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Acórdão 357/2009, de 17 de Agosto

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Sumário

Não conhece do recurso por não ter sido suscitada uma questão de inconstitucionalidade relativa a normas, mas à própria decisão recorrida.

Texto do documento

Acórdão 357/2009

Processo 969/08

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A - Relatório

1 - Filomena de Lurdes da Rocha Carvalho Ferreira instaurou no Tribunal Judicial de Penafiel acção declarativa (processo 1187/04.9 TBPNF) contra Aida Maria da Silva Vieira, Joaquim Batista Perdigão Neves e Fundo de Garantia Automóvel, pedindo a condenação solidária destes a pagarem-lhe uma indemnização de (euro) 276.035,00, acrescida de juros de mora, por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência de acidente de viação imputável à Ré Aida Maria e ao condutor não

identificado de outro veículo.

Nos danos alegados estavam incluídos a perda da vida do seu filho intra-uterino e o sofrimento deste no período que antecedeu a sua morte.

Após realização de audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, tendo absolvido os Réus do pedido formulado.

Inconformada, a Autora recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão proferido em 18 de Junho de 2007, julgou o recurso parcialmente procedente, tendo condenado os Réus Aida Maria da Silva Vieira e o Fundo de Garantia Automóvel a pagar à Autora a quantia de (euro) 161.972,56, acrescida de juros de mora, e absolvido o Réu Joaquim Batista Perdigão Neves do pedido.

O recurso não logrou provimento, além do mais, quanto à parte da decisão recorrida relativa ao pedido de indemnização pelos danos imputados à perda da vida do filho intra-uterino da Autora e do sofrimento deste no período que antecedeu a sua morte.

2 - Quer a Autora quer o Fundo de Garantia Automóvel recorreram desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), questionando a correcção jurídica da resposta dada a várias questões com influência no julgado.

3 - Na parte que concerne à Autora e nas alegações de recurso apresentadas perante o Supremo Tribunal de Justiça, esta alegou, entre o mais que "o artigo 24.º da Constituição protege o direito à vida e integridade física e psíquica do ser humano" (1);

a ofensa do direito à vida intra-uterina constitui um facto ilícito gerador de responsabilidade" (2); para reparar a perda do direito à vida do filho nascituro da autora é ajustada a quantia de (euro)50.000,00" (3); deve ser fixada no montante peticionado a indemnização para reparar o sofrimento do filho da autora entre a data do acidente e a morte" (4) e "a não se entender assim ou seja, que o artigo 66.º do Código Civil o não permite, será tal interpretação materialmente inconstitucional, porque ofensiva do disposto no artigo 24.º da lei Fundamental" (5).

4 - Por acórdão proferido em 9 de Outubro de 2008, o STJ julgou improcedente o recurso da Autora e parcialmente procedente o recurso do Fundo de Garantia Automóvel, revogando a decisão recorrida apenas no segmento em que condenou esta parte no pagamento de juros moratórios sobre a quantia de (euro) 130.000,00 a partir da citação, determinando que tais juros se vencem a partir da sentença da 1.ª instância.

5 - Dizendo-se, mais uma vez inconformada, a Autora interpôs recurso do acórdão do STJ para o Tribunal Constitucional, através de requerimento do seguinte teor:

"[...] vem, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 75.º-A, n.os 1 e 2 da Lei 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional, do douto acórdão recorrido no que tange à questão da inconstitucionalidade material suscitada nas alegações de recurso para este Tribunal, por violação do artigo 24.º da Constituição da República Portuguesa que protege a inviolabilidade da vida humana, inclusive a intra-uterina cuja violação ilícita é ressarcível

civilmente".

6 - Convidada pelo primitivo relator a "explicitar de forma clara, precisa e concisa a interpretação normativa contida na decisão recorrida cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada, com a cominação prevista no artigo 75.º-A, n.º 7, da LTC", a Autora veio a apresentar um longo requerimento em que, além do mais, diz que «o objecto do recurso de inconstitucionalidade é o, salvo melhor opinião, errado entendimento sufragado pelo douto acórdão recorrido proferido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, na interpretação segundo a qual "o artigo 24.º, n.º 1, da Lei Fundamental ao considerar a vida humana inviolável está a impor a protecção genérica da gestão humana, sem considerar o nascituro como centro autónomo de

direitos"»

7 - Tendo sido determinada a produção de alegações sobre o recurso de constitucionalidade, a recorrente concluiu-as do seguinte jeito:

"A) A nossa ordem juridico-constitucional, máxime, no artigo 24.º, n.º 1, protege a vida humana desde a concepção e até à morte natural.

B) A vida humana que a nossa lei fundamente protege não é a abstracta mas sim a concreta de cada ser humano, como sujeito de direitos, in casu, do filho nascituro já concebido e completamente formado da autora e ora recorrente.

C) A vida humana existe desde a concepção ou pelo menos desde a nidificação ou seja da implantação do embrião no útero da mãe.

D) A partir da concepção passa a existir um "ser humano", sujeito de direitos, reconhecido pela ordem jurídica, com interesses próprios e diferentes dos da mãe e até com quem pode entrar em conflito e que são exercitáveis judicialmente, até pelo pai

biológico.

E) Se a lei fundamental tutela o bem jurídico colectivo e objectivo da identidade e inalterabilidade do património do genoma humano, mais terá de tutelar a própria vida humana por esta ser um prius em relação àquele.

F) Que a vida intra-uterina é humana, máxime, a existente no embrião e feto não restam dúvidas, pois se nada impedir a sua evolução natural formar-se-á um ser humano, como

aconteceu, in casu.

