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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 16/2009, de 24 de Dezembro

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Sumário

Fixa a jurisprudência seguinte: a discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, não é passível de recurso.

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 16/2009

Processo 270/09.9YFLSB

Acórdão de uniformização

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

O Magistrado do Ministério Público no Tribunal da Relação de Guimarães veio, ao abrigo do artigo 437.º, n.os 1 e 4, do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, para o pleno das secções criminais, invocando as seguintes razões:

1 - O acórdão recorrido interpreta o artigo 281,º, n.º 1, do CPPenal entendendo que a posição de concordância, ou discordância, do JIC relativamente ao propósito do MP em suspender provisoriamente o processo constitui um despacho judicial nos termos previstos nos artigos 97.º, n.º 5, e 206.º da CRP.

2 - Ao assim proceder, contudo, não considera os objectivos de política criminal que presidiram e presidem à definição da suspensão provisória do processo prevista no mencionado artigo 281.º 3 - A decisão de suspensão provisória do processo é da exclusiva competência do MP, assumindo a posição do JIC um seu poder discricionário, posicionando-se ao mesmo nível da concordância que é exigida ao arguido e ao assistente.

4 - Assim sendo, porque se está perante um «acto dependente da livre resolução do tribunal», a posição discordante emitida pelo JIC relativamente à proposta de suspensão provisória do processo emitida pelo MP não admite recurso.

5 - O disposto no artigo 281.º, n.º 1, no artigo 97.º, n.º 5, e nos artigos 399.º e 400.º, n.º 1, alínea b), todos do CPPenal foram violados na decisão impugnada.

6 - Deve, por isso, ser revogado o acórdão recorrido e porque é manifesto o antagonismo entre ele o que serve de fundamento a este recurso tratando a mesma questão jurídica de forma diametralmente oposta, surgir decisão, eventualmente uniformizadora com o seguinte sentido: «O acto de discordância proferido pelo JIC no cumprimento do disposto no artigo 281.º, n.º 1, do CPPenal, sendo acto dependente da livre resolução do tribunal, é irrecorrível.» Respondeu o Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do disposto no artigo 439.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, requerendo o prosseguimento dos autos.

No exame preliminar considerou-se admissível o recurso e existente a invocada divergência entre o acórdão recorrido e o acórdão para fixação de jurisprudência.

Oportunamente realizou-se a conferência a que alude o artigo 441.º do Código de Processo Penal na qual se decidiu ser o recurso admissível, atenta a oposição de julgados, e se determinou o prosseguimento dos autos nos termos dos artigos 442.º e seguintes do Código de Processo Penal, considerando a necessidade de fixar jurisprudência.

O Ministério Público apresentou alegações, subscritas pelo Exmo.

Procurador-Geral-Adjunto, defendendo o entendimento de que:

1 - O Código de Processo Penal de 1987 estabeleceu uma clara distinção entre o tratamento da pequena e média criminalidade, por um lado, e da criminalidade grave, por outro lado, devendo privilegiar-se soluções de consenso, quanto à pequena e média criminalidade.

2 - A consagração de soluções de simplificação, aceleração e consenso, relativamente à pequena e média criminalidade, teve em conta as experiências de direito comparado e as recomendações do Conselho da Europa sobre esta matéria, salientando-se a Recomendação R (87) 18 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, adoptada em 17 de Setembro de 1987.

3 - O instituto da suspensão provisória do processo, consagrado no artigo 281.º do C. P. Penal, reconduz-se ao princípio da «legalidade aberta», não sendo a sua aplicação um acto discricionário, pelo que o Ministério Público e o juiz de instrução se encontram constituídos no poder-dever de suspender o processo sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.

4 - A semelhança do que acontece em grande parte dos restantes sistemas jurídicos, a intervenção do juiz de instrução, relativamente à suspensão provisória do processo, não se encontrava prevista na Proposta de Lei 21/IV, que deu origem ao C. P. Penal de 1987.

5 - Tendo sido introduzida, na redacção final do n.º 1 do artigo 281.º, a expressão «com a concordância do juiz de instrução», na sequência da declaração de inconstitucionalidade, em sede de fiscalização preventiva, «dos n.os 1 e 2 do artigo 281.º, por violação dos artigos 206.º (actual 202.º, n.º 2) e 32.º, n.º 4, da CRP» - Acordão do Tribunal Constitucional n.º 7/87.

6 - A inconstitucionalidade declarada pelo Tribunal Constitucional não radica exclusiva, nem necessariamente, na falta de intervenção de um juiz, mas na extrema gravidade das injunções e regras de conduta que podem ser impostas ao arguido.

7 - A intervenção fiscalizadora do juiz de instrução visa assegurar que as medidas impostas mediante o acordo, a que alude o artigo 281.º do C. P.

Penal, não contendem como os direitos civis e políticos e com a dignidade deste - cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 67/2006, 116/2006 e 144/2006.

8 - Ao intervir, no exercício dos seus poderes de garante da verificação dos pressupostos e da legalidade de tal acordo, o juiz de instrução está vinculado a parâmetros claramente definidos na lei, devendo a declaração de não verificação ser fundamentada e poder ser reapreciada em sede de recurso.

9 - As clarificações e os aditamentos introduzidos no n.º 1 do artigo 281.º do C.

P. Penal, pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, reforçam a interpretação, que já decorria da redacção anterior dessa norma, de que a aplicação da suspensão provisória do processo reveste a natureza de um poder-dever e dá direitos acrescidos ao arguido e ao assistente, a que hão-de corresponder as acções e os expedientes necessários à sua concretização e, designadamente, o direito ao recurso - artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Constituição.

10 - A decisão de discordância do juiz de instrução com a suspensão provisória do processo não é um acto de mero expediente e também não depende da livre resolução do tribunal, porquanto não decorre do uso legal de um poder discricionário, sendo passível de recurso, ao abrigo do princípio geral da admissibilidade de recurso dos acórdãos, das sentenças e dos despachos, sempre que tal irrecorribilidade não esteja prevista na lei - artigo 399.º do C. P.

Penal.

11 - A norma do n.º 5 do artigo 281.º do C. P. Penal tem um fundamento óbvio, já que a suspensão provisória do processo parte da iniciativa do Ministério Público, com a concordância do arguido e do assistente, pelo que os mesmos carecem de legitimidade ou interesse em impugnar.

12 - Tendo em vista alargar a aplicação da suspensão provisória do processo e dos restantes institutos de diversão e consenso, a Lei 51/2007, de 31 de Agosto, veio dispor que o Ministério Público deve reclamar ou recorrer, nos termos do C. P. Penal, das decisões judiciais que não acompanhem as suas promoções destinadas a prosseguir esse e os restantes objectivos e prioridades de política criminal previstos nessa lei, sendo patente a intenção do legislador no sentido da admissibilidade da impugnação das decisões judiciais que recusem a aplicação ou não dêem a sua concordância à suspensão provisória do processo e aos restantes institutos de diversão e consenso - cf.

artigos 17.º e 12.º, n.º 1, alíneas a), b) e f) da Lei 51/2007 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Fevereiro de 2008, processo 07P4561.

13 - Termos em que:

a) O acórdão recorrido deverá ser mantido, resolvendo-se o conflito que se suscita no sentido do decidido no mesmo.

b) Propondo-se, para tal efeito, a seguinte redacção:

A decisão de discordância do juiz de instrução com a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do artigo 281.º do C. P. Penal, é passível de recurso.

O recorrido e arguido António Jorge da Silva Correia Azevedo igualmente se pronunciou referindo que:

1 - O recorrido sufraga em absoluto a posição adoptada no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães no sentido de considerar que a decisão de discordância do Meritíssimo Juiz de Instrução com a opção pelo Ministério Público pela suspensão provisória do processo é passível de recurso.

2 - A decisão de concordância ou discordância proferida pelo JIC com a determinação do MP da suspensão provisória do processo não se traduz num despacho de mero expediente, nem no exercício de um poder discricionário.

3 - A concordância e a discordância do juiz de instrução não podem deixar de estar vinculadas pelo princípio da legalidade, daí que a sua decisão do Meritíssimo Juiz de Instrução deva obedecer aos requisitos fixados na lei.

4 - Verificados cumulativamente todos os pressupostos legais, consagrados no artigo 281.º, n.º 1, do CPP o juiz tem que dar a sua concordância. Faltando alguns dos pressupostos, o juiz de instrução manifestará fundadamente a sua discordância.

5 - Trata-se de um despacho jurisdicional decisório.

6 - Os despachos jurisdicionais decisórios são susceptíveis de impugnação, em conformidade com o 399.º, porquanto a sua irrecorribilidade não está prevista no artigo 400.º do CPP nem em qualquer disposição dispersa do CPP.

7 - O artigo 281 do CPP, norma em que o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto fundamenta o seu entendimento, não consagra uma inimpugnabilidade absoluta, uma vez que este n.º 5 circunscreve a inimpugnabilidade da decisão de suspensão apenas aos casos em que se verifica a determinação da suspensão provisória do processo pelo MP com concordância do juiz de instrução.

