresentação de queixa por parte do titular do respectivo direito, considerando o artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal como tal «o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação».

Os termos em que se apresenta a questão controvertida evidenciam que a questão da legitimidade para a apresentação de queixa no crime de dano ganha autonomia e configuração próprias, quando o titular de um interesse legítimo relativamente à coisa atingida pelo dano, que não é proprietário, pretender exercer o direito de queixa para perseguição criminal do agente responsável pela lesão.

Com efeito, a realidade das coisas revela a existência de uma pluralidade de situações, assumidas e enquadradas por soluções jurídicas, em que o titular do direito de propriedade, ainda que de modo tendencialmente temporário, não exerce efectivamente as faculdades de gozo, de fruição ou de uso de uma coisa móvel ou imóvel, sejam tais situações decorrentes ou constituídas por força de contrato ou por outros modos previstos na lei. Bastará pensar, por exemplo, nos direitos reais de usufruto, de uso e habitação, de superfície ou de servidão predial, ou nos direitos obrigacionais decorrentes dos contratos de comodato, de algumas espécies comuns da compra e venda, de locação financeira ou de simples locação.

Nas sociedades actuais e nas implicações dinâmicas da economia e da funcionalidade instrumental dos bens, o direito de propriedade perdeu alguma da sua expressão modelar, ao mesmo tempo que foram ganhando importância novas realidades, muitas delas de índole marcadamente financeira, que concedem direitos de gozo, de uso e de fruição sobre uma coisa desligados da titularidade jurídica e formal do direito de propriedade, mas em que o utilizador actua e se comporta numa relação de utilidade efectiva sobre a coisa, procedendo até em substancial identidade com a posição do proprietário nos casos em que exista a legítima expectativa de adquirir a coisa em determinado prazo, desde que assegure o cumprimento de cláusulas contratuais com base nas quais se define a sua posição jurídica.

As expressões que a realidade e as exigências do mercado e da economia dos bens foram construindo constituem consequências deste outro enquadramento jurídico-funcional da propriedade.

Importará, pois, equacionar a questão controvertida tendo em atenção as construções jurídicas, umas há muito reconhecidas pelo sistema, outras que têm vindo a ganhar sucessivamente relevância.

Na doutrina e na jurisprudência nacionais têm-se manifestado divergências a respeito da tradução jurídico-processual do estatuto normativo que a evolução tem colado ao regime nuclear e tradicional da propriedade.

Como revelam as decisões em oposição, no caso em que a coisa venha a ser intencionalmente destruída, danificada, desfigurada ou inutilizada por outrem, uma posição mais abrangente defende que, a par do proprietário, quem aproveita validamente as utilidades da coisa tem também legitimidade para apresentar a respectiva queixa, abrindo o procedimento criminal contra o autor da destruição ou danificação (acórdão recorrido).

Já uma posição mais restritiva defende diverso entendimento, no sentido de que a legitimidade deverá ser reconhecida única e exclusivamente ao proprietário da coisa, podendo, se for o caso, o titular dos direitos de gozo, de uso e de fruição usar dos meios cíveis disponíveis para obter a reparação dos prejuízos causados pela conduta delituosa (acórdão fundamento).

As posições da jurisprudência partilham esta divergência.

No Supremo Tribunal expressaram-se posições divergentes; pronunciando-se pela posição mais expansiva, o Acórdão de 30 de Setembro de 1999, processo 99P140, decidiu no sentido de que no crime de dano o ofendido referido no n.º 1 do artigo 113.º do CP é não só o proprietário, mas também o possuidor, aquele a quem está confiada pelo dono a fruição do bem [no caso um veículo automóvel afecto à Polícia Municipal, mas que pertencia ao município]; no sentido da posição mais restritiva o Acórdão de 29 de Abril de 1999, processo 99P164, decidiu que pertencendo o direito de queixa ao proprietário, o Ministério Público carecia de legitimidade para o exercício da acção penal, por crime de furto de uso de veículo, apesar da existência de queixa apresentada contra o arguido pelo filho do proprietário do mesmo veículo.

Também na jurisprudência das Relações se manifestam divergências, havendo decisões umas vezes no sentido de que apenas o proprietário tem legitimidade para apresentar queixa, outras no sentido de considerar a posse ou um mero poder de facto sobre a coisa como condição de integração da legitimidade para a queixa.

No primeiro sentido, entre outros: orientando-se no sentido de que aquele a quem um veículo automóvel foi emprestado não pode exercer o direito de queixa relativamente ao crime de dano, o Acórdão da Relação de Coimbra de 14 de Junho de 1989, in Colectânea de Jurisprudência, t. iii, de p. 99 a p. 101, ou, com idêntico sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 20 de Maio de 1998, disponível em www.colectaneadejurisprudencia.com; negando legitimidade ao arrendatário do prédio rústico para apresentar queixa por crime de dano perpetrado contra o prédio, o Acórdão da Relação do Porto de 16 de Maio de 1990, acessível em www.dgsi.pt; entendendo que quem detém a coisa, mas não tem a sua posse, não tem legitimidade para apresentar queixa pelo crime de dano, o Acórdão da Relação do Porto de 4 de Junho de 2003, acessível em www.colectaneadejurisprudencia.com.); defendendo que no crime de dano só o proprietário da coisa tem legitimidade para exercer o direito de queixa, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 6 de Outubro de 1993 e de 7 de Janeiro de 1998, da Relação do Porto de 5 de Julho de 2006 e da Relação de Coimbra de 6 de Dezembro de 2006, disponíveis em www.dgsi.pt, ou os Acórdãos da Relação de Lisboa de 9 de Março de 1993 e da Relação de Guimarães de 14 de Maio de 2007 e de 16 de Novembro de 2009, estes acessíveis emwww.colectaneadejurisprudencia.com).

No sentido de que a posse ou um mero poder de facto constitui condição de legitimidade, os Acórdãos da Relação do Porto de 20 de Junho de 2001, da Relação de Lisboa de 20 de Junho de 2006 e da Relação de Coimbra de 13 de Junho de 2007, reconhecendo legitimidade ao locatário de um veículo em regime de locação financeira para apresentar queixa pelos danos provocados no veículo, acessíveis em www.dgsi.pt; reconhecendo ao detentor ou ao possuidor da coisa, como o arrendatário, a titularidade do interesse juridicamente protegido no crime de dano, o Acórdão da Relação de Lisboa de 9 de Abril de 1997, os Acórdãos da Relação de Évora de 26 de Fevereiro de 2002, de 8 de Janeiro de 2008 e de 3 de Junho de 2008, acessíveis em www.colectaneadejurisprudencia.com, ou o Acórdão da Relação do Porto de 5 de Novembro de 1997, este disponível em www.dgsi.pt; defendendo que no crime de dano o ofendido tanto pode ser o proprietário como quem, não o sendo, se encontra legitimado a deter, usar e fruir a coisa, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 6 de Março de 2003, da Relação do Porto de 12 de Março de 2008 e da Relação de Coimbra de 11 de Novembro de 2009, acessíveis em www.dgsi.pt.

