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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 11/2009, de 21 de Julho

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Sumário

Fixa jurisprudência no seguinte sentido: É autor de crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.os 1 e 2, alínea c), 23.º, 26.º e 131.º, todos do Código Penal, quem decidiu e planeou a morte de uma pessoa, contactando outrem para a sua concretização, que manifestou aceitar, mediante pagamento de determinada quantia, vindo em consequência o mandante a entregar-lhe parte dessa quantia e a dar-lhe indicações relacionadas com a prática do facto, na convicção e expectativa dessa efectivação, ainda que esse outro não viesse a praticar qualquer acto de execução do facto. (Processo n.º 305/09)

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2009

Processo 305/09 - 3.ª - Fixação de jurisprudência

Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I

A) No processo 3867/07, da 5.ª Secção, do Supremo Tribunal de Justiça, o arguido Manuel Albert Soares, com os demais sinais dos autos, interpôs recurso extraordinário de fixação de jurisprudência para o pleno das secções criminais, do acórdão deste Supremo de 16 de Outubro de 2008, proferido nos referidos autos, apresentando as seguintes conclusões:

«1 - Pelo acórdão recorrido proferido em 16 de Outubro de 2008, no processo n.

3867/07-5, da 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, foi julgado que a conduta do arguido que havia praticado os factos descritos na rubrica I.A.2 desta peça, era integradora da prática de um crime previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, alíneas d) e i), do Código Penal, uma vez que o mesmo preenchia o conceito de autoria tal qual nos revela o artigo 26.º do Código Penal, considerando-o autor mediato, não obstante os executores não terem querido nunca praticar o crime, nem tão-pouco chegado a ter praticado qualquer acto de execução ou que, como tal, possa ter sido entendido, antes tendo logo denunciado a pretensão do arguido às autoridades e, desde então, estas terem tomado conhecimento da mesma.

2 - Pelo acórdão fundamento proferido em 31 de Outubro de 1996, pelo Supremo Tribunal de Justiça, no recurso julgado no processo comum colectivo n.º 97/95, do Tribunal de Círculo de Coimbra, foi considerado que a conduta do arguido que age dessa forma não pratica qualquer crime, não deve ser condenado uma vez que a lei portuguesa não pune a tentativa de instigação; na autoria mediata. 'O homem da frente' é um mero instrumento não responsabilizável, sem domínio moral ou material do facto; não há co-autoria, sem dolo de autor; porque o cônjuge de arguido não morreu. a haver crime ele teria [de ser] necessariamente tentado e o que o arguido fez, para ser considerado acto de execução, teria que proceder imediatamente o acto idóneo a produzir a morte.

3 - Entre os acórdãos verifica-se, pois, oposição de julgamento relativamente à mesma questão de direito, tendo ambos sido proferidos no âmbito da mesma legislação, ou seja, do Código Penal vigente.

4 - A questão a resolver é se as condutas dos arguidos referidas em ambos os acórdãos e sumariamente descritas nesta peça integram ou não o conceito de autoria previsto no artigo 26.º do Código Penal e como tal implica a condenação dos agentes pela prática do crime da previsão dos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º e 132.º, n.os 1 e 2, alíneas d) e i), do Código Penal.

5 - Do acórdão recorrido não é admissível recurso ordinário, tendo o mesmo transitado em julgado.

6 - O presente recurso é o próprio, é interposto tempestivamente, tendo para ele, o arguido, legitimidade.

7 - Devendo, na sua procedência, ser fixada jurisprudência obrigatória.» B) Cumprido o disposto no artigo 439.º do CPP, a Digníssima Magistrada do Ministério Público, junto deste Supremo Tribunal, veio pronunciar-se sobre a admissibilidade e regime do recurso e a alegada existência de oposição de julgados, afigurando-se-lhe que «o recurso em causa é admissível uma vez que, como resulta da certidão de fls.

59, o mesmo foi tempestivamente interposto (n.º 1 do artigo 438.º do CPP) por quem tem legitimidade para tanto, o arguido (n.º 5 do artigo 43.º do CPP).

Sendo que, no que diz respeito à exigível contradição de julgados (n.º 1 do artigo 437.º do CPP), constituindo seus requisitos soluções opostas dadas nas decisões recorrida e indicada como fundamento à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, crê-se também verificar-se.

E isto na medida em que, relativamente a uma situação factual de contornos em tudo semelhantes, de modo antagónico pronunciaram-se as decisões em confronto.» Concordou, pois, com a admissão do presente recurso para fixação de jurisprudência, interposto pelo arguido Manuel Albert Soares, por se encontrarem reunidos os requisitos exigidos pela lei (artigo 437.º e seguintes do CPP).

C) Foi o processo à distribuição.

D) Em exame preliminar, o relator verificou a admissibilidade e o regime do recurso e afigurou-se-lhe existir oposição entre os julgados, após o que, cumprida a legalidade dos vistos, seguiu o processo para conferência.

E) Por acórdão de 11 de Fevereiro de 2009, este Supremo Tribunal concluiu pela oposição de julgados, prosseguindo o recurso, nos termos da 2.ª parte do artigo 441.º, n.º 1, e cumprindo-se o disposto no artigo 442.º, n.º 1, ambos do CPP.

F) Recorrente e Ministério Público, foram notificados para apresentarem no competente prazo as alegações escritas.

G) O Ministério Público apresentou as suas alegações com as seguintes conclusões:

1.ª A lei portuguesa acolheu, no artigo 26.º do Código Penal, um conceito extensivo de autor, de sorte que no referido normativo encontram-se previstas duas formas de autoria singular (imediata e mediata) e duas outras formas de autoria plural (co-autoria e instigação).

2.ª Na autoria mediata, não passando o «homem da frente», o «autor material», de um simples instrumento do «homem de trás», logo sem domínio moral ou material do facto, segue-se que o arguido não pode ser considerado autor mediato.

3.ª Já que, numa situação semelhante à prefigurada nos autos, mesmo que o «homem da frente» tome como sua a vontade do «homem de trás», é ainda a decisão do primeiro, e não a deste, que se projecta no facto de jeito que é nas suas mãos, enquanto detentor do domínio da acção que, em última análise, repousa a decisão de fazer (ou não) progredir a realização do evento ilícito típico.

4.ª E tanto assim é que, nos autos, não tendo anuído à proposta formulada pelo arguido, os contactados, não só não deram início à execução do crime (o que também não era expectável que ocorresse), praticando actos do tipo dos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 22.º do Código Penal (o que era crucial que se verificasse, considerando que a questão suscita-se no domínio da tentativa), como levaram ao conhecimento das autoridades policiais a existência do mencionado plano criminoso.

5.ª De onde que não possa o arguido ser considerado autor mediato.

6.ª Como também não pode considerar-se co-autor na medida em que, não existindo co-autoria (nem autoria) sem dolo de autor, no caso retratado nos autos, não só não houve acordo entre o arguido e os contactados para execução do crime projectado (pese embora tal acordo tivesse existido na representação mental do primeiro), como também não se verificou uma participação conjunta na execução do facto, posto que os contactados não praticaram quaisquer actos idóneos à consumação do crime e jamais tiveram a intenção de fazê-lo.

7.ª Simplesmente autor não poderá, em suma, ser considerado o arguido uma vez que o escolho relativo à inexistência de actos de execução das espécies previstas no n.º 2 do citado artigo 22.º do Código Penal, tendentes ao preenchimento do tipo legal, sempre impediria o enquadramento da actividade do agente (consubstanciada em actos de natureza dos previstos no artigo 21.º do Código Penal, não puníveis) em tal forma de autoria.

8.ª Sendo que instigador não poderá igualmente considerar-se o arguido, posto que na conduta havida pelo mesmo por preencher ficou o elemento essencial determinação, cerne desta forma de autoria, enquanto condicionadora da punibilidade da actividade, consoante se verifique ou não.

9.ª E isto é tão verdade que, conquanto o intento do arguido fosse efectivamente o de levar os contactados a praticarem o crime, estes, não se deixando determinar por ele, de sua livre e espontânea vontade (como era suposto suceder, logo sem a intervenção de terceiros), não só decidiram não dar início à execução do crime, como ainda resolveram levar o caso ao conhecimento das autoridades policiais, com quem passaram a colaborar.

10.ª Dai que, na ausência de uma norma do tipo da prevista no artigo 17.º do Código Penal Espanhol, não possa ser punida a conduta do agente que planeou e «encomendou» a morte de alguém a outros que, porém, nunca tendo anuído à proposta por ele formulada, não só não deram início à execução do crime projectado, como até, demarcando-se disso, levaram o caso ao conhecimento da polícia, com quem passaram a colaborar.

11.ª Entende-se, assim, que o conflito que se verifica deve resolver-se uniformizando a jurisprudência no sentido de que:

«Não deve ser punido como autor mediato, co-autor, instigador (ou simplesmente autor) do crime tentado de homicídio voluntário o agente que planeou e 'encomendou' a morte de alguém a outros que, nunca tendo anuído à proposta formulada, não praticaram quaisquer actos tendentes à execução do crime projectado.» 12.ª Havendo, em consequência, de revogar-se o douto acórdão recorrido por aplicação de tal doutrina.

H) O recorrente apresentou alegações de fls. 164 a 172 dos autos, entendendo que deve ser fixada no sentido constante do acórdão fundamento do STJ de 31 de Outubro de 1996.

I) Foi o processo oportunamente remetido a vistos simultâneos dos restantes juízes, nos termos do artigo 442.º, n.º 3, do CPP, após o que seguiu para julgamento, feito em conferência, nos termos dos artigos 443.º e 444.º do Código de Processo Penal.

II - Sobre a oposição de julgados

Uma vez que a decisão havida na secção criminal, sobre a questão preliminar da verificação da oposição de julgados não vincula o pleno das secções criminais, há que apreciar essa questão.

Apreciando:

O acórdão recorrido deu como provado:

O arguido delineou um plano criminoso no sentido de proceder à eliminação física da assistente, sua mulher, ou seja, matá-la.

Para este efeito, o arguido resolveu contratar uma ou duas pessoas que fossem capazes de levar por diante os seus intentos, mediante o pagamento de um montante a combinar, sendo que todos os pormenores, nomeadamente o modo, local e data, para a boa prossecução de tal plano, seriam determinados e ditados pelo arguido.

Assim e na sequência deste plano, em data não apurada mas sensivelmente uma semana antes da recepção da carta redigida em língua russa, o arguido contactou telefonicamente o armazém de S. P., tendo sido atendido por A. Z., com quem manteve uma conversa com duração aproximada de três minutos.

O arguido, que não se identificou, afirmou pretender falar com «Yuri» ou com o «patrão», tendo sido esclarecido, pelo A. Z., que ali não trabalhava qualquer indivíduo com aquele nome e que tão-pouco o patrão dominava a língua portuguesa, razão por que melhor seria falar consigo.

O arguido referiu, então, que precisava de alguém «para tomar conta de uma pessoa» (sic), tendo A. Z. ficado convencido de que aquele procurava alguém que cuidasse de uma pessoa, idosa ou doente.

Assim, sugeriu ao arguido que se deslocasse a determinado estabelecimento comercial, identificando o nome e morada, onde poderia colocar um anúncio no placar ali existente, destinado, justamente, à afixação de anúncios diversos, para o que, inclusivamente, ali se encontravam disponíveis pequenos formulários, sugestão esta de A. Z. que foi recusada pelo arguido, que referiu preferir enviar uma carta, não tendo, contudo, solicitado, aquele, a morada para onde deveria remeter tal carta Em data não apurada mas situada na semana de 15 a 19 de Maio de 2006, o arguido enviou para o referido estabelecimento comercial, uma carta redigida em língua russa.

remetida por correio azul, foi enviada num envelope branco, sem remetente, e era dirigida a «Sr. Yuri», palavras escritas com utilização de escantilhão.

O envelope era em tudo idêntico ao constante de fls. 805 dos autos, ou seja, àquele em que posteriormente enviou a primeira carta redigida em língua portuguesa e que o denunciante, S. P., devidamente Identificado a fls. 813 dos autos, entregou à Policia Judiciária do Porto, quando da denúncia dos factos.

S. P., que era quem sempre abria a correspondência remetida para o estabelecimento, abriu o envelope em causa.

Esta carta, escrita a computador, numa folha branca de tamanho A4, encontrava-se redigida em língua russa e, portanto em alfabeto cirílico.

Não obstante as palavras constantes do texto existirem e estarem correctamente escritas, a missiva apresentava-se desprovida de qualquer sentido, não passando de um conjunto de frases desconexas e, por isso, de teor imperceptível S. P. manteve a carta em seu poder, no seu estabelecimento, durante dois ou três dias, após o que a destruiu, tendo durante este lapso de tempo, A. Z., lido o conteúdo da carta em causa.

Em data posterior, S. P. relatou a O. R., seu amigo, que recebera a carta aqui em questão.

Três ou quatro dias depois de enviar a carta em questão, eventualmente a 22 ou 24 de Maio, o arguido contactou novamente e telefonicamente o armazém do denunciante, tendo o A. Z. atendido a chamada em causa, na presença de S. P.

O arguido perguntou a A. se tinham recebido a carta que lhes enviara, tendo-lhe aquele respondido afirmativamente, acrescentando, porém, que o seu teor era imperceptível.

Nesta altura, ainda A. Z. admitia, à semelhança de S. P., que o arguido pretendia contratar os serviços de alguém para cuidar de uma pessoa, razão por que lhe sugeriu que enviasse uma nova carta mas redigida em português, por forma a poderem afixá-la no placar existente na loja.

No dia 25 de Maio de 2006, o arguido remeteu, pelo correio, para o estabelecimento comercial do denunciante, no sobrescrito cujo original se encontra junto a fls. 805 dos autos, a carta cujo original se encontra junta a fls. 806.

Nesta carta, o arguido adianta as primeiras informações, escassas, sobre a pessoa de quem, afinal, precisava que «cuidassem», subentenda-se, matassem - uma «Pessoa», residente em Braga e com filhos.

Fornecendo os primeiros elementos sobre a rotina diária do alvo - leva as «crianças» à escola, de carro, às 8 horas e 30 minutos e regressa dez minutos depois, estacionando o veiculo automóvel em frente ao prédio onde reside.

Estabelece o momento e local do cometimento do crime - quando a vítima estiver a regressar a casa, após deixar as crianças na escola, e quando estiver a sair da viatura.

Decide da arma do crime - uma arma de fogo.

Determina o seu modo de execução - dois disparos na cabeça.

Impõe a simulação do móbil do crime - encenação de roubo, mediante roubo da carteira. Define a data do crime - 9 de Junho, «sem falha».

Estabelece e fixa as regras a respeitar quando da prática do crime (homicídio) - a utilização de um veiculo furtado ou com matricula falsa.

Fixa as regras a respeitar após o cometimento do homicídio - a destruição da carteira da vitima e da arma e o abandono do país do autor do crime.

Confirma o que fará a seguir - enviará uma segunda carta, acompanhada de um mapa da área onde a vitima reside, sublinhando, de antemão, que importa conhecer bem a zona, ensaiar a entrada e saída do local e não utilizar auto-estradas, atenta a existência de câmaras de filmar; poucos dias antes da data fixada, 9 de Junho, enviará, pelo correio, uma terceira carta, identificando o veículo automóvel da vítima e a respectiva matricula.

Em data não apurada mas que se admite ter sido no dia seguinte ao da recepção de tal carta, S. P. exibiu a mesma a A. Z.

No dia 29 de Maio de 2006, às 11 horas e 25 minutos, a partir da cabine telefónica com o n.º 229961834, localizada na Avenida do Dr. Fernando Aroso - Shell, em Leça da Palmeira, Matosinhos, o arguido efectuou uma chamada, com a duração de cento e quatro segundos, para o armazém do S. P.

Após ter-se identificado como o autor da missiva referida supra, confirmou a recepção daquela carta e quis saber se tinham já arranjado alguém para executar o serviço, tendo-lhe sido respondido negativamente.

No dia 29 de Maio 2006, o denunciante S. P. telefonou ao seu amigo O. R., pedindo-lhe ajuda e conselho relativos a algo que tinha para lhe mostrar Na sequência de tal contacto telefónico, S. e O. encontraram-se e neste encontro, o primeiro exibiu ao segundo a carta acima referida e informando-o que, nesse mesmo dia, o autor daquela tinha já contactado telefonicamente o seu armazém, com o propósito de confirmar a sua recepção e apurar se tinham já providenciado alguém para matar a vítima.

Relatou-lhe ainda que já antes recebera uma carta redigida em língua russa, cujo teor.

não tinha alcançado e por esse motivo a havia deitado fora.

Finda a conversa, decidiram e acordaram que se impunha denunciar a situação, o que fizeram nesse mesmo dia, pelas 16 horas, no piquete da Polícia Judiciária do Porto.

No dia 30 de Maio de 2006, às 10 horas e 42 minutos, a partir da cabine telefónica com o n.º 22 9958037, localizada na Avenida de Fernando Aroso, DF, 1288, em Leça da Palmeira, o arguido M. A. S. telefonou novamente para o armazém de S. P., tendo sido atendido por A. Z., com quem manteve uma conversa com a duração de vinte e cinco segundos.