8 - lsto é, desde que se trate de decisões que não estejam abrangidas pelo artigo 400.º do CPP ou cuja irrecorribilidade esteja prevista numa norma dispersa do Código, todas as demais decisões são recorríveis.

9 - Deste modo, é convicção do recorrido de que a decisão de discordância do juiz de instrução com a decisão do MP de suspender provisoriamente o processo é uma decisão passível de recurso.

10 - Daí, não merece censura alguma o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, uma vez que julgou com integral observância das regras de direito aplicáveis, nomeadamente dos artigos 281.º, n.os 1 e 5, 97.º, n.º 5, 399.º e 400.º, n.º 1, alínea b), do CPP.

11 - Donde, a manutenção da decisão proferida se apresenta como a solução inevitável para esta questão de direito em apreciação, devendo fixar-se jurisprudência que acolha o sentido da recorribilidade do acto de discordância proferido pelo JIC no cumprimento do disposto do artigo 281.º, n.º 1, do CPP.

Corridos os vistos, procedeu-se a julgamento, em conferência do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, cumprindo apreciar e decidir:

I

A questão suscitada nos presentes autos inscreve-se num horizonte mais vasto que, por alguma forma, tem a sua génese nas profundas transformações operadas no processo penal no espaço de intervenção desenhado para os diversos actos processuais e, nomeadamente, o Ministério Público e juiz de instrução criminal.

Efectivamente, com a Constituição de 1976, o Ministério Público assume a sua maioridade, expressa numa afirmação de emancipação, quer em relação à Magistratura Judicial, quer em relação à tutela do executivo. A questão da autonomia, então consagrada, é indissociável do perfil da sua intervenção em termos de processo penal, e assume um papel fundamental na modelação da estrutura da acção penal.

Como refere Cunha Rodrigues é útil esclarecer que a questão da autonomia do Ministério Público esteve, desde a origem, associada a uma certa concepção sobre o processo penal. O Ministério Público que se discutira nos trabalhos parlamentares relativos à Constituição de 1976 tinha o seu fundo cultural numa experiência de muitos anos em que a instrução criminal, como conceito, se descaracterizara, desdobrando-se em duas fases (preparatória e contraditória) com a primeira atribuída ao Ministério Público e a segunda, gradualmente desvalorizada, ao juiz.

Quando a Constituição de 1976 estabeleceu que toda a instrução é da competência de um juiz e, paralelamente, criou um estatuto forte para o Ministério Público, abriu-se uma intensa controvérsia em termos de polémica doutrinal. Para uns, o caminho constitucional apontava para uma garantia de intervenção jurisdicional, formatada num contexto meramente garantístico, e não de definição da titularidade do processo; para outros, era crucial a criação de estruturas, que nunca existiram, que possibilitassem uma investigação criminal dominada pelo juiz de instrução à semelhança do que acontecia noutras latitudes.

Gradualmente, cimentou-se o entendimento de que o pensamento do legislador constitucional deveria ser reduzido à dimensão interpretativa segundo a qual a Constituição teria querido dizer que, nos casos em que tivesse que haver instrução, e só nesses, ela seria da competência de um juiz.

O que não envolveria qualquer compromisso sobre o modo de organizar a investigação criminal.

É o Código de Processo Penal de 1987 que vem colocar a pedra de toque numa perspectiva funcional e formata uma intervenção do Ministério Público que não era mais do que o culminar de um trajecto anunciado que, necessariamente, deveria conduzir a um novo paradigma do processo penal.

Esse novo ambiente processual, propiciado por uma Constituição apostada em erguer uma outra Magistratura do Ministério Público, não passou despercebido à doutrina e, já em 1988, afirmava Anabela Rodrigues que, «com aquela mesma Constituição, tinha sido conferida à magistratura do Ministério Público o grau de independência efectiva, nomeadamente perante o Executivo, que faziam com que aquele assumisse, no exercício da sua função atinente à fundamentação da acusação, o tão desejável estatuto de autonomia, no qual vai implicada a obrigação de se mover por critérios estritos de objectividade e imparcialidade. O que tudo faz com que se possam remeter as coisas ao seu devido lugar: continua a defender-se a figura do juiz de instrução, mas apenas na exacta medida em que se defende a jurisdicionalização de todas as medidas investigatórias que directamente contendem com os direitos» liberdades e garantias das pessoas; e pode, sem medo do apodo de reaccionarismo, reacentuar-se a ideia do Ministério Público como «dominus» da fase de investigação por excelência.

Com a solução preconizada - com um inquérito obrigatório no processo comum, dirigido pela mesma entidade (o Ministério Público) que no final decide da acusação ou não-acusação e com uma instrução judicial (a cargo do juiz de instrução) facultativa contribui-se assim para uma decisiva simplificação da estrutura do processo penal na fase preliminar, essencial a uma eficaz política judiciária e criminal. Nesta via, em que no inquérito se pode proceder a todos os actos necessários à fundamentação cabal de uma decisão de acusação ou de não-acusação, mas sempre que se torne necessária a prática de actos que directamente se prendam com a esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas, tais actos deverão ser autorizados - e alguns deles mesmo praticados - pelo juiz de instrução, não se esqueceu que o «Ministério Público» é independente: do que se trata é de assegurar agora um outro princípio constitucional, segundo o qual a totalidade das funções materialmente judiciais deve caber, e caber só, aos juízes.

Estavam, assim, traçados os pontos cardeais que, desde há cerca de duas décadas, ditam as regras do nosso processo penal, avultando uma profissão de fé do legislador nas virtudes da autonomia do Ministério Público em equação directa com o princípio da legalidade, quando não da própria oportunidade.

Neste novo enquadramento também o princípio da legalidade vem a ser objecto de uma actualização interpretativa, imposta pela própria evolução da dogmática do processo penal, e a compulsoriedade do exercício da acção penal é quebrada com a aceitação de margens de actuação que visam a desjudicialização, encontrado o seu lugar programas de política criminal em que surgem como pontos centrais, e irrenunciáveis, os temas da «mediação», da «desjudicialização»; da «justiça penal negociada», dando foros de cidadania a uma decantada «justiça restaurativa»; e a institutos processuais penais como o do «arquivamento em caso de dispensa de pena», da «suspensão provisória do processo», da «plea bargaining» e tantos mais.

Assim, quando hoje se coloca a questão da uma acção penal inscrita no princípio da legalidade, terá mais sentido falar-se de uma «acção penal orientada pelo princípio da legalidade» num duplo sentido: sublinhando que a ligação do MP à lei também (e sobretudo) no momento da promoção processual e que a sua decisão de promover, ou não promover, um processo não pode em caso algum ser comandada pela discricionariedade.

Qualquer uma daquelas propostas reconduz-nos à questão fundamental, equacionada por Costa Andrade, de saber em que medida, num sistema penal orientado para a protecção de bens jurídicos, a estabilização das normas, e a ressocialização do delinquente, se projecta sobre a problemática tradicionalmente inscrita sob o dilema legalidade-oportunidade. Quando se perspectivam assim as coisas refere o mesmo Mestre, citando Peter Reiss, que «Se o legislador tomar a sério a sua tarefa de limitar o direito penal à tutela, em ultima ratio, de bens jurídicos, então só poderá ser consequente se prescrever que, nos casos por ele definidos como dignos de pena, a punição deva, por princípio, ter lugar. [...] A decisão sobre se um comportamento é tão socialmente danoso que a protecção de bens jurídicos reclama a intervenção do direito penal, tem de ser, por via de regra, tomada em direito material».

Nestes termos, e sob pena de se subverterem as relações entre o direito penal e o processo penal, e entre o legislador e as instâncias formais de aplicação da lei, terá de cometer-se em exclusivo ao legislador penal a competência para definir o programa político-criminal a ser levado à prática. Tudo está em saber se, e em que medida, a renúncia à punição pode ainda - tendo sempre presentes os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade - inscrever-se no programa de tutela de bens jurídicos e de ressocialização dos delinquentes. A resposta será afirmativa quando, pressuposta a culpa diminuta do agente, seja, em concreto, possível atingir por meios mais benignos do que a pena, os fins que presidiram à criminalização, em abstracto, da conduta.

Ainda nas palavras de Costa Andrade, nestas circunstâncias, a renúncia à pena, para além de legítima, valerá inquestionavelmente como uma das expressões autênticas do programa político-criminal, inscrito no ordenamento jurídico-penal substantivo pelo que só em termos lógico-formais se poderá pretender que a solução caia fora do alcance da legalidade e releva do espaço incomunicável da oportunidade. No plano material e teleológico, o que está em causa é uma solução de continuidade, ou de «fusão horizôntica», entre a legalidade e a oportunidade, mediatizada por uma relação de comunicabilidade entre o direito penal substantivo e o processo penal.

II

É neste contexto que surge a suspensão provisória do processo cujo regime releva da confluência da orientação axiológica e político-criminal do consenso com a da linha de força resultante da polaridade legalidade-oportunidade.