G) A nossa lei fundamental ao proteger os mais fracos e débeis, quis, seguramente, incluir o nascituro já concebido, ou seja, a vida humana desde o seu início e até à morte

natural.

H) A vida humana só deve ceder em caso de conflito com outra vida humana e segundo o princípio do interesse preponderante.

I) Aquando da morte do filho da ora recorrente o feto estava já completamente formado, (de termo) tendo perfeita autonomia física e psíquica em relação à mãe biológica, estando em condições de poder sobreviver à luz do dia, não fosse a agressão letal sofrida, pelo que não pode deixar de qualificar-se, pelo menos neste caso, juridicamente como um ser humano sujeito de direitos e com direito à vida.

J) Na verdade se a agressão tivesse sido de menor gravidade e o feto tivesse sobrevivido a esta, este teria vindo ao mundo por cesariana ou espontaneamente, dado estar completamente formado e com total autonomia da mãe biológica, podendo, pois demandar judicialmente o agressor pelos danos materiais e morais sofridos, pelo que não faz qualquer sentido, que tendo a agressão sido letal, não possa exercitar o seu direito pela perda do seu bem mais precioso, a vida humana, o que seria juridicamente inaceitável, o que tudo bem demonstra que o feto é um ser humano cuja vida é tutelada

jurídico constitucionalmente.

K) Uma vez que o filho da autora à data da morte se encontrava completamente formado, com forma humana e sem deformidade e ou aleijão, como se vê dos autos, máxime, com um peso de 3.495 quilogramas, com 9 meses de gestação e com a altura de 0,515 metros, tendo falecido "in útero", em consequência das lesões traumáticas meningeas, associadas à asfixia, provocadas pelo poli traumatismo sofrido pela mãe, em consequência do acidente dos autos, não pode deixar de qualificar-se o mesmo como "ser humano", sujeito de direitos, incluindo o direito à vida.

L) O artigo 24.º, n.º 1, da lei fundamental não distingue entre vida intra-uterina e extra-uterina, pois o que quis dizer foi que onde existir vida humana, máxime, pertença da espécie humana, dada a sua dignidade, a mesma é juridicamente tutelada como sujeito de direitos, só podendo ceder em caso de conflito com outra vida humana, sendo assim um valor absoluto, princípio e fim da sociedade humana.

M) Justifica-se, assim, uma interpretação abrangente do dito normativo constitucional, de modo a incluir toda a vida humana desde a concepção e até à morte., porque toda ela merecedora de igual protecção, em especial quando é mais débil, maxime, no

princípio e fim.

N) Não faz assim sentido de um ponto de vista jurídico constitucional não proteger a vida humana ou proteger menos na sua fase embrionária ou fetal, pois pelo contrario resulta do texto fundamental que este quis proteger, em particular, os mais débeis e indefesos, onde se incluem os nascituros já concebidos.

O) A nossa Constituição deve ser interpretada do ponto de vista espiritualista ou seja no sentido de que a mesma assimilou os valores culturais dominantes na nossa sociedade ocidental na qual a vida humana é sagrada e inviolável desde o seu início e

até à morte natural.

P) O filho da ora recorrente como ser humano, com dignidade própria, é um sujeito de direitos, reconhecido pela ordem jurídica, tendo assim direito à vida, por cuja perda

tem direito a ser ressarcido civilmente.

Q) Mal andou, pois, o douto acórdão recorrido ao não reconhecer o filho da autora como ser humano e com direito à vida, reconhecido pela ordem jurídica, pelo que a perda desta é ressarcível civilmente conforme foi peticionado.

R) O valor a ressarcir pela perda do direito à vida deve ser igual para qualquer ser humano não devendo ser graduado, pois trata-se de um valor absoluto e sem preço.

S) Violou o douto acórdão recorrido, por erro de subsunção, o disposto no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que deve julgar-se, materialmente inconstitucional, por ofensa directa do artigo 24.º, n.º 1 da nossa lei fundamental, a interpretação dada no douto acórdão recorrido segundo a qual o filho da ora recorrente não é, em casu, sujeito de direitos reconhecido pela ordem jurídica, tendo uma existência autónoma per se e em consequência um direito à vida, por cuja violação ilícita tem direito a ser ressarcido civilmente, ordenando-se, em conformidade, a reforma do douto acórdão recorrido, de acordo com o juízo de inconstitucionalidade que vier a ser proferido."

9 - O Fundo de Garantia Automóvel apresentou contra-alegações, sustentando a

improcedência do recurso.

10 - Discutida em Secção "a eventualidade de não ser conhecido o recurso, por falta de identificação da norma ou interpretação normativa questionada", foi ordenada, pelo Acórdão 245/2009, a notificação das partes para se pronunciarem sobre esta questão, querendo, no prazo de 10 dias".

11 - Apenas a Autora respondeu a tal convite, terminando a concluir que "mal andou, pois, o douto acórdão recorrido ao não reconhecer ao filho da autora/recorrente a sua dignidade de pessoa humana e consequentemente direito à vida, com o que violou por erro de subsunção o artigo 1.º e 24.º, n.º 1, da lei Fundamental" e que "o artigo 24.º, n.º 1, da lei Fundamental deve ser interpretado também na sua vertente subjectiva, máxime, como garante do direito à vida do ser com dignidade humana concreta, in casu, o filho nascituro da ora recorrente", pelo que "deve conhecer-se do recurso".

12 - Discutida a questão prévia e porque o primitivo relator ficou vencido, operou-se a

mudança de relator.

Cumpre assim proferir acórdão de acordo com os fundamentos da maioria que fez

vencimento.

