Assento de 28 de Abril de 1967
Processo 61073. - Autos de recurso para tribunal pleno vindos do Tribunal da Relação do Porto. Recorrente, Câmara Municipal de Matosinhos. Recorrido, António Caetano Nora.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça em tribunal pleno:
Francisco de Jesus Salvador e António Caetano Nora, domiciliados aquele no concelho de Peniche e este no de Matosinhos, tendo pago às respectivas Câmaras Municipais as quantias, também respectivamente, de 2209$00 e 1816$00, que, a título de imposto de comércio e indústria, lhes haviam sido liquidadas pelo exercício, durante o ano de 1963 e nos respectivos concelhos, da actividade industrial de "pesca por meio de aparelhos», reclamaram contenciosamente a restituição daquelas quantias, por indevidamente colectados.
As reclamações, subsistindo em recurso até à última instância hierárquica, tiveram a final este desfecho: enquanto o Salvador viu desatendida a sua pretensão por Acórdão da Relação de Lisboa de 5 de Maio de 1965, certificado a fl. 9, foi o Nora atendido por sentença do tribunal da comarca, que a Relação do Porto confirmou em Acórdão de 7 de Julho do mesmo ano, aqui trasladado a fl. 3.
Ora, alegando que este último aresto deu à mesma questão fundamental de direito, adiante concretizada, solução oposta à que obtivera no anterior Acórdão de Maio, apesar de proferidos ambos no domínio da mesma legislação, também adiante referida, e que nenhum deles recorrível é por motivo estranho à alçada, desse Acórdão de Julho traz a Câmara Municipal de Matosinhos recurso para o tribunal pleno, ao abrigo do artigo 764.º do Código de Processo Civil.
A secção entendeu verificar-se a oposição, dado que os dois acórdãos, com o indicado conteúdo, haviam sido emitidos no domínio dos mesmos diplomas: por um lado, os preceitos do Decreto-Lei 5703, de 10 de Maio de 1919, integrados, em substituição da tabela que dele fazia parte, pelas verbas da aprovada pelo Decreto 12822, de 1 de Novembro de 1926 (in Diário do Governo de 15 do mês imediato), preceitos esses que, na controvérsia em apreço, se resumem ao contido no artigo 57.º daquele decreto; e, por outro lado, os artigos 704.º, n.º 5, e 710.º do Código Administrativo, que, segundo vem assente, nenhuma alteração substancial sofreram na nova redacção que lhes deu o Decreto-Lei 45676, de 24 de Abril de 1964.
Doutamente alegaram as partes a final. E o ilustre magistrado do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal, reafirmando a posição tomada sobre o assunto pela Exma. Procuradoria-Geral da República, nomeadamente no seu proficiente parecer 93/52, de 5 de Fevereiro de 1953, cuja cópia juntou, e lùcidamente rebatendo as objecções adversas, conclui no sentido da doutrina do acórdão oferecido como oposto.
O que tudo ponderado e decidindo:
I) É de confirmar a existência da oposição, pois que, enquanto no Acórdão de Maio se decidiu que, a despeito do preceituado no predito artigo 57.º do Decreto 5703, é devido o imposto camarário de comércio e indústria pela actividade industrial de pesca com aparelhos, no acórdão em recurso resolvido foi que esse mesmo preceito afastava a sujeição daquela actividade ao referido imposto.
Deste modo, e porque concorre ainda o restante condicionalismo do já citado artigo 764.º do Código de Processo, passa-se a curar da solução do conflito jurisprudencial.
E curando:
II) Entre os impostos municipais directos figura o já referido imposto de comércio e indústria, anteriormente ao citado Decreto 45676 designado por "licença de estabelecimento comercial ou industrial» e que devido é "pelo exercício, na circunscrição municipal, de qualquer actividade passível de contribuição industrial ou imposto de natureza especial que o substitua» (artigos 704.º e 710.º do Código Administrativo).
E vem provado que, no ano em referência, foi o recorrido Nora colectado em contribuição industrial pelo concelho de Matosinhos (fl. 33).
Cabendo, pois, o caso em apreço na regra do citado artigo 710.º, temos que o predito imposto municipal só deixará de ser exigível se houver preceito especial que assim o determine.
Ora, argumenta-se no acórdão recorrido, tal preceito é o já citado artigo 57.º do Decreto 5703, porquanto:
Segundo o n.º 34.º do artigo 28.º deste diploma, compete aos capitães dos portos conceder na área da sua jurisdição (definida no precedente artigo 3.º e parágrafos) licença para os diversos actos que ali se especificam e dos quais só interessa agora o de "pescar»; determinando-se na alínea a) do referido número que a passagem das referidas licenças é da "exclusiva competência da autoridade marítima dentro da área da respectiva jurisdição».