7 - A natureza da controvérsia explica, por si, a metodologia que há-de ser prosseguida para a solução do caso. A conclusão que venha a encontrar-se está dependente fundamentalmente da interpretação do conceito de ofendido que o n.º 1 do artigo 113.º do Código Penal utiliza, e que, no rigor, pressupõe a prévia indagação do bem jurídico tutelado pela incriminação do artigo 212.º do Código Penal, por forma a apreender o melhor sentido da noção de «coisa alheia» («coisa», para este efeito, com o sentido de «coisa destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada»), e, assim, identificar o «interesse especialmente protegido» e o seu titular em cada constelação factual com expressão normativo-funcional.

8 - O direito penal é, fundamentalmente, ainda hoje e desde as concepções iluministas de há dois séculos, o direito de tutela subsidiária de bens jurídicos (bens jurídico-penais) cuja lesão se revela digna de tutela e necessitada de pena.

O bem jurídico, como critério e fundamento de tutela penal (concepção teleológico-funcional e racional do bem jurídico), assume um conteúdo material de corporização de valores que possam servir de indicador útil do conceito material de crime.

O bem jurídico constitui a expressão de um interesse da pessoa ou da comunidade na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante, e por isso juridicamente reconhecido como valioso (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, t. i, 2.ª ed., pp. 114 e segs.).

O conceito teleológico-normativo, tradicionalmente seguido, conduz à fixação do bem jurídico a partir da identificação dos valores ínsitos ou promovidos pela norma penal. O interesse público ou comunitário apresenta-se sempre como prioritário ou prevalecente.

Assim, a identificação do bem jurídico de um crime depende essencialmente da análise rigorosa dos seus elementos típicos, e não da sua inserção sistemática ou do seu nome, elementos que deverão também ser considerados, Tal não significa que todos os interesses lesados devem ser promovidos a bens jurídicos.

A expressão da dignidade penal e da carência de tutela penal para determinados bens resulta da ordenação axiológica jurídico-constitucional, no sentido de que só bens jurídicos de valor constitucional podem ser legitimamente protegidos pelo direito penal.

Sempre que for identificado um interesse determinado, corporizado num concreto portador, que não se confunda com o interesse (típico do lesado) no simples ressarcimento do dano sofrido, nem com o interesse geral na mera vigência das normas penais (as expectativas comunitárias), estaremos perante um bem jurídico protegido.

Nesta relação de conteúdo e correspondência de sentido está a subsidiariedade da tutela e a natureza e função do direito penal como ultima ratio de protecção de bens jurídicos.

A intervenção mínima do direito penal significa, pois, que só deve intervir quando a tutela conferida pelos outros ramos do ordenamento jurídico não for suficientemente eficaz para garantir a manutenção dos valores e bens considerados vitais ou fundamentais da pessoa ou da sociedade. Nesta relação está o carácter subsidiário do direito penal, que significa intervenção fragmentária no quadro do ordenamento jurídico instrumental - protecção dos valores e bens fundamentais, essenciais e necessários para garantir a preservação e integridade da axiologia constitucional.

Assim, só depois da análise concreta, caso a caso, da tipicidade da incriminação se pode chegar à identificação do ou dos bens jurídicos protegidos e consequentemente dos seus titulares.

O artigo 212.º, inserido no capítulo ii do título ii da parte especial do Código Penal (referente aos «crimes contra a propriedade»), dispõe que «quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».

A inserção do artigo 212.º do Código Penal revela, pelas indicações semânticas que identificam o seu lugar sistemático, que o bem jurídico protegido pela incriminação do dano é a propriedade, como conceito que terá o sentido que for decorrente dos valores e bens que a categoria referencial possa comportar.

O crime de dano apresenta, em termos comparados, uma grande dispersão de modelos na construção da infracção. No que respeita às modalidades da conduta punível e da construção das modalidades de acção típica, a lei nacional acolheu como condutas típicas e ao mesmo tempo modalidades de acção, «destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável» uma coisa.

Subjacente à dispersão de modelos e soluções está o peso das controvérsias entre a teoria da substância e a teoria da função, a que posteriormente acresceria a teoria do estado, sendo tendência hoje dominante a adopção de uma compreensão assente na combinação de todas elas. Como a mais elementar perspectiva histórica permitira concluir, a história do dano é a história da expansão da respectiva factualidade típica a partir da teoria de substância na direcção da teoria da função e, por último, da teoria do estado.

A diversidade de verbalizações que separam as legislações acaba por ter como reflexo uma grande convergência ao nível das soluções prático-jurídicas (cf., Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, t. ii, pp. 206 e segs.).

Alguma doutrina considera que «o bem jurídico protegido no crime de dano é a propriedade, em relação à qual a infracção configura 'o atentado mais intensivo' [...]. A incriminação do dano protege a propriedade (alheia) contra agressões que atingem directamente a existência ou a integridade do estado da coisa. Deve, contudo, precisar-se que - salvo nos casos extremados de destruição da coisa - o direito de propriedade qua tale não é atingido. O que é atingida é apenas uma dimensão ou direito decorrente daquele: o domínio exclusivo sobre a coisa [...], isto é, o direito reconhecido ao proprietário de fazer da coisa (e de lidar com ela como) o que quiser, retirando dela, no todo ou em parte, as gratificações ou utilidades que ela pode oferecer [...].» «A incriminação não protege directa e tipicamente o património, podendo, por isso, sustentar-se que o Dano não configura um crime contra o património.

Embora o prejuízo patrimonial configure uma consequência ou efeito normal do Dano, tal não é inevitável nem necessário. Pode consumar-se o crime de Dano sem que tenha como reflexo um prejuízo patrimonial» (Costa Andrade, op. cit.).

Esta posição suscita, contudo, controvérsia, manifestando-se outras posições em sentido diverso, com curso na doutrina e tradução na jurisprudência, quanto à dimensão e à natureza do bem jurídico protegido e da tendencial homogeneidade relativamente a outros modelos típicos de crimes «contra a propriedade», de que é exemplo o furto, sem afectar a diferença estritamente dogmática entre categorias; o mesmo ou idêntico bem jurídico pode conviver com diferentes modos típicos de protecção apesar das diversas fenomenologias subjacentes a diversos modos de afectação e das diversas construções dogmáticas.