B - Fundamentação

13 - O objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, disposição esta que se limita a reproduzir o comando constitucional, apenas pode traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade de(s) norma(s) que a decisão recorrida haja aplicado como ratio decidendi.

Trata-se de um pressuposto específico do recurso de constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e incidental) do recurso de constitucionalidade, tal como o mesmo se encontra recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da natureza da própria função jurisdicional constitucional (cf. José Manuel M. Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e actualizada, pp. 79 e segs. e, entre outros, os Acórdãos n.º 352/94, publicado no Diário da República 2.ª série, de 6 de Setembro de 1994, n.º 560/94, publicado no mesmo jornal oficial, de 10 de Janeiro de 1995 e, ainda na mesma linha de pensamento, o Acórdão 155/95, publicado no Diário da República 2.ª série, de 20 de Junho de 1995, e, aceitando os termos dos arestos acabados de citar, o Acórdão 192/2000, publicado no mesmo

jornal oficial, de 30 de Outubro de 2000).

Por outro lado, cumpre acentuar que, sendo o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em sim própria, mesmo quando esta faça aplicação directa de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correcção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correcção do juízo subsuntivo).

Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub specie constitutionis, a concreta aplicação do direito efectuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao acto judicial de "aplicação" a violação (directa) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efectuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correcção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida, cabendo ao recorrente, como se disse, nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, o ónus de suscitar o problema de constitucionalidade normativa num momento anterior ao da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional [cf. Acórdão 199/88, publicado no Diário da República 2.ª série, de 28 de Março de 1989; Acórdão 618/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, remetendo para jurisprudência anterior (por exemplo, os Acórdãos n.os 178/95 - publicado no Diário da República 2.ª série, de 21 de Junho de 1995 -, 521/95 e 1026/96, inéditos e o Acórdão 269/94, publicado no Diário da República 2.ª série, de 18 de Junho de 1994)].

14 - Ora, no caso em apreço, constata-se que a recorrente não definiu no seu requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, mesmo havendo sido convidada a fazê-lo, a coberto do disposto no n.º 6 do artigo 75.-A da LTC, a norma/dimensão normativa de direito infraconstitucional reputada de inconstitucional e

de cuja aplicação resultou o decidido.

Cabia à recorrente esse ónus processual de definição do objecto do recurso, sob pena

do seu não conhecimento.

Ao invés de definir a norma de direito infraconstitucional considerada ratio decidendi do julgado, cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada, a recorrente limitou-se a apodar o acórdão recorrido de inconstitucionalidade, por violar directamente o artigo 24.º da Constituição. O seu discurso argumentativo é todo ele construído em torno da densificação do conteúdo normativo a conferir a tal disposição constitucional, incluindo até, nas conclusões das suas alegações, onde diz ter o acórdão recorrido violado "por erro de subsunção, o disposto no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República

Portuguesa".

E fá-lo com o sentido de subsumir directamente a ele a situação factual em apreço, ou seja com o sentido da sua aplicação directa aos factos concretos e não como meio de determinar o conteúdo do parâmetro constitucional com o qual havia de ser contrastada a norma de direito infraconstitucional para aferir da sua validade jurídica.

Como se disse, o erro de subsunção ocorrido na elaboração do raciocínio judicativo dos factos concretos ao direito pré-determinado, ainda que erroneamente, não pode

ser sindicado pelo Tribunal Constitucional.

Anote-se, de resto, que, mesmo no recurso para o STJ, a recorrente acaba por rematar as conclusões do recurso com a afirmação de que "o acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 66.º e 483.º do Código Civil e 24.º da Constituição", centrando, já aí, a questão no plano da violação directa das disposições citadas.

Por outro lado, embora dizendo, nas mesmas conclusões do recurso, que "a não se entender assim, ou seja, que o artigo 66.º do Código Civil o não permite, será tal interpretação materialmente inconstitucional, porque ofensiva do disposto no artigo 24.º da Lei Fundamental", o que é certo é que no seu discurso imediatamente anterior a recorrente se apresenta a defender apenas a existência da violação de um direito subjectivo à vida, com base no artigo 24.º da Constituição, e da obrigação de indemnizar resultante da sua violação em concreto, bem como o cômputo dessa indemnização no montante peticionado, não se vendo aí colocada, de forma adequada, qualquer questão de invalidade normativa imputada a qualquer acepção do artigo 66.º

do Código Civil.

De tudo resulta que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do

recurso de constitucionalidade.

C - Decisão

15 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar

conhecimento do recurso.

Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 10 UC.

Lisboa, 8 de Julho de 2009. - Benjamim Rodrigues - Joaquim de Sousa Ribeiro - Mário Torres (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto do conselheiro Cura Mariano) - João Cura Mariano (vencido, conforme declaração de voto que

junto) - Rui Manuel Moura Ramos.

Declaração de voto

Votei vencido por entender que podia e devia ter sido conhecido o mérito do recurso interposto, tendo o Tribunal Constitucional perdido uma excelente oportunidade para se pronunciar sobre um tema de especial importância como é o do alcance da protecção

do direito à vida.

Na verdade, a recorrente nas alegações apresentadas perante o Tribunal recorrido suscitou a questão da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 66.º, do Código Civil, no sentido "de que o nascituro não é titular de um direito à vida, cuja ofensa deva

ser indemnizada".

No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional efectuou-se a indicação da norma cuja inconstitucionalidade se pretendia que fosse verificada por mera remissão para a questão que havia sido suscitada perante o tribunal recorrido.