A mais-valia do instituto apresenta uma pluralidade cromática em que avulta a importância do consenso na razão directa do número de sujeitos processuais de cuja concordância a lei faz depender a sua efectivação. O mesmo instituto consubstancia um limite ao dever de o Ministério Público deduzir acusação sempre que tenha indícios suficientes de que certa pessoa foi o autor de um crime (artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), deixando o princípio da legalidade na promoção do processo penal de ser comandado por uma ideia de igualdade formal, para ser norteado pelas intenções político-criminais básicas do sistema penal, assentes na ideia de que, visando toda a intervenção penal a protecção de bens jurídicos e, sempre que possível, a ressocialização do delinquente, é adequado que a intervenção formal de controlo tenda para observar os princípios de uma ampla diversão e da menor intervenção socialmente suportáveis.

Na figura da suspensão provisória de processo penal convergem, na perspectiva do ponto de vista substantivo, a introdução de medidas de diversão (diversão com intervenção) e consenso na solução do conflito penal relativamente a situações de pequena e média criminalidade, para cuja consagração concorrem tanto razões de funcionalidade do sistema de justiça penal como de prossecução imediata de objectivos do programa político-criminal substantivo. A suspensão provisória do processo é, assim, um arquivamento com injunções e regras de conduta, isto é, um arquivamento condicionado ao prévio cumprimento de injunções e regras de conduta.

Evidentemente que nem as injunções e regras de conduta são penas, nem a suspensão provisória do processo é um despacho condenatório, ou sequer uma decisão assente num propósito de censura ético-jurídica. De uma forma linear pode-se afirmar que o instituto em causa é uma espécie de transacção segundo a qual o arguido aceita respeitar determinadas injunções, e regras de conduta, e o Ministério Público se compromete a, caso elas sejam cumpridas, desistir da pretensão punitiva e a arquivar o processo.

A construção do instituto da suspensão provisória do processo, e a sua inscrição no nosso ordenamento jurídico, teve de ultrapassar algumas reservas entre as quais se salienta a circunstância de a uma determinação do Ministério Público, fruto da concordância de arguido e assistente, já exigida nos termos de redacção inicial do Código de Processo Penal, vir a acrescer, em consequência da acção fiscalizadora do Tribunal Constitucional, a intervenção do Tribunal, através do juiz de instrução.

Na verdade, e este aspecto assume uma importância fulcral na decisão a proferir, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87, que se pronunciou sobre a constitucionalidade de diversos artigos do mesmo Código, refere, em relação à redacção inicial do artigo 281.º (que não contemplava a intervenção do juiz), que:

Como já vimos, não parece haver obstáculo de ordem constitucional à direcção do inquérito pelo MP. Ser a «instrução» da competência de um juiz (n.º 4 do citado artigo 32.º) não impede que se dê ao MP competência para dirigir o «inquérito», tal como ele vem desenhado no Código.

Naturalmente que, praticados os actos necessários, compete também ao MP encerrar o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação (artigos 276.º, 277.º e 283.º).

O artigo 281.º consagra, porém, uma inovação nesta matéria, estabelecendo o princípio da oportunidade do exercício da acção penal pelo MP relativamente à pequena criminalidade, atribuindo-lhe o poder de suspender o processo, quando se verifiquem conjuntamente certas condições, as constantes do proémio do n.º 1 e das alíneas a) a e) do mesmo número, mediante a imposição - pelo próprio MP - de injunções e regras de conduta [as definidas nas alíneas a) a I) do n.º 2].

É a inconstitucionalidade de todo este preceito que vem suscitada.

A questão posta, ou seja, a da suspensão do processo do MP, findo o inquérito, pode, porém, cindir-se em duas: uma, a da admissibilidade da suspensão, em si mesma considerada; a outra, a da competência para ordenar a suspensão e a imposição das injunções e regras de conduta.

A admissibilidade da suspensão não levanta, em geral, qualquer obstáculo constitucional.

Já se não aceita, porém, a atribuição ao MP da competência para a suspensão do processo e imposição das injunções e regras de conduta previstas na lei, sem a intervenção de um juiz, naturalmente o juiz de instrução, e daí a inconstitucionalidade, nessa medida, dos n.os 1 e 2 do artigo 281.º, por violação dos artigos 206.º e 32.º, n.º 4, da CRP.

Face à decisão do Tribunal Constitucional o legislador alterou a redacção do n.º 1 do mesmo normativo, consignando a necessidade da «concordância» do juiz de instrução em relação à determinação de suspensão elaborada pelo Ministério Público. Por tal forma se gerou, então, um sistema em que cada um, dentro da sua esfera de actuação, ou competência, dá o contributo para a formação do consenso que está na genética da suspensão provisória do processo.

Tal intervenção traz à colação a natureza da intervenção do Juiz de instrução no âmbito do inquérito, ou seja, da configuração dogmática da denominada «concordância».

Numa outra perspectiva se questionou, também, o facto de a intervenção do juiz de instrução na suspensão provisória do processo poder colocar em causa a sua independência. Na verdade, dado incontornável é o facto de o juiz de instrução estar condicionado pela decisão do Ministério Público quanto à selecção de injunções e regras de conduta e à determinação do período de suspensão do processo, mais precisamente, de o seu leque de opções decisórias estar limitado à concordância, ou discordância, com a anterior aplicação do direito ao caso feita pelo Ministério Público e pela aceitação dos demais sujeitos processuais.

Porém, e como se refere no Acórdão 67/2006 do Tribunal Constitucional, do mesmo modo que não pode considerar-se que assuma essa natureza, ou tenha esse efeito, o poder que o Ministério Público tem de pôr ou não em funcionamento o órgão judicial através do exercício da acção penal, ou os termos em que apresenta a pretensão punitiva do Estado (Acórdão 393/89), também não belisca a independência funcional do juiz de instrução a circunstância de o Ministério Público submeter a concordância judicial uma decisão sua, que obteve já a aceitação dos restantes sujeitos processuais e que consiste em renunciar à submissão imediata do caso a julgamento, sempre que as exigências de prevenção geral e especial não requeiram a efectiva aplicação e cumprimento de uma pena. Os termos em que o juiz decidirá se deve, ou não, dar a sua concordância não dependem senão do que, em sua consciência, decorra da situação de facto revelada pelo processo e dos comandos legais. Seja qual for a extensão dos seus poderes - ainda naquela interpretação mais restritiva de que ao juiz não cabe senão a apreciação dos pressupostos e condições da suspensão que se analisem (ou na parte em que se analisem) num mero juízo verificativo de conformidade à lei, estando-lhe vedada a intervenção nos juízos de prognose ou na margem de apreciação por parte do titular da acção penal [a previsão da alínea e) do n.º 1 e a adequação das injunções ou regras de conduta adoptadas] -, a decisão do juiz não depende de quaisquer ordens ou instruções mas, directamente, e só, das fontes normativas a que constitucionalmente deve obediência.

O Ministério Público constitui um órgão autónomo de administração da justiça, a quem incumbe «exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade». Cabe-lhe dirigir o inquérito, o que implica necessariamente aplicar o direito e formular juízos. Ao decidir-se, nesta fase, pela suspensão provisória do processo, o Ministério Público opta por não exercer imediatamente a acção penal. Esse acto, em si mesmo, não colide mais com o monopólio da função jurisdicional pelos juízes do que o seu reverso: a dedução imediata da acusação.

Como se acentua na decisão supracitada é certo que tal opção pode tornar-se definitiva se as injunções, ou regras de conduta, forem cumpridas. Mas, não é por isso, pelo facto de a opção ser potencialmente definitiva ou, mais exactamente, de co-envolver a expectativa de que o processo virá a ser arquivado, sem a qual a opção pela suspensão não seria tomada, que pode dizer-se que o Ministério Público pratica um acto materialmente jurisdicional.

Haverá, apenas, se esse vier a ser o desenvolvimento do processo, um conflito que acabará por ser dissipado ou suprimido; não a sua resolução e, muito menos a aplicação de qualquer pena, por entidade diversa do juiz.

Acresce, por último, que o acto processual em causa - a decisão primária de suspensão e escolha das injunções e regras de conduta - também não cabe em qualquer das hipóteses singulares de reserva de acto jurisdicional ou «casos constitucionais de reserva judicial» no domínio do processo penal, designadamente no n.º 2 do artigo 27.º da Constituição, porque as injunções e regras de conduta não revestem a natureza jurídica de penas, embora se consubstanciem em medidas que são seus «equivalentes funcionais».

III

A intervenção do juiz de instrução na suspensão provisória do processo e, nomeadamente, a necessidade da sua «concordância» está directamente interligada com o papel que o mesmo desempenha na estrutura do processo penal.

Na verdade, no «terminus» do inquérito, o Ministério Público elabora um juízo de prognose assente na suficiência de indícios e a que não é alheio o princípio «in dubio». Tal juízo, que se reconduz à probabilidade, ou improbabilidade, de condenação abrange apenas a problemática do eventual comportamento futuro dos indícios recolhidos: formulando uma convicção sobre a suficiência de indícios deduz acusação. No caso contrário, profere despacho de arquivamento ou, obtidos os necessários pressupostos, de suspensão provisória do processo.