Nesta conversa, o arguido M. A. S. perguntou ao A. se podia «fazer este trabalho» (sic), tendo-lhe este respondido negativamente e que tão-pouco estavam interessados em fazê-lo, após o que, apressadamente, desligou o telefone.

S. P, que se encontrava no armazém, questionou A. sobre a chamada telefónica que acabara de atender, tendo-lhe este relatado teor da mesma.

Nesta altura, o S. P. deu conhecimento a A. Z. que já denunciara esta situação à Polícia Judiciária do Porto e que, na eventualidade de contactos telefónicos futuros, não deveria afirmar peremptoriamente da indisponibilidade para providenciar para quem executasse o serviço pretendido pelo arguido, Mas sim, devendo, tentar empatá-lo, dizendo que iriam envidar esforços nesse sentido, a fim de recolher todos os elementos necessários que pudessem conduzir, a Polícia Judiciária do Porto, à sua identificação, conforme, aliás, indicações que recebera aquando da denúncia, por parte daquele órgão de polícia criminal.

Nesse mesmo dia, 30 de Maio de 2006, às 10 horas e 47 minutos, daquela mesma cabine telefónica, o arguido voltou a contactar o armazém de S. P., tendo sido novamente atendido por A. Z.

A conversa, com a duração de duzentos e dezasseis segundos, que foi presenciada pelo denunciante S. P., que dava indicações a A. sobre o que dizer ou perguntar, pois que aquele, embora soubesse já que a situação fora denunciada à Policia, se mostrava hesitante e ansioso por pôr termo ao telefonema, contrariamente, S., pretendia que aquele prolongasse a conversa o mais que pudesse.

O arguido, insistentemente, questionou A. sobre se conheciam ou não alguém que pudesse cometer o homicídio da vítima, tendo-lhe aquele, perante a determinação do arguido, respondido afirmativamente mas acrescentado que teriam de estabelecer contacto com o possível executante, o que poderia ainda levar algum tempo.

A. Z. questionou o arguido sobre o montante que estaria disposto a dispender, tendo obtido por parte deste em resposta, a pergunta sobre o montante que lhe seria cobrado.

A. Z. respondeu que desconhecia em absoluto tal montante porquanto a fixação do preço seria da competência do executante, que, para esse e outros efeitos, se impunha ainda contactar, razão pela qual, nesta conversa, nem o arguido nem o A. Z.

mencionaram qualquer montante.

Não obstante, A. Z. e arguido falaram na possibilidade de o executante, uma vez fixado o preço do serviço, vir a exigir, antes da sua execução, metade daquele montante.

Apesar de abordados estes assuntos, nada ficou definido, pois que, conforme alegara A. Z., à semelhança do montante a cobrar, competiria ao executante definir valor e modo de pagamento daquele.

No dia 2 de Junho de 2006, às 10 horas e 25 minutos, a partir da cabine telefónica com o n.º 229964475. localizada na Rua do Dr. José Domingues Santos - C/R, Avilhó, Lavra, o arguido contactou, mais uma vez, o armazém de S. P., tendo mantido com A.

Z. uma conversa com a duração de cinquenta e seis segundos, presenciada pelo S., que, uma vez mais, servia de auxiliar ao A.

O arguido M. A. S. começou por perguntar a A. se sabiam já o montante que o executante cobraria pelo serviço pretendido, ao que aquele respondeu afirmativamente, adiantando o montante de (euro) 10 000.

Entendendo que o montante pedido era elevado, o arguido tentou negociar tal montante, mas o A. Z. justificou aquele montante, referindo as exigências que ele próprio fizera, designadamente, a de o executante abandonar o país e acrescentando e referindo as despesas que a execução de tal serviço implicaria.

O arguido aceitou o preço do serviço contratado -(euro) 10 000 - e a condição de pagamento de metade daquele valor antes da sua concretização, adiantando que, posteriormente, enviaria nova carta com instruções mais detalhadas sobre como o serviço deveria ser executado.

No dia 6 de Junho de 2006, o arguido remeteu, pelo correio a carta cujo original se encontra junta a fls. 809 dos autos, acompanhada do mapa da cidade de Braga, junto a fls. 808 dos autos, uma e outro no interior do envelope cujo original se encontra junto a fls. 807 dos autos.

Começa por adiantar um detalhe, até então nunca mencionado, sobre o alvo - é uma mulher.

Identifica a residência daquela - assinala no mapa, com setas, as artérias de acesso à rua onde aquele reside, a rua da residência e escreve, com recurso a escantilhão, as palavras «PRÉDIO A-4», com uma seta que remete para a rua onde o imóvel fica situado.

Adianta os locais onde a mulher pode encontrar-se - o restaurante «McDonald's», na Quinta do Peões, assinalado no mapa com um círculo, e a Avenida de D. João II e artérias circundantes, também devidamente assinaladas com traços e um círculo.

Acrescenta cuidados a ter - as instalações do restaurante em causa estão equipadas com máquinas de filmar, o veiculo usado no dia do crime, furtado ou com matricula falsa, deve ser diferente do utilizado para praticar os percursos, deve fazer-se o reconhecimento dos diferentes locais assinalados, diversas vezes, de manhã e durante o dia.

Reitera as cautelas já referidas na carta anterior - a não utilização de auto-estrada, a necessidade de praticar os percursos, a saída imperiosa do autor material do crime do país, a melhor altura do dia para praticar o crime - de manhã, no regresso a casa, após levar «as crianças», a necessidade de simular um assalto e a posterior destruição da arma de fogo utilizada;

Revela dúvidas quanto à data - em alternativa ao dia 9 de Junho, referido na primeira carta, adianta o dia 16 do mesmo mês.

Refere que, quando estiver certo quanto à data, enviará nova carta com informações sobre a cor e a matrícula da viatura utilizada pelo alvo e bem assim metade do preço estabelecido.

Acrescenta que pagará o restante, uma vez executado o serviço.

Solicita que mantenham o contacto do executante, para «futuros trabalhos» (sic).

S. P. exibiu a carta e mapa em causa a A. Z., contactou telefonicamente com O. R., dando-lhe conhecimento de que recebera a carta supracitada.

Na sequência deste contacto, acabaram por se encontrar, altura em que S. P.

mostrou aquele a missiva em causa e bem assim o mapa que a acompanhava, tendo eles manuseado a carta, a fim de a ler.

No dia seguinte, na posse desta carta, deslocaram-se às instalações da Polícia Judiciária do Porto, onde fizeram a entrega da mesma.

No dia 9 de Junho de 2006, à 9 horas e 49 minutos, a partir da cabine com o n.º 253821105, no Largo do Marechal Gomes da Costa, em Arcozelo, Braga, o arguido, mais uma vez, telefonou para o armazém de S. P., tendo, mais uma vez, falado com A. Z., tendo a conversa, com duração de duzentos e quarenta e cinco segundos, sido presenciada pelo denunciante S. P.

O arguido M. A. S. começou por confirmar a recepção da correspondência que enviara para o estabelecimento na Rua do Almada, 314, no Porto, após o que referiu estar na dúvida quanto à data em que pretendia que o serviço fosse efectuado, tendo indicado como dias possíveis para a eliminação do alvo os dias 16 ou 23 de Junho.

Tentou ainda que o A. Z. lhe desse o contacto telefónico do executante, solicitação esta que foi recusada, com o argumento de que o executante pretendia ver mantido e garantido o seu anonimato.

O arguido mostrou-se preocupado com o facto de ter de pagar metade do montante acordado antes de executado o serviço, pois que não tinha garantias de que tal viesse efectivamente a suceder.

Como resposta, A. Z. argumentou que tão-pouco o executante tinha garantia alguma de que, uma vez cometido o crime, o arguido cumprisse com o acordado, ou seja, procedesse à entrega do montante restante.

Perante esta resposta, o arguido M. A. S. afirmou que, poucos dias ante da data definitiva, enviaria uma nova carta, com instruções ainda mais precisas e bem assim o montante de (euro) 5000.

Em 16 de Junho de 2006, às 10 horas e 19 minutos, a partir da cabine com o n.º 234542605, instalada na área de restauração da Pransor, área de serviço de Antuã, na A 1, sentido norte/sul, o arguido, mais uma vez, contactou telefonicamente o armazém do S. P.

Porque A. Z. se não encontrava presente no momento, a chamada telefónica foi atendida por A. P., irmão do denunciante, tendo a conversa tido a duração de vinte e quatro segundos.

Tendo A. P. pelo seu interlocutor habitual, o arguido perguntou-lhe, de imediato, se tudo estava pronto para que o serviço fosse executado na semana seguinte. A. P.

desfez o equívoco do arguido, dizendo-lhe que não era A. Z., informando-o que este e não encontrava presente, pelo que devia voltar a telefonar mais tarde.

Às 11 horas e 10 minutos, da cabine com o n.º 236911411, instalada na área de restauração da Eurest, na área de serviço de Pombal, na auto-estrada referida e no mesmo sentido norte/sul, o arguido voltou a telefonar para o armazém do denunciante, tendo sido atendido por A. Z., que entretanto, já havia chegado.

Numa breve conversa de trinta e um segundos, o arguido perguntou a A. Z. se tudo estava pronto para que o serviço fosse feito na semana seguinte, ao que aquele respondeu afirmativamente, tendo o arguido M. A. S. referido que, posteriormente, lhes enviaria mais detalhe e os (euro) 5000 em notas do Banco Central Europeu.

Em hora não apurada, entre as 19 horas do dia 18 de Junho de 2006 e as 9 horas do dia 19 de Junho de 2006, o arguido Manuel Albert Soares deixou no estabelecimento [...], sito na Rua [...]. Porto, o sobrescrito junto a fls. 810 dos autos, que continha, no seu interior, o recorte de revista de junto a fls. 811 dos autos, a carta junta a fls. 812 dos autos, e ainda um envelope, mais pequeno, devidamente fechado, que continha 50 notas do Banco Central Europeu, com o valor facial de (euro) 100 no total de (euro) 5000, conforme consta do termo de recebimento junto a fls. 39 dos autos e fotografias juntas a fls. 41 a 44 do autos.

Nesta carta, escrita com recurso a escantilhão, o arguido identifica a marca e o modelo do veículo utilizado pela ofendida - Audi Allroad.

Fornece a matrícula correcta da viatura [...].

Adianta a idade da vítima - 46 anos.

Indica duas datas para o cometimento do crime (homicídio) - 22 ou 23 de Junho.

Impõe o cumprimento de todas as suas instruções.

Determina a destruição de todos os documentos.

Tendo a folha de revista sido meticulosamente recortada do exemplar n.º 861 da revista Auto Hoje, publicada em 12 de Maio de 2006, de forma a eliminar o rodapé que permitia identificar a revista de onde fora retirada.

No recorte em questão, podem ver-se uma fotografia da frente de um veículo automóvel idêntico ao da ofendida e uma fotografia da parte traseira daquele, sendo que em ambas as fotografias o arguido colou duas pequenas tiras de papel em que escreveu, com recurso a escantilhão, a matrícula [...] do veículo automóvel utilizado pela assistente.

Porque a cor do veículo constante do artigo é distinta da cor da viatura utilizada pela vítima - preta - na fotografia frontal, o arguido escreveu, com escantilhão, a palavra «Preto», especificando a cor correcta da viatura e para que não subsistissem quaisquer dúvidas colou na mesma fotografia, uma tira em que pode ler-se, em língua russa, as palavras «cor preta».

No dia 19 de Junho de 2006, cerca das 9 horas, quando abria o estabelecimento, R. P.

encontrou o envelope em causa, que se encontrava no chão, em frente à ranhura existente na porta de entrada, própria para a introdução da correspondência.

Atendendo ao volume do envelope e aquilo que lhe havia sido dito pelo arguido, na conversa anterior, S. P. suspeitou que aquele pudesse conter a quantia em dinheiro e bem assim a carta com os últimos detalhe referentes ao serviço solicitado pelo arguido.

Assim, colocou a envelope num saco plástico e dirigiu-se ao armazém, local onde, após calçar um par de luvas, verificou o seu conteúdo, leu a carta e o recorte de revista mas não tendo aberto o envelope mais pequeno, que se encontrava devidamente fechado, mas cujo conteúdo, atento o seu volume, suspeitou que fosse a quantia previamente estipulada.

Tomou esta iniciativa ou comportamento por pensar que o arguido, como habitualmente fizera até então, contactasse telefonicamente o seu armazém, a fim de confirmar a recepção do envelope, e que, no decurso da conversa, se apercebesse do seu desconhecimento sobre o conteúdo, criando, desta forma, a suspeita de que o poderiam ter denunciado às autoridades competentes.

Seguidamente, exibiu o conteúdo do envelope a A. Z., a quem relatou as circunstâncias de tempo e modo em que tal envelope entrara na sua posse.

Após, telefonou a O. R., a quem pôs ao corrente do que se estava a passar, tendo combinado encontrar-se.

Neste encontro, o S. P. não permitiu que o O. R. tivesse acesso ao conteúdo do envelope, ou seja, à carta e ao recorte de revista, tendo, contudo, na conversa entabulada, partilhado das suas suspeitas, nomeadamente que o volume do envelope indiciava que o arguido podia lá ter introduzido o montante previamente estipulado para a realização do plano criminoso.

Após esta conversa, ambos se deslocaram às instalações da Polícia Judiciária do Porto, fazendo a entrega do envelope com todo o seu conteúdo, conforme consta do termo de recebimento junto a fls. 39 dos autos.

Durante a tarde de 20 de Junho de 2006, o arguido tentou contactar o armazém de S.

P., tendo, para o efeito, efectuado 4 telefonemas, a partir das cabines telefónicas com os n.os 226100714, 226100762, 229961834 e 229957361, instaladas na Avenida de António Aroso, Aldoar, Passeio Alegre, no Porto, na Avenida de António Aroso, Porto, e no lugar de Padrão, Perafita, respectivamente.

A. Z. não atendeu nenhuma das chamadas telefónicas, porém anotou os números dos telefones a partir dos quais foram efectuadas.

No dia 21 de Junho de 2006, às 10 horas e 50 minutos, 10 horas e 53 minutos e 10 horas e 55 minutos, o arguido tentou, novamente, contactar telefonicamente o armazém de S. P., a partir da cabine telefónica com o n.º 25321105, instalada no Largo do Marechal Gomes da Costa, Arcozelo, Braga.

Porém, nenhuma destas chamadas foi atendida pelo S. P.

No dia 26 de Junho de 2006, às 12 horas e 12 minutos, a partir da cabine telefónica com o n.º 225497172, instalada na Avenida de Fernão Magalhães/Rua de Santa Justa, no Porto, o arguido contactou, mais uma vez, telefonicamente o armazém de S. P., tendo sido atendido por A. Z., com quem manteve uma breve conversa de cerca de cento e vinte e cinco segundos.

O arguido M. A. S. quis saber junto de A. Z. por que razão o serviço contratado não fora executado, até porque já fornecera todos os elementos necessários e enviara, inclusivamente, metade do preço acordado.

A. Z. afirmou desconhecer as razões de tal incumprimento, sublinhando que agiam na mera qualidade intermediários e que nenhuma relação tinham com o assunto.

Adiantando, porém, que certamente algum imprevisto impedira o executante de levar a bom termo o plano criminoso, acrescentando que, posteriormente, lhe forneceria o contacto telefónico daquele, a fim de que o arguido pudesse contactá-lo directamente e esclarecer a situação.

No dia 27 de Junho de 2006, às 10 horas e 21 minutos, a partir da cabine telefónica com o n.º 253615810, instalada na Praceta de Francisco Sanches, S. João do Souto, em Braga, o arguido contactou, novamente, telefonicamente o armazém do S. P., mantendo com A. Z. uma conversa de cerca de trezentos e trinta e um segundos.

O arguido M. A. S. manifestamente descontente com a situação, quis, mais uma vez, saber junto de A. Z. da razão ou razões pelas quais o plano criminoso - serviço -, devidamente encomendado, não fora executado.

Nesta conversa, mais uma vez o A. Z. reafirmou que nada sabia ou podia fazer sobre o assunto, atento o facto de ser um mero intermediário.

Seguidamente, o A. Z. forneceu ao arguido o contacto de um telemóvel que a Polícia Judiciária do Porto havia entregue a O. R., para ser utilizado nesta situação.

No dia 27 de Junho de 2006, às 10 horas e 26 minutos, a partir da cabine telefónica com o n.º 253617677, instalada na Praceta do Parque de Exposições, S. José de S.

Lázaro, em Braga, o arguido tentou, sem sucesso, contactar o armazém do denunciante, Só não o conseguindo por a mesma se encontrar avariada.

Seguidamente, o arguido M. A. S. que se fazia transportar no veículo automóvel da marca BMW, modelo 535 I, de matrícula [...], entrou no referido veículo automóvel e dirigiu-se na direcção de Viana do Castelo, onde cerca das 12 horas e 30 minutos, é abordado por elementos da Polícia Judiciária do Porto, conforme consta do relatório de diligência externa junto a fls. 110 e seguintes dos autos.

A mulher com cerca de 46 anos de idade que se fazia transportar no veículo automóvel da marca Audi, modelo Allroad, de matricula [...], era, nem mais nem menos, do que a mulher do arguido, a assistente [...], de quem o arguido forneceu todos os pormenores quer hábitos, aos eventuais contratados, para que estes levassem a bom termo o seu plano criminoso, ou seja, poder tirar-lhe a vida.