Convidada a enunciar expressamente a interpretação cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada, a recorrente optou por uma formulação indirecta, apontando qual a interpretação que o tribunal deveria ter seguido para respeitar o parâmetro constitucional que entendia violado pela interpretação perfilhada pelo acórdão recorrido - "a interpretação feita pelo tribunal recorrido é materialmente inconstitucional, por violar frontal e directamente o disposto no artigo 24.º n.º 1 da Lei Fundamental, já que este normativo deve ser interpretado no sentido de proteger o direito à vida, mesmo a intra-uterina, máxime, a do filho da autora, como titular de direitos, inclusive o direito à vida, violação esta que é ressarcível civilmente".

Apesar deste não ser o método mais correcto e esclarecedor de apontar a interpretação normativa cuja fiscalização se pretende, face aos termos em que havia sido suscitada a questão perante o tribunal recorrido e para a qual a recorrente remeteu no requerimento de interposição de recurso, é perfeitamente possível verificar que foi vontade da recorrente arguir perante este Tribunal a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 66.º, do CC, no sentido de que o nascituro concebido não é titular de um direito à vida, cuja ofensa deva ser indemnizada.

Essa vontade foi depois inequivocamente precisada pela recorrente nas alegações de

recurso apresentadas.

Foi, pois, perceptível para todos os intervenientes processuais, incluindo o próprio Tribunal, qual a questão de constitucionalidade colocada pela recorrente, estando, pois, suficientemente definido o objecto do recurso, pelo que, no meu entendimento, nada

impedia o seu conhecimento.

E, apreciando o mérito do recurso, pronunciar-me-ia pela sua procedência pelas razões

que passo a expor.

O artigo 66.º, do Código Civil, sob a epígrafe "Começo da personalidade", dispõe:

"1 - A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida.

2 - Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento".

No direito civil a personalidade jurídica traduz a aptidão para se ser sujeito autónomo de relações jurídicas, com a inerente titularidade dos poderes e adstrição a vinculações

que essa qualidade envolve.

Se o reconhecimento desta qualidade por uma determinada ordem jurídica obedece às opções valorativas e culturais que nela prevalecem, também não deixa de estar condicionado pelo papel do Direito como instrumento de satisfação de interesses humanos. Daí que nem sempre a personalidade jurídica tenha sido reconhecida a todos os Homens (v. g. as sociedades esclavagistas), assim como actualmente não é uma condição exclusiva do Homem (v. g. as pessoas colectivas).

O acórdão recorrido sustentou que o artigo 66.º, do Código Civil, ao recusar aos nascituros concebidos personalidade jurídica, não permite que estes possam ser considerados titulares de qualquer direito antes do seu nascimento, incluindo o próprio

direito à vida.

A fixação do momento da aquisição da personalidade jurídica no acto de nascimento com a consequente exclusão dos nascituros da condição de pessoa jurídica, já remonta ao direito romano (vide, sobre a condição dos nascituros no direito romano, Max Kaser, em "Direito privado romano", pág. 101, da ed. de 1999, da Fundação Calouste Gulbenkian, e SANTOS JUSTO, em "Direito privado romano I. Parte Geral (Introdução. Relação jurídica. Defesa dos direitos)", pág. 105-107, da ed. de 2000, da Coimbra Editora), sendo essa também a solução da nossa tradição jurídica (vide, anteriormente ao Código de Seabra, Borges Carneiro, em "Direito civil de Portugal", vol. I, pág. 65, da ed. de 1826, e Coelho da Rocha, em "Instituições de direito civil português", Tomo I, pág. 35, § 56., da 6.ª ed., da Imprensa da Universidade), a qual veio a obter consagração no artigo 6.º, do C.C. de 1867 (vide, sobre este preceito, Dias Ferreira, em "Código Civil Português anotado", vol. I, pág. 11-13, da 2.ª ed., da Imprensa da Universidade, Cunha Gonçalves, em "Tratado de direito civil, em comentário ao Código Civil Português", vol. I, pág. 176-182, da ed. de 1929, da Coimbra Editora, e Luís Cabral de Moncada, em "Lições de direito civil", pág.

253-257, da 4.ª ed., da Almedina). E apesar de serem atribuídos alguns direitos aos nascituros, num sinal que eles não deixam de ter protecção jurídica, perfilhou-se o entendimento que a respectiva aquisição só se torna efectiva com o seu nascimento.

Como impressivamente disse Cabral de Moncada (ob. cit. pág. 253), "o homem só existe para o direito como pessoa, depois de ter nascido".

O artigo 66.º do C.C., resultante de anteprojecto apresentado por Manuel de Andrade (vide Esboço de um anteprojecto de Código das Pessoas e da Família, no B.M.J. n.º 102, pág. 153.), manteve-se nesta linha de pensamento, enunciando que a personalidade se adquire no momento do nascimento (n.º 1) e frisando que os direitos que a lei reconheça aos nascituros (v.g. nos artigos 952.º e 2033.º, do CC) dependem sempre do seu nascimento (n.º 2). É esta também a solução dos sistemas jurídicos que nos são próximos (v. g. artigo 1, do C.C. Italiano, artigo 311, n.º 4, do CC Francês, artigo 30, do CC Espanhol, § 1, do BGB, artigo 2.º, do CC Brasileiro).