Mesmo tendo em consideração que as especificidades do dano são bastantes para «singularizar a infracção face aos demais crimes contra a propriedade», nomeadamente o furto, a distinção está mais «no plano fenomenológico como no plano estritamente dogmático», porque o dano «configura uma des-apropriação que não tem como reverso uma apropriação, porquanto a incriminação do dano só protege a propriedade face a estas manifestações - des-apropriação sem apropriação - quando põe em causa a integridade da coisa.» Com efeito, «se em muitas circunstâncias na afectação de uma coisa, com ou sem des-apropriação, é a simples relação de propriedade que é ofendida pelo crime, porquanto coincidem no ofendido as qualidades de proprietário e fruidor do gozo (posse e mera posse) atinente às utilidades da coisa, não é menos certo verificar-se, em outros casos, uma separação ou um corte, juridicamente aceite e até tutelado, entre aquelas duas qualidades». Por isso, «em termos de lógica material, e não na base de uma pura e estéril relação jurídica formal, custe a admitir-se que, se entre o que tem a coisa e a própria coisa existe tão-só uma relação de mera posse, se diga que o bem jurídico violado tenha sido a propriedade. Quem é ofendido na fruição das utilidades que da coisa podem ser retiradas é, [então], o mero possuidor. Daí que a relação jurídico-penalmente relevante seja a relação de gozo». Por outro lado, «se as qualificações legais têm ou podem ter um valor indiciário de correcção dogmática, não é menos verdadeiro não existir qualquer obrigação, para o intérprete, no sentido de seguir as orientações de qualificação dogmática, repete-se, do legislador». (cf., Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, t. ii, pp. 30 e segs.).

A relação de gozo pode, pois, ser considerada como uma inequívoca realidade susceptível de protecção penal no âmbito de crime «contra a propriedade», ao lado ou concomitantemente com a relação típica ou jurídica formal de propriedade. A questão está em determinar «como qualificar aquela ou aquelas precisas relações», ou seja, se simples relações de facto com a coisa, especificamente implicadas na posse ou na mera posse ou, em outra perspectiva, «nas relações jurídicas decorrentes do direito de propriedade e nos direitos reais complexivamente considerados, ou em todos estes e ainda nos direitos pessoais de gozo».

A estrutura e a dimensão relacional entre a pessoa e a coisa para ter um mínimo de consistência e relevância juridicamente tutelada aponta para que o bem jurídico se identifique com uma especial relação de facto sobre a coisa - poder de facto sobre a coisa - tutelando-se, dessa maneira, a detenção ou mera posse como disponibilidade material da coisa; como disponibilidade da fruição das utilidades da coisa «com um mínimo de representação jurídica», quando esteja em causa uma «agressão ilegítima ao estado actual das relações, ainda que provisórias, dos homens com os bens materiais da vida na sua exteriorização material».

Na verdade, o que, hoje, «verdadeiramente conta, sobretudo nas coisas móveis - pense-se em toda a panóplia de novas formas contratuais que privilegiam a posse ou a mera posse, v. g. leasing, aluguer de longa duração, etc. - é o valor de uso» que é «representado como elemento merecedor de protecção jurídico-penal».

«Não tem sentido falar-se de que é protegida, in casu, a abstracção que o direito de propriedade qua tale, representa. Para ter valor dogmático, que não valor político-criminal, a noção de bem jurídico tem de ser vista como um pedaço da realidade merecedor de tutela jurídico-penal. Enquanto pedaço da realidade, não é tanto o direito de propriedade que interessa, mas antes a especial relação que intercede entre o detentor da coisa e a própria coisa. É esse pedaço relacional, essa especial ligação, esse domínio, que em princípio afasta o outro do gozo da própria coisa, que fazem com que essa concreta e viva relação seja objecto de tutela jurídico-penal. Se as mais das vezes essa relação está sustentada jurídico-civilmente pelo direito de propriedade, isto não significa que deva ser este o objecto de tutela.» (cf., Faria Costa, op. cit., pp. 31-32).

Nos crimes contra a propriedade ou, neste sentido, em geral, o património ou a patrimonialidade, protege-se, pois, a relação jurídica entre uma pessoa e uma coisa; a relação do homem com as suas coisas e as coisas dos outros, enquanto permissão de fruição e proibição de intromissão.

Mas, como representação jurídica, está protegida como bem jurídico, em primeiro alinhamento, a propriedade, tomado o conceito pela relação jurídico-formal e com o conteúdo típico colhido no direito civil.

O bem jurídico tutelado no conteúdo civil do direito de propriedade - artigo 1305.º do Código Civil - coincide com os poderes do proprietário, que goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições legalmente impostas.

O conteúdo do direito de propriedade traduz o conjunto das faculdades que são reconhecidas ao respectivo titular: o gozo de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, de fruição e de disposição da coisa, possibilitando ao seu titular o máximo aproveitamento da coisa nas várias utilidades que possa permitir ou ela retirar, sejam directas, indirectas ou instrumentais.

O direito de propriedade sobre uma coisa reconhece ao seu titular a generalidade das faculdades atribuíveis a um particular, com vista ao aproveitamento pleno e exclusivo das respectivas utilidades e dirigido à satisfação de necessidades legítimas, constituindo, por regra, o lugar jurídico de mais intensa possibilidade da relação de gozo e fruição entre o titular e a coisa.

Deste modo, o conceito de propriedade mostra-se perfeitamente delimitado em relação com os denominados direitos reais menores, e conceptualmente mostra-se distinto dos outros direitos reais (v. g. usufruto, uso e habitação, superfície, servidão) e dos direitos obrigacionais que tenham por objecto mediato uma coisa (v. g. comodato, locação).

A tutela penal pode, pois, assim distanciar-se das categorias estritas do direito civil, assumindo um «significado próprio e autónomo de património para efeitos criminais».

No entanto, na maior parte das situações a relação penalmente tutelada coincide com a relação típica e formal de propriedade; mas cada vez mais a relação de fruição de utilidades entre os sujeitos e as coisas não tem de ser coberta por um nexo juridicamente conformado como de propriedade. Há, muitas vezes, distinção jurídica formal entre quem é proprietário da coisa e quem frui ou goza as respectivas utilidades, e em tais casos a violação da relação de fruição é tão carecida e merecedora de tutela penal como é a violação da relação de propriedade (cf., Faria Costa, op. cit., pp. 31-32).

Dependendo, assim, da diversidade das constelações típicas, das modalidades da acção e do resultado sobre as utilidades relevantes atingidas, o bem jurídico protegido pode coincidir com a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica.

Nesta dimensão, o dano corresponde a uma certa forma de agressão, ilegítima e, por isso, susceptível de censura jurídico-penal, ao estado actual das relações correctamente estabelecidas, dos homens com os bens materiais, valendo, nesta perspectiva, o valor de uso (mais relevante no domínio das coisas móveis, onde existe uma proliferação acentuada de tipos contratuais), de forma que, existindo um dano, quem sente o sacrifício da privação da coisa é quem dela podia retirar utilidades.