O arguido M. A. S. ao delinear o plano criminoso acima descrito, contratando pessoa ou pessoas para o realizar, ao entregar, em notas do Banco Central Europeu, metade do montante estabelecido pelo pagamento do serviço contratado, ao estabelecer as circunstâncias de tempo e modo em que tal plano criminoso deveria ser levado a efeito, tinha plena intenção de causar a morte à assistente [...], sua mulher, Só não o tendo conseguido por circunstâncias completamente alheias à sua própria vontade, nomeadamente pelo facto da pessoa ou pessoas contratada para levar a efeito tal plano terem dado conhecimento do mesmo ao órgão de polícia criminal competente, a Polícia Judiciária do Porto, abortando, desta forma, o plano criminoso do arguido.

O arguido agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é reprovável e censurável.

No acórdão fundamento foi provado:

No dia 6 de Abril de 1995 chegou a T. de L., o marido da arguida, a fim de passar um período de férias.

A presença do marido da arguida tomou-se um obstáculo à subsistência dos encontros que a mesma mantinha com o arguido, pelo que, para remover esse obstáculo, combinaram entre si em tirar a vida ao assistente.

Para a materialização desse projecto acordaram em pagar a alguém que se dispusesse a matar o C., disponibilizando-se a arguida a fornecer o dinheiro que se revelasse necessário.

De acordo com o plano combinado entre ambos os arguidos, o A., no dia 17 de Abril de 1995, contactou um indivíduo de nome O., mais conhecido pelo «[...]» em casa deste, sita em O. do H., propondo-lhe que tirasse a vida ao C.

No entender do arguido A., o D. seria a pessoa indicada para aquele efeito por ser referenciado na zona como ligado ao mundo da droga e se achar desempregado.

O D. disse então ao arguido que aceitava matar o assistente mediante o pagamento da quantia de 700 000 escudos, sendo 100 000 escudos a entregar antes e os restantes 600 000 escudos depois da morte do C.

Logo o arguido combinou com o D. que a morte do C. deveria ter lugar no dia 20 de Abril de 1995, entre as 22 e as 23 horas.

Posteriormente deu o arguido conhecimento à arguida das condições que combinou com o D., com as quais ela concordou.

Em 19 de Abril do mesmo ano, a arguida levantou do banco a quantia de 100 000 escudos, que entregou ao arguido, o qual, por sua vez, a deu ao D.

Juntamente com tal quantia entregou o arguido ao D. o papel que consta a folha 8, que este deveria dar à arguida B. após matar o C. e no qual a arguida era instruída acerca do seu modo de proceder depois da morte do marido.

No dia 20 de Abril, a arguida levantou do banco a importância de 600 000 escudos que combinara deixar escondida junto de um castanheiro onde o arguido iria buscá-la.

Em lugar do dinheiro deixou junto do castanheiro um bilhete que consta de folha 9 dos autos, onde, entre outras coisas se escreveu: «Não consigo. Não posso. Não quero.

Não tenho coragem, está tudo anulado. Vê lá se consegues algum dinheiro de volta.» Ambos os arguidos se convenceram de que o D. ficara firmemente determinado a matar o assistente O D., porém, ao contrário do que era vontade dos arguidos, jamais tivera intenção de tirar a vida ao C., dirigindo-se ao Posto da GNR de O. do H., onde comunicou ao respectivo comandante o que sucedeu entre si e o arguido e lhe entregou os 100 000 escudos que havia recebido bem como o papel com as instruções dirigidas à arguida.

Face a tal comunicação, a GNR, antes da data aprazada entre o arguido e o D. para ser tirada a vida ao C., procedeu à detenção de ambos os arguidos e transmitiu àquele o que estes haviam projectado.

Os arguidos praticaram os descritos actos de modo livre, voluntária e consciente, com o propósito de que o assistente viesse a morrer.

Em ambos os casos, o agente decidiu e planeou a morte de uma pessoa, após o que contactou outrem para sua concretização, que aparentemente aceitou, mediante pagamento de determinada quantia, vindo depois o mandante a entregar-lhe parte da quantia definida e, fornecendo-lhe indicações relacionadas com a concretização do plano, tendo o mandante ficado convencido e na expectativa da prática do facto pelo executor.

Porém, este não praticou o facto encomendado, nem praticou quaisquer actos de execução do crime projectado, e denunciou a situação à entidade policial Em consequência dessa denúncia, o agente que encomendou a morte e esperava que o executor a concretizasse veio a ser detido, sem haver lugar à consumação do facto.

O acórdão recorrido (cuja deliberação foi formada por maioria), condenou o arguido como autor mediato na forma tentada pela prática do crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.os 1 e 2, alínea c), 23.º, 26.º, 131.º e 132.º, n.º 1, todos do Código Penal.

Por sua vez, o acórdão fundamento considerou que não se configurava a autoria mediata, mas apenas a figura da tentativa de instigação, não punível pela nossa legislação penal, e confirmou inteiramente a decisão da 1.ª instância que absolveu os arguidos da prática em co-autoria material e na forma tentada de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 132.º n.os 1 e 2, alíneas c) e h), 22.º, 23.º e 74.º, todos do Código Penal.

Verifica-se, pois, como resulta da fundamentação dos acórdãos em confronto e se decidiu no acórdão interlocutório, a existência de situações de facto - juridicamente relevantes - de identidade análoga, que, no âmbito da mesma legislação, geraram de forma expressa, decisões de direito diferentes, sendo patente a oposição de julgados, que ora confirmam.

Verificando-se também preenchidos os demais requisitos legais do presente recurso extraordinário e inexistindo modificação da mesma legislação em que assentaram as decisões em confronto, nada obsta ao prosseguimento do presente recurso para decisão do conflito de jurisprudência suscitado.

III - A fundamentação dos acórdãos divergentes e delimitação do objecto da

presente fixação de jurisprudência

1 - Refere, nomeadamente, o acórdão recorrido:

«A instância recorrida proferiu acórdão absolutório por perfilhar o entendimento de que, configurado o caso dos autos como integrando a figura de instigação, esta não era de punir porquanto não se constataria qualquer acto de execução ou começo de execução (1).

H.2) Na verdade, a autoria conexiona-se com a execução. Não há autoria sem execução. Mas autor não é apenas aquele que executa o facto por si mesmo. Autor é também, com efeito, aquele que executa o facto por intermédio de outrem. É a autoria mediata.

É sabido que o artigo 26.º do CP adoptou um conceito extensivo de autor. É no fundo, um 'participante principal' (Cf. Cavaleiro Ferreira - Lições - 1 - 4.ª ed., 473). Para a teoria do domínio do facto aqui tão citada, é autor quem, de acordo com o significado do seu contributo, governa o curso do facto ou como significativamente foi já decidido no STJ 'segundo a importância da sua contribuição efectiva, comparte o domínio do decurso do facto' (CJ/STJ - 22.11.2006 - xlv, 3/230).

"A autoria mediata é uma forma de autoria e, como a autoria imediata, caracteriza-se pela existência do domínio do facto. É autor mediato [homem de trás] quem realiza o tipo penal de maneira que para a execução da acção típica se serve de outrem [homem de diante] como 'instrumento'" - Jescheck - Tratado de Direito Penal - versão espanhola - pp. 604).

H.3) Todavia, a instigação não esgota o campo cognitivo da realidade que desponta dos autos nem a figura da autoria mediata se confunde com aquela. É enganadora a aparência de uma pretensa uniformidade de tratamento entre as duas figuras quando subsumidas ao dispositivo do artigo 26.º do CP. É que {no artigo 26.º do Código Penal a instigação e a autoria mediata estão estruturadas em termos diversos: segundo este preceito, a punição de quem 'determinar outra pessoa à prática do facto' depende de existir 'execução ou começo de execução', mas para a punição de quem 'executar o facto [...] por intermédio de outrem', não se exige esse requisito, nem qualquer outro equivalente. [...] Esta diversidade de estrutura da autoria mediata e de instigação é particularmente relevante numa ordem jurídica que, como a nossa, não incrimina a tentativa de instigação, pois daí decorre que o agente mediato, se o seu comportamento for tratado como instigação, ficará impune sempre que não chegar a haver execução ou começo de execução, por parte do instigado. Diferentemente, nos casos de autoria mediata, o regime resultante do artigo 26.º do CP não exige para a responsabilidade do autor mediato, o início da execução pelo autor imediato, não excluindo, assim, a possibilidade de o 'homem de trás' ser punido por tentativa a partir de um momento anterior àquele em que o autor imediato começa a praticar actos CC) de execução do tipo legal de crime. [...] Saber se esse momento, anterior à prática de actos de execução pelo autor imediato, coincide com o início ou com o fim da actuação do autor mediato sobre o executor, ou com o momento em que o autor mediato larga das mãos o curso dos acontecimentos, ou com a verificação do perigo imediato para o bem jurídico, é questão que não tem de ser aqui decidida. Em qualquer caso, parece-nos correcto afirmar que, também no direito penal português vigente, quando o autor imediato não chega a praticar actos de execução do facto tipicamente ilícito, o âmbito de punição do autor mediato pode ser mais amplo (pode começar mais cedo) do que o da punição do instigado} - Maria da Conceição Valdágua - in «Figura central, aliciamento e autoria mediata» - Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues - 1 - pp. 932/934.

[...] Este alargamento conceitual de autoria, como tal há muito recepcionado no nosso CP tem a sua explicação no desenvolvimento contemporâneo da sociedade humana, sendo que as inerentes actividades multifacetadas que se desenvolveram no seu seio vieram determinar um olhar mais consentâneo com os problemas gerados. Neste contexto, é conhecida a trama em que se desdobrou a criminalidade, nomeadamente a organizada e a transnacional. Neste mesmo contexto e resultante da especificidade da vivência humana se impuseram de uma forma algo estruturada formas de actuações anti-sociais que até há poucos anos não passavam de ocorrências esporádicas. Estamos a pensar, na actualidade, do incremento do que constitui a actuação delituosa de 'crime por encomenda' onde o homicídio ocupa já um receoso grau de incidência. Se este entendimento envolve, no quadro de política criminal, uma valoração de prevenção geral, a verdade é que o caso dos autos determina que nos lancemos decididamente, abandonando, ao menos como posição de princípio, uma leitura complacente na apreciação do fenómeno, sobretudo quando o valor em causa é o bem supremo da vida humana.

[...] a verdade é que até ao momento de ser detido pela PJ, o arguido, enquanto autor mediato, deteve o domínio do facto, bastando pensar na possibilidade, sempre aberta, de substituição do 'executor', perante a posterior recusa do anteriormente seleccionado que motiva a intenção policial, que os autos documentam, de 'empatar' (entreter) o arguido para evitar essa substituição.

J) Face aos dispositivos dos artigos 131.º e 132.º, ambos do CP, a acção visada pelo arguido envolveria a prática de um crime de homicídio qualificado.

A questão coloca-se porém no âmbito da tentativa. Como se sabe, o começo da tentativa surge naquele momento em que círculo de protecção dos direitos do titular do direito se revela, objectivamente, ameaçado pela acção realizada. No dizer de Jescheck/Weigen, com a tentativa o agente 'põe imediatamente em marcha a realização do tipo'. Já acima se demonstrou que todo o comportamento do arguido funcionou de molde a conduzir ao efeito ilícito por ele pretendido. Assim, a encomenda do crime; a idoneidade e a confiança nos meios e nos contactos estabelecidos, o planeamento do modus operandi, as precisões de tempo, modo e lugar transmitidas para a prática do delito na pessoa da vítima, cujas características teve o cuidado de pormenorizar, e o ajuste e combinação de dinheiro disponibilizado, são de molde a integrar a previsão do artigo 26.º do CP na modalidade de autoria mediata na vertente tentada prevista no artigo 22.º, n.º 2, alínea c), do mesmo diploma.

É irrecusável não ver reconhecida face aos factos apurados e no quadro da lei penal nacional a responsabilidade do arguido, enquanto autor mediato do crime de homicídio qualificado tentado na pessoa da sua mulher [...].» No acórdão recorrido, concluiu-se que face aos dispositivos dos artigos 131.º e 132.º, ambos do CP, a acção visada pelo arguido, envolveria a prática de um crime de homicídio qualificado, colocando-se a questão porém no âmbito da tentativa.

Assim, a encomenda do crime; a idoneidade e a confiança nos meios e nos contactos estabelecidos, o planeamento do modus operandi, as precisões de tempo, modo e lugar transmitidas para a prática do delito, cujas características teve o cuidado de pormenorizar, e o ajuste e combinação de dinheiro disponibilizado, eram de molde a integrar a previsão do artigo 26.º do CP na modalidade de autoria mediata na vertente tentada prevista no artigo 22.º, n.º 2, alínea c), do mesmo diploma.

Por isso, veio a condenar-se o arguido como autor mediato na forma tentada pela prática do crime de homicídio qualificado previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.os 1 e 2, alínea c), 23.º,26.º, 131.º e 132.º, n.º 1, do Código Penal.

2 - Por sua vez, consta do acórdão fundamento:

«De facto o pretenso instigado ab initio se mostrou 'indisponível' para a prática do acto de que foi incumbido. Jamais teve intenção de tirar a vida ao C. [...] Parece-nos evidente que não iniciou, pois, qualquer acto do iter criminis que se possa considerar acto executivo, conforme Faria Costa. in Jornadas de Direito Criminal, p.

173, ao interrogar-se quando se pode dizer que se determina outrem à prática de um crime, responde:

'Dir-se-á que tal acontece quando alguém consegue criar em outra pessoa a firme decisão de esta querer praticar uma infracção. Tal decisão terá de abranger todos os elementos subjectivos inerentes aos factos. E também patente que enquanto o agente imediato não praticou nenhum acto de execução, não há verdadeiramente instigação.

Aliás nem de outra forma podia ser já que então estar-se-iam a punir as meras cogitationes.

Vale neste particular a regra da acessoriedade.' Assim, quer pela ausência do começo de execução, quer porque o agente imediato nunca teve intenção de eliminar o assistente, faltando assim o elemento subjectivo inerente ao facto, ou seja, o dolo, não pode a acusação ser procedente sobre este ponto de vista.

[...] São exemplos de escola aqueles em que o crime é cometido através de um incapaz ou de um menor, ou ainda aqueles ao agente imediato falta o domínio da acção por coacção absoluta ou por actuar - erro sobre a factualidade típica. 'A autoria mediata não se pode afirmar se o instrumento é, em si mesmo, um autor plenamente responsável, uma vez que a lei penal considera que o autor imediato, neste caso, deve responder pelo facto como autor, de tal forma que um outro interveniente só pode caber nas figuras da co-autoria, instigação ou cumplicidade' - Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal, 1995. p. 256.

No caso dos autos como bem se afirma naquela douta alegação - o presumível autor imediato não se enquadra em qualquer destas hipóteses - não foi instrumento, sempre conservou o domínio do facto, digo, domínio sobre si mesmo, a capacidade de agir, o livre arbítrio, [...] sendo certo que nunca teve intenção de tirar a vida ao assistente.

Sendo assim, bem se pode concluir pela improcedência da acusação também sob este ponto de vista.

d) Não podem pois os arguidos serem punidos nem instigadores por falta do requisito expresso no artigo 26.º do Código Penal, parte final, ou seja, execução ou começo de execução do crime por parte do instigado.

Não pode, por sua vez, configurar-se a autoria mediata, uma vez que o autor imediato não serviu de instrumento na prática do crime.

Configurar-se-ia apenas a figura da tentativa de instigação, não punível pela nossa legislação penal.» E, assim, confirmou a decisão da 1.ª instância que absolvera os arguidos da prática, em co-autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 132.º, n.os 1 e 2, alíneas c) e h), 22.º, 23.º e 74.º, todos do Código Penal.

3 - A questão ora colocada ao pleno das secções criminais é a de saber como qualificar jurídico-criminalmente a actuação de quem decide, planeia e encomenda a morte de alguém, a outrem, que aparentemente aceitou, mediante pagamento de determinada quantia, que posteriormente, o mandante lhe entrega, parcialmente, e dando-lhe indicações relacionadas com a prática do facto, aguardando depois convicto e na expectativa de que o evento letal seria consumado pelo executor, após o que lhe pagaria a restante parte do preço.

Porém, o facto não veio a ser concretizado, porque o executor não praticou quaisquer actos de execução e denunciou a situação à entidade policial, vindo o arguido a ser detido.

Constituirá um problema de autoria, na vertente de autoria mediata, ou de co-autoria, na forma tentada, ou estar-se-á perante a figura de instigação, no caso uma instigação na forma tentada?

IV - Fundamentação

A) O objecto da questão sub judicio radica na interpretação do artigo 26.º do Código Penal, a qual, pressupõe a análise do significado e amplitude das expressões normativas em que se consubstancia e redutíveis ao conceito nuclear de autoria, uma vez que se encontram submetidas nas diversas vertentes ao mesmo denominador comum: «É punível como autor [...]».