A interpretação do artigo 66.º, do CC, perfilhada pelo acórdão recorrido, negando a qualidade de sujeito de direitos ao nascituro concebido, corresponde à leitura maioritária efectuada pela doutrina e a jurisprudência (Antunes Varela, em "A condição jurídica do embrião humano perante o direito civil", em Estudos em homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares Martínez", vol. I, pág. 631-633, ed. de 2000, da Almedina, Castro Mendes, em "Teoria geral do direito civil", vol. I, pág. 103-109, da ed. de 1978, da AAFDL, Heinrich Hörster, em "A parte geral do Código Civil Português", pág. 293-296, da ed. de 1992, da Almedina, Carlos Mota Pinto, em "Teoria geral do direito civil", pág. 199-202, Inocêncio Galvão Telles, em "Introdução ao estudo do direito", vol. II, pág. 165-167, da 10.ª ed., da Coimbra Editora, Carvalho Fernandes, em "Teoria geral do direito civil", vol. I, pág. 193-199, da 3.ª ed., da Universidade Católica, Rodrigues Bastos, em "Notas ao Código Civil", vol. I, pág.

107-108, ed. de 1987, do autor, Rita Lobo Xavier, em "A protecção dos nascituros", em Brotéria, vol. 147, pág. 176-184, e Diogo Lorena Brito, em "A vida pré-natal na jurisprudência do Tribunal Constitucional", pág. 121-122, da ed. de 2007, da Universidade Católica), registando-se as opiniões dissonantes daqueles que, apesar do disposto no artigo 66.º, n.º 1, do CC, entendem que o sistema jurídico acaba por reconhecer personalidade jurídica aos nascituros concebidos (Oliveira Ascensão, em "Direito civil. Teoria geral", vol. I, pág. 48-55, da 2.ª ed. da Coimbra Editora, Menezes Cordeiro, em "Tratado de direito civil português", vol. I, tomo III, pág. 293-306, da ed. de 2004, da Almedina, Pedro Pais de Vasconcelos, em "Direito de personalidade", pág. 104-118, da ed. de 2006, da Almedina, Órfão Gonçalves, em "Da personalidade jurídica do nascituro", na RFDUL, Ano 2000, pág. 525-539, Leite de Campos, em "Lições de Direito da família e das sucessões", pág. 511-514, da 2.ª ed., da Almedina, e Stela Barbas, em "Direito do Genoma Humano", pág. 235-242, da ed. de 2007, da Almedina), ou uma personalidade jurídica parcial ou fraccionária (Rabindranath Capelo de Sousa, em "Teoria geral do direito civil", vol. I, pág. 265-281, da ed. de 2003, da Coimbra Editora, e Pereira Coelho, em "Direito das sucessões. Lições ao curso de 1973-1974", pág. 192-193, da ed. pol. de 1992), ou ainda que retroagem a personalidade jurídica do nascituro concebido ao momento da constituição do direito em causa (Dias Marques, em "Código Civil anotado", pág. 23, da ed. de 1968, da

Petrony).

A opção pelo momento do nascimento, como marco certo, seguro, inequívoco e objectivamente determinável a partir do qual se inicia a personalidade jurídica da pessoa, foi justificada pela voz autorizada de Antunes Varela com três razões

fundamentais:

"a) Por virtude da notoriedade e do fácil reconhecimento do facto do nascimento, em contraste com o secretismo natural e social da concepção do embrião;

b) Embora a vida do homem comece, de facto, com a sua concepção, a formação da pessoa, no fenómeno continuado e progressivo do desenvolvimento psico-somático do organismo humano, quanto às propriedades fundamentais do ser humano (a consciência, a vontade, a razão) está sempre mais próximo do nascimento do indivíduo do que da fecundação do óvulo no seio materno;

c) Olhando ainda ao fenómeno psico-somático do desenvolvimento do ser humano, compreende-se perfeitamente que seja o nascimento, como momento culminante da autonomização fisiológica do filho perante o organismo da mãe, o marco cravado na lei para o reconhecimento da personalidade do filho." (na ob. cit. pág. 633).

Rita Lobo Xavier (no est. cit.) acentuou a falta de autonomia biológica e social do nascituro concebido como razão preponderante para o Direito Civil, enquanto disciplina positiva da convivência humana elaborada numa perspectiva de autonomia da pessoa no desenvolvimento da sua personalidade, não sentir necessidade de lhe atribuir

personalidade jurídica.

Será que nesta construção, em que não se reconhece personalidade jurídica ao nascituro concebido, a impossibilidade deste ser titular de um direito subjectivo à vida

afronta o disposto no artigo 24.º, da CRP?

Conforme o Tribunal Constitucional já tem afirmado e aqui se reitera, apesar da vida em gestação ser um bem jurídico constitucionalmente protegido, compartilhando da tutela objectiva conferida em geral à vida humana, não é possível retirar daquele preceito um direito fundamental à vida do nascituro concebido, tendo este por sujeito (vide os Acórdãos n.º 85/85, 288/98 e 617/06, em "Acórdãos do Tribunal Constitucional", vol. 5.º, pág. 245, vol. 40.º, pág. 7, e vol. 66.º, pág. 7,

respectivamente).

Esta posição pressupõe que o ente humano, apesar de já concebido, enquanto não nascer não se inclui no universo dos cidadãos que integram a comunidade político-jurídica a quem é reconhecida a titularidade dos direitos subjectivos constitucionalmente consagrados, nos termos do artigo 12.º, n.º 1, da C.R.P..

Mas o facto de se considerar que a vida intra-uterina é uma das etapas da vida humana abrangida pela exigência da sua inviolabilidade reclama da ordem jurídica infraconstitucional a adopção de medidas que a protejam e tutelem.

Está aqui em causa a dimensão mais importante da vida intra-uterina, que é a da sua própria existência, importando desde logo verificar se o não reconhecimento pelo Direito Civil de um direito subjectivo à vida do nascituro concebido implica um défice de tutela que ponha em causa a garantia de um nível mínimo de protecção daquele bem

jurídico-constitucional.