Frederico Lacerda da Costa Pinto assinala, a este respeito, que «[...] o sistema penal não prossegue, nem deve prosseguir, uma tutela ideológica dos valores patrimoniais, mas sim e apenas uma protecção funcional dos bens afectos, directa e indirectamente, a esferas individuais». Esta afirmação é entendida como «decorrência de uma concepção personalista da teoria do bem jurídico, proposta por Hassemer, segundo a qual os interesses gerais só podem ser legitimamente reconhecidos na medida em que sirvam interesses pessoais, rejeitando-se qualquer funcionalização de sentido inverso, isto é, em que os interesses pessoais sejam diluídos sob a capa dos interesses gerais [...]» (in «Jornadas de direito criminal», Revisão do Código Penal, vol. ii, CEJ, 1998, p. 468).

Pode dizer-se, assim, que existem interesses de carácter fundamental, que justificam uma concepção mais abrangente do bem jurídico protegido pela incriminação do artigo 212.º do Código Penal, no sentido de integrar, além da relação jurídica formal de propriedade, outros direitos e interesses legítimos de uso, de gozo e de fruição da coisa - um poder de facto sobre a coisa, assente numa «representação jurídica» «que permita a fruição das respectivas utilidades» (cf., a propósito do lugar paralelo do crime de furto, Paulo Saragoça da Matta, «Subtracção de coisa móvel alheia», in «Liber Discipulorum» para Jorge de Figueiredo Dias, 2003, pp. 993 e segs., desig. P.

995-996).

9 - O crime de dano do artigo 212.º do Código Penal prevê e pune a destruição, danificação, desfiguração ou a inutilização (tornar não utilizável) de coisa «alheia».

Para efeitos do crime de dano, «coisa» é, porém, unicamente, como decorre da descrição típica, a «coisa corpórea», por ser a única susceptível de ser destruída, danificada ou desfigurada. O «dano» é, aqui, material, físico ou instrumental, e funcional, não podendo ser «não patrimonial», «biológico» ou «corporal», que não têm conexão com as condutas típicas de dano previstas pelo artigo 212.º do Código Penal.

O conceito de coisa é aqui mais restrito do que em direito civil - definido como «tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas» (artigo 202.º do Código Civil) - uma vez que só as coisas corpóreas podem ser objecto de Dano [...] Ficam, assim, excluídos do conceito de coisa como elemento da factualidade típica do Dano os possíveis objectos da relação jurídica que se revestem de estrutura relacional (v. g., os direitos), por contraposição às realidades de índole ou estrutura «substancial». A «corporeidade» deve entender-se no sentido de se tratar de coisa materialmente apreensível ou, de qualquer forma, exposta à acção (destruidora ou modificativa) do homem [...]» - cf. Manuel da Costa Andrade, op. cit. p. 208.

A execução de actos de destruição, de desfiguração ou de inutilização de coisa alheia representa, por via de regra, um prejuízo patrimonial, uma diminuição do valor ou da utilidade económica da coisa, tanto para o proprietário como para todos aqueles que sobre ela têm a disponibilidade de fruição das suas utilidades. A destruição de um automóvel, por exemplo, na normalidade das situações, tanto comporta ofensa para a esfera patrimonial do seu dono, que se vê privado do valor comercial do veículo, como para aquele que nele circula e o conduz diariamente com o consentimento do primeiro, que deixa de poder retirar do veículo todas as suas normais utilidades.

A tipicidade do dano exige que a coisa seja corpórea, pois só as coisas corpóreas podem ser objecto de dano, com o sentido de destruição, danificação, desfiguração ou acção que torne a coisa não utilizável; neste sentido, o crime de dano protege a «coisa», seja móvel ou imóvel, com o sentido de coisa corpórea ou material, por ser a única susceptível de ser destruída, danificada, desfigurada ou inutilizada.

A marca distintiva de certos crimes «contra a propriedade», dentro do universo dos crimes de protecção da patrimonialidade, prende-se especificamente com a tutela penal da «coisa». Seja no crime de dano, seja em outros crimes do mesmo lugar sistemático (v. g., o furto), a «coisa» constitui sempre o objecto material da acção típica, entendida como toda a substância corpórea, móvel ou imóvel, susceptível de ser danificada no sentido amplo do termo.

Deste modo, como se salientou, para efeitos jurídico-penais o conceito de «coisa» no crime de dano pode não coincidir com o conceito utilizado pelo direito civil (artigo 202.º do Código Civil), reconduzindo-se antes aos objectos ou coisas que possam ser danificados, o que significa que as coisas incorpóreas não são susceptíveis de integrar as modalidades do tipo, sendo excluídas da acção típica de danificar.

A tipicidade do crime de dano exige também que a coisa seja «alheia». A alieneidade contém uma primeira referência sobre a titularidade dos bens jurídicos, e consequentemente, com a esfera pessoal de protecção; a referência à titularidade do bem jurídico protegido surge, assim, já na noção de «coisa alheia» constante do n.º 1 do artigo 212.º do Código Penal.

A coisa deve, pois, ser «alheia». Alheia, no sentido de ligação por uma relação de interesse a pessoa diferente daquela que pratica a infracção.

Tradicionalmente, «coisa alheia» é aquela que não é própria, isto é, a que não pertence ao agente, o que pressupõe que seja pertença de alguém, de um terceiro, mesmo que perdida ou esquecida. Por isso, em estrita conexão formal, não é «coisa alheia» aquela que não tem dono (res nullius), nem aquela que foi abandonada (res derelicta).

Na perspectiva do agente do crime de dano, a coisa é alheia quando não lhe pertence, quando a titularidade da coisa se encontra atribuída a outrem, seja ao seu proprietário, seja a todos aqueles que possam exercer e exerçam as faculdades particulares que integrem poderes do proprietário. De facto, perante a natureza instrumental de fruição da coisa, não resulta forçosa e necessariamente que seja sempre o proprietário o único atingido pelas consequências (o resultado) da prática do crime, ou até que o proprietário seja sempre prejudicado pela prática do crime de dano. Frequentemente a execução de actos de danificação, ou que especificamente tornem não utilizável a coisa, colidem com direitos e interesses legítimos e juridicamente relevantes, que não os do proprietário pleno da coisa.

Nesta perspectiva, o elemento de alieneidade da coisa servirá essencialmente para excluir do âmbito da protecção da norma as condutas em que a coisa é danificada pelo exclusivo proprietário, ou em que nenhum direito ou interesse se mostre atingido pela conduta do sujeito activo, por ninguém se ter apropriado da coisa.

Em suma: o tipo objectivo do crime de dano traduz-se na prática dos actos descritos como modalidades de acção e resultado («destruir, no todo ou em parte», «danificar», «desfigurar», «tornar não utilizável»), relativamente a uma coisa móvel ou imóvel alheia, isto é, uma coisa que não pertence ao agente.

Os actos previstos na incriminação como modalidades da acção e do resultado podem consistir, como se salientou, em destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável a coisa.