Tal decisão, nuclear na vida do processo, pode ser sujeita ao escrutínio do juiz de instrução, nas diversas conformações que pode assumir, o que nos reconduz a uma questão nuclear no processo penal de um Estado de Direito, ou seja, ao princípio da garantia judiciária expresso na intervenção judicial.

Como refere Mouraz Lopes toda a construção doutrinal do sistema garantístico como fundamento da actividade jurisdicional acaba por terminar na própria concepção legitimadora da independência do poder judicial. Afinal, a concretização da defesa dos direitos fundamentais só pode fundamentar a existência de um poder totalmente independente de todos os outros que, também eles, em concreto, acabam por sustentar, em determinadas circunstâncias, essas violações de direitos.

A estrutura típica do processo penal, adoptada em 1987, que não foi alterada pela reforma de 1998, onde o Ministério Público, embora sujeito a critérios de legalidade na sua actuação, não deixa por isso de representar o Estado no exercício da acção penal, coloca, de uma forma bem clara, a necessidade de ser o juiz o garante das liberdades do cidadão quando este se vê confrontado com a máquina estatal da investigação criminal. Aliás, idêntico apelo é suscitado pela própria intervenção do Estado na prevenção criminal, onde, para além das competências próprias dos órgãos de polícia criminal nesta matéria, também o Ministério Público tem visto reforçados os seus poderes.

Aqui, e como refere Figueiredo Dias, «a decisão de promover ou não promover um processo não pode em caso algum [...] ser comandada pela sua discricionariedade livre [...]; mas pode e deve ser comandada pela sua discricionariedade vinculada, isto é ainda, pela sua obediência à lei, aos juízos de valor legais e sobretudo aos programas político-criminais democraticamente definidos e aos quais o Ministério Público deve obediência estrita e pelos quais tem de prestar contas. [...] Uma legalidade que, deste modo, abarca a própria oportunidade discricionariamente vinculada, geradora de uma autonomia que não deve ser ensombrada ou, ainda menos, limitada por interferência de outros órgãos de administração da justiça penal».

Nas palavras de Paulo Dá Mesquita (1) o estatuto do órgão judicial nas fases em que intervém como dominus da fase processual (instrução ou julgamento) é inteiramente distinto do que assume na fase pré-acusatória como entidade exclusivamente competente para praticar, ordenar ou autorizar certos actos processuais singulares que, na sua pura objectividade externa, se traduzem em ataques a direitos, liberdades e garantias das pessoas constitucionalmente protegidos, sendo certo que a fase de inquérito pode findar sem que o juiz de instrução tenha intervenção.

A competência do juiz de instrução durante a fase processual presidida pelo Ministério Público, sempre que estejam em causa actos que interferem com direitos fundamentais e outras matérias que a lei reserva ao juiz, obedece a um quadro de intervenção tipificada e provocada, pois a magistratura judicial, por natureza, não actua «ex oficio» em processos de que não é titular.

Na análise da função do juiz de instrução na fase de inquérito recorremos aos conceitos de garantia e controlo, muito embora não se pretenda extrair dos mesmos uma qualquer virtualidade descritiva, pois essa via redundaria numa argumentação circular (o controlo é uma forma de garantia e a garantia exprime-se através do controlo), mas apenas utilizá-los como categorias compreensivas. Assim, a garantia tem essencialmente um carácter negativo protector, enquanto o controlo funciona numa óptica mais positiva de sindicância do exercício de poderes-deveres, no caso, o exercício da acção penal e a repressão da criminalidade pelo Ministério Público.

Ainda conforme o mesmo autor à luz das categorias garantia e controlo o juiz de instrução na fase de inquérito tem uma natureza monofuncional.Com efeito, esse órgão não controla o exercício da acção penal, mas é um garante de liberdades, avalia judicialmente as iniciativas do Ministério Público que atingem as liberdades fundamentais do indivíduo visado pelo inquérito, quer dizer a liberdade pessoal e patrimonial (que podem ser limitadas por medidas coactivas e medidas de garantia real) e a liberdade moral (a reserva de comunicações, correspondência e domicílio) quando estas possam ser atingidas por procedimentos adoptados na função de recolha de fontes de prova. Sendo diferente da função do órgão judicial na fase preliminar de instrução, em que, a par de funções de garantia, existe uma função de controlo consubstanciada na comprovação da decisão final do inquérito.

Sendo assim pode-se afirmar que a intervenção judicial no inquérito se caracteriza por ser ocasional, provocada e tipificada. Aliás, em áreas delimitadas, como é o caso das medidas de coacção, estamos mesmo perante um princípio do pedido uma vez que o órgão de iniciativa não pode ser substituído por outro nem o órgão decisor pode actuar «ex officio».

As intervenções do juiz de instrução na fase do inquérito ocorrem para assegurar a tutela dos direitos fundamentais do arguido - v. artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal. Como se refere em decisão do Tribunal Constitucional de 31 de Janeiro de 1990 - A intervenção do juiz só vale no âmbito do núcleo da garantia constitucional. Assim ocorre em toda a fase de inquérito ao Ministério Público confiada pelo Código de Processo Penal actual, compreendendo o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, descobrir e recolher provas em ordem a decisão sobre acusação (artigo 262.º, n.º 1), justificando-se a intervenção do juiz-garante sempre que afectado aquele núcleo, consoante o elenco de situações descritas nos artigos 268.º e 269.º ou, numa síntese mais precisa, as intervenções do juiz de instrução em sede de inquérito são circunstanciais, e sempre com o escopo de acautelar a precisa observância das normas, e procedimentos, que tenham a potencialidade de ofender direitos fundamentais dos cidadãos.

É nessa perspectiva, de juiz das liberdades, que deve ser enquadrada a intervenção do juiz de instrução na suspensão provisória do processo, quer porque não se verificam os respectivos pressupostos formais, nomeadamente a concordância livre e esclarecida de arguido e assistente, quer porque os indícios recolhidos não são suficientes para fundamentarem uma convicção sobre a responsabilidade criminal do arguido. A mesma intervenção congrega em si aquela que é a marca genética do juiz de instrução como juiz das liberdades, sendo certo que tal juízo está bem patente no citado Acórdão 7/87 do Tribunal Constitucional quando imprime a ideia da necessidade de intervenção do juiz de instrução na suspensão provisória do processo.

IV

Sem embargo, importa precisar, agora, que a figura da «concordância» judicial surge como instituto com um espaço próprio, e único, desinserido do contexto normal de actuação do juiz de instrução tal como está definida no artigo 268.º do Código de Processo Penal. Assim, os parâmetros que regem tal intervenção obedecem, em primeira linha ao desenho prescrito pelo artigo 281.º do mesmo diploma para a suspensão provisória e, assim, abarca todos os vectores que estiveram na génese do consenso.

É no desempenho desse ónus que o juiz de instrução criminal deve discordar da suspensão provisória do processo se, apesar de verificados os seus pressupostos formais, da existência de indícios suficientes do facto e da sua punibilidade, as injunções ou regras de conduta propostas pelo Ministério Público atentarem contra a dignidade pessoal do arguido, atingirem o núcleo indisponível dos seus direitos fundamentais ou forem desproporcionadas, revelando uma restrição excessiva e injustificada desses direitos individuais.

Acompanhamos, assim, Conde Correia, quando afirma que, neste contexto, parece evidente que o juiz de instrução criminal pode sindicar uma suspensão provisória do processo arbitrária v. g. porque inexistem indícios da prática de crime ou desproporcionada (v. g. as injunções ou regras de conduta acordadas são muito superiores ao que seria razoável naquele caso concreto).

Mais adianta o mesmo autor que o juiz de instrução não pode, sob pena de exorbitar o seu papel, inviabilizar a medida por entender que aquelas injunções ou regras são insuficientes para satisfazer as necessidades preventivas daquele caso concreto ou, substituindo-se ao Ministério Público, propor outras medidas. A sua função é de garantir os direitos e não de os restringir. (2) (3) Como impõe a própria norma sindicada, a intervenção judicial não está limitada à constatação dos pressupostos meramente formais, e deve abranger, também, a verificação dos conceitos abertos nela inscritos e, nomeadamente:

a) Ausência de um grau de culpa elevado;

b) Previsibilidade de que o conjunto das injunções responda às exigências de prevenção.

Com Paulo Pinto de Albuquerque entendemos que o juiz deve verificar a existência dos pressupostos da suspensão do processo e formular um juízo sobre o período da suspensão e a adequação das injunções e regras de conduta às necessidades de prevenção que se fazem sentir no caso. Foi precisamente esta a razão de ser da exigência pelo TC da intervenção judicial na aplicação do instituto pelo MP (Acórdão do TC n.º 7/87). O juiz não tem, pois, qualquer discricionariedade se estiverem verificados os pressupostos da suspensão do processo e a adequação das injunções e regras de conduta às necessidades de prevenção.