É, pois, um problema interpretativo, traduzido no conteúdo e espírito da lei, nos meios e resultados de interpretação, no âmbito de uma teleologia funcional decorrente do princípio da legalidade que integra a dogmática jurídico-penal e que, de harmonia com a lex legum sobre interpretação da lei, decorre do artigo 9.º do Código Civil:

«1 - interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que à aplicada.

2 - Não pode porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.» Há, assim, que ter em conta o elemento literal (as palavras da lei), juntamente com o elemento gramatical: (a análise filológica), constituindo ambos o texto da lei; o elemento lógico: averiguação da mens legislatoris para se encontrar a mens legis, a ratio legis, o espírito da lei; o elemento sistemático: análise da lei na sua relação com o ordenamento jurídico adoptado pelo legislador; o elemento histórico: antecedentes normativos procurando reconstruir e revelar a vontade da lei através dos antecedentes e modificações sofridas ou conformidade, com a lei anterior, verificando-se a relação da lei com o momento da sua edição (occasio legis); o elemento teleológico: o fim (social) da lei, isto é, o fim que o legislador quis alcançar, ao elaborá-la, e também o elemento sociológico: a finalidade social a que a lei se destina Como salienta Figueiredo Dias: «Que o intérprete está indissoluvelmente ligado aos juízos de valor, aos sentidos, às finalidades ou ao thelos - não às representações fácticas - do legislador histórico, é coisa que deve ter-se por adquirida e fora de questão. Mas igualmente óbvio é que o intérprete pode (e deve) tomar em conta novas realidades, novas descobertas, novos instrumentos e mesmo novas concepções que não poderiam ter estado no campo de representação do legislador histórico, desde que o tomá-las em conta não implique ultrapassar o teor literal da regulamentação e o seu campo de significações adequadas ao entendimento comum das palavras que naquela foram utilizadas.» (2) B) A questão que ora nos ocupa, objecto da teoria da comparticipação (participação de vários agentes no mesmo crime), ou talvez melhor, da participação (participação individual de cada um no mesmo crime), criminosa, tem surgido, várias vezes, na jurisprudência e debatida na doutrina; não havendo em ambas unanimidade de entendimento, quer na delimitação do significado dos conceitos, quer na interpretação da dogmática legal, não sendo, por outro lado, homogéneos os diversos sistemas jurídico-penais na perspectivação das temáticas da autoria e da participação e continuando as discussões à volta do tema.

B.1) Dizia Eduardo Correia que: «Uma primeira resposta será a de que, quando uma conduta preenche um tipo legal de crime, a sua imputação objectiva a um ou vários sujeitos deverá determinar-se segundo as regras da causalidade: autor de um crime será todo aquele que tiver dado causa à sua realização.» (3) Todavia, este «conceito extensivo de autoria», na expressão de Zimmerl, e de que foram especiais paladinos Eb. Scmidt e Mezger, não captaria de forma correcta, para outros autores, o fundamento da punição de actividades que colaboram na produção de um facto criminoso sem todavia o executarem: este não poderia procurar-se nos tipos legais de crime, mas antes teria de encontrar-se num alargamento da punição - por força de certas disposições da parte geral dos códigos penais - a outras formas de elaboração no facto criminoso que não são autoria. Assim se aceitava, pois, um «conceito restritivo de autoria» (4).

Embora reconhecendo vantagens ao conceito restritivo de autoria nos chamados crimes próprios, já, porém, o mesmo insigne professor considerava haver desvantagens para os casos do comparticipante reunir as qualidades exigidas pelo tipo legal de crime (intraneus) mas o executor ser um «extraneus», o qual não poderia ser autor por não possuir as qualidades exigidas, «e sem autoria não se pode conceber uma punição que dela deriva» (5).

A participação, tendo natureza acessória, poderia assumir várias modalidades conforme as exigências postas para a punição do instigador e do cúmplice (acessoriedade rigorosa, quando o executor praticasse o facto punível; acessoriedade limitada, quando praticasse apenas um facto típico e ilícito, acessoriedade mínima, quando pelo menos praticasse o facto típico), mas, ainda assim, não contemplaria «aqueles casos em que a lei exige certas qualidades - ou intenções - que só o instigador ou o cúmplice possuem; para as punir será necessário fazer apelo ao conceito de autoria mediata e reconhecer por conseguinte que a comparticipação é antes de tudo, ou é também autoria» (6).

Este alargamento da punição aos comparticipantes resultaria de eles tomarem parte, produzirem a culpa dos autores («Schuldteilnametheorie»).

Porém não resolvia a situação da execução do crime por inimputáveis, em que a punibilidade somente poderia ser conseguida através de um conceito extensivo de autoria na forma de autoria mediata.

B.2) Os adeptos do conceito restritivo de autoria buscaram um novo fundamento da participação frente à autoria, o denominador comum estava no domínio do facto.

Autor é aquele que «conscientemente detenha a possibilidade de dominar, finalisticamente, a realização do tipo legal, ou seja, a possibilidade de a deixar continuar, a deter ou interromper»; participante, pelo contrário, todo aquele que não detenha um tal domínio sobre o facto e, por conseguinte, se limite a favorecer - quer provocando a decisão para o facto (instigação), quer por outros meios (cumplicidade) - a acção de um terceiro.

Embora esta doutrina merecesse aplauso na generalidade dos autores alemães, considerava, porém, Eduardo Correia que a mesma impossibilitaria a compreensão unitária da autoria conforme se referisse a factos praticados com dolo ou negligência e ainda, mesmo a nível da autoria praticada dolosamente, tornaria «inaceitavelmente fluidos e imprecisos os contornos da distinção» entre autoria e participação.

Daí que optasse pelo conceito extensivo de autoria, fundado na causalidade adequada (e não perante a teoria da equivalência de condições), para explicar a teoria da participação, balizada por dois limites: um, de sentido positivo, que legitimava a punibilidade de todos os que dão causa a um crime, e, outro, de sentido negativo, que excluiria sempre a participação criminosa quando não se verificasse o nexo de causalidade (7).

Perante a crítica de que o acto do instigador nunca poderia considerar-se causal, admitia que «isto não quer dizer, porém, que as coisas se não modifiquem quando alguém determina e por conseguinte prevê ou deve prever actividades dolosas ou negligentes de outrem por força do seu comportamento» (8).

Comportamento esse que poderia levar a classificações e distinções autónomas, como a cumplicidade (que seria a determinação ou auxílio a um crime que, todavia, sem aquela determinação ou auxílio teria sido também realizado - embora o fosse então por modo, em tempo, lugar ou circunstâncias diversas), a instigação - conceito autonomizado pela doutrina alemã - (para abranger os casos em que alguém incita dolosamente outrem à prática de um crime doloso), a co-autoria (em que o agente, por acordo e conjuntamente com outro ou outros, tome parte imediata na execução de um crime), a actuação paralela (em que vários agentes praticam condutas para o mesmo fim, sem qualquer acordo entre eles), a comparticipação necessária (com incidência fundamental nos crimes de colisão ou de encontro e nos crimes convergentes).

B.3) Em relação à instigação, entendia-se que a sua autonomia se justificava «em vista de um dupla ordem de considerações: a primeira seria a de que só ela pode permitir que seja punido quem, embora não reunindo as qualidades exigidas por lei para a autoria e não podendo portanto ser punido por tal, todavia determina um 'intraneus' a executar o respectivo crime, a segunda - aliás a razão histórica da sua autonomização - seria, uma vez mais, a de que tais casos não poderiam reduzir-se ao âmbito da autoria, já que não teria sentido falar de causalidade relativamente à vontade humana» (9).

Referia, porém, Eduardo Correia, que «justamente por isso cremos que o conceito de instigação pode e deve ser abrangido pelo de autoria mediata, moral ou intelectual, desde que a este se dê um sentido lato que abranja todas aquelas hipóteses em que alguém causa a realização de um crime utilizando ou fazendo actuar outrem por si», sendo indiferente a metodologia utilizada pelo autor mediato ao determinar outrem à prática de um facto ilícito, que poderia consistir numa panóplia de meios de actuação, tais como ordem, pedido, promessa, dádiva, conselho, ameaça, violência, entre outras; sendo necessário que determinação na realização do facto fosse causal («só então se podendo afirmar que o autor mediato causou a realização do facto») e directa («de modo a excluir a punibilidade de uma instigação à instigação»), sendo «irrelevante a inimputabilidade do agente imediato ou a circunstância de este não reunir as qualidades pessoais ou a intenção exigida pelo tipo legal de crime: basta que o autor mediato as possua e que o facto a que o executor foi determinado, alcance pelo menos, um começo de execução» (10).

Perante a aceitação de um conceito extensivo de autor, a autonomização da instigação seria um luxo conceptual, pois que se autonomizava a figura do instigador para depois o punir como autor.

A instigação seria admissível - mas, sem consenso quanto à sua natureza - por necessidades político-criminais, em que se está em face de uma autoria simples sui generis e não de qualquer forma ou espécie de comparticipação, como nos casos de «agentes que baldadamente procuram determinar outrem ao crime, se oferecem para sua prática, aceitam esse oferecimento ou com outros se concertam para a prática dele, sendo que essa autoria entraria nos quadros da tentativa, sempre com carácter subsidiário: desde que a tentativa de determinação, a determinação, a oferta ou a aceitação conduzam a um começo de execução do facto ilícito, o agente deixará de ser punido segundo este preceito para passar a sê-lo como autor mediato ou cúmplice da infracção» (11).

C) Na distinção entre autoria e participação, o conceito legal de autor não coincide com o conceito ontológico ou real de autor, pois que este englobaria apenas como autor o que realiza o facto típico, o «quem» anónimo de Welzel que integra os textos legais, e, excluindo da sua conceptualização, o princípio da acessoriedade limitada, o participante ou «partícipe», pois que este pressupõe a existência do facto antijurídico por parte do autor.

Por sua vez, a diferenciada responsabilização criminal dos participantes também não legitima um conceito unitário de autor nos termos delineados pela Escola de Kiel que partia de um direito penal da vontade.

Para essa distinção - entre autoria e participação - duas outras concepções ofereceram um critério de distinção: o conceito extensivo de autor, complementarizado pela teoria subjectiva da participação, em que é autor quem age com animus auctoris e participante quem actua com animus socii.

Face a graves inconvenientes político-criminais, de que foi exemplo a decisão do Reichsgericht 74,84 (85), veio a doutrina alemã substituir o conceito extensivo de autor pelo conceito restritivo de autor, pois que nem tudo o que fosse causal era igual à realização do facto típico (12).

Havia porém divisão quanto à contribuição do autor e do participante, orientando-se, por conseguinte o critério de decisão em três direcções:

a) A teoria objectivo-formal, em que o decisivo é apenas mas sempre a realização de algum ou de todos os actos executivos previstos no tipo legal.

Teoria esta que foi abandonada por não oferecer critério de distinção entre a causalidade do facto e autoria, conduzindo à mesma amplitude do conceito extensivo de autor;

b) A teoria objectivo-material, em que seria autor quem contribuísse objectivamente da forma mais importante (causa essencial) para o facto.

Esta teoria foi abandonada por desconhecer o aspecto subjectivo na caracterização da contribuição para o facto, como por exemplo na autoria mediata;

c) A teoria do domínio do facto, que provinda do finalismo, defende que nos crimes dolosos autor é quem domina finalmente a execução do facto, o controlo final do facto é o critério decisivo da acção.

Esta teoria actualizou-se em teoria objectiva-subjectiva em que o controlo final não requer apenas a finalidade mas ainda uma posição objectiva que determine o efectivo domínio do facto, combinando o ponto de partida do conceito restritivo de autor com uma certa flexibilidade na integração da autoria que engloba não só o autor material mas também a autoria mediata e o caso de co-autoria.

Para Jescheck, é autor quem executa por si próprio todos os elementos do tipo; quem executa o facto utilizando outra pessoa como instrumento (autoria mediata), é ainda autor quem realiza uma parte necessária de execução do plano global (domínio funcional do facto), ainda que não seja um acto típico em sentido estrito, mas participando em todo o caso da comum resolução criminosa.

O critério distintivo do domínio do facto não estaria apenas no poder de interromper a realização do tipo legal, mas na pertinência exclusiva ou compartilhada do facto em que este não resulta de quem depende a possibilidade da sua execução, mas de quem a realiza por si só ou através de outro ou a compartilha com outros (13).

A teoria do domínio do facto ficou conhecida sobretudo a partir de Roxin, que já em 1970 publicara um artigo de reflexões sobre a problemática da imputação em direito penal, em homenagem a Hönig, em que esboçou para os crimes de resultado uma teoria geral de imputação completamente desligada do dogma causal, deslocando o centro de gravidade da acção, da esfera ontológica para a normativa, com fundamentos em critérios de: diminuição de risco, criação ou não criação de um risco juridicamente relevante; aumento ou falta de aumento de risco permitido, a esfera de protecção da norma, como critério de imputação (14).

Mas, foi no seu trabalho Tätershaft und Tätherrshaft que na distinção entre autoria e participação desenvolveu o tema da figura central de autor, nomeadamente nos apelidados crimes de domínio (Herrschaftsdelikte), em que relativamente e apenas aos crimes comissivos dolosos só quem possuísse o domínio do facto (Tätherrschfat) seria autor.

Esse domínio do facto, para Roxin, podia manifestar-se em três vertentes:

O domínio da acção, em que o agente por suas mãos executa o facto, caso do autor imediato;

O domínio da vontade próprio da autoria mediata, em que o homem de trás (o que formula o propósito criminoso e decide a sua efectivação) domina a vontade do homem da frente (o instrumento, ou executor que executa o facto), por coacção, indução em erro ou no âmbito de um aparelho organizado de poder; e O domínio funcional do facto, característico da co-autoria, face ao significado funcional da contribuição de cada co-autor na divisão de trabalho ou repartição de tarefas na concretização da decisão conjunta.

Na teoria do domínio do facto, autor é, em síntese, quem domina o facto e dele é «senhor», dele dependendo o se e o como da realização típica - distinguindo-se aliás e, por vezes, um domínio positivo do facto (a capacidade de o fazer prosseguir até à consumação) e um domínio negativo (a capacidade de o fazer gorar) - , sendo pois o autor a figura central do acontecimento, em que numa unidade objectiva-subjectiva o facto aparece «como obra de uma vontade que dirige o acontecimento dotada de um determinado peso e significado objectivo (15).

Outras teorias existem, nomeadamente a nível da expansão da moderna teoria da imputação objectiva (v. g. a teoria da totalidade - Ganzheitstheorie - criada por Scmidäuser; a da pertinência do facto, defendida por Mir Puig; a teoria dos tipos de imputação, explicitada por Bloy; a autoria como emanação da norma penal, a que se resume a postura de Stern), mas o critério do domínio do facto é que melhor se revela para a compreensão da autoria, no iter criminis, fundando-se mais na ideia de domínio que não da primitiva ideia de execução, precisamente porque autor é o que domina o tipo penal, dominando a sua execução, que pode efectuar por si mesmo (autor directo ou imediato), conjuntamente e de acordo com outros (co-autoria), ou, através de outro (autoria mediata) (16).

Embora o conceito do domínio do facto esteja longe de ser unívoco, deve entender-se como um conceito aberto, na expressão de Roxin, referido por Figueiredo Dias, isto é «cujo conteúdo é susceptível de adaptar-se às variadíssimas situações concretas da vida e que só na aplicação alcança a sua medida máxima de concretização», assumindo o carácter de uma valoração em função do significado social que o contributo do agente para o facto representa. Por isso, o conceito básico do domínio do facto pode e deve ser afeiçoado e precisado segundo as circunstâncias do caso, e nomeadamente à luz das diversas espécies (também legais) de autoria e mesmo dos resultados que devem ser alcançados em tema de doutrina da participação (17).

A doutrina do domínio do facto, na dimensão apontada, é a que melhor se harmoniza com os parâmetros da autoria nos crimes dolosos de acção.

Por outro lado, como refere o mesmo distinto professor, quer a concepção unitária de autoria, quer a concepção extensiva de autor não estão de harmonia com a lei vigente, sendo certo que um conceito restritivo de autor «não pode apresentar-se como um conceito fixo, e muito menos apto imediatamente à subsunção, tendo de aceitar-se como aberto e multifacetado conforme a espécie de autoria a que se aplique e a estrutura ilícita típica que está em causa».

A autoria participa da natureza do ilícito pessoal, sendo um elemento (essencial) à realização do facto ilícito típico.

Há sempre uma valoração normativa do domínio do facto, face aos elementos objectivos e subjectivos do ilícito, ao desempenho pessoal do agente no acontecimento e ao significado social que o contributo do agente para o facto representa (18).

D) A evolução legislativa portuguesa:

D.1) O Código Penal Português de 1852, que pela primeira vez desenhou o tratamento sistemático da comparticipação, explicitava uma conceptualização meramente declarativa da autoria, considerando autores os que executam imediatamente o facto, remetendo para a casuística a sua autonomização, por contraposição à cumplicidade, não aceitando, pois o conceito de autor, quer extensivo, quer restritivo (19).

O Código Penal de 1886 já procurou fazer uma distinção entre autoria e cumplicidade (causa essencial - causa dans - e causa não essencial - causa non dans) e não autonomizou o conceito de instigação, integrando-o na autoria moral e não dando relevo especial à co-autoria (20).