Vem depois o artigo 54.º a dispor que as verbas a cobrar nas capitanias são as fixadas na tabela anexa, ora substituída, como se disse, pela constante do Decreto 12822. E nesta, sob a verba n.º 52, se acha inscrita a "licença para pescar com aparelhos não especificados», cuja taxa varia em função da tonelagem da respectiva embarcação (10$00 até 4 t; 20$00 além de 4 t a 10 t; e outros 20$00 por cada 10 t a mais, ou fracção).
Finalmente, porque o citado artigo 57.º remata o assunto, dispondo que "ficam abolidas quaisquer licenças, rendas, taxas ou posturas passadas ou cobradas na área da jurisdição marítima pelas câmaras municipais» - conclui daí o acórdão do Porto que:
a) É da exclusiva competência da autoridade marítima a concessão e cobrança das licenças para o exercício das actividades comerciais ou industriais, mas essencialmente marítimas, descritas nas tabelas anexas aos citados Decretos n.os 5703 e 12822;
b) Portanto, como a actividade de pesca constitui uma das que vêm especìficamente descritas na predita tabela, não pode ela, contra a proibição do citado artigo 57.º, ser passível do imposto municipal incidente sobre a indústria de pesca, até porque a sua exigência representaria uma duplicação do tributo.
Mas, independentemente da consideração de que esse imposto municipal, tal como vinha definido e designado no Código Administrativo antes da redacção de 1964, só foi autorizado, como medida geral, mais de um ano após a publicação do citado Decreto 5703 (artigo 2.º da Lei 999, de 15 de Julho de 1920, completado pelo artigo 5.º da Lei 1453, de 26 de Julho de 1923), é de ponderar, dado que o problema, a despeito dessa localização no tempo, subsiste, na medida em que o citado artigo 57.º, como preceito especial que é, não pode, em princípio, considerar-se revogado pela lei geral posterior (n.º 999), é de ponderar, dizíamos, que:
Da relacionação desse artigo 57.º com os demais textos do respectivo diploma só resulta como exacto o exclusivismo da autoridade marítima (em ordem a afastar a interferência de qualquer outra) quanto ao licenciamento para o exercício dos actos especificados na tabela de 1926 e quanto à cobrança das respectivas taxas - exclusivismo esse que a parte final do citado n.º 34 do artigo 28.º suficientemente explica. Consequentemente, a proibição para as câmaras municipais passarem ou cobrarem tais licenças. Apenas isto, pois:
III) Quanto ao mais, que é o objecto do conflito a solucionar, ou seja se pelo citado artigo 57.º estão ou não as câmaras municipais proibidas de colectar em imposto de comércio ou indústria actividades comerciais ou industriais cujo exercício decorra em áreas sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas - é de dizer que:
Certo é, como se decidiu no acórdão oposto, que aquele preceito e o artigo 710.º do Código Administrativo podem coexistir, por ser diverso tanto o conteúdo deles como o respectivo campo de aplicação.
Para se verificar que assim é, importa, na ponderação de que ex facto oritur jus, constatar qual será, em cada uma dessas zonas, o facto tributário (lato sensu), tal como vem explanado no magistral preâmbulo do projecto que se converteu na Lei 533, de 1916, e cujo articulado, na parte tocante, se acha integralmente reproduzido no correspondente texto agora em vigor (§ único do artigo 85.º do Código de Processo das Contribuições e Impostos).
Isto é, o mesmo facto tributário não pode ser origem de mais do que uma espécie de tributo, ou, se se preferir, um só e o mesmo acto não pode ser objecto de mais de uma matéria colectável. Logo, para haver duplicação do tributo, necessário é que as colectas sejam da mesma natureza, pois "de duas coisas diferentes, uma não pode ser a duplicação da outra».
Ora, aproximadas essas noções dos textos e dos factos já examinados, constata-se que:
As diminutas quantias pagas pela concessão da licença para pescar são, como decorre do próprio preâmbulo do Decreto 5703, verdadeiras taxas, cobradas, em contraprestação, pela utilização do domínio público marítimo com a prática desse acto de pescar, como simples facto em si, ou seja, independentemente do rendimento que o resultado desse acto possa produzir (v.g. pesca por parte de um amador).
Pois, como acertadamente se observa no douto parecer de fl. 64, tanto o Decreto 5703 como a respectiva tabela, ao referirem o acto sujeito à licença de pesca, desinteressam-se por completo da natureza ou espécie da actividade, comercial ou não, industrial ou não, no desenvolvimento da qual tal acto venha a ser praticado. Trata-se de um aspecto inteiramente irrelevante para a lei, sendo necessária a licença para a prática do mencionado acto, qualquer que seja a espécie ou natureza da actividade em que esse acto se integre.
Ao passo que, o artigo 710.º do Código Administrativo estatui um verdadeiro imposto, e directo, que só devido é quando a actividade de pescar seja de tal modo complexa que traduza o exercício da indústria respectiva, passível de contribuição industrial.
E, como são bem conhecidas as diferenças que separam as duas figuras fiscais - taxa e imposto -, basta, em ideia mais singela do caso vertente, focar que:
De um lado (Decreto 5703), há autorização para a prática do acto material de pescar (que, tão-sòmente, vem descrito na tabela) e a exigência da respectiva taxa pela utilização do domínio marítimo.