Assim, tem-se por correcto o princípio, consequente ao perfil de intervenção do juiz de instrução no inquérito, de considerar inadmissível que este se substitua ao Ministério Público, aplicando outras medidas que não as propostas.

É também nesta perspectiva que se deve entender o Acórdão do Tribunal Constitucional de 22 de Fevereiro de 2006 quando refere que «Força é que essa concordância (relativa à suspensão provisória do processo) resulte de uma vontade esclarecida e livre. Mas é sobretudo por isso, porque as medidas comportam o risco de contender com direitos, liberdades e garantias e para assegurar que, pelo conteúdo e pelo modo dos comportamentos a que o arguido se compromete, não é afectada a zona de indisponibilidade de direitos fundamentais, que se faz intervir o juiz das garantias. O juiz fiscalizará, com base na ordem jurídico-constitucional dos direitos fundamentais a adequação, necessidade e proporcionalidade da (auto) limitação, bem como a sua racionalidade».

Porém, se é certo que o excurso produzido poderá oferecer uma perspectiva sobre o perfil da concordância do juiz de instrução na suspensão provisória do processo, igualmente é exacto que do mesmo não se poderão extrair elementos relevantes que nos ajudem a elucidar sobre a questão que nos é proposta e que, singelamente, se cinge a saber se o despacho de concordância é, ou não, impugnável através de recurso.

Efectivamente, é noutra sede que se deve procurar a resposta para a questão proposta.

V

Na verdade, a lei processual penal salienta a necessidade de «concordância» do juiz, mas não oferece qualquer critério interpretativo sobre o significado jurídico a atribuir a tal intervenção, antes a parificando, numa perspectiva literal, com a intervenção dos restantes sujeitos processuais, nomeadamente arguido e assistente. Aliás, uma análise mais fina da lei adjectiva inculca a ideia, já referida, de que estamos perante uma figura exógena aos princípios que informam aquela lei, e uma excrescência em termos dogmáticos, só explicável pela necessidade imperativa, sentida pelo legislador, de fazer face ao juízo de constitucionalidade sufragado pelo citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87.

Efectivamente, do contexto do instituto da suspensão provisória do processo penal apenas se pode afirmar que a «concordância» do juiz de instrução constitui, em paralelo com a concordância do arguido e do assistente, o pressuposto material de determinação do Ministério Público na suspensão provisória. É certo que sempre se poderá afirmar que a intervenção do juiz de instrução e, nomeadamente, a sua «concordância» se situa a um nível qualitativamente diferente e onde avulta o objectivo de vigiar o cumprimento dos mandamentos processuais e das regras constitucionais. Porém, tal constatação não constitui um elemento definitivo para uma conclusão sobre a questão proposta.

VI

Eixo essencial da questão da recorribilidade da denominada «concordância» judicial é a definição da sua natureza jurídica. Na verdade, dispõe o artigo 359.º do Código de Processo Penal que é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.

Existe uma relação linear e convergente entre este normativo e o complexo de actos que consubstanciam a actuação processual do juiz no processo penal, os quais o artigo 97.º do mesmo diploma, cataloga e alberga sobre a designação de acto decisório.

Falamos, assim, dos actos do juiz que conhecem afinal do objecto do processo, e tomam a forma de sentença; que conhecem uma qualquer questão interlocutória; ou que põem termo ao processo e que tomam a forma de despacho.

A questão que então se coloca é de saber se a denominada «concordância» do juiz integra qualquer uma das hipóteses citada e assume, assim, a natureza de acto decisório e, como tal, é recorrível. Na verdade, nem todos os actos praticados pelo juiz no processo assumem a natureza de acto decisório e certamente que um daqueles que suscita mais perplexidade pela sua morfologia equívoca é a denominada «concordância» do juiz.

Efectivamente, como refere Roxin (4), os actos do juiz podem-se agrupar segundo a forma (sentenças ou despachos) e segundo o seu conteúdo, distinguindo-se entre aqueles que põem fim ao processo e aqueles que possibilitam a sua continuação.

Os actos do juiz reconduzem-se, assim, a uma de duas tipologias diferentes:

por um lado os actos que visam a ordenação, e impulso processual, e, por outro, os actos que visam a finalização do processo. Os primeiros visam a ordem do processo, adequando a tramitação do procedimento à lei adjectiva, e os segundos visam a resolução da questão substantiva, ou seja, o terminus da relação processual.

Assumam uma, ou outra natureza, os actos judiciais, para revestirem a natureza de um acto decisório, devem ter por finalidade ou o conhecimento, a final, do objecto processo, ou a sua finalização, ainda que sem tomar conhecimento do respectivo objecto.

No caso da denominada «concordância» do juiz de instrução, e excluída a possibilidade de assumir a integração categorial de despacho interlocutório, poderá afirmar-se que a mesma se define como acto decisório? (5) Por alguma forma a caracterização do mesmo tipo de actos se prende com a própria estrutura e princípios do direito processual penal. Na verdade, na perspectiva jurídica assumida pela lei adjectiva aquele ramo do direito surge como uma regulamentação disciplinadora de investigação, e esclarecimento de um crime concreto, que permite a aplicação de uma consequência jurídica a quem, com a sua conduta, tenha realizado um tipo de crime. Nesta medida ele constitui, de um ponto de vista formal, um «procedimento» público que se desenrola desde a primeira actuação oficial tendente àquela investigação e esclarecimento até à obtenção de uma sentença com força de caso julgado ou até que se execute a reacção criminal a que o arguido foi condenado.

Procedimento este que põe em causa não apenas o arguido, na sua relação com o detentor do poder punitivo representado pelos órgãos que no processo intervêm, mas uma série de «terceiros» - as testemunhas, os declarantes, os peritos, os intérpretes que estabelecem entre si e com os sujeitos processuais as relações jurídicas mais diversas e assumem no processo diferentes posições jurídicas.

Foi justamente para se abranger juridicamente toda esta diversidade, apreendendo o processo como um unitário, que se procurou caracterizá-lo como relação jurídica processual. Tal relação, como bem aponta o Professor Figueiredo Dias, deverá ter subjacente uma compreensão como relação da vida social controlada pelo direito.

O conceito de relação jurídica processual penal terá então, ao menos, o efeito útil de dar a entender, com nitidez, que, com o início do processo penal, se estabelecem necessariamente relações jurídicas entre o Estado e todos os diversos sujeitos processuais - se bem que a posição jurídica destes seja a mais diversa e diferenciada e que dali nascem para estes direitos e deveres processuais.

Nesta perspectiva nos parece de assumir o entendimento de que a decisão que põe termo à causa é aquela que tem como consequência o arquivamento, ou encerramento do objecto do processo, mesmo que não se tenha conhecido do mérito. Em última análise trata-se da decisão que põe termo àquela relação jurídica processual penal, ou seja, que determina o «terminus» da relação entre o Estado e o cidadão imputado, configurando os precisos termos da sua situação jurídico-criminal.

Então, repete-se, a questão a equacionar no caso vertente é somente a de saber se a denominada «concordância» do juiz de instrução é uma decisão que põe fim à relação processual penal, podendo subsumir-se no conceito de acto decisório, nos termos e para os efeitos do citado artigo 98.º do CPP. A resposta é, quanto a nós, manifestamente negativa, pois que o instituto da «concordância» judicial surge como um mero pressuposto da determinação do Ministério Público, essa sim sinalizando o fim daquela relação processual penal.

Em última análise, a forma enviesada como o legislador inscreveu a intervenção do juiz de instrução na suspensão provisória, submetendo-a, através da figura da «concordância», a um regime desadequado em face dos princípios constitucionais e do processo (o juiz não concorda, o juiz decide) necessariamente que teria de conduzir a consequências não ponderadas.

Como refere Anabela Rodrigues a verdadeira decisão de suspensão compete ao Ministério Público. Mais adianta a mesma autora que a concordância do juiz é, assim uma mera formalidade essencial, embora de conformação (validade) daquela decisão (do Ministério Público) prevista pelo legislador em nome da ideia que fundamenta o instituto. Não se trata assim de uma decisão de que se possa recorrer. É certo que, em termos formais-categoriais, a não concordância do juiz assume a forma de um «despacho» mas, em termos materiais, não é um acto decisório que assuma aquela força. Tratando-se, como se trata, de um controlo da legalidade, nenhuma razão há para intervir - não faria sentido - uma 2.ª instância quanto a essa fiscalização.

Entendemos, assim, que o despacho judicial que consubstancia a denominada «concordância» do juiz na suspensão provisória do processo é um acto processual de natureza judicial, não decisório, que constitui o pressuposto formal, e substancial, da determinação do Ministério Público de suspensão do processo nos termos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal.

VII

Aliás, numa perspectiva teleológica do instituto em causa, importa referir, ainda, que o n.º 5 do artigo 281.º do Código de Processo Penal refere expressamente que a decisão de suspensão não é susceptível de impugnação, o que é uma concessão a exigências de celeridade processual.