«Destruir» significa a perda da individualidade da coisa mesmo que não desapareça a matéria de que esta é composta, o que pode implicar o sacrifício da sua substância, na forma mais drástica do cometimento deste crime; «danificar» constitui um estrago substancial da coisa, sem perda total da sua integridade, mas com diminuição do seu valor económico ou da sua utilidade específica; abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição; «desfigurar» traduz uma ofensa irremediável da estética da coisa, mesmo ainda que a sua estrutura não seja afectada, e a alteração da imagem exterior da coisa, relativamente àquela que possuía originariamente; e «tornar não utilizável» será tornar a coisa, mesmo que temporariamente, inadequada ao fim a que estava destinada, mantendo esta contudo a sua individualidade, reduzindo a utilidade da coisa relativamente à sua função.

De todo o modo, em qualquer das modalidades, a acção típica tem de atingir um limiar mínimo de intensidade (danosidade social), que significa também a exigência de um valor mínimo da coisa.

A destruição (na escala do desvalor entendida como o grau máximo de dano) significa a perda total ou parcial da utilidade da coisa, implicando, normalmente, o sacrifício da sua substância; a danificação abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição, podendo concretizar-se pela produção de uma lesão nova ou pelo agravamento de uma lesão preexistente. Por sua vez, a desfiguração abrange todos os atentados à integridade física que alteram a imagem exterior da coisa, e tornar não utilizável refere as acções que reduzem as utilidades da coisa perturbando a funcionalidade, com afectação relevante da sua função.

Há, assim, na materialidade típica do crime de dano uma aproximação comum e social ao conceito de coisa, que constitui simultaneamente uma referência física e material: um conceito «operacional», no sentido de conceito jus-penal de coisa com «autónoma corporeidade».

No tipo legal de dano, o legislador quis proteger a coisa corpórea em toda a sua integralidade, procurando salvaguardar quer o seu estado, quer a sua substância ou ainda a sua funcionalidade. Com a incriminação do dano, a lei penal procura assegurar a plena disponibilidade da coisa contra ingerências ou intromissões de sujeitos em relação aos quais seja «alheia», pretendendo que a coisa mantenha a sua integridade, o seu valor económico, o seu aspecto estético, a sua funcionalidade.

Ao estabelecer a incriminação, o legislador penal não desconheceria certamente as variadíssimas situações da vida em que o titular do direito de propriedade não exerce efectivamente as faculdades de gozo, de uso ou de fruição da coisa, nem tão-pouco que frequentemente a execução de actos de danificação da coisa em sentido lato pode afectar e afecta essencial ou especialmente os titulares de direitos ou interesses legítimos, com efectiva representação e consistência jurídicas, ao lado do titular do direito de propriedade, ou ainda que nem sempre são coincidentes as posições assumidas por uns e outros.

Tal como se mostra configurada - composta pelas condutas típicas de destruição, danificação, desfiguração ou de inutilização funcional - a incriminação protege amplamente todos esses direitos e interesses.

Por regra, na normalidade dos casos, o detentor ou o possuidor ficará, de modo mais directo, afectado pela perda ou pela diminuição da funcionalidade da coisa, já que a sua interacção com as utilidades da coisa, do seu uso e da sua fruição é directa e com intensidade de primeira linha. Por seu turno, o proprietário, enquanto titular do poder de disposição, estará mais interessado em que a coisa mantenha o seu valor económico, que não haja prejuízo para o seu estado ou para a sua substância.

A estrutura relacional dos interesses entre a pessoa e a coisa não pode ser considerada de forma estanque, dada a pluralidade de casos e de intersecção entre a conduta típica, o resultado sobre a coisa e o interesse protegido.

Haverá, por isso, em cada caso, que analisar em moldes intra-sistemáticos a noção relacional entre a pessoa e as utilidades de gozo ou fruição que se podem retirar da coisa para determinar o interesse especialmente protegido.

10 - Na construção e formulação típica de base o crime de dano tem natureza semipública, por o respectivo procedimento criminal depender de queixa (artigo 212.º, n.os 1 e 3, do Código Penal), tendo legitimidade para apresentar queixa o ofendido, considerando a lei como tal «o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação» (artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal).

A noção de queixa tem conteúdo e natureza processual específicos; não constitui, como a denúncia, a simples transmissão do facto com relevância criminal, isto é, não constitui processualmente queixa uma simples declaração de ciência feita acerca de um facto. A queixa exige que se manifeste nessa declaração uma vontade específica de perseguição criminal pelo facto, e distingue-se nos seus elementos da denúncia, pois na queixa, além da declaração de ciência na transmissão da ocorrência de um facto, exige-se ainda «uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para procedimento criminal contra o agente» (cf., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2.ª ed., Editorial Verbo, t. iii, de p.

55 a p. 59).

Todavia, não é toda e qualquer pessoa eventualmente afectada pela prática de um crime que pode formular essa manifestação de vontade, ou seja, que pode validamente apresentar queixa contra o autor dos factos, mas somente o «ofendido» (cf., Manuel Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, 1955, p. 129, e Germano Marques da Silva, in op. cit., t. i, p. 263).

E o ofendido, como categoria determinante, é, na expressão da lei, «o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação», no que constitui a identificação do critério para definição da legitimidade para o exercício do direito de queixa.

11 - O artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal exige, pois, como condição de legitimidade, a existência de um interesse que a lei quis «especialmente» proteger com a incriminação, isto é de um interesse específico, particularmente qualificado, que intercede na relação entre o bem jurídico e o sujeito afectado. Deste modo, só será «ofendido» quem for titular de um interesse legítimo, tutelado pela lei, concretizado e inserido de modo funcionalmente relevante, na relação teleológico-funcional entre o bem jurídico e o sujeito afectado.

O conceito de «interesse especialmente protegido» tem sido construído e densificado pela doutrina e pela jurisprudência de modo sedimentado.

Não se trata de todo e qualquer ofendido (o Código de Processo Penal utiliza a expressão com um sentido mais amplo em outras disposições - v. g. nos artigos 30.º, 39.º, 87.º, 88.º, 138.º, 203.º, 215.º, 243.º, 283.º, 383.º e 387.º), mas só do que for titular de um «interesse especialmente protegido».

O Código de Processo Penal retomou, assim, para este efeito específico, a fórmula do direito processual anterior (artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei 35 007, com referência ao artigo 11.º do CPP de 1929), não obstante a amplitude do conceito de lesado ou ofendido que a lei de processo utiliza em outro contexto e com diversa finalidade processual: «todas as pessoas civilmente lesadas a pela infracção penal».