De outro lado (artigo 710.º do Código Administrativo), porque à contribuição industrial está subordinada a tributação municipal da respectiva indústria, cuja percentagem incide precisamente sobre a importância da colecta daquela contribuição, é o rendimento, resultante do exercício dessa indústria, que se tributa.
Daí que, por se tratar de tributações independentes, autónomas e correspondentes a realidades diferentes, nem há duplicação do tributo, nem fundamento para se considerar limitada pelo já citado artigo 57.º a faculdade tributária camarária prevista no predito artigo 710.º
Ao contrário, portanto, do que pretende a corrente em que enfileira o aresto recorrido, de nenhum modo é exacto que "pesca por meio de aparelhos seja a mesma actividade sobre que recairia o imposto de comércio ou indústria - se fosse devido - e as taxas cobradas pela autoridade marítima, taxas que não deixam de ser ou constituir tributação» (Jurisprudência das Relações, XI, 163).
Por aqui se poderia ficar.
IV) Como, porém, há na contra-alegação do recorrido argumentação especial, dir-se-á em apreciação dela:
1) Quanto ao primeiro argumento - ser a pesca uma actividade que, por exercida inteiramente dentro da área da jurisdição marítima, escapa à incidência tributária das câmaras municipais - é, como se diz no já citado parecer: além de manifestamente contrário à lei, provaria de mais.
Pois, nos termos do artigo 1.º do Código Administrativo, a divisão administrativa abrange todo o território do continente, sem exclusão de qualquer parcela. E porque "as duas divisões territoriais (administrativa e marítima), obedecendo a critérios e fins diversos, coexistem e não se excluem», daí vem que na área das circunscrições municipais ficam abrangidas as próprias áreas das circunscrições marítimas.
Provaria de mais, porque, se a faculdade tributária das câmaras fosse limitada pela circunstância de o comércio ou a indústria serem exercidos na área da circunscrição marítima, essa limitação seria válida para todas as empresas que ali exercessem o seu comércio ou indústria, e não sòmente para aquelas cujo comércio ou indústria envolvesse a prática dos actos especificados na tabela já referida.
2) O segundo argumento sumaria-se assim: por um lado, o imposto municipal sobre a indústria de pesca está incluído na verba respectiva daquela tabela; por outro, cobrando já as câmaras o imposto ad valorem sobre o pescado, a exigência de um outro imposto (o da indústria) importaria uma duplicação tributária.
Improcede o primeiro ponto, porque, como se viu, a mera actividade de pescar, que é quanto a licença marítima autoriza, alheia é ao resultado lucrativo que dessa actividade advenha.
E quanto ao segundo: por serem do conhecimento geral as diferenças entre um imposto directo (que tal é o que está em causa) e outro, indirecto ou de consumo (em que se enquadra o imposto sobre o pescado), é de dizer que, a ter sido este cobrado pela câmara, nada mais, atenta a noção do facto tributário, se tornaria necessário acrescentar para se concluir que improcede não só a duplicação de colecta como a própria ideia de o recorrido vir a ser, realmente, onerado pelo imposto indirecto.
V) Por tudo o exposto, dá-se provimento ao recurso, com a consequente revogação do acórdão recorrido e da sentença por ele confirmada, para subsistir o indeferimento da reclamação em 1.ª instância, condena-se o recorrido nas custas dos recursos e assenta-se em que:
O exercício da indústria de pesca com aparelhos, mesmo quando tenha lugar em áreas sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas, é passível do imposto municipal de comércio e indústria.
Lisboa, 28 de Abril de 1967. - Ludovico da Costa - Joaquim de Melo - H. Dias Freire - Fernando Bernardes de Miranda - Oliveira Carvalho - Francisco Soares - Adriano Vera Jardim - António Teixeira de Andrade - Lopes Cardoso - Gonçalves Pereira - Torres Paulo - J. Santos Carvalho Júnior (vencido. Entendo que o disposto no artigo 57.º do Decreto 5703 impunha a solução oposta à que fez vencimento) - Eduardo Correia Guedes [vencido. Quando o artigo 57.º do Decreto 5703 aboliu quaisquer licenças, taxas, rendas ou posturas passadas ou cobradas nas áreas das circunscrições marítimas, a generalidade e profusão desta nomenclatura, impõe ao espírito a certeza de que as câmaras municipais nada podem cobrar pelas actividades que se exerçam na área dessas circunscrições.
Acresce que o artigo 710.º do Código Administrativo estipula que ao imposto de comércio e indústria só estão sujeitas as empresas que exerçam qualquer ramo de comércio ou indústria nas circunscrições municipais, e a actividade da pesca é exercida no mar, que pertence ao domínio público marítimo (quando pertence), e não às circunscrições municipais] - José Cabral Ribeiro de Almeida (vencido pelas razões que antecedem).
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 16 de Maio de 1967. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.