Assim, excluindo, como se exclui, a hipótese de o normativo se referir ao despacho de «concordância» judicial, é evidente que o seu objecto é a determinação do Ministério Público que suspende o processo. Pressupondo que o legislador se rege por critérios lógicos, e por uma articulação racional do sistema, não vislumbra como é que possa defender que a decisão que conforma o terminus da relação processual não admita impugnação de qualquer tipo e o despacho de «concordância» que é um pressuposto, e premissa daquela conclusão, já o admita.

É, também, na convergência daquela perspectiva com uma visão sistémica do processo penal como critério interpretativo, que somos impelidos à mesma conclusão de irrecorribilidade.

Como refere Ferrara o direito objectivo, de facto, não é um aglomerado caótico de disposições, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, em que cada um tem o seu posto próprio. Há princípios jurídicos gerais de que os outros são deduções e corolários, ou então vários princípios condicionam-se ou restringem-se mutuamente, ou constituem desenvolvimentos autónomos em campos diversos. Assim todos os princípios são membros de um grande todo.

Adianta o mesmo Mestre que Desta conexão cada norma particular recebe luz.

O sentido duma disposição ressalta nítido e preciso, quando é confrontada com outras normas gerais ou supra-ordenadas, de que constitui uma derivação ou aplicação ou uma excepção, quando dos preceitos singulares se remonta ao ordenamento jurídico no seu todo. O preceito singular não só adquire individualidade mais nítida, como pode assumir um valor e uma importância inesperada caso fosse considerado separadamente, ao passo que em correlação e em função de outras normas pode encontrar-se restringido, ampliado e desenvolvido. (6) Reconduzindo-nos ao princípio elementar do elemento lógico-sistemático na tarefa interpretativa temos de concluir, necessariamente, que a decisão sobre a matéria do presente recurso tem subjacente a dedução sobre o papel que o instituto da suspensão provisória do processo desempenha no conjunto do sistema processual penal, evitando soluções que contenham o vício da contradição sistémica.

No que concerne e numa, não menos importante, perspectiva intraprocessual, importa sublinhar que a admissão da tese do recurso da denominada decisão judicial de «concordância» faz emergir um instituto a duas velocidades ou «à la carte». Na verdade, se o arguido requerer ao Ministério Público, no fim do inquérito, que o processo seja suspenso, a decisão de «concordância» do juiz, na perspectiva de que se discorda, será objecto de recurso. Caso o mesmo arguido opte por, no final da instrução, endereçar ao juiz de instrução o mesmo requerimento a concordância do Ministério Público - artigo 307.º, n.º 2, do Código de Processo Penal - não é susceptível de impugnação.

Igualmente é certo que, se a suspensão provisória é decretada no inquérito, a denominada «concordância», na perspectiva de que se diverge, é objecto de recurso. Caso a mesma suspensão seja aplicada em processo sumário, ou processo abreviado, ao abrigo do disposto no artigo 384.º ou no n.º 4 do artigo 391.º-B do Código de Processo Penal, já o despacho judicial de «concordância» não é admissível de recurso, uma vez que os artigos 391.º e 391.º-F do diploma citado expressamente referem que, naqueles processos especiais, apenas é admissível recurso da sentença, ou de despacho, que puser termo ao processo.

Não descortinamos a forma de justificar a diversidade de tratamento processual consoante o momento processual. E nem sequer é correcta a invocação de razões de celeridade processual existentes no processo sumário, ou abreviado, uma vez que são razões de celeridade processual que estão, também, inscritas no instituto da suspensão provisória seja qual for o momento processual da sua aplicação, nomeadamente o inquérito. Como refere Fernando Torrão (7) não se pode deixar de salientar a celeridade processual que a suspensão provisória do processo é apta a proporcionar ao sistema em geral. Ela sintoniza-se, efectivamente, com os objectivos de prevenção geral e cumpre o imperativo fundamental de que «A Justiça para ser justa deve ser célere» (8).

A suspensão provisória do processo assumiria, assim, na tese que ora se rejeita, uma formatação polimórfica, de geometria variável, de acordo com o momento em que é ponderada, o que, convenhamos, não abona em favor da fiabilidade do instituto e do rigor dogmático do legislador, quando não do próprio intérprete.

Assim sendo, e assumido que os actos decisórios tomam a forma de sentença ou despacho que conhece, e decide, sobre o objecto do processo, ou sobre questão interlocutória - artigo 97.º do diploma citado - e que só estes são susceptíveis de recurso, é lógica a conclusão de que a «concordância», ou «não concordância», não configura a forma de acto decisório o que a exclui do âmbito dos actos passíveis de recurso face ao artigo 399.º do Código de Processo Penal.

Em conformidade com o exposto, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência, delibera na procedência do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência interposto pelo Ministério Público e, em consequência, fixar jurisprudência nos seguintes termos:

A discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, não é passível de recurso.

Igualmente se determina a revogação da decisão recorrida e se ordena o reenvio, oportunamente, do processo ao Tribunal da Relação de Guimarães a fim de que reveja a decisão recorrida de acordo com a jurisprudência fixada.

Dê-se observância ao disposto no artigo 444.º do Código de Processo Penal.

(1) Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, pp. 143 e segs.

(2) João Conde Correia, «Concordância judicial à suspensão provisória do processo», Revista do Ministério Público, n.º 117, pp. 77 e segs.

(3) Também Rui Carmo - A suspensão provisória do processo no Código de Processo Penal revisto (Jornadas sobre a Revisão do Código de Processo Penal) - refere que a posição do juiz de instrução não é, de modo algum, comparável à do arguido desde logo porque a sua posição não é de participante no acordo mas de garante da verificação dos pressupostos e da legalidade do conteúdo desse acordo, estando vinculado a parâmetros claramente definidos na lei, cuja declaração de não verificação deve ser fundamentada.

(4) Derecho Procesal Penal, p. 181.

(5) Os despachos interlocutórios são decisões judiciais que, incidindo sobre a relação processual, não põem termo ao processo. Dado que decidem uma determinada questão processual em sentido favorável ou desfavorável a uma das partes, não se confundem com os despachos de mero expediente, que se destinam unicamente a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes (artigo 156.º, n.º 4, do CPC).

A concordância do juiz de instrução não decide sobre a suspensão provisória do processo mas constitui o pressuposto da decisão ou determinação do Ministério Público nesse sentido. Igualmente é certo que não se pronuncia sobre uma questão relativa à relação processual, mas sim sobre a própria questão substancial.

(6) Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, p. 143, tradução de Manuel de Andrade.

(7) «A relevância político-criminal da suspensão provisória do processo», p.

218.

(8) Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos, p. 197.

Sem custas.

Lisboa, 18 de Novembro de 2009. - José António Henriques dos Santos Cabral (relator) - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - José Adriano Machado Souto de Moura (vencido conforme voto anexo) - Eduardo Maia Figueira da Costa (vencido nos termos da declaração junta) - António Pires Henriques da Graça (juntando declaração) - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Jorge Henrique Soares Ramos - Fernando Manuel Cerejo Fróis - Isabel Celeste Alves Pais Martins (vencida nos termos da declaração do Sr. Conselheiro Maia Costa) - Manuel Joaquim Braz (vencido de acordo com a declaração de voto do Sr. Conselheiro Maia Costa) - José António Carmona da Mota - António Pereira Madeira - José Vaz dos Santos Carvalho - António Silva Henriques Gaspar - António Artur Rodrigues da Costa (vencido, de acordo com as declarações de voto dos Exmos. Conselheiros Souto de Moura e Maia Costa) - Armindo dos Santos Monteiro - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor (vencido, de acordo com as razões expostas no voto de vencido do Exmo. Conselheiro Maia Costa) - Luís António Noronha Nascimento.

Voto de vencido

Votei vencido, sinteticamente pelas seguintes razões:

1) Não prevista de início, a concordância do JIC passou a ser requisito para a suspensão provisória do processo, por imperativo constitucional.

Com o propósito de fiscalização da verificação dos pressupostos da suspensão (e só por isso a intervenção concordante do JIC não pode ser relegada para a condição de mais um outro pressuposto), bem como para fiscalização das injunções e regras de conduta. Na primeira função obviar-se-á a uma entrada subreptícia da oportunidade para além dos parâmetros legais (que para além da legalidade estrita comporta a chamada legalidade «aberta») e, na segunda função, o JIC exercerá o seu múnus típico de garante das liberdades.

2) Formalmente, o artigo 281.º do CPP separa a concordância do JIC (corpo do n.º 1) dos pressupostos da suspensão (alíneas do n.º 1).

Dentro dos pressupostos está a «concordância» do arguido e do assistente, mas não podem, a nosso ver, equiparar-se estas duas concordâncias à do JIC. Aquelas são verdadeiramente livres e obedecem aos interesses pessoais de quem as profere. Esta, é vinculada, e preenche uma função de controlo que é de interesse público. Trata-se pois de um poder-dever, e não pode, portanto, deixar de ser uma decisão fundamentada.