No domínio do Código de Processo Penal de 1929, com fórmula semelhante sobre «o que deve entender-se pela expressão partes particularmente ofendidas», Beleza dos Santos (Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 57, 2248, de p. 2 a p. 4) salientava que deveriam «assim considerar-se os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma penal. Quando prevê e pune os crimes, o legislador quis defender certos interesses: o interesse da vida no homicídio, o da integridade corporal nas ofensas corporais, o da posse ou da propriedade no furto, no dano ou na usurpação de coisa alheia. Praticada a infracção, ofenderam-se ou puseram-se em perigo estes interesses que especialmente se tiveram em vista na protecção penal, podendo também prejudicar-se secundariamente, acessoriamente, outros interesses. Os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente por fim proteger quando previu e puniu a infracção e que esta ofendeu ou pôs em perigo são as partes particularmente ofendidas, ou directamente ofendidas. E que, por isso, se podem constituir acusadores».

«Os titulares de interesses secundários que foram prejudicados pelo crime, não são 'particularmente' ofendidos [...]» O advérbio «especialmente» usado pela lei significaria, pois, de modo especial, num sentido de «particular» mas não «exclusivo».

A doutrina, em geral, não diverge sobre a categoria e a densificação da noção de «interesse especialmente protegido». As dificuldades resultam, não tanto da formulação e da estrutura conceptual, mas da passagem da definição in abstracto para as situações concretas relativamente a cada tipo de crime - tanto nas modalidades de acção, como no resultado sobre o objecto, avaliados no espaço relacional entre o titular e o bem.

Jorge de Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, i vol., pp. 509 e 510) defende, v. g., um conceito de ofendido estrito ou limitado, que não abrangesse toda a pessoa que, de qualquer maneira e em qualquer grau, fosse afectada nos seus interesses jurídicos por uma infracção, considerando que a adopção de um conceito lato ou extensivo de ofendido, que abrangesse todas as pessoas civilmente lesadas pela infracção penal, tornaria o processo penal, sob todas as perspectivas, numa autêntica acção privada.

Faria Costa, por seu lado (ob. cit), assinala que a lei penal não exige que o ofendido seja titular do direito protegido pela incriminação. O n.º 1 do artigo 113.º do Código Penal menciona expressamente o «titular dos interesses», o que significa que pode ser reconhecida legitimidade para o exercício dos direitos processuais do ofendido a quem represente simplesmente um interesse, sem ser titular do direito.

Pode, assim, dizer-se que a orientação pacífica na doutrina durante décadas assentava não só na clareza e persistência do mesmo texto legislativo, como no facto de ser a solução coerente com o carácter público do processo penal, que conceptualmente não admitiria com facilidade a participação dos ofendidos com poderes que fossem já de verdadeiro sujeito processual.

Do conceito restrito de ofendido retirava a jurisprudência uma concepção também restritiva de bem jurídico, que levou à denegação da admissibilidade de assistente nos processos por crimes considerados exclusivamente públicos, e também por outros crimes entendidos como protegendo apenas interesses supra-individuais.

Porém, ao longo das duas últimas duas décadas, algumas posições foram preconizando uma maior «abertura» no acesso ao estatuto de assistente e à qualidade de ofendido nos respectivos poderes processuais, quer através da reelaboração do conceito de «bem jurídico», quer pela aceitação um «conceito amplo» de ofendido.

No entanto, mesmo a assunção de um conceito estrito de ofendido não resolverá decisivamente a questão da legitimidade, que se deve situar na análise do bem jurídico protegido, entendido já não como «mero valor ideal ínsito na ratio da norma, para passar a ser considerado como o substracto do valor, como valor corporizado num suporte fáctico-real. Este reajustamento do conceito de bem jurídico permitirá o reconhecimento em muitas incriminações de uma pluralidade de bens jurídicos, uns públicos, mas também outros individuais, cabendo naturalmente aos titulares dos bens jurídicos a legitimidade como ofendido.

A reconformação do conceito de «ofendido», por seu lado, seria imposta pela revalorização do papel da vítima em processo penal, e pela emergência de novos bens jurídicos de diferente estrutura dos tradicionais (bens jurídicos da sociedade civil, distintos dos bens jurídicos públicos ou estatais).

A jurisprudência também foi evoluindo para uma maior abertura na delimitação do conceito de ofendido. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Março de 2000, v. g., analisou a admissibilidade da constituição de assistente em processo por crime de denúncia caluniosa, e partindo assumidamente de um conceito restrito de ofendido, concluiu pela admissibilidade de intervenção da pessoa visada pela denúncia com o fundamento de ser portadora de um interesse especialmente protegido pela incriminação, a par do interesse público mediato.

Posteriormente, o Supremo Tribunal de Justiça confirmou a inflexão de orientação. Assim, o Acórdão de fixação de jurisprudência 1/2003, do de 16 de Janeiro de 2003 (Diário da República, 1.ª série-A, n.º 49, de 27 de Fevereiro de 2003), veio estabelecer que, em processo por crime de falsificação, previsto e punível pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente; por sua vez, o Acórdão de fixação de jurisprudência 8/2006, de 12 de Outubro de 2006 (Diário da República, 1.ª série-A, n.º 229, de 28 de Novembro de 2006), reconheceu igualmente legitimidade para se constituir assistente, em processo pelo crime de denúncia caluniosa, previsto e punível pelo artigo 365.º do Código Penal, ao caluniado, e por último, o Acórdão de fixação de jurisprudência 10/2010, de 17 de Novembro de 2010 (Diário da República, 1.ª série-A, n.º 242, de 16 de Dezembro de 2010), decidiu que «em processo por crime de desobediência qualificada decorrente da violação de providência cautelar previsto e punido pelos artigos 391.º do Código de Processo Civil e 348.º, n.º 2, do Código Penal» o requerente da providência é ofendido, tendo legitimidade para se constituir assistente.

Todas as decisões partiram de um conceito restrito de ofendido, assentando a sua decisão na análise do bem jurídico das incriminações que estavam em causa.

A definição de «ofendido» consta, como se salientou, da alínea a) do n.º 1 do artigo 68.º do Código de Processo Penal, estando assim circunscrito ao titular do bem juridicamente protegido, sendo o conceito legal de ofendido restrito ou, mais rigorosamente, estrito.

Importa, assim, reter que deriva da própria expressão da lei que não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois que não se integram no âmbito do conceito de ofendido os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os seus próprios e específicos.

Efectivamente, «o ofendido [...] não é qualquer pessoa prejudicada com a perpetração da infracção, mas somente o titular do interesse que constitui o objecto jurídico imediato da infracção - [...] - os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os próprios e específicos daquele que requer a sua constituição como assistente.» (v. g., Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 145/06, de 22 de Fevereiro de 2006).

Há, assim, na integração conceptual uma marcada diferenciação qualitativa entre interesses directa e indirectamente (ou reflexamente) afectados pela incriminação como conditio da legitimidade do ofendido para exercer o direito de queixa.