Dispunha o Código Penal de 1886 (aprovado pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886):

«Artigo 19.º

Os agentes dos crimes são autores, cúmplices, ou encobridores.

Artigo 20.º

São autores:

1.º Os que executam o crime, ou tomam parte directa na sua execução;

2.º Os que por violência física, ameaça, abuso de autoridade ou de poder constrangem outro a cometer o crime, seja ou não vencível o constrangimento;

3.º Os que por ajuste, dádiva, promessa, ordem, pedido, ou por qualquer meio fraudulento e directo determinaram outro a cometer o crime;

4.º Os que aconselharam ou instigaram outro a cometer o crime nos casos em que, sem esse conselho ou instigação, não tivesse sido cometido;

5.º Os que concorreram directamente para facilitar ou preparar a execução nos casos em que, sem esse concurso, não tivesse sido cometido o crime.

..........................................................................

Artigo 21.º

O autor, mandante ou instigador, é também considerado autor:

1.º Dos actos necessários para a perpetração do crime, ainda que não constituam actos de execução;

2.º Do excesso do executor na perpetração do crime, nos casos em que deveria tê-lo previsto como consequência provável do mandato ou instigação.» Segundo Eduardo Correia, «nos n.os 2.º, 3.º e 4.º do artigo 20.º descreve a nossa lei as várias figuras da autoria mediata, intelectual ou moral, como vasto conceito que abrange a chamada instigação» (21).

Mas, esta era apenas uma das posições doutrinais.

Como sintetizava Teresa Pizarro Beleza, encontramos na doutrina portuguesa uma grande flutuação de terminologia e de conceitos (22).

«Não se trata evidentemente de uma variação meramente terminológica. O uso de uma ou outra expressão 'autoria e cumplicidade' ou 'autoria e participação' para referir descritivamente as formas de participação criminosa lato sensu, tem normalmente que ver com a consideração de instigação como uma forma de autoria (artigo 20.º do Código Penal) - Cavaleiro de Ferreira, E. Correia e F. Dias - ou de participação (artigo 24.º do Código Penal) - generalidade da doutrina alemã federal, com base no §26 do STGB da RFA (23).

D.2) A formulação da autoria estava prevista no artigo 27.º do projecto de 1963, discutido em 7 de Fevereiro de 1964 na 12.ª sessão da Comissão Revisora do Código Penal.

O artigo 27.º era do seguinte teor:

«É punível como autor ou agentes de um crime quem tiver dado causa à sua realização soba as formas seguintes:

1.º Executando-o singular e imediatamente;

2.º Executando-o, imediatamente, por acordo e conjuntamente com outro ou outros;

3.º Determinando - quer singular, quer por acordo e conjuntamente com outro ou outros - directa e dolosamente alguém à prática de um facto ilícito, sempre que este, ao menos em começo de execução, se tenha praticado e não houvesse sido cometido sem aquela determinação;

4.º Determinando directa e dolosamente alguém à prática de um facto ilícito ou auxiliando-o dolosamente na sua execução sempre que, tendo embora sem aquela determinação ou auxílio a execução sido levada a cabo, ela o fosse, todavia, por modo, tempo, lugar ou em circunstâncias diferentes. Esta última forma de comparticipação constitui a cumplicidade.» O autor do projecto explicou que «se procurou seguir aquilo que poderia chamar-se a doutrina latina da comparticipação, em especial a francesa, por contraposição à alemã».

Considerava:

«Esta diferença de concepções avulta quando se considera o discutível conceito de 'instigação', tal como ele tem sido elaborado na literatura germânica, e que no projecto se resolveu não autonomizar em relação ao da autoria mediata. A razão de ser daquele conceito está, como é sabido, na ideia errada de que a liberdade de vontade seria necessariamente incompatível com a causalidade; uma vez ultrapassada esta ideia, nada impede, seguramente, que se prescinda daquele conceito, reduzindo todas as hipóteses de instigação à autoria mediata, moral ou intelectual.

Só que isto supõe, por outro lado, que se aceite - tal como no projecto se faz - e se parta de um conceito extensivo de autor e que continue a ver-se na ideia de causalidade a chave da distinção entre as diversas figuras de comparticipantes.» Considerava que o conceito de instigação era «produto de uma maléfica teorização de V. Buri - aliás rejeitada por muitos autores, de diversas nacionalidades, no Congresso de Atenas da AIDP de 1959», sendo sua convicção que «nesta parte mais valerá mantermo-nos fiéis ao sistema vigente, embora aceitando o alargamento que se contém no artigo 31.º».

Eduardo Correia, referindo-se ao artigo 27.º, dizia: «ele prevê as possíveis formas de realização do crime: a autoria singular no n.º 1.º; a co-autoria no n.º 2.º; no n.º 3.º, a autoria mediata ou moral, simples ou conjunta, no n.º 4.º a cumplicidade».

Iniciada a discussão, a unanimidade dos membros presentes pronunciou-se no sentido de se manter o sistema actual de estruturação da comparticipação e por conseguinte também o que o projecto sanciona, repudiando-se, como fora preconizado pelo autor do projecto, a autonomização do conceito de instigação (24).

Cavaleiro de Ferreira tinha um entendimento diferente, referindo que «o projecto primitivo não se referia em nenhum dos seus números à execução do facto 'por intermédio de outrem' ou autoria mediata». Nos restantes números do artigo 27.º incluía entre os autores o instigador (n.º 3 do artigo 27.º) e, no n.º 4, abrangia a cumplicidade.

Do texto do projecto revisto na 1.ª Comissão Revisora, como consta do projecto publicado em 1966, depois da 1.ª revisão ministerial, passou a constar: «Diz-se autor do crime aquele que o executa ou toma parte directa na sua execução [...]», sendo omissa a referência que o texto do Código Penal contém relativamente a execução quando explicita «por si mesmo ou por intermédio de outrem» (25).

Por isso, a 1.ª revisão ministerial, que somente tentou simplificar a redacção do preceito, se expressava assim no n.º 1 do seu artigo 32.º: «Diz-se autor do crime aquele que o executa ou toma parte directa na execução», suprimindo toda a referência ao acordo e conjunção na execução dos co-autores, que já estava resolvida na delimitação da comparticipação no artigo correspondente ao artigo 29.º do Código Penal, o qual não sofreu, desde o início, qualquer alteração significativa» (26).

E, considerava: «É notório que se encontravam omissos no projecto primitivo, como após a 1.ª revisão ministerial, casos de autoria moral abrangidos na regulamentação do Código Penal de 1886».

Esses casos omissos seriam em grande parte casos constantes dos n.os 2 e 3 do artigo 20.º, ou seja: os que por violência física, ameaça, abuso de autoridade ou de poder «constrangerem outro a cometer o crime», não sendo vencível o constrangimento; e ainda os que por «qualquer meio fraudulento e directo determinaram outro a cometer o crime» (27).

Acrescentava: novas revisões não documentadas do projecto do Código Penal deram conta da lacuna.

Partindo de outras bases, o mesmo sucedera na Alemanha e por isso fora criada pela doutrina a figura auxiliar de autor mediato, que constituía uma extensão da categoria de autor material ou executor do crime ao executar por intermédio de outrem.

D.3) O Código Penal de 1982 (aprovado pelo Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro) veio dispor:

«Artigo 26.º

Autoria

É punível como autor quem executa o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou toma parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determina outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.» Redacção esta que se manteve na revisão do Código Penal pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, e que continua a manter-se, depois da revisão operada pelo Decreto-Lei 59/2007 de 4 de Setembro.

Embora Cavaleiro de Ferreira reconhecesse que «a referência à autoria mediata, ou execução pelo autor singular por intermédio de outrem, sobreveio em ulteriores revisões do Código Pena», não lhe parecia, porém, «que possa considerar-se, no Código Penal de 1982, a execução por intermédio de outrem uma autoria mediata como alargamento da espécie da execução do crime» e considerava que «sendo assim, a sua inserção no texto do artigo 26.º está deslocada», sendo a expressão «'execução por intermédio de outrem' inadequada para significar o seu conteúdo.

Tendo-se utilizado um conceito adrede criado no condicionalismo da legislação germânica, obscureceu-se o entendimento da lei portuguesa», pois que «na verdade, aquele que executa o facto por intermédio de outrem não executa o facto - não é executor, nem imediato, nem mediato - e antes determina outrem a executá-lo.

A diferença com a instigação ou determinação de outrem ao crime constante da parte final do artigo 26.º está em que muitas vezes o executor pode não ser imputável ou não ter culpa».

Segundo Cavaleiro De Ferreira, «Definindo um grupo de autores morais como executores, ou autores mediatos, o Código Penal baseia na verdade a sua definição na referência a execução do crime: dentre os executores, uns executariam o facto por si mesmos e outros por intermédio de outrem, ou seja, haveria a execução do autor mediato». E assim se abre a via para seguir a opinião - similar à doutrina germânica - de que o autor mediato não é autor moral, mas executor do crime.

No entanto, a noção de execução é correspectiva da noção do executor e há por isso de ponderar que noção de execução nos fornece o próprio artigo 26.º A noção de execução serve, no artigo 26.º, igualmente para definir os co-autores materiais (os que tomam parte directa na execução) e é ainda usada no mesmo artigo 26.º ao condicionar a punição do instigador (autor moral) à «execução ou começo de execução» do facto por outrem, parecendo-lhe pois mais curial entender que a execução por intermédio de outrem é ainda execução por outrem, execução directa como na co-autoria, e que, adoptando a terminologia da doutrina e da legislação alemãs, o Código Penal apenas quis adoptar uma terminologia «mais moderna» sem alterar a noção de execução do crime.

Autores morais, segundo o mesmo professor são no Código os que determinam dolosamente outrem à prática do facto, a determinação corresponde aqui ao conselho ou instigação sem a qual o crime não teria sido cometido (na definição legal do Código de 1886) e aos casos em que a determinação de outrem respeita a executores imputáveis e culpados, bem como nos casos de determinação do executor inimputável ou não culpado (como autores mediatos).

Muitos outros casos de autoria moral previstos no Código Penal foram nele inseridos por uma revisão tardia do seu texto e dando-lhe a veste de autoria mediata.

Mas são na sua substância autores morais e não executores (28).

Para Figueiredo Dias, a execução do facto por intermédio de outrem integra a autoria mediata; estruturalmente pressupõe sempre um homem de trás ou da retaguarda e um homem da frente, executor, intermediário ou instrumento, que pode ser jurídico-penalmente irresponsável ou responsável.

A autoria mediata estaria, fazendo apelo à tese de Roxin quando o homem de trás domina a vontade do homem da frente, como sucede no domínio da vontade por coacção, por erro e nos quadros de aparelhos organizados de poder.

Esta acepção funda-se no que a doutrina chama de princípio de auto-responsabilidade, que excluía do âmbito da autoria mediata todas as situações em que fosse plenamente responsável, actuando com culpa dolosa, pois que a autoria mediata não existe quando: o instrumento ou homem da frente actua atipicamente (por não praticar uma acção); mas já se verifica quando: intervir, quanto a ele, uma causa de exclusão da tipicidade; seja a própria vítima; actuar sem dolo do tipo; actuar licitamente; actuar sem culpa dolosa; actuar sem consciência do ilícito; actuar em estado de necessidade desculpante; faltar ao homem da frente a qualificação ou intenção tipicamente requeridas.

A diferença entre autoria mediata e instigação estaria em que na autoria mediata o homem de trás não perde o domínio do facto, ao passo que na instigação a determinação de alguém, plenamente responsável pela prática do facto, faria perder ao homem de trás o domínio do facto, devendo então o homem da frente ser autor e o homem de trás simples participante.

Na doutrina do princípio da auto-responsabilidade, a plena responsabilidade do homem da frente não é concebível na autoria mediata. Se o homem da frente realiza o tipo de ilícito de forma não (totalmente, dolosamente) responsável, seria a autoria mediata. Se não se verifica esta condição básica, então a qualificação jurídica do homem de trás seria instigador, eventualmente co-autor ou cúmplice, não de autor mediato, não reconhecendo pois, face ao princípio da auto-responsabilidade, a figura de autor atrás do autor (29).

Segundo o mesmo distinto professor:

Em data recente, todavia, uma parte da doutrina alemã tem-se sentido na necessidade de atenuar progressivamente, a vários títulos e com diversos fundamentos, a condição básica referida e admitir em certos casos especiais a figura de «autor (mediato) atrás do autor», no sentido referido, é dizer, portanto, a compatibilidade entre um homem da frente que actua de forma plenamente responsável e um homem de trás ainda punível como autor mediato. Necessidade tornada premente - e que leva uma parte da doutrina a falar já neste preciso contexto de uma teoria limitada da auto-responsabilidade - pela circunstância de aquela doutrina continuar fiel ao dogma segundo o qual, de acordo com a teoria do domínio do facto, o instigador não seria nunca autor, mas mero participante; ficando deste modo sujeito aos princípios limitadores da punibilidade da participação (nomeadamente o princípio da acessoriedade) e da sua menor punição, situações estas verificáveis em casos em que a doutrina alemã apelida de erro sobre o sentido concreto da acção, em domínio da organização como os «aparelhos organizados de poder» e eventualmente no âmbito da criminalidade empresarial e do direito penal internacional (30).

Mais adiante acrescenta:

Na verdade, negar a autoria mediata significaria negar, do mesmo passo, a inteira autoria e reenviar as hipóteses para os quadros de uma mera (e eventual) participação. Solução esta que não só correrá o risco de incorrer em lacunas de punibilidade político-criminalmente inconvenientes, como conduzirá a um tratamento injustificável dos casos em questão, derivado de se punir como autor aquele a quem cabe a menor fatia de responsabilidade jurídico-penal e como mero participante aquele que no fundo foi o «autêntico centro pessoal» do ilícito praticado e a quem atinge, em princípio uma culpa mais pesada (31).

No entanto, no âmbito da teoria da auto-responsabilidade, parece integrar tal categoria no conceito de instigação, pois que segundo refere «não tem de ser como tal aceite entre nós face ao artigo 26.º, 4.ª alternativa, devendo pelo contrário ser decididamente contrariado, ao menos de lege lata».

E) A figura jurídica da autoria mediata apresenta-se de algum modo como herdeira in partibus da antiga categoria da autoria moral ou intelectual que abarcaria todas as situações em que o delito resultasse como consequência previsível da utilização, motivação ou determinação de outrem à prática de um delito e que, por isso, não autonomizava a figura de instigação, também englobada na autoria moral ou intelectual.

«Esta concepção, porém, entrou em crise no momento em que começou a colocar-se o 'domínio do facto' como categoria chave da autoria. A partir daquele tornava-se conveniente - ou assim o entendeu e entende a doutrina alemã praticamente unânime e fundada nos §§ 25 e 26 do CP respectivo - distinguir e autonomizar os conceitos de autoria mediata e instigação, na medida em que naquele, sendo o facto cometido por intermédio de outrem, o homem de trás não perderia o seu domínio do facto, enquanto na instigação a determinação de alguém, plenamente responsável, à prática de um facto faria perder ao homem de trás o domínio do facto, devendo então ser o homem da frente considerado autor e o homem de trás simples participante» (32).

A autoria mediata supõe a realização do facto ilícito típico através de outra pessoa, em que uma (homem da frente, executor, intermediário, ou instrumento) se encontra instrumentalizada em relação à outra (homem de trás).

O homem de trás, autor mediato, tem o domínio do facto porque consegue instrumentalizar outra pessoa, através de meios ou situações que directa ou indirectamente incidem sobre o autor mediato, sendo este quem determina a prática do facto e a qualidade lesiva do homem da frente.

Em termos legislativos e dogmáticos a autoria mediata está desvinculada da qualquer acessoriedade como forma de participação.

As questões que actualmente e desde sempre rodeiam a figura situam-se no âmbito sistemático e conceptual (33).

Pelo facto de o autor mediato não ser executor, relegava-o Binding para instigador, da mesma forma que esta solução era propugnada por Zimmerl para poder suprimir tal figura em virtude de não encaixar no conceito objectivo-formal de autor, e no mesmo sentido de pronunciava Sauer, considerando não dever configurar-se extensivamente a autoria, mas sim a participação, na qual devia ficar absorvida a autoria mediata.

Todavia, nas últimas décadas, a mesma vem assumindo grande expansão quer na ciência quer na jurisprudência.

Refere Hernández Plasencia que a concentração na autoria mediata da ideia da realização do facto através de outro partiu originariamente da necessidade de punir aqueles sujeitos que se socorriam de pessoas irresponsáveis para cometer um delito.

Surgiu como solução dogmática para responder às situações criminais em que o princípio da acessoriedade máxima tornava inviável a punição (34).

Mas, a estrutura da autoria mediata articula-se sobre a base de que o homem de trás somente com a sua intervenção não pode ou não quer realizar o facto ilícito típico e de qualquer forma essa intervenção exclusiva poderia ser insuficiente. Daí que recorra a uma pessoa instrumental, o instrumento, que actua debaixo do domínio daquele para que realize uma acção que possibilita a comissão delitiva.

Nem toda a instrumentalização constitui autoria mediata, mas somente aquela que outorgue o domínio do facto quando a pessoa instrumentalizada actua sob a influência directa ou indirecta do sujeito de trás, influência esta que provoca que o instrumento actue da forma querida pelo homem de trás e que actue dessa forma precisamente mediante a dependência funcional para com o homem de trás.