A não ser assim, estar-se-ia a abrir a porta à pura discricionariedade, sem justificação explícita, do JIC. Mais, se se interpretasse a norma que prevê a decisão de concordância ou discordância do JIC, como tendo atribuído uma faculdade completamente livre, estar-se-ia a frustrar a razão pela qual se impôs a intervenção do mesmo JIC e, nessa medida, a enveredar por uma interpretação inconstitucional da norma.

3) Seria incorrecto considerar que a intervenção do JIC se cifra num acto «que depende da livre resolução do tribunal», aqui do juiz. E muito menos um «despacho de mero expediente» [alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP]. Trata-se pois de um acto recorrível (artigo 400.º citado «a contrario»).

O JIC tem que se manifestar por escrito no processo. Esta intervenção é um acto processual, e, como tal, só pode ser um acto processual decisório.

A decisão é a decisão de concordância ou de discordância, e tem que ser justificada.

O artigo 97.º do CPP elenca os actos decisórios, prevendo-se, na alínea b) do n.º 1, que os despachos assumem tal categoria, quando puserem termo ao processo, fora do caso das sentenças, mas também quando conheçam de qualquer questão interlocutória. Ora, no caso, é evidente que se não está perante uma decisão, a do JIC, que ponha termo ao processo, ou, como se refere no acórdão, que extinga a relação processual. Como a palavra inculca, a suspensão implica logicamente que se não põe logo fim ao processo. E por isso é que a própria determinação do MP de suspender também não põe fim à relação processual.

Essa decisão final é do MP, nesta fase de inquérito, depois de decorrido o tempo da suspensão, e verificado o cumprimento das injunções e regras de conduta.

Mas a intervenção do JIC pode e deve ser considerada uma «decisão interlocutória», de verificação dos pressupostos da suspensão e da legalidade das injunções e regras de conduta.

Ao contrário, a opção do arguido ou do assistente não consubstanciam nenhum acto de processo. Quando muito dão conteúdo a um acto de recolha da respectiva declaração, mas esse é um acto do MP.

Substancialmente, a suspensão provisória do processo surge, quer se queira quer não, como uma co-decisão (e de nada serve que a desqualifiquemos com a designação de «formalidade essencial» ou outra semelhante, lembrando antes, a solução legal, o que passa em direito administrativo, com os actos que são precedidos de pareceres vinculativos, em que o autor do parecer e o autor do acto administrativo acabam por produzir uma decisão materialmente conjunta - cf. Freitas do Amaral in Curso de Direito Administrativo II, p. 274).

4) A decisão de suspensão de acordo com o estabelecido no n.º 1 do artigo 281.º é inimpugnável, porque, obviamente, se foi o MP que a propôs, nunca teria interesse em agir, para recorrer da concordância do juiz. O arguido e o assistente deram a sua anuência, não devendo ser admitidos, depois, a dar o dito por não dito, e quanto ao JIC, enquanto tal, a questão nem sequer se põe.

Mas, a contrario, uma decisão que não é conforme ao disposto no n.º 1 do artigo 281.º, porque, por exemplo, falhou a concordância do assistente, é por este recorrível. Recorrível, só na parte que tem a ver com o despacho de concordância do juiz, porque só as decisões dos juízes são recorríveis (a reclamação do despacho do MP só está prevista para os despachos de arquivamento, nos termos do artigo 278.º do CPP).

Claro que foge completamente do âmbito daquele n.º 1 do artigo 281.º, uma decisão de não concordância do JIC que inviabiliza a suspensão, pelo que, não estando em lado algum prevista a irrecorribilidade, o artigo 399.º do CPP terá que se aplicar.

5) Se a iniciativa de suspender provisoriamente o processo for do JIC, por certo que também este necessita da concordância do MP, e, dir-se-á que, caso não obtenha a anuência deste, verá comprometida definitivamente a sua opção. O que cria uma disparidade de soluções, neste aspecto, consoante a fase em que se está, e quem toma a iniciativa de suspender o processo.

Entendemos, porém, que as duas situações não se equivalem.

Na verdade, o MP já pudera ele próprio ter tomado a iniciativa de suspender o inquérito, no fim do mesmo, e se não o fez é porque entendeu que, em termos da política criminal que lhe compete implementar, com os meios processuais ao seu dispor, tal se não ajustava ao caso. E enquanto que a intervenção do JIC neste procedimento, no fim do inquérito, é uma intervenção ditada por razões garantísticas, a anuência (ou não) do MP na instrução, tal como a sua iniciativa de suspender o inquérito, obedece a propósitos de política criminal, ao nível da criação de espaços de consenso em pequena e média criminalidade. E, interessa aqui recordar que é ele, MP, o detentor da acção penal.

Ma se nos debruçarmos sobre a decisão de suspender, durante a instrução, interessa ter em conta o requerimento da própria instrução, para se analisar a função desta fase. A instrução destina-se a sindicar a opção do MP de acusar (requerida pelo arguido), ou de arquivar (requerida pelo assistente). E das duas uma, ou o JIC confirma a opção do MP de acusar e pronuncia o arguido (respeitando, sublinhe-se, o objecto do processo) ou confirma a opção do MP de arquivar e não pronuncia. Daí que não tenha muito sentido enveredar-se por uma «terceira via», à revelia do MP, «terceira via» que em si não tem a ver com a opção do MP, no fim do inquérito, pelo contrário, porque o MP pôs de lado, então, a suspensão. E, mais uma vez se acentua que a instrução se destina a controlar a opção do MP no fim do inquérito, não se assumindo como uma segunda fase investigatória, surgida um pouco ao jeito da antiga instrução contraditória.

Assim sendo, a tolerar-se a suspensão do processo, na instrução (numa opção legislativa discutível), ela terá que ter sempre a anuência do MP. E, claro que as decisões deste não são recorríveis, não só em virtude da sua estruturação hierárquica, como sobretudo em virtude de ser uma magistratura unitária.

Resta dizer que a irrecorribilidade da decisão de suspensão, proferida nos processos sumário e abreviado, não foi imposta pela análise dessa específica opção, e decorre simplesmente de uma orientação geral, segundo a qual, nessas formas de processo, por razões óbvias de simplificação e celeridade, só existe recurso da decisão final. Se todas as decisões interlocutórias são irrecorríveis, por certo que aquela de que tratamos aqui também tinha que o ser. - José Souto de Moura.

Voto de vencido

Votei vencido pelas razões que seguem.

A «concordância» do juiz de instrução criminal (JIC) a que se refere o n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal (CPP) não é «paralela» à concordância exigida às partes (arguido e assistente) para a viabilização da suspensão provisória do processo, a qual não é mais do que a simples expressão das suas vontades, enquanto pessoas livres e autónomas.

O Tribunal Constitucional, no Acórdão 7/87, ao julgar inconstitucional a versão do artigo 281.º constante do projecto, invocou os artigos 32.º, n.º 4, e 206.º da Constituição, na versão então vigente (constituindo agora este último o n.º 2 do artigo 202.º), o que significa que foi um défice de intervenção jurisdicional que determinou esse juízo de inconstitucionalidade, já que o preceito permitia ao Ministério Público (MP) impor injunções e regras de conduta ao arguido, sem o «aval» de um juiz.

A «concordância» do JIC visa precisamente suprir esse défice. A intervenção do JIC, enquanto garante das liberdades, terá em conta não só a verificação dos pressupostos formais da suspensão [enunciados no corpo e nas alíneas a) a d) do n.º 1 do citado artigo], como também os pressupostos materiais [alíneas e) e f) do mesmo número, e n.º 3 do mesmo artigo].

O JIC, concordando ou discordando, não exprime uma vontade pessoal, livre, ou incondicionada, antes está vinculado aos pressupostos de natureza material e de política criminal que estão subjacentes à criação do instituto da suspensão provisória do processo. Ele decide (não emite uma opinião ou um parecer, mas sim uma decisão) se estão ou não verificados os pressupostos formais e materiais de aplicabilidade da suspensão.

Por isso, a «concordância» não é um mero «pressuposto formal», antes constitui materialmente uma decisão jurisdicional. Funcionando embora como pressuposto do despacho do MP, é a «concordância» do JIC, que constitui uma autorização, que confere àquele a legitimidade constitucional para determinar a suspensão. Ao autorizar a suspensão, o JIC outorga ao subsequente despacho do MP aquele suplemento de jurisdicionalidade que o legitima materialmente.

Trata-se, pois, de um verdadeiro acto decisório do juiz, sendo irrelevante para essa caracterização que não seja enquadrável no n.º 1 do artigo 97.º do CPP, pois essa norma não contém uma enumeração exaustiva dos actos decisórios, antes e apenas a indicação da forma que os mesmos revestem.

Sendo uma decisão jurisdicional, é evidente que deve ser fundamentada (n.º 5 do artigo 97.º do CPP) e que é sindicável junto dos tribunais superiores (artigo 399.º do CPP).