Perante vários possíveis interesses legítimos que sejam postos em causa pela prática de uma infracção criminal, a lei reserva o conceito de «ofendido» para o titular dos interesses «especialmente» protegidos, com o sentido de interesses directa, imediata ou particularmente protegidos pelo tipo legal incriminador, ou seja, dos direitos ou interesses que constituem a razão directa e imediata, situada em primeira linha, que fundamenta a infracção criminal.

O interesse que permite assumir a qualidade de ofendido tem de ser um (ou um dos) interesses «especialmente» protegidos com a incriminação.

O legislador penal ao utilizar o vocábulo «especialmente», fê-lo, como se referiu, no sentido de «particularmente», e não já com o sentido de «exclusivamente».

Podem, deste modo, coexistir mais de um ofendido com a prática de um crime e, nessa medida, cada um como titular de um interesse especialmente protegido.

A legitimidade do ofendido deve ser aferida em relação ao crime concreto que estiver em causa, e a delimitação do conceito relevante de «ofendido» encontrar-se-á, no limite, na interpretação do tipo de crime, para determinar caso a caso se há uma pessoa concreta cujos interesses são protegidos com essa incriminação e não confundir essa indagação com a verificação da natureza pública ou não pública do crime.

O critério de determinação será, no fim de contas, tributário da natureza da incriminação, ou seja, fundamentalmente do bem jurídico protegido pela norma penal, da estrutura relacional do bem e da maior ou menor amplitude do efeito ofensivo das condutas típicas sobre o bem jurídico. Será, pois, perante um determinado crime, o crime de dano ou qualquer outro que importará verificar se a incriminação admite, em concreto, a existência de um ou de mais de um titular de interesse especialmente protegido pela incriminação.

A lei penal não exige a titularidade do direito, bastando a representação de um interesse para o reconhecimento da qualidade de ofendido.

No caso específico do crime de dano, não será todo e qualquer exercício de um poder de facto sobre a coisa danificada que legitimará processualmente a manifestação de vontade de prossecução do processo penal, mas apenas quando exista um interesse específico, que a lei define como interesse «especialmente» protegido com a incriminação.

12 - Efectuado o percurso sobre o sentido e a extensão das categorias e conceitos implicados na vexata questio, há que decidir especificamente em relação ao crime de dano, previsto no artigo 212.º do Código Penal, quem pode ser (quem é) ofendido, por ser o titular dos «interesses especialmente protegidos com a incriminação».

Na vigência do Código de Processo Penal de 1929 Figueiredo Dias pronunciou-se quanto à questão (conexa e próxima, e argumentativamente prestável) da legitimidade para a constituição de assistente em crimes contra o património, entendendo que «não podem [...] intervir no processo penal como assistentes, v. g., o mero detentor ou possuidor da coisa furtada ou descaminhada, uma vez que o interesse protegido pela incriminação do furto ou do abuso de confiança é só o proprietário;» (in Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, i vol., p. 513).

Manuel da Costa Andrade, por seu lado, argumentando especificamente a propósito fundamentalmente das situações de conflito entre o proprietário e o inquilino, defende que de acordo com o direito positivo vigente o ofendido típico no crime de dano é o proprietário, enquanto exclusivo portador do bem jurídico tutelado, ainda que reconheça que por vezes o inquilino é atingido de forma mais drástica do que o proprietário pela acção de destruição ou danificação da coisa (in Comentário, cit., Coimbra Editora, 1999, t. ii, p. 213).

Na delimitação do «interesse especialmente protegido» no crime de dano, que fundamente a legitimidade do direito de queixa, Costa Andrade refere que «a experiência do direito comparado não é unívoca. Na Alemanha e face a um ordenamento positivo homólogo, a tese da extensão do direito de queixa «a todo aquele que tem um interesse legítimo na preservação do estado subjacente da coisa» (caseiro, inquilino, mutuário) conta com o aplauso da jurisprudência e da doutrina maioritária tradicional, sendo posição onde sobressai a voz de Maurach, que se louva da sua concepção da «propriedade como função economicamente utilizável»». Esta tese - acrescenta - «é hoje contestada por um número crescente de autores que apontam o proprietário como o titular exclusivo do direito de queixa. Um direito que só assistirá ao detentor que para tal estiver legitimado pelo proprietário. [...]. Também deste lado se reconhece que, v. g., o inquilino pode ser prejudicado (não raro mais prejudicado que o proprietário) pela acção lesiva de terceiro e, por vias disso, deter um interesse maior na perseguição penal do agente. Só que, argumenta-se, é «um interesse que não obteve qualquer protecção penal no § 303 [do CP alemão]». Razão pela qual «em caso de conflito - o inquilino pretende instaurar um procedimento contra o qual se opõe o proprietário - não pode deixar de se reconhecer a prevalência do interesse do proprietário. Esta será a única solução compatível com o facto de não cometer o crime de dano o proprietário que lesa a coisa - ou o terceiro que age sob consentimento eficaz do proprietário - em prejuízo do inquilino; [...] Acresce que ao inquilino estará sempre aberto o recurso às instâncias civilistas, capazes de assegurar a satisfação adequada das suas fundadas pretensões» -cf.

Comentário, cit., pp. 236 e 237.

Embora admitindo a tese que restringe o direito de queixa ao proprietário, este autor aceita que a redacção do n.º 1 do artigo 113.º do Código Penal, com a expressão «salvo disposição em contrário», pode permitir solução diferente, desde que consagrada na lei processual penal.

José António Barreiros parece inclinar-se também no sentido mais limitativo do titular do interesse «especialmente protegido», partindo da consideração do bem jurídico tutelado pelos crimes contra a propriedade, nos quais também se inclui o crime de dano.

«A circunstância de o bem jurídico protegido nestes crimes ser a propriedade implica que apenas tem legitimidade para integrar o conceito de ofendido - e ser processualmente assistente - o proprietário e já não o mero lesado pela conduta do sujeito activo, seja ele o possuidor, o depositário, o arrendatário ou o mero detentor.» (in Crimes contra o Património, Universidade Lusíada, 1996, p. 15).

Porém, outra doutrina defende uma visão mais alargada da noção de ofendido e da identificação e limitação do bem jurídico, com repercussão processual na legitimidade para a apresentação de queixa.

Perante a vigência da versão originária do Código Penal de 1982, Jorge de Figueiredo Dias considerava que ofendido no crime de dano seria tanto o proprietário, como o possuidor da coisa, enquanto portadores do bem jurídico protegido com a incriminação (cf. Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas-Editorial Notícias, 1993, pp. 668 e 669).

Parece ser também este o entendimento de Leal-Henriques e Simas Santos, ao defenderem, embora a outro propósito, mas com espaços de proximidade, que «no crime de furto se tutela o direito do lesado à coisa móvel, um bem de natureza patrimonial, direito que, além da posse, abarca outras situações jurídicas assentes no gozo, fruição e disposição da coisa» (in Código Penal Anotado, Editora Reis dos Livros, 2000, 2.º vol., p. 622).