A dependência funcional do homem da frente em relação ao homem de trás integra-se no domínio do homem de trás sobre o homem da frente (35).

A autoria mediata não é um critério de imputação de comportamentos alheios, porque cada sujeito responde pelo seu próprio facto ilícito praticado e sua própria culpabilidade.

O fundamento material da actuação através de outro tem por alicerce uma instrumentalização fáctica e não imposta normativamente.

Os casos de autoria mediata acontecem quando o homem de trás tem o domínio do facto através do domínio que tem sobre as acções do homem da frente. E, isto só sucede quando domina a qualidade lesiva que enforma a conduta que o instrumento realiza, quer dizer, nos crimes dolosos, quando de forma consciente o homem de trás, conscientemente, configura directa ou indirectamente a actuação do homem da frente, dotando-a de uma qualidade que necessariamente produz a lesão do bem jurídico.

É a relação entre domínio e execução do facto que define os parâmetros da autoria.

Como salienta Hernandez Plasencia:

«Na realização de um delito concorrem sempre o domínio da execução e o domínio da decisão, embora os seus portadores possam ser sujeitos distintos. Ambos os domínios podem interconectar-se, pois precisamente o domínio da decisão é o que permite dominar um facto sem executá-lo. A autoria mediata apresenta-se quando o sujeito de trás tem o domínio do facto através do domínio da decisão de executá-lo.

Isto significa que um mesmo facto pode ter um autor directo, quando se domina a execução da acção típica realizada de própria mão, e um autor mediato, quando se tem o domínio da decisão da execução do tipo que realiza o autor directo (36).» No domínio fáctico-psicológico do facto, em matéria de comparticipação criminosa, dir-se-á, na esteira de Maurach, que as formas de autoria são de primeira determinação e, singularmente, o conteúdo da autoria mediata deve verificar-se através de um modo material e jurídico-político, e não em sentido formal negativo. Pelo contrário, a fundamentação da responsabilidade do partícipe tem um carácter secundário, pois a reacção do ordenamento jurídico frente à sua intervenção no facto depende da qualificação jurídica que receba por sua vez o facto qualificado pelo autor (princípio da acessoriedade) (37).

E) A autoria mediata e a instigação sempre viveram historicamente juntas: ambas pressupõem um homem de trás, que prevê a realização de um ilícito típico, e um homem da frente, que executa ou começa a execução, e em ambas há dolo do homem de trás, mas enquanto na autoria mediata o homem de trás serve-se do homem da frente para através deste realizar o facto, mantendo o interesse efectivo na sua concretização e não fica alheado do domínio do facto; na instigação, o facto ilícito típico, desde a sua concepção à sua realização, surge exclusivamente da acção do instigado ao ficar determinado pela acção do instigador, ficando o instigado no domínio exclusivo do facto, a que o instigador se torna alheio.

O critério de fundo estará em saber em que condições, nas circunstâncias concretas, o homem de trás perde o domínio do facto, quando fica atribuído em exclusividade ao homem da frente (38).

F) Contrariamente ao Código Penal alemão, que distingue entre autoria e participação, sendo autor aquele que executa o facto por si próprio e os demais participantes ou partícipes, o nosso Código Penal não dá uma definição jurídica de autores, limitando-se genericamente no artigo 26.º a dizer que «é punível como autor» quem executar o facto, por si mesmo (caso de autoria simples, directa ou imediata), «por intermédio de outrem» (caso da autoria mediata, indirecta ou intermediária), por acordo ou juntamente com outro ou outros (casos respectivamente de co-autoria ou autoria paralela), e quem dolosamente determinar outra pessoa à prática do facto (caso de instigação, mas, aqui, desde que haja execução ou começo de execução).

Na co-autoria, embora não seja necessária a execução do facto - ainda que de modo parcial - por cada um dos co-autores, exige-se, porém, uma decisão conjunta e acordada entre todos, dirigida à concretização do fim comum, na realização conjunta do facto.

O cúmplice não é abrangido pelo artigo 26.º mas pelo artigo 27.º, sendo punido com a pena fixada para o autor especialmente atenuada, pois que é punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso.

Como refere Figueiredo Dias:

«A 2.ª alternativa do artigo 26.º considera punível como autor 'quem executar o facto [...] por intermédio de outrem'. De um ponto de vista estrutural existe pois sempre nesta figura um 'homem de trás' ou 'da retaguarda!' - precisamente aquele por cuja autoria se pergunta - e um 'homem da frente', o executor, intermediário ou 'instrumento' [...]. O Princípio do domínio do facto, quando aplicado à autoria mediata, exige que todo o acontecimento (o 'facto', nos termos do artigo 26.º) seja obra do homem de trás, em especial, da sua vontade responsável, só nesta acepção se podendo qualificar o homem da frente como instrumento (39).

O artigo 26.º - 1, 4.ª alternativa, considera punível como autor 'ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução'. É a esta forma de comparticipação que, em geral, se dá o nome de instigação (40).» Como salientava Teresa Beleza:

«Instigação, como uma das formas de participação, quer referir fundamentalmente determinação dolosa de outrem à prática de um crime: Uma pessoa convence outra a praticar um crime (41).» Essa determinação dolosa significa que a decisão de construção e realização do crime é da autonomia plena da pessoa determinada.

O instigador limita-se a criar ou produzir nessa outra pessoa a própria decisão de praticar o crime, a qual age por sua exclusiva iniciativa decisória, no modo e tempo de actuação que entender por conveniente sem qualquer subordinação a terceiro, nomeadamente a quem o determinou (o instigador) a assumir convictamente esse propósito.

Instigador não é quem aconselha, incentiva, sugere ou reforça o propósito de outrem de cometer um crime ou que o induz à sua prática ajudando-o a vencer as resistências, físicas, intelectuais ou morais, ou mesmo afastando os últimos obstáculos que o separam do crime; todo aquele que com a sua conduta influencia a motivação do executor na direcção da realização típica não seria executor mas participante sob a forma de cumplicidade, que segundo Cavaleiro de Ferreira seria «equivalente a conselho ou instigação de outrem que não constitua autoria moral», ou seja, que não determine outrem à prática do facto (42).

A instigação não cria a actuação metodológica do instigado, mas consciencializa este, determinando-o a criar, desencadear e executar de motu próprio e sponte sua a acção criminosa sem sujeição ao domínio e vontade de alguém.

O instigado torna-se o único senhor do facto, por si decidido e assumido, por ter ficado convencido por alguém (o instigador) que o determinou a decidir, conceber e realizar o facto ilícito típico punível, ou seja, o crime.

Na instigação, o homem de trás perde o domínio do facto a partir do momento em que o instigado assumiu a intenção, vontade e decisão próprias de o realizar, enquanto na autoria mediata, o homem de trás continua ainda no domínio do facto até à realização do facto, pois que dele pode desistir, interrompê-lo ou impedi-lo, bem como substituir, a todo o tempo, o instrumento ou executor, o homem da frente.

Nas palavras de Figueiredo Dias:

«Instigador no sentido do artigo 26.º é unicamente quem produz ou cria de forma cabal - podia talvez dizer-se, pedindo ajuda à língua francesa: quem fabrica de toutes pièces"- no executor a decisão de atentar contra um certo bem jurídico-penal através da comissão de um concreto ilícito típico; se necessário inculcando-lhe a ideia, revelando-lhe a sua possibilidade, as suas vantagens ou o seu interesse, ou aproveitando a sua possibilidade, as suas vantagens ou o seu interesse, ou aproveitando a sua plena disponibilidade e acompanhando de perto e ao pormenor a tomada de decisão definitiva pelo executor (43).» O autor mediato conserva o domínio do facto ainda que seja o instrumento (o agente imediato) a executá-lo.

Por isso, a autoria mediata distingue-se da instigação, por nesta, o domínio do facto ser transferido totalmente para o instigado.

A autoria mediata também não se confunde com co-autoria porque esta depende sempre de uma decisão conjunta, ainda que a execução possa ser realizada apenas por um, na realização do plano comum, previamente combinado.

Nem pode falar-se em co-autoria sucessiva, porque a decisão já se encontra pré-determinada pelo autor no momento da adesão pelo executor.

O instrumento também não é um cúmplice porque executa o facto e, por isso, é agente imediato, realizando a vontade do autor a quem serviu (o autor mediato), integrante da decisão criminosa deste.

G) Face aos diversos entendimentos da natureza da autoria e da participação na perspectivação das teorias da comparticipação e da participação criminosa, não há identificação homogénea das categorias, nos diversos sistemas jurídicos.

É, por exemplo, o caso do nosso em que os instigadores são punidos como autores, enquanto que no Código Penal alemão os instigadores alinham-se ao lado dos cúmplices como participantes.

A lei penal espanhola por sua vez faz distinção entre autores, inductores, cooperadores necessários e cúmplices (44).

G.1) Na sociedade actual, a autoria mediata vem-se afirmando em situações criminais novas surgidas, diminuindo ou esbatendo, na sua evolução dogmática, a restrição formal do seu campo doutrinal de aplicação, ao passo que a instigação se vem clarificando e restringindo a um campo mais incisivo de delimitação, separando-se as águas do lago da autoria moral ou intelectual onde ambas confluíam.

Como se explicitou no acórdão recorrido:

«Este alargamento conceitual de autoria, como tal há muito recepcionado no nosso CP, tem a sua explicação no desenvolvimento contemporâneo da sociedade humana, sendo que as inerentes actividades multifacetadas que se desenvolveram no seu seio vieram determinar um olhar mais consentâneo com os problemas gerados. Neste contexto, é conhecida a trama em que se desdobrou a criminalidade, nomeadamente a organizada e a transnacional. Neste mesmo contexto e resultante da especificidade da vivência humana se impuseram de uma forma algo estruturada formas de actuações anti-sociais que até há poucos anos não passavam de ocorrências esporádicas.» O artigo 26.º do Código Penal português é de algum modo prova disso, quando faz já na sua semântica literal uma diferenciação de significado funcional, embora, evitando críticas normativas de punibilidade, submeta qualquer das categorias à punição «como autor».

Como refere Maria da Conceição Valdágua:

«O artigo 26.º do Código Penal parece tratar indiferenciadamente o autor mediato e o instigador, ao prescrever que quer um, quer outro, 'é punível como autor', diversamente do que acontece com as disposições legais correspondentes do StGB (§§ 25 e 26), segundo os quais o autor mediato é punido 'como autor' ('als Täter'). Mas a aparência de uniformidade de tratamento das duas figuras no direito penal português é enganadora, pois no artigo 26.º do Código Penal a instigação e a autoria mediata estão estruturadas em termos diversos, segundo esse preceito, a punição de quem 'determinar outra pessoa à prática do facto' depende de existir 'execução ou começo de execução', mas para a punição de quem executar o facto [...] por intermédio de outrem', não se exige esse requisito, nem qualquer outro equivalente, donde não ser exigível para a punição da autoria mediata qualquer tipo de acessoriedade, nem quantitativa, nem qualitativa, mesmo no grau mínimo (45).» G.2) Por outro lado, mesmo para quem adira a uma doutrina formalmente limitativa da autoria mediata, em que o «instrumento» não podia ser plenamente responsável, em relação ao homem de trás, por a vontade deste dominar fortemente a vontade daquele, há que ter em conta, porém, como refere Maria da Conceição Valdágua, em crítica a Roxin, que este não considera as situações inversas à coacção, como são os casos de aliciamento em que o «homem de trás» persuade o aliciado a praticar o facto através de uma contrapartida (consistente numa prestação, de coisa ou de facto) pretendida pelo executor, em que a vontade deste é mais eficazmente dominada, em que o agente mediato é nitidamente figura central, e não mera figura secundária, do acontecimento criminoso, em que tem de se considerar o «homem de trás» autor mediato e não mero participante, sob pena de flagrante incoerência com o mencionado ponto de partida metodológico segundo o qual o autor é a «figura central» do acontecimento criminoso (46).

Na verdade, em termos metodológicos, e com referência à teoria do domínio do facto, não pode esquecer-se, como acentua Figueiredo Dias, que «autor é, segundo esta concepção e de forma sintética e conclusiva, quem domina o facto, quem dele é 'senhor', quem toma a execução 'nas suas próprias mãos' de tal modo que dele depende decisivamente o se e o como da realização típica - distinguindo-se aqui por vezes um domínio positivo do facto (a capacidade de o fazer prosseguir até à consumação) e um domínio negativo (a capacidade de o fazer gorar) -; nesta precisa acepção se podendo afirmar que o autor é a figura central do acontecimento. Assim se revela e concretiza a procurada síntese, que faz surgir o facto como unidade de sentido objectiva-subjectiva: ele aparece numa sua vertente como obra de uma vontade que dirige o acontecimento, noutra vertente como fruto de uma contribuição para o acontecimento dotada de um determinado peso e significado objectivo» (47).

G.3) Ora, o aliciamento pode revestir as modalidades de ajuste, dádiva e promessa, sendo que no ajuste, também conhecido por mandato criminoso, tem como características essenciais «a formação de um consenso entre o homem de trás e o executor, bem como o conhecimento, pelo homem de trás, da existência desse consenso, a respeito das seguintes matérias:

a) Realização e conteúdo de uma determinada prestação, de coisa ou de facto, que o homem de trás proporcionará ao executor (embora tal prestação possa ser realizada por terceiro, por incumbência do homem de trás);

b) Cometimento pelo executor de um concreto ilícito típico planeado e liderado pelo 'homem de trás';

c) Estabelecimento de uma relação sinalagmática entre a realização daquela prestação pelo 'homem de trás' e o cometimento deste ilícito típico pelo autor imediato.

Contudo não é necessário qualquer contacto pessoal entre o 'homem de trás' e o executor directo, que podem até não se conhecer» (48).

A subordinação voluntária do executor à decisão do agente mediato confere a este o domínio do facto, ou se quisermos, o exclusivo domínio do facto, pois embora o executor possa ou não efectivar a resolução criminosa, sempre o «homem da frente» considera o homem de trás senhor do facto, pelo «poder de planear e dirigir, em larga medida, o processo causal», e sem prejuízo de serem ambos, quer o agente mediato, quer o agente imediato, plenamente responsáveis.

Situação diferente existiria no âmbito de aparelhos organizados de poder ou de organização de domínio, de estrutura hierárquica rígida (por exemplo, no caso de ordem de conteúdo criminoso ou no caso de pacto criminoso), já que não depende exclusivamente da vontade do executor manter ou não essa resolução criminosa, nomeadamente no momento decisivo do início da execução (49).

Mas a relação de subordinação vinculada nos aparelhos organizados de poder, como nas associações criminosas, não exclui que idêntico tipo de relação, mesmo voluntária, possa existir a nível das relações individuais ou particulares, apesar de não constituírem aparelhos organizados de poder.

O homem de trás pode sempre desistir do plano criminoso ou protelá-lo, ou extinguir a acção do executor, pois que pode extinguir ou interromper a acção do homem da frente, bem como proceder à sua substituição.

G.4) A tese tradicional da autoria mediata, ao defender que o «instrumento» não pode ser plenamente responsável, em nada colide com uma situação de imputabilidade, sem erro ou coacção.

Quando se diz que o «instrumento» não pode ser plenamente responsável, deve ser obviamente entendido, na sua dimensão voluntarista de imputação fáctica, uma vez que não agindo o ser humano por impulsos mecânicos, qual mero autómato, afora os casos de inimputabilidade, erro, coacção ou de acto reflexo, é sempre uma pessoa imputável, que age de forma sensível e consciente, perante um fim compreendido na realização de determinado evento, pois que se não o entendesse, não poderia assumi-lo nem poderia conscientemente vir a executá-lo.

Nesta ordem de ideias é de acolher a expressão significativa de Teresa Beleza quando refere:

«Nos casos de autoria mediata, o facto é executado através de outrem no sentido de que este outrem, que executa materialmente os actos, não é por eles totalmente responsável, ou pelo menos não tem deles um pleno domínio.

Quem tem esse domínio é, exactamente, o chamado autor mediato - daí que ele seja um verdadeiro autor (50).» H) Em síntese como salienta Germano Marques da Silva:

O Código apenas alude a autores.

Autores materiais são os que executam, realizam no todo ou em parte o facto típico, por si só.

Autores materiais são ainda, na vertente de co-autoria material, quem toma parte directa na execução, por acordo ou conjuntamente com outros ou outros, resultando a cooperação na execução do crime, de acordo ou não, mas ainda aqui tenham consciência de cooperarem na acção comum.

Autores materiais são os que causam a realização de um crime utilizando ou fazendo utilizar outrem por si e distinguem-se entre instigadores e autores mediatos.

Os instigadores são quem dolosamente determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.

Autores mediatos são quem executa o facto por intermédio de outrem.

O Código Penal de 1886 caracterizava os autores morais como sendo aqueles que constrangiam, determinavam, aconselhavam ou instigavam outro a cometer o crime.

O Código vigente refere-se a quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do crime, o que corresponde em parte à previsão do artigo 20.º, n.os 3 e 4, do Código Penal de 1886.