Duas notas finais: a inimpugnabilidade da decisão de suspensão, estabelecida no n.º 5 do artigo 281.º, explica-se por razões de celeridade, razões essas que cessam na situação contrária; quanto ao facto de os processos sumário e abreviado não admitirem outro recurso que não seja da decisão final, estando assim vedada a impugnação do despacho de não «concordância» do juiz, tal resulta da especialidade destas formas de processo, caracterizadas pela celeridade e simplicidade.

Pelo exposto, entendo que deveria fixar-se jurisprudência no sentido de que a discordância do JIC em relação à posição assumida pelo MP, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do artigo 281.º do CPP, é passível de recurso. - Eduardo Maia Costa.

Declaração de voto (de complementaridade concordante)

1 - A temática de diversão nos modernos sistemas penais, enraizada na herança do labelling approach, traduziu-se em diversas soluções de política criminal, com novas posturas e figurinos processuais, assim restringindo o carácter predominante e absoluto do princípio da legalidade, face ao avolumar do princípio da oportunidade, acometendo ao Estado de Direito, material e social, um discurso assertivo institucionalizado em termos de cooperação, consenso e eficácia.

O direito penal como barreira intransponível da política criminal, no pensamento de Liszt, flexibiliza-se em funcionalização metodológica, com novas cambiantes do ordenamento jurídico, na finalidade protectora de bens jurídicos articulada com a socialização do delinquente.

A essa filosofia jurídico-institucional aderiu a Constituição da República Portuguesa (CRP) consagrando no n.º 4 do artigo 202.º que: «A lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos.» 2 - Da colaboração interactiva entre o direito penal, a criminologia e a política criminal, surgiram pois, nos sistemas processuais/penais contemporâneos, diversos modos institucionais conformadores, entre os quais, a suspensão provisória do processo como um instituto processual, de relevância substantiva, traduzindo uma dimensão conciliatória, eficaz, de paz jurídica e de concordância prática, nos fins do processo.

Refere Manuel da Costa Andrade, que a suspensão provisória do processo e o processo sumaríssimo «configuram as duas expressões paradigmáticas da busca do consenso como ambiente de pacificação e de reafirmação intersubjectiva e estabilizadora das normas.» Consenso e Oportunidade (Reflexões a Propósito da Suspensão Provisória do Processo e do Processo Sumaríssimo) in Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Livraria, Almedina, 1995, p. 338 v.º).

3 - Embora o artigo 281.º do CPP tenha incidência substantiva, escreve este Ilustre Professor (ibidem, p. 353), citando Riess: «Do ponto de vista do direito penal substantivo, trata-se aqui de uma sanção de índole especial não penal a que não está ligada a censura ético-jurídica da pena nem a correspondente comprovação da culpa. Significativo para o feito que o arguido não possa ser coagido nem à aceitação das funções e regras de conduta nem ao respectivo adimplemento: o efeito da sanção que lhe está ligado assenta na liberdade de decisão (Frewilligkeit) do arguido.» E, mais adiante (ibidem, p. 355.) aduz: «Como já a seu tempo sublinhava Eb.

Schmidt, não é pensável uma legalidade 'isenta de todo o coeficiente de discricionariedade'. E aí está a criminologia moderna a confirmá-lo de modo insofismável. A Suspensão provisória do processo sempre terá a vantagem não despicienda de formalizar - e hoc sensu emprestar publicidade - a decisões que de outro modo ocorreriam a coberto da mais iniciática e menos controlável via dos indícios suficientes.» Por outro lado, na inexistência de «limite constitucional ou legal à validade e eficácia do consentimento», é «a autonomia pessoal, matriz do desempenho auto-referente (ou autopoiético) do indivíduo que fundamenta e legitima o consentimento na lesão - ou a renúncia à protecção - dos bens jurídicos ou dos direitos fundamentais, as liberdades incluídas.» (idem, ibidem, p. 355).

4 - A suspensão provisória do processo prevista no artigo 281.º, n.º 1, do CPP, traduz-se em uma actuação processual - com efeitos substantivos -, oriunda e, dependente de decisão, do Ministério Público, em que este «determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem» os demais pressupostos aludidos nas respectivas alíneas.

5 - Na delimitação estrutural configurada pelo artigo 281.º, n.º 1, do CPP, a função do juiz de instrução não se assume em actuação decisória. Não decide, nem impõe, o que considera adequadamente justo no âmbito da suspensão provisória do processo.

A intervenção do juiz de instrução resume-se a fiscalização garantística dos pressupostos da suspensão provisória do processo, maxime da legalidade e adequação da medida imposta e da inoponibilidade de injunções e regras de conduta susceptíveis de ofenderem a dignidade do arguido, no sentido de concluir pela concordância ou não, face aos termos concretos perspectivados pelo Ministério Público.

6 - Poderia questionar-se, eventualmente, se a não concordância do juiz de instrução, é, ou não, susceptível de equiparar-se a acto decisório ou, autonomizar-se como decisão judicial, uma vez que inviabilizaria a suspensão provisória do processo.

Mas tal questão, a meu ver, não tem suporte legal, nem exigência constitucional:

A - Na verdade, do artigo 281.º do CPP, não resulta que a concordância, e, por conseguinte, a não concordância, do juiz de instrução deva ser fundamentada nos termos estabelecidos pelo artigo 97.º, n.º 5, do CPP.

Porém os actos decisórios são sempre fundamentados, da forma indicada no artigo 97.º, n.º 5, do CPP.

Donde, o acto processual de concordância ou, de não concordância, do juiz de instrução na suspensão provisória do processo não pode ser considerado um acto decisório.

B - Por outro lado, o acto processual de concordância, ou, de não concordância, não tem a virtualidade de poder ser considerado despacho (acto decisório), uma vez que não decide sequer questão interlocutória, configurando-se apenas como pressuposto processual da decisão que é determinada por despacho do Ministério Público.

C - O acto processual de não concordância, ou, de concordância, explicita a garantia judicial - pelo juiz de instrução - exercida com a mesma exigência metodológica na fiscalização dos pressupostos in casu, apresentados pelo órgão decisor - o Ministério Público -, integrantes da (in)viabilidade da concretização do instituto da suspensão provisória do processo.

D - Dispõe o artigo 205.º, n.º 1, da CRP: «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.» Não sendo o acto processual de concordância ou, de não concordância, do juiz de instrução, uma decisão, pois que não constitui acto decisório, não se encontra abrangido pelo disposto no referido normativo constitucional.

E - Se o acto processual de concordância ou não concordância do juiz de instrução constituísse decisão sujeitava-se ao regime dos n.os 2 e 3 do referido artigo 205.º da CRP, o que seria inconjugável com a posição ou função do juiz de instrução no processualismo legal que estrutura o instituto da suspensão provisória do processo constante do artigo 281.º do CPP.

F - É da exclusiva competência do Ministério Público a determinação da suspensão provisória do processo, determinação essa que constitui acto decisório, assumindo-se como despacho, sendo que como estabelece o n.º 3 do artigo 97.º do CPP: «Os actos decisórios do Ministério Público tomam a forma de despachos» que, como se sabe, podem ser impugnados pela via hierárquica.

Porém, nos termos do n.º 5 do citado artigo 281.º do CPP: «A decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é susceptível de impugnação.» 7 - A actuação do juiz de instrução na suspensão provisória do processo redunda, formalmente, como acto processual, em «declaração» de concordância ou de não concordância, que não consubstancia, quer pela natureza, quer pela finalidade, acto decisório.

No âmbito do instituto processual da suspensão provisória do processo, o juiz de instrução não profere decisão.

Inexistindo decisão, não pode haver recurso.

A declaração do juiz de instrução na suspensão provisória do processo é pois irrecorrível, como se depreende dos artigos 399.º e 400.º do CPP.

8 - Por isso, e pelas razões esmiuçadamente analisadas no presente acórdão de fixação de jurisprudência, necessariamente se me afigura ser de concluir no sentido da jurisprudência ora fixada. - António Pires Henriques da Graça.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/12/24/plain-267078.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/267078.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1987-02-09 - Acórdão 7/87 - Tribunal Constitucional

    Declara não se pronunciar pela inconstitucionalidade dos artigos 108.º, n.º 2, alínea b); 135.º, n.os 2 e 3; 174.º, n.os 3 e 4; 177.º, n.º 2, com referência ao artigo 174.º, n.º 4, alíneas a) e b); 178.º, n.º 3; 187.º, n.º 1; 190.º; 200.º; 250.º, n.º 3; 251.º, n.º 1; 252.º, n.º 3; 263.º; 270.º, n.º 1; 281.º, n.os 3 e 5, salvo, quanto a este último número, consequencialmente, na parte em que ele remete para o n.º 4; 286.º, e 337.º n.os 1, alínea a), e 3, e pronunciar-se pela inconstitucionalidade dos artigos (...)

  • Tem documento Em vigor 2007-08-29 - Lei 48/2007 - Assembleia da República

    Altera (15.º alteração) e republica o Código de Processo Penal.

  • Tem documento Em vigor 2007-08-31 - Lei 51/2007 - Assembleia da República

    Define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio, que aprova a Lei Quadro da Política Criminal.

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