Independentemente do juízo que se efectue sobre a necessidade da intervenção dos meios típicos de protecção dos bens jurídicos disponibilizados pelo Direito Civil para protecção da vida intra-uterina, verifica-se que a intervenção desses meios não está dependente de um reconhecimento de um direito à vida do nascituro concebido.

Como se tem constatado a melhor forma de proteger uma determinada entidade não passa necessariamente por se lhe reconhecer subjectividade jurídica, mas sim pela respectiva elevação à categoria de bem jurídico.

Na verdade, na tutela de um bem jurídico como é a vida intra-uterina, o Direito Civil disponibiliza não só a utilização de medidas preventivas, intimações de abstenção e o recurso a acções inibitórias, mas também faculta o instituto da responsabilidade civil, através do qual impõe, a quem ofenda bens tutelados pela ordem jurídica, a reconstituição da situação que existiria, caso não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação ou a indemnização em dinheiro, quando aquela reconstituição não é

possível.

Neste caso, é precisamente a possibilidade de aplicação deste instituto que está em

causa.

Se a função ressarcitória assume fundamental importância na responsabilidade civil, não deixa também de estar presente neste instituto uma função preventiva, em articulação com a finalidade reparadora (vide, sobre esta articulação, com perspectivas nem sempre coincidentes, Pessoa Jorge, em "Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil", pág. 47-52, da reimp. de 1995, da Almedina, Carneiro da Frada, em "Direito civil. Responsabilidade civil. O método do caso, pág. 64-65, da ed.

de 2006, da Almedina, Menezes Cordeiro, em "Direito das obrigações", 2.º vol, pág.

277, da ed. de 1980, da AAFDL, Júlio Gomes, em "Uma função punitiva para a responsabilidade civil e uma função reparatória para a responsabilidade penal", na RDE, Ano XV (1989), pág. 105-144, Paula Meira Lourenço, em "Os danos punitivos", na RFDUL, vol. XLIII (2002), n.º 2, pág. 1093-1107, e em "A função punitiva da responsabilidade civil", pág. 380-385, da ed. de 2006, da Coimbra Editora, e Mafalda Miranda Barbosa, em "Reflexões em torno da responsabilidade civil", no

BFDUC, vol. LXXXI (2005), pág. 511-600).

À constituição da obrigação de indemnização pela lesão de bens jurídicos também presidem fins de protecção, procurando-se dissuadir comportamentos ofensivos desses bens, através da cominação da obrigação de reparação dos prejuízos causados.

Perante a ameaça de uma obrigação de indemnização tender-se-á, ao agir, a observarem-se determinados deveres de cuidado de forma a evitar a causação de danos na esfera jurídica alheia e nesse sentido esse desencorajamento funcionará como uma forma de prevenção de futuros comportamentos danosos.

Ora, não é absolutamente necessário o reconhecimento da titularidade pelo nascituro concebido de um direito à vida, para que o direito civil atribua um direito de indemnização pela morte do nascituro imputável a terceiro (vide, neste sentido, Rabindranath Capelo de Sousa, em Teoria geral do direito civil", vol. I, pág. 271-272, nota 673, e Rita Lobo Xavier, na ob. cit., pág. 80, em que atribuem esse direito de indemnização, respectivamente, às pessoas referidas no artigo 496.º, n.º 2, do CC, e apenas à mãe). A tutela de bens ou interesses jurídicos pelo instituto da responsabilidade civil pode processar-se por formas diferentes das do reconhecimento de direitos subjectivos, conforme resulta do próprio artigo 483.º, do CC, quando convoca a responsabilidade civil para intervir nos casos de violação de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios (vide, neste sentido, Rabindranath Capelo de Sousa, em "O direito geral de personalidade", pág. 192, nota

346, da ed. de 1995, da Coimbra Editora).

Perante a lesão de bens jurídicos não titulados, nada impede que se atribua a determinados sujeitos jurídicos o direito a receberem uma indemnização pelo dano provocado por essa lesão. São casos em que, perante o sentimento duma atendível necessidade de perseguir, através do instituto da responsabilidade civil, finalidades preventivas e punitivas, que previnam e sancionem a lesão de um bem jurídico, face à inexistência de um sujeito jurídico lesado, se atribui o respectivo direito de indemnização a determinadas pessoas, tendo em conta, designadamente, a especial

relação que têm com o bem lesado.

O Direito Civil tem a maleabilidade suficiente para permitir esta solução.

Apesar de alguma atipicidade dogmática, não é, aliás, inédita a consagração de atribuição de direitos de indemnização próprios a terceiros pela ofensa de bens jurídicos dos quais não são titulares, independentemente desta solução poder ser justificada como um caso de indemnização de danos reflexos (v.g. a indemnização pelo dano de morte atribuída aos familiares próximos da vítima, não respeitaria à perda da vida por esta, mas sim à perda do convívio com ela, que afectaria esses familiares).

Por exemplo, o artigo 71.º, n.º 2, ao remeter para o disposto no artigo 70.º, n.º 2, ambos do C.C., é visto como conferindo um direito de indemnização por ofensas aos direitos de personalidade de pessoas já falecidas, ao cônjuge sobrevivo, ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido (vide, neste sentido, Castro Mendes, na ob. cit., pág. 111, Rabindranath Capelo de Sousa, na última ob.

cit., pág. 195-196, Menezes Cordeiro, na ob. cit., pág. 463-464, e Pedro Pais de Vasconcelos, na ob. cit., pág. 121).