Parece dever entender-se que a autoria mediata corresponde aos demais casos de autoria moral previstos no artigo 20.º do Código de 1886, nomeadamente à previsão do seu n.º 3.

Num e noutro caso, de instigação e de autoria mediata, há sempre execução do crime por intermédio de outrem e por isso a autoria moral é sempre mediata.

A lei não dá qualquer indicação quanto aos meios que o autor mediato pode usar para determinar o autor imediato (executor material), à execução do crime, podendo, por isso ser qualquer meio, desde que esse meio tenha potencialidade para causar a actuação do autor imediato (51).

I) O artigo 26.º do Código Penal ao punir identicamente quer a autoria mediata, quer a instigação, uma vez que ambas são puníveis como autor, não esbate, apesar da diferenciação estruturada entre uma e outra categoria jurídica, as implicações relevantes que se reflectem no âmbito da tentativa.

Desde logo, a própria instigação para ser punida exige a prática do facto, ou o seu início, ou, como refere a lei: «desde que haja execução ou começo de execução».

Daqui resulta uma situação assaz relevante, que é a de, em caso de instigação, se não tiver havido execução ou começo de execução, o instigador não é punido, contrariamente ao defendido por Eduardo Correia no artigo 31.º do projecto da parte geral do Código Penal.

Por outro lado, «não sendo a instigação à instigação, ou instigação em cadeia, punível no nosso direito, se o 'homem de trás' for considerado instigador, ele ficará impune sempre que, para a realização do seu plano criminoso, determinar alguém a contactar outra(s) pessoa(s) para a execução daquele plano. Se pelo contrário, o 'homem de trás' for considerado autor mediato, nada obstará à sua punição como autor do crime».

Se for caso de autoria mediata, tal desiderato exigido para a instigação deixa de ser obrigatório para o autor mediato, podendo ocorrer a tentativa deste «a partir de um momento anterior àquele em que o autor imediato começa a praticar actos de execução do tipo legal» (52).

I.1) Pode discutir-se se esse momento temporal é aquele em que o autor mediato larga das mãos o curso dos acontecimentos (Hezzberg); Jesneck/Weigend; Lackner;

Roxin; Rudolphi), ou em que o autor mediato inicia a sua actuação sobre o agente imediato (o executor) (Baumannn, Baumann/Weber/Mitsch), ou termina essa actuação sobre o autor imediato (Bockelmann, Merkel, Schilling), ou ainda se esse momento surge com a verificação do perigo imediato para o bem jurídico (Otto, Schönke/Schröder/Eser) (53).

Segundo se depreende da exposição de Maria da Conceiçâo Valdágua, a doutrina alemã apontava duas soluções, cujas designações remontam a Schilling, e que constituíam a solução global e a solução individual.

Para a solução individual, é com a actuação do autor mediato sobre o «instrumento» (executor ou intermediário) que se inicia a tentativa do autor mediato, enquanto que, para a solução global, só a partir do momento em que o agente imediato (o instrumento) inicia a execução é que começa a tentativa do autor mediato, crendo a mesma autora que a proposição do artigo 26.º, por si só, não torna inviável a defesa quer da solução individual, quer da solução global, havendo que conjugar o disposto no artigo 26.º com o disposto no artigo 22.º para a tentativa (54).

No âmbito da dogmática legal, é, pois, nos pressupostos da figura jurídica da tentativa que a questão encontra solução.

I.2) O fundamento e os limites da punibilidade da tentativa tornaram-se, nos dois últimos séculos, das questões mais controvertidas na dogmática jurídico-penal.

Enquanto que para as teorias objectivas o fundamento da punibilidade é o perigo próximo da consumação da realização típica, já para as teorias subjectivas é a vontade delituosa expressa na violação da norma.

Para as teorias formais objectivas, a tentativa supõe pelo menos a prática de «uma parte daqueles actos que caem já na alçada de um tipo de ilícito e são portanto abrangidos pelo teor literal da descrição típica», ou na esteira de Vogler «existe um acto de execução sempre que o agente pratica uma acção que integra um elemento constitutivo de um tipo» (55).

Já para as teorias materiais objectivas, decisiva é a fórmula de Frank, segundo a qual devem considerar-se como de execução os actos que «em virtude de uma pertinência necessária à acção típica, aparecem, a uma consideração natural, como suas partes componentes», que ao combinar-se com a ideia das teorias subjectivas, recorrendo ao plano do agente, veio a ligar-se «à ideia de que um acto deverá considerar-se já como começo de execução se ele acarretar um perigo imediato (ou iminente, ou ao menos próximo) para o bem jurídico protegido».

Segundo esclarece Figueiredo Dias, se substituirmos a consideração natural pela de normalidade social e que o perigo para o bem jurídico seja um perigo típico, que concretamente se refira ao tipo ou à realização típica, encontramos um critério delimitativo próximo do pensamento da adequação típica para se determinar a tipicidade do acto de execução, revelando assim o caminho correcto da distinção (56).

Para as teorias subjectivas a referência típica deveria encontrar-se no plano concreto de realização do agente.

A solução metodológica adequada na destrinça entre actos preparatórios e actos de execução, que resulta da ponderação das teorias referidas, está numa concretização fundamentalmente objectiva, em que perante a necessária e alicerçante decisão de cometer o facto «a caracterização do acto só pode ser objectiva - embora na base do "plano do agente» e que na expressão de Jescheck/Weigend constituiria um teoria objectiva individual (57).

I.3) Uma outra orientação integrada pela teoria da impressão aditou a ideia da dignidade penal do facto, fundando a punibilidade da tentativa na «vontade exteriormente manifestada em contrário da norma de comportamento», embora só se afirmando se se revelar como uma intervenção significativa no ordenamento jurídico;

mais concretamente, se e quando ela for - segundo um juízo necessariamente ex ante, de prognose póstuma - adequada a pôr em causa a confiança da comunidade na vigência daquele ordenamento e, deste modo, a frustrar as suas expectativas de segurança e de paz jurídicas (58).

Conforme Roxin:

«Uma decisão pelo facto existe logo que os motivos que empurram para o cometimento do delito alcançaram predominância sobre as representações inibidoras, mesmo também quando possam restar ainda algumas dúvidas (59).» Essa decisão exterioriza-se, pois, em actos, para se verificar actos de execução, os quais por sua vez, colocam o problema do momento em que esta se inicia.

Na verdade, a simples deliberação de cometer o crime sempre foi declarada impunível (cogitationis poenam nemo patitur) (60).

Nesta ordem de ideias, incidindo sobre o iter criminis, se compreende o conceito de acção adequada integrante da norma geral da comissão por acção (e omissão) constante do artigo 10.º do nosso Código Penal.

Essa adequação é a da produção do resultado (ou da sua evitabilidade no caso dos crimes por omissão).

Hoje entende-se que a teoria da acção deve ceder a prevalência à teoria da realização do facto típico.

A função do direito penal - de protecção subsidiária de bens jurídico-penais - e a justificação da intervenção penal - a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada - juntam-se na determinação funcional da categoria do ilícito: a esta categoria, assim materialmente estruturada, pertence, por isso, prioridade teleológica e funcional sobre a categoria do tipo, a ela advém o primado na construção teleológico-funcional do crime. Com a categoria do ilícito se quer traduzir o específico sentido de desvalor jurídico-penal que atinge um concreto comportamento humano numa concreta situação, atentas portanto todas as condições reais de que ele se reveste ou em que tem lugar. E só a partir daqui ganha o tipo o seu verdadeiro significado (61).

Por outro lado, embora a essência da antijuridicidade se revela decisiva na determinação dos elementos do tipo, há que considerar para além do desvalor do resultado do comportamento os elementos configuradores do desvalor da acção, através do qual esta surja como obra de uma pessoa aqui, neste sentido, ligada a um «centro ético de imputação». Para tanto não é indispensável fazer apelo ao dolo ou, sequer à categoria da finalidade. O desvalor da acção fica constituído logo que a realização típica era objectivamente dominável ou evitável, ou que o agente violou um dever objectivo de cuidado, ou que ultrapassou os limites do risco permitido - o que tudo conforma um denominador comum tanto das acções negligentes, como das dolosas (62).

I.4) Relativamente à questão do começo da execução Roxin debruçou-se sobre o § 22 do StGB que assentava o começo de execução quando o autor «põe em movimento a realização do tipo, na base da representação do facto».

Mas isto supunha a delimitação entre actos preparatórios e tentativa.

Para a delimitação entre actos preparatórios e tentativa, há várias fórmulas desenvolvidas pela jurisprudência e pela doutrina que não se encontram ultrapassadas, afirmando Roxin, citando Olocelle, Olgramm e Rudolphi, que «não é certamente errado aceitar, com a ajuda de uma modificação subjectiva da chamada teoria material objectiva, um pôr em movimento a execução 'quando a vontade criminosa intervém claramente numa acção que, segundo o plano global do autor, conduz imediatamente à colocação em perigo do objecto protegido pelo tipo atingido', mas, no entanto aí só é, no fundo, trocado o conceito de pôr em movimento pelo de 'colocação em perigo', cuja força expressiva não é superior.

Muito aplicada é ainda a fórmula de Frank, igualmente atribuível à teoria material-objectiva, em consequência da qual existe um começo de execução em todas as actividades que, em virtude da sua necessária conexão com a acção típica surjam como parte integrante desta segundo uma perspectiva natural».

Outra ainda, partindo das intenções do autor, no entendimento de Bockelman, traduzir-se-ia no momento em que se tomam «as últimas decisões adequadas sobre o se do facto».

Considera Roxin que só devem exprimir uma tentativa aquelas acções que «imediatamente precedem» a acção típica que, portanto, o legislador aproximou, seguramente, dos limites da acção típica.

Por isso vem gozando de crescente credibilidade aquela precisão da fórmula de Frank que se refere às últimas partes dos actos antes da acção típica.

Rudolphi formulou-a assim:

«Comete tentativa quem realiza uma acção que -porque não existem segundo os planos da acção individuais nenhumas outras peças factuais entre ela e a acção propriamente típica - surge para uma consideração natural já como sua parte integrante.» Porém assinala que:

«Todas as fórmulas encontradas até aqui dão somente linhas de orientação. Resulta da natureza das coisas o não poder encontrar-se uma delimitação fina e milimetricamente precisa, pois a realidade tem conteúdos demasiado diversos para se poder traçar uma linha de separação sobre um mesmo ponto averiguado anteriormente (63).» I.5) O entendimento da distinção entre actos preparatórios e actos de execução não tem tratamento similar nas diferentes legislações penais.

Por exemplo, a dogmática penal portuguesa não pune os actos preparatórios; mas a dogmática penal espanhola inclui em actos preparatórios puníveis as figuras jurídicas que considera de conspiração (conspiración) no artigo 17, 1.º, do CP - quando duas ou mais pessoas se concertam para a execução de um delito e resolvem executá-lo;

proposição (proposición) - artigo 17, 2.º, do CP - quando quem decide cometer um crime convida outra ou outras pessoas a executá-lo; provocação (provocación) - artigo 18, 1.º, do CP - quando directamente se convida por meio da imprensa, da radiodifusão ou qualquer outro meio de eficácia semelhante, que facilite a publicidade, ou na presença de uma concorrência de pessoas, a perpetração de um delito, ou ainda, apologia, como forma ou modalidade de provocação - artigo 18, 2.º, do CP - a exposição diante de um conjunto de pessoas e por qualquer meio de difusão de ideias ou doutrinas que conduzam ao crime ou enalteçam o seu autor.

Se a provocação for seguida da realização do facto típico por parte de alguma pessoa, o «provocador» é punido como instigador (inductor) - artigo 18, 2.º (64).

I.6) No projecto de 1963 do Código Penal, de harmonia com o artigo 20.º, os actos preparatórios não eram puníveis, salvo disposição da lei.

No artigo 21.º afirmava-se a existência de tentativa quando o agente pratica actos de execução de um crime que, todavia, não vem a consumar-se.

O artigo 22.º do mesmo projecto dispunha que são actos de execução aqueles que:

1.º Preenchem um elemento constitutivo de um tipo legal de crime;

2.º São idóneos a causar o resultado nele previsto;

3.º Segundo a experiência comum e salvo um caso imprevisível, são de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos do tipo indicado nos n.os 1.º e 2.º deste artigo.

O projecto, segundo o seu autor, Eduardo Correia, não tomava qualquer posição contra a doutrina finalista, ou qualquer outra, deixando o terreno livre para qualquer delas, sendo certo que permitia que a tentativa se construísse subjectivamente sobre a intenção ou objectivamente como crime de perigo concreto.

Na discussão da Comissão Revisora, o autor do projecto reconheceu razão ao Prof.

Gomes da Silva «quando diz que o acto, na sua objectividade externa, não tem qualquer sentido, mas para que seja possível conferir-lho não é preciso construir a tentativa à maneira finalista: bastará que se adira, como aliás pessoalmente se adere, à ideia de que se tem de fazer recurso ao plano do agente para que se diagnostique um acto como acto de execução» (65).

O artigo 22.º do projecto consagrava uma forma objectiva de diferenciação entre actos preparatórios e actos de execução.

No n.º 1 revelava-se a actividade típica como acto de execução, com especial incidência nos crimes de execução vinculada e no n.º 2 consagrava-se a tese da perigosidade do acto, «como reveladora também do seu carácter executivo - o que impõe o recurso ao plano do agente, ao menos considerado na sua significação objectiva».

Face à insuficiência da possibilidade do acto não ser de per se idóneo, mas apenas o seria conexionado com factualidade posterior que provavelmente aconteceria, considerou-se que a fórmula de Frank de que a jurisprudência alemã se socorria para resolver o problema, «todavia é imprecisa e eminentemente relativa, quando faz apelo às partes integrantes de uma conduta unitária, do ponto de vista naturalístico».

Por isso, o critério proposto no n.º 3 visava «a melhorar aquela fórmula, expurgando dela o recurso a uma unidade naturalística que ninguém sabe bem o que seja e substituindo-o pelo apelo à experiência comum que, se é ainda uma cláusula lata, não o é tanto como o da referida unidade» (66).

I.7) O artigo 21.º do Código Penal vigente, determina:

«Os actos preparatórios não são puníveis, salvo disposição em contrário.» Porém, o artigo 22.º, ao definir a tentativa, estabelece:

«1 - Há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se.

2 - São actos de execução:

a) Os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime;

b) Os que forem idóneos a produzir o resultado típico; ou c) Os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores.» O n.º 2 do artigo 22.º do CP acolhe as teorias formais objectivas no sentido de que são actos de execução todos os que preenchem um elemento típico e não somente os que do ponto de vista formal preenchem a ilicitude, o que implica na contextualização integral da realização típica o eventual recurso ao plano do agente para se visualizar a natureza do acto praticado.

A alínea b) corresponde à idoneidade para integral realização do tipo, de «actos que não penetraram ainda no âmbito de protecção típica da norma incriminatória».

Relativamente à alínea c) do artigo 22.º, integra elementos da doutrina da adequação, apelando à «experiência comum», «às circunstâncias imprevisíveis», à «natureza de fazer esperar», deve ser concretizada mediante os critérios da conexão de perigo que «existe sempre que entre o último acto parcial questionado e a realização típica se verifica, segundo o lapso temporal mas também de acordo com o sentido, uma relação de iminente aplicação», e de conexão típica que se verifica «quando o acto já penetra no âmbito de protecção do tipo de crime» (67).

I.8) Como refere Figueiredo Dias, relativamente ao autor mediato, é indiscutível que a questão do início da tentativa só pode colocar-se a partir do momento em que ele começa a exercer a sua influência sobre o instrumento (68).

Após aludir às diversas soluções - solução puramente individual, «a tentativa do facto cometido em autoria mediata começaria logo com o inicio da conduta externa de influência sobre o instrumento»; a solução individual modificada «a tentativa iniciar-se-ia com o final da actuação do autor mediato sobre o instrumento», à teoria da solução conjunta ou global «a tentativa do facto em autoria mediata só deveria considerar-se iniciada com a intervenção do instrumento, e, por conseguinte quando este inicia a execução» - escreve o mesmo professor, «Se a autoria mediata é, nos termos do artigo 26.º execução de facto por intermédio de outrem, o ponto de partida para a resolução do problema de agora deve residir na afirmação de Frank [...] segundo a normalidade do desenvolvimento das hipóteses de autoria mediata, o princípio de Frank é válido para a generalidade dos casos; sem no entanto dever excluir-se que, em casos excepcionais devidamente comprovados - nomeadamente, mas não só, nos casos em que o instrumento seja a própria vítima - , a actuação do autor mediato possa compreender já a prática de actos de execução, o que, no nosso entendimento do disposto no artigo 22.º/c), sucederá quando no fim da actuação do agente mediato existir já uma conexão de perigo típica para o bem jurídico ameaçado:

em tal caso [...] será nesse momento que deve considerar-se iniciada a tentativa do autor mediato».

Remata o mesmo professor:

«Se tudo ponderado, assim se abandona o seio da chamada 'solução conjunta' para sufragar uma solução individual modificada, constitui, em definitivo, questão puramente conceitual classificatória de interesse diminuto» (69).