Por seu lado, Faria Costa, a propósito do artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal, defende que resulta «claro que o legislador, pelo menos para efeitos da legitimidade quanto ao exercício do direito de queixa, elegeu, como figura central, [...], o titular do interesse que a incriminação quis proteger e não o titular do direito», para concluir que aquele que tiver a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica é, para este feito, o titular do interesse [que a lei especialmente quis proteger com a incriminação] (cf. Comentário, cit., Coimbra Editora, 1999, t. ii, p. 33).

Em idêntico sentido, partindo da determinação do bem jurídico protegido, Paulo Pinto de Albuquerque defende também que: «o bem jurídico protegido pela incriminação é a propriedade, incluindo a posse e a detenção legítimas.

O conceito penal de 'propriedade' inclui o poder de disposição sobre a coisa, com fruição das utilidades da mesma [...]», sendo o poder de disposição sobre a coisa «delimitado de acordo com as concepções sociais vigentes [...] e não segundo os conceitos de posse da lei civil. O poder de disposição tem duas componentes: a possibilidade de domínio [...] e a vontade de domínio [...] sobre a coisa.

O conceito penal de 'propriedade' inclui o poder de facto sobre a coisa, com fruição das utilidades da mesma [...]. Portanto, o ofendido no crime de dano é a pessoa proprietária, possuidora ou detentora legítima da coisa» - cf.

Comentário do Código Penal, Universidade Católica, 2008, pp. 550 e 585.

As concepções que vêm tomando maior consistência nas formulações da jurisprudência e nas abordagens da doutrina - a jurisprudência elaborando a propósito de espécies concretas nascidas da diversidade das projecções relacionais entre a coisa e o aproveitamento das utilidades que proporciona - apontam, assim, para uma identificação do interesse «especialmente protegido» no crime de dano com a utilidade funcional, específica e efectiva da coisa por determinado sujeito, e concretamente afectada por uma das modalidades de acção do crime e do consequente resultado.

Relação de utilidade, no entanto, com «representação jurídica», no sentido de juridicamente tutelada por instrumento ou modo consistente para o direito, que constitua o modelo de legitimação e de identificação dos direitos e inerentes poderes sobre a coisa.

As relações de facto sobre a coisa terão de estar enquadradas por um modo relevante para o direito, ou seja, por uma relação jurídica suficientemente precisa na definição dos direitos e consequentes poderes - a «representação jurídica».

A fonte de legitimação e de definição do conteúdo relacional tem, pois, de estar prevista na lei, ou resultar de alguma vinculação contratual como fundamento da atribuição da disponibilidade ou da utilidade sobre a coisa - a propriedade (artigo 1305.º do Código Civil), a posse (artigos 1251.º e 1276.º), o usufruto (artigos 1439.º e 1446.º), uso ou habitação (artigo 1484.º, n.os 1 e 2), espécies contratuais típicas e nominadas - modalidades de compra e venda [artigos 879.º, alínea b), 934.º e 936.º, n.º 2]; locação [artigos 1022.º e 1031.º, alínea a)]; comodato (artigos 1129.º e 1133.º); depósito (artigos 1185.º); ou outras dependentes da vontade dos interessados que detenham direitos de atribuição sobre a coisa.

E, nesta perspectiva, e no que é relevante, o interesse protegido identifica-se com a garantia efectiva de preservação da substância ou da utilidade da coisa, e a concretização do interesse está, muito ou directamente, ligada com a natureza da agressão sobre a substância ou sobre a utilidade e funcionalidade que, em cada situação, ocorra em consequência da acção (pela pluralidade típica das modalidades e acção) e do resultado.

13 - Em aproximação final à solução da questão controvertida, poderá concluir-se que o crime de dano previsto no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal visou proteger não apenas o titular do direito de propriedade, mas também todos aqueles que legitimamente gozam, usam e fruem o bem, e que, deste modo, são titulares de interesses directos e imediatos na preservação da coisa (conservação do estado), como na fruição e disponibilidade das utilidades funcionais que proporciona (preservação da função).

O artigo 212.º do Código Penal reconhece que o valor de uso da coisa é merecedor de tutela penal, já que pode ser prejudicado pela prática das condutas típicas de destruição, danificação, desfiguração ou inutilização da coisa.

Deste modo, para efeitos do artigo 113.º, n.º 1, do Código Penal, o conceito de «ofendido» como titular dos interesses que a incriminação quis proteger, pode, assim, abranger tanto o proprietário, como aquele que tem a disponibilidade da fruição das utilidades da coisa, com um mínimo de representação jurídica que justifica a tutela penal, assistindo legitimidade aos titulares desses direitos e interesses legítimos, enquanto representantes de interesses especialmente tutelados pela incriminação, para apresentar queixa-crime, quando a coisa tenha sido alvo de qualquer uma das acções compreendidas no tipo do artigo 212.º do Código Penal.

Este critério significa que tem legitimidade para apresentar queixa por crime de dano, o proprietário - em qualquer situação este não poderia ser excluído, porque tal implicaria uma alteração do bem jurídico protegido pela incriminação -, o usufrutuário, o possuidor, o titular de qualquer direito real de gozo sobre a coisa e, ainda, todo aquele que tenha um interesse juridicamente reconhecido na fruição das utilidades da coisa.

14 - Nestes termos, o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça decide:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Fixar a seguinte jurisprudência:

«No crime de dano, previsto e punido no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa 'destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada', e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição.» Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça.

Cumpra-se o disposto no artigo 444.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

27 de Abril de 2011. - António Silva Henriques Gaspar (relator) - António Artur Rodrigues da Costa - Armindo dos Santos Monteiro - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor - José António Henriques dos Santos Cabral - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - José Adriano Machado Souto de Moura - Eduardo Maia Figueira da Costa - António Pires Henriques da Graça - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Isabel Celeste Alves Pais Martins - Manuel Joaquim Braz - José António Carmona da Mota - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho - Joaquim Manuel Cabral e Pereira da Silva.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2011/05/31/plain-284282.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/284282.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1945-10-13 - Decreto-Lei 35007 - Ministério da Justiça - Gabinete do Ministro

    Remodela alguns princípios básicos do Processo Penal.

  • Tem documento Em vigor 2003-11-12 - Jurisprudência 1/2003 - Supremo Tribunal de Justiça

    O trabalhador despedido (individual ou colectivamente) pode socorrer-se do procedimento cautelar de suspensão de despedimento desde que esta seja a causa invocada pela entidade patronal para cessação da relação laboral ou, na sua não indicação, se configure a verosimilhança de um despedimento. Os meios de prova consentidos pelos artigos 35.º e 43.º, ambos do Código de Processo do Trabalho, destinam-se a fundar a verosimilhança necessária para a concessão da providência cautelar de suspensão de despedimento (...)

Ligações para este documento

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