Também na indemnização do dano de morte das pessoas nascidas, para superar o obstáculo do lesado ter deixado de existir com o facto lesivo, parte significativa da doutrina e da jurisprudência, interpreta o artigo 496.º, n.º 2, do CC, como atribuindo um direito próprio de indemnização aos familiares da vítima aí mencionados, pela perda da vida (vide, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, em "Código Civil anotado", vol. I, pág. 500, da 4.ª ed., da Coimbra Editora, Antunes Varela, em "Das obrigações em geral", vol. I, pág. 630-639, da 9.ª ed., da Almedina, e na R.L.J., Ano 123, pág. 189 e seg., Pereira Coelho, em "Direito das Sucessões. Lições ao curso de 1973-1974", pág. 167-180, da ed. pol. de 1992, Rabindranath Capelo de Sousa, em "Lições de direito das sucessões", vol. I, pág. 288-300, da 2.ª ed., da Coimbra Editora, Heinrich Hörster, na ob. cit., pág. 303-304, Ribeiro de Faria, em "Direito das obrigações", vol. I, pág. 493-494, da ed. de 1990, da Almedina, Delfim Maya de Lucena, em "Danos não patrimoniais", pág. 57-72, da ed. de 1985, da Almedina, Pedro Branquinho Ferreira Dias, em "O dano moral na doutrina e na jurisprudência", pág. 53-54, da ed. de 2001, da Almedina, e Eduardo dos Santos, em "Direito das Sucessões", pág. 54-60, da ed. da A.A.F.D.L., de 2002. Interpretando este preceito no sentido de que este direito é adquirido por via sucessória pelos herdeiros da vítima, vide, VAZ SERRA, na R.L.J., Ano 103, pág. 166 e seg., Ano 105, pág. 53 e seg., e Ano 107, pág. 137 e seg., Inocêncio Galvão Telles, em "Direito das sucessões.

Noções fundamentais", pág. 73-77, da 4.ª ed., da Coimbra Editora, Lopes Cardoso, em "Partilhas judiciais", vol. I, pág. 442-444, da 4.ª ed., da Almedina, Leite de Campos, em "A indemnização do dano de morte", no BFDUC, vol. L, pág. 247 e seg., em "A vida, a morte e a sua indemnização", no BMJ n.º 365, pág. 5 e seg., Menezes Leitão, em "Direito das obrigações", vol. I, pág. 299-302, da ed. de 2000, da Almedina, e Carvalho Fernandes, em "Lições de direito das sucessões", pág. 63-64, da

ed. de 1999, da Quid iuris).

E tal como é possível atribuir um direito de indemnização pela morte de um nascituro concebido, de igual modo o Direito Civil permite que seja reconhecida, pelo menos à mãe, legitimidade para accionar os demais meios de tutela dos bens jurídicos que este ramo do direito disponibiliza, sem que se consagre um direito do nascituro à vida.

Não se revelando, pois, que o reconhecimento deste direito subjectivo ao nascituro concebido seja imprescindível para que possa ser assegurada a protecção conferida pelos meios civilísticos de intervenção, designadamente a responsabilidade civil, não se pode considerar que a interpretação civilista de que o nascituro concebido não é titular de um direito à vida viole o disposto no artigo 24.º, n.º 1, da CRP.

Mas isso não significa que a recusa em atribuir um direito de indemnização pela morte de um nascituro já não infrinja este parâmetro constitucional por resultar num défice de

protecção ao bem vida.

A decisão recorrida partindo da constatação de que os nascituros concebidos não eram titulares de um direito à vida, concluiu que a morte destes, em resultado de

conduta de terceiro, não era indemnizável.

Esta posição seguiu na linha de anterior Acórdão do mesmo tribunal proferido em 25-5-1985 (publicado no BMJ n.º 347, pág. 398), e contrariou a posição defendida por Rabindranath Capelo de Sousa (in "Teoria geral do direito civil", vol. I, pág.

271-272, nota 673), segundo o qual "as expressões "por morte da vítima" e "danos não patrimoniais sofridos pela vítima" dos n.º 2 e 3 do artigo 496.º incluem, na sua letra e no seu espírito, a morte do ser humano concebido", pelo que "por meras interpretações declarativa ou extensiva dos n.º 2 e 3 do artigo 496.º, parece-nos indemnizável o dano não patrimonial da supressão da vida do concebido", tendo concluído que "seria, aliás, estranho que fossem ressarcíveis os danos à integridade física do concebido, particularmente quando este venha a nascer com vida, e já não o dano da sua morte, pois então seria premiado o assassino mais eficaz que causasse a morte do concebido, face ao agressor que tão só lhe produzisse danos corporais".

Será que o não reconhecimento de um direito de indemnização pelo dano da morte de um nascituro concebido é causa de um défice de tutela da vida intra-uterina, exigida pelo disposto no artigo 24.º, n.º 1, da CRP? Um suficiente cumprimento de um imperativo de tutela exige a adequação dos meios de protecção disponibilizados pela ordem jurídica ao tipo de bem jurídico a proteger. Não é necessário que sejam mobilizados todos os meios que a ordem jurídica possua susceptíveis de fornecer uma forma de tutela à vida intra-uterina, mas é exigível que estejam disponíveis os meios adequados a garantir uma tutela minimamente eficiente

deste bem jurídico.

E este imperativo de tutela não tem como destinatário apenas o legislador ordinário, mas também o julgador na sua actividade de aplicação da lei.