I.9) Como salienta Germano Marques da Silva, «no plano normativo, a tentativa constitui um título autónomo de crime, caracterizado por um perfil ofensivo que lhe é próprio (perigo), embora conservando o mesmo nomen juris do crime consumado a que se refere e de que constitui execução incompleta» (70).

Na verdade, como se aludiu, para haver tentativa, como dispõe o artigo 22.º, é necessário que sejam praticados actos de execução de um crime e os actos de execução ou preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou são idóneos a produzir o resultado típico ou são de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies anteriores (artigo 22.º, n.º 2).

Quando os actos praticados pelo agente não são actos de execução diz-se que a tentativa é inidónea e quando falta o objecto diz-se que a tentativa é impossível (71).

Com efeito, o artigo 23.º, n.º 3, do CP estabelece que a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência de objecto essencial à consumação do crime.

É um juízo de probabilidade que define a aptidão da idoneidade do meio empregado pelo agente.

Para que se apresente a inaptidão como não manifesta, é suficiente que perante os padrões normais de experiência de uma determinada comunidade aquela conduta desencadeie a dúvida razoável e pertinente sobre se o fim ilícito visado não viria a ser atingido.

A inexistência do objecto essencial à consumação do crime é a ausência ou carência de bem jurídico (72).

A essência da punibilidade da tentativa impossível está «na avaliação da perigosidade referida ao bem jurídico, sendo certo que nesta hipótese, em boas contas, o bem jurídico não existe, o que há é uma aparência de bem jurídico e neste sentido pareceria que a tentativa impossível quando não fosse manifesta a inexistência do objecto também não deveria ser punível, pois que falta o bem jurídico. Todavia, tem de se fazer apelo, neste ponto, a uma ideia de normalidade - segundo as aparências - que se baseia num juízo ex ante de prognose póstuma. É que, entende-se, dado o circunstancialismo em que o agente actuou o desvalor da acção merece ser punido não obstante não existir o bem jurídico.

E merece-o porque denotou perigosidade em relação a um bem jurídico ainda que este assuma a forma de mera aparência. Mas mesmo que assim se não entenda é correcto dizer-se que o direito penal ao visar primacialmente a protecção de bens jurídicos precipitados no tipo legal não pode esquecer, do mesmo passo, que a norma incriminadora - na sua dimensão de determinação - também proíbe as condutas que levam à violação ou perigo de violação daqueles bens jurídicos (73).

O meio ou é inidóneo ou carece de objecto e, por isso, a tentativa é inidónea ou o crime é impossível, mas se não forem manifestas a inidoneidade do meio ou a carência do objecto o agente será punido, conforme dispõe o n.º 3 do artigo 23.º (74) O n.º 3 do artigo 23.º do Código Penal condiciona a não punibilidade da tentativa impossível a que a inidoneidade do meio empregado ou a inexistência do objecto sejam manifestas. Se, pelo menos aparentemente, se verifica um perigo objectivo, entendem muitos que se justifica a punição, pela intranquilidade que o acto cria. É este perigo objectivo - embora aparente - que pode causar alarme e intranquilidade social e que assim, está apto a fundamentar a punição do agente (75).

J) Na doutrina alemã a tentativa pode ser inacabada quando o autor ainda não fez tudo o que segundo o seu plano de acção considera necessário à consumação do crime;

caso contrário será tentativa acabada.

Entre nós fala-se de tentativa frustrada ou frustração, para designar a tentativa inacabada, mas tais figuras não assumem relevo legal (76).

Interesse já há em saber qual o critério decisivo para se saber se acabou a tentativa, «se o ponto de vista subjectivo, se o ponto de vista objectivo; e, neste último caso, se decisiva é a realidade do acontecimento ou antes a sua normalidade, segundo as regras da experiência e do id quod plerumque accidit».

Poderia haver uma tentativa acabada perante o «instrumento» e inacabada perante o resultado.

Mas a fórmula decisiva será a da conexão de perigo típica, tendo evidentemente em conta (como é sempre indispensável) as concretas circunstâncias do caso de tentativa acabada (77).

O problema tem interesse a nível da desistência, pois que se o agente criou todas as condições de realização integral do tipo (tentativa acabada), somente uma sua intervenção activa poderá impedir a realização em curso, o que implica o recurso às representações do agente sobre o grau de alcance da realização do facto a fim de se poder concluir se se explicitou todo o seu plano para a realização integral do facto, confiando na sua verificação (78).

L) O arguido encomendou a morte de uma pessoa a outrem, que definiu o montante monetário a receber do mandante pela prestação do facto, que o mandante aceitou, vindo a pagar-lhe parte daquele valor e dando-lhe indicações relacionadas com a prática do facto, devendo a restante parte da quantia ser paga depois da execução do mesmo, tendo ficado convicto e na expectativa de que o facto seria praticado pelo executor.

O arguido ao delinear o plano criminoso contactando outrem para o realizar, ao entregar-lhe parte do montante estabelecido pelo pagamento do serviço letal e dando indicações relacionadas com a prática do facto tinha plena intenção de causar a morte da pessoa visada, por intermédio de outrem, agindo de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é reprovável e censurável.

Só não tendo conseguido a concretização do facto por circunstâncias completamente alheias à sua própria vontade, pois que o executor não veio a praticar o facto, nem praticou qualquer acto de execução, outrossim, tendo denunciado a situação à entidade policial, que veio a deter o arguido.

A pessoa contactada para providenciar pela concretização do facto, no comportamento assumido para com o arguido, sempre objectivamente revelou efectiva adesão à proposta do arguido alimentando a convicção e confiança deste na relação sinalagmática assim estabelecida.

Na verdade, da aceitação da sinalagma pelo aliciado (decorre que, se o «homem de trás» mudar de ideias e comunicar ao aliciado que não pagará a prestação inicialmente proposta, ou que, afinal, já não pretende a execução do facto, o aliciado não cometerá o facto punível. Ora, quem tem nas mãos a ultima decisão sobre a execução do facto possui, do mesmo passo, aquele poder de supradeterminação do processo causal, conducente à realização do tipo legal de crime, que é a quinta essência do domínio do facto. Quanto ao aliciado verifica-se que ele, nas circunstâncias referidas, aceita a tarefa de executor do plano criminoso do agente mediato e subordina-se inteiramente à vontade deste. Daí que deva entender-se que o domínio do facto, sob a forma de domínio da vontade, cabe ao agente mediato, sem embargo de também o executor ter o domínio do facto, sob forma de domínio da acção). (Cf. Maria da Conceição Valdágua - ibidem - p. 937.) Até ao momento de ser detido, o arguido deteve o domínio do facto, aguardando que pela subordinação voluntária à sua vontade, o «executor» o concretizasse.

Aliás, sempre poderia substituir o «executor», nomeadamente perante a posterior recusa do anteriormente seleccionado que motivou a actuação policial.

«Executor» pode não ser necessariamente o executante físico do facto; tanto pode abranger o executante físico - executor, em sentido fáctico - como abranger o intermediário que transmite ao executante físico os termos ou condições da vontade do autor mediato, que tem o domínio do facto, para a execução do mesmo facto.

O comportamento do arguido, assumido na encomenda do crime, na idoneidade e confiança reconhecidas ao contacto estabelecido para a concretização daquele, o fornecimento de detalhes relacionados com a prática do mesmo e o ajuste de dinheiro para pagar o serviço letal encomendado, ocorreu com vista a conduzir ao efeito ilícito por ele pretendido, de causar a morte de alguém, por intermédio de outrem, pelo que é de molde a integrar a previsão do artigo 26.º do CP, na modalidade de autoria mediata na forma tentada prevista no artigo 22.º, n.º 2, alínea c), do mesmo diploma.

Na verdade, a tentativa não era inidónea, face ao desconhecimento do mandante da inexistência de propósito do executor em cometer o crime, sendo que podia sempre substituir o executor.

O crime não era impossível, por o mesmo ter objecto.

O arguido não desistiu de prosseguir na execução do crime, nem desenvolveu esforços no sentido de impedir a sua consumação, sendo que desenvolveu todos os actos de execução integrantes da sua esfera de decisor e condutor do facto - necessários e adequados à concretização por outrem do resultado objecto do seu plano criminoso - , que segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis eram de natureza a fazer esperar que se lhes seguisse a consumação do crime pelo intermediário.

V

Termos em que se fixa a seguinte jurisprudência:

«É autor de crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.os 1 e 2, alínea c), 23.º, 26.º e 131.º, todos do Código Penal, quem decidiu e planeou a morte de uma pessoa, contactando outrem para a sua concretização, que manifestou aceitar, mediante pagamento de determinada quantia, vindo em consequência o mandante a entregar-lhe parte dessa quantia e a dar-lhe indicações relacionadas com a prática do facto, na convicção e expectativa dessa efectivação, ainda que esse outro não viesse a praticar qualquer acto de execução do facto.» Consequentemente, confirma-se o acórdão recorrido.

Cumpra-se o artigo 444.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

(1) Nota 2 - ao artigo 26.º Código Penal Anotado e Comentado, Victor Sá Pereira/Alexandre Lafayette - Quid Juris.

(2) Figueiredo Dias, Direito Penal, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime 1976, p. 176.

(3) Eduardo Correia, com a colaboração de Figueiredo Dias, Direito Criminal, II, Livraria Almedina, Coimbra,1965, p. 246.

(4) Idem, ibidem, p. 245.

(5) Idem, ibidem, p. 246.

(6) Idem, ibidem, p. 246.

(7) Idem, ibidem, p. 240.

(8) Idem, ibidem, p. 249, nota 1.

(9) Idem, ibidem, p. 251.

(10) Idem, ibidem, p. 253.

(11) Idem, ibidem, p. 252, nota 1.

(12) Gimbernat Ordeig, Autor e Complice En Derecho Penal, 1966, pp. 49 e seguintes e 217 e seguintes.

(13) Santiago Mir Puig, Derecho Penal, Parte General, PPU, 2.ª ed., pp. 307 e seguintes.

(14) Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, Editora Vega, pp. 145 e seguintes.

(15) Figueiredo Dias, ibidem, p.766.

(16) José Ulises Hernández Plasencia, La Autoria Mediata En Derecho Penal, Granada, 1996, pp. 44 e seguintes.

(17) Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, 2ª ed., Coimbra Editora, 2007, pp.768 e seguintes.

(18) Ibidem, pp. 768 e seguintes.

(19) Idem, ibidem, p. 257, e artigos 24.º, 25.º e 26.º do referido diploma.

(20) Idem, ibidem, e artigos 19.º, 20.º e 22.º do diploma.

(21) Ibidem, p. 259.

(22) Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, 2.º vol., AAFDL, pp. 46 e seguinte.

(23) Teresa Pizarro Beleza, ibidem, pp.46 e 47 (notas 328 a 331).

(24) Ministério da Justiça, Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, i vol., pp. 194 a 196.

(25) BMJ, n.º 157, p. 34.

(26) Manuel Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral I, «A lei penal e a teoria do crime no Código Penal de 1982», 4.ª ed., Editorial Verbo, p. 479.

(27) Cavaleiro de Ferreira, ibidem, p. 481.

(28) Cavaleiro de Ferreira, ibidem, p. 483.

(29) Figueiredo Dias, ibidem, p. 786.

(30) Figueiredo Dias, ibidem, pp. 786 e seguintes.

(31) Figueiredo Dias, ibidem, p. 806.

(32) Figueiredo Dias, ibidem, pp. 776 e 777, §4.

(33) José Ulises Hernández Plasencia, La Autoria Mediata En Derecho Penal, Granada, 1996, p. 80.

(34) Hernández Plasencia, ibidem, pp. 87 e 119.

(35) Hernández Plasencia, ibidem, p. 121.

(36) Hernández Plasencia, ibidem, pp. 64 e 65.

(37) Maurach, Starfrecht (AT), pp. 633 e 634, e citado por Hernández Plasencia, ibidem, p. 142.

(38) Figueiredo Dias, ibidem, pp. 802, 803, § 53.

(39) Figueiredo Dias, ibidem, p. 776, § 2.º (40) Figueiredo Dias, ibidem, p. 797.

(41) Teresa Beleza, Direito Penal, 2.º vol., AAFDL, p. 460.

(42) Figueiredo Dias, ibidem, p. 799.

(43) Figueiredo Dias, ibidem, p, 799, § 46.

(44) Enrique Orts Berenguer, Josè L. González Cussac, Compendio de Derecho Penal (Parte General y Parte Especial), pp. 234 e seguintes.

(45) Maria da Conceição Valdágua, «Figura central, aliciamento e autoria mediata», Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. i, Coimbra Editora, 2001, p. 932, nota 34.

(46) Maria da Conceição Valdágua, ibidem, pp. 929 a 931.

(47) Figueiredo Dias, ibidem, p. 765, § 16.

(48) Maria da Conceição Valdágua, ibidem, pp. 935 e 936.

(49) Maria da Conceição Valdágua, «Autoria mediata em virtude do domínio da organização ou autoria mediata em virtude da subordinação voluntária do executor à decisão do agente mediato?», Liber Disciplorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 662 e seguintes.

(50) Teresa Beleza, Direito Penal, 2.º vol., AAFDL, p. 52.

(51) Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria do Crime, Editorial Verbo, pp. 285 e seguintes.

(52) Maria da Conceiçâo Valdágua, ibidem, p. 933.

(53) Maria da Conceiçâo Valdágua, ibidem, pp. 933 e 934 e respectivas notas.

(54) Maria da Conceiçâo Valdágua, ibidem, p. 933, nota 37.

(55) Figueiredo Dias, ibidem, pp. 696 e seguintes.

(56) Figueiredo Dias, ibidem, p. 698.

(57) Figueiredo Dias, ibidem, p. 702.

(58) Figueiredo Dias, ibidem, pp. 668 a 691.

(59) Figueiredo Dias, ibidem, p. 693.

(60) Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Editorial Verbo, 1998, p. 232.

(61) Figueiredo Dias; Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p.

223.

(62) Figueiredo Dias, Temas Básicos, p. 226.

(63) Claus Roxin, Problemas Fundamentais de Direito Penal, pp. 302 e seguintes.

(64) Enrique Orts Berenguer e Josè L. González Cussac, Compendio de Derecho Penal (Parte General y Parte Especial), tirant lo blanch, Valencia, 2004, pp. 220 a 222.

(65) Ministério da Justiça, Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, I vol., Lisboa 1965, p.168.

(66) Actas das Sessões, p. 171.

(67) Figueiredo Dias, ibidem, pp. 702 e 703.

(68) Figueiredo Dias, ibidem, § 83, p. 818.

(69) Figueiredo Dias, ibidem, § 86, pp. 820 e seguintes.

(70) Germano Marques da Silva, ibidem, p. 242.

(71) Germano Marques da Silva, ibidem, p. 247.

(72) Faria Costa, Tentativa e Dolo Eventual (Ou da Relevância da Negação em Direito Penal), Coimbra, 1987, pp. 63 e 64 e seguintes.

(73) Faria Costa, Formas do Crime, p. 165.

(74) Germano Marques da Silva; Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria do Crime, Editorial Verbo, 1998, p. 248.

(75) Germano Marques da Silva, ibidem, p. 250.

(76) Claus Roxin, ibidem, p. 321, e Figueiredo Dias; ibidem, p. 710.

(77) Figueiredo Dias, ibidem, p. 711.

(78) Figueiredo Dias, ibidem, pp. 733 e 734.

18 de Junho de 2009. - António Pires Henriques da Graça (relator) - Raul Eduardo do Vale Raposo Borges - Jorge Henrique Soares Ramos (com declaração de conformidade) - Fernando Manuel Cerejo Fróis - José António Carmona da Mota (vencido, conforme declaração de voto em anexo) - António Pereira Madeira - António Silva Henriques Gaspar (vencido, nos termos das declarações dos Srs. Conselheiros Santos Carvalho, Souto de Moura e Maia Costa) - Manuel José Carrilho de Simas Santos - José Vaz dos Santos Carvalho (vencido quanto à questão da oposição de julgados nos termos da declaração que junto e vencido quanto à questão de fundo nos termos das declarações dos conselheiros Souto Moura e Maia Costa) - António Artur Rodrigues da Costa (vencido, de acordo com as declarações de voto dos Exmos.

Conselheiros Souto de Moura e Maia Costa) - Armindo dos Santos Monteiro - Arménio Augusto Malheiro de Castro Sottomayor (vencido, em conformidade com as declarações de voto dos Exmos. Conselheiros Souto de Moura e Maia Costa) - José António Henriques dos Santos Cabral (com declaração de conformidade junta) - António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - José Adriano Machado Souto de Moura (vencido conforme voto anexo) - Eduardo Maia Figueira Costa (vencido nos termos da declaração de voto junta) - Luís António Noronha Nascimento.

Declaração de voto de conformidade

Sustento que todo o episódio atinente à carta (remetida a 25 de Maio, quarta-feira) cuja recepção foi telefonicamente confirmada pelo arguido (em 29 de Maio, segunda-feira), uma vez assim contactado o previsto executor (S. P.), constitui suficiente caracterização de acto executório comummente praticado (por ambos os autores, mediato e imediato).

Face à revelação do urdido plano criminoso, constato uma clara adesão tácita ao mesmo, da parte do previsto executor, aceitando-o, este, pois, num primeiro momento, ficando senhor, também, do «domínio positivo