Como escreveu Claus-Wilhelm Canaris:

"...A proibição de insuficiência não é aplicável apenas no (explícito) controlo jurídico-constitucional de uma omissão legislativa, mas antes, igualmente, nos correspondentes problemas no quadro da aplicação e do desenvolvimento judiciais do direito. Pois, uma vez que a função de imperativo de tutela de direitos fundamentais não tem, de forma alguma, alcance mais amplo no caso de uma realização pela jurisprudência do que pelo legislador, o juiz apenas está autorizado a cumprir esta tarefa porque, e na medida em que, a não o fazer, se verificaria um inconstitucional défice de protecção, e, portanto, uma violação do princípio da proibição da insuficiência..." (In "Direitos fundamentais e direito privado", pág. 124, da ed. de 2003,

da Almedina).

Daí que o juízo de inconstitucionalidade por insuficiência de tutela de bem reconhecido pela perspectiva objectiva dos direitos fundamentais possa recair sobre um critério

normativo que fundamente decisão judicial.

O Direito Penal é, em regra, o ramo do direito infraconstitucional que, devido ao forte impacto dos meios repressivos que utiliza, revela maior eficácia na protecção dos bens jurídicos, devendo, contudo, apenas intervir como ultima ratio.

Apesar do Código Penal vigente dedicar um capítulo à criminalização dos actos contra a vida intra-uterina (capítulo II, do Título I, do Livro II), punindo a prática do crime de aborto (artigos 140.º e 141.º do CP) e assegurando, assim, a melhor protecção jurídica àquele bem jurídico, exclui dessa punição os actos meramente negligentes (artigo 13.º, do CP), pelo que, relativamente a este tipo de acções, onde se insere precisamente a situação sub iudice, não é possível contar com este tipo de tutela.

Entendeu o legislador ordinário, por razões de política criminal, que nesta forma especial do acto violador da vida intra-uterina, atenta a natureza e a hierarquia do bem jurídico protegido, não se justificava a intervenção do direito penal.

Todavia, esta área penalmente desprotegida não deixa de reclamar uma tutela jurídica.

Se o valor social deste bem jurídico possa não exigir que o direito penal o proteja de todo o tipo de ameaças, já a ordem jurídica, encarada globalmente, não pode permanecer indiferente a qualquer acto que atente contra à vida intra-uterina, nomeadamente aos que resultem de comportamentos negligentes.

Atento o âmbito restrito dos domínios de intervenção do direito disciplinar e a falta de eficácia das medidas civilísticas de pura prevenção face à imprevisibilidade dos actos negligentes, não poderá o instituto da responsabilidade civil deixar de ser recrutado

para esta missão.

E mesmo que seja possível apontar a falta de eficácia preventiva da responsabilidade civil perante a forte intervenção da figura dos seguros no domínio da responsabilidade por actos negligentes, a existência de uma obrigação de indemnizar, mesmo que não afecte imediatamente o património do lesante, não deixará de sinalizar a reprovabilidade

do acto.

Aliás, note-se que em dimensões menos exigentes deste bem jurídico, o instituto da responsabilidade civil não tem deixado de intervir, tutelando, por exemplo, a integridade física do feto, ao reconhecer um direito de indemnização por ofensas corporais. Fora das teias da construção dogmática que fixa o início da personalidade jurídica no acto de nascimento, uma vez que nestes casos o feto ofendido consegue nascer, atribui-se-lhe o direito de reclamar uma indemnização pelas ofensas sofridas antes do nascimento, tutelando-se, assim, a sua existência intra-uterina (vide, neste sentido, Antunes Varela, em "A condição jurídica do embrião humano perante o direito civil", em Estudos em homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares Martínez", vol. I, pág. 633-634, da ed.

de 2000, da Almedina, Carlos Mota Pinto, na ob. cit., pág. 201-202, e Castro

Mendes, na ob. cit., pág. 108-109).

A não admissão do pagamento duma indemnização compensatória da morte do feto, nas áreas penalmente desprotegidas, como sucede relativamente aos actos negligentes, resulta, assim, num défice de protecção que viola o princípio da suficiência de tutela, pela ausência de oferta de meios jurídicos que defendam suficientemente o direito à

vida intra-uterina.

Daí que se conclua que o critério normativo de que a morte de um nascituro concebido não é um dano indemnizável deva ser considerada inconstitucional, por violação do

disposto no artigo 24.º, n.º 1, da CRP.

Aliás, a reparação deste dano seria sempre obrigatoriamente indemnizável face ao princípio estruturante do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º, da CRP, do qual se colhe um direito geral à reparação dos danos, de que são expressão particular os direitos de indemnização previstos nos artigos 22.º, 37.º, n.º 4, 60.º, n.º 1, e 62.º, n.º 2, da CRP (vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 206).

Constituindo missão do Estado de direito democrático a protecção dos cidadãos contra a prepotência, o arbítrio e a injustiça, não poderá o legislador ordinário deixar de assegurar o direito à reparação dos danos injustificados que alguém sofra em consequência da conduta de outrem. A tutela jurídica dos bens e interesses dos cidadãos reconhecidos pela ordem jurídica e que foram injustamente lesionados pela acção ou omissão de outrem, necessariamente assegurada por um Estado de direito, exige, nestes casos, a reparação dos danos sofridos, não constituindo a ausência de um titular do bem ofendido obstáculo intransponível à intervenção do instituto da responsabilidade civil pelas razões acima explicadas.

Por estas razões julgaria procedente o recurso interposto, declarando inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2.º e 24.º, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 66.º, do Código Civil, quando interpretada no sentido de que a morte de um nascituro concebido não é um dano indemnizável. - João Cura

Mariano.

202164185

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/08/17/plain-259318.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/259318.dre.pdf .

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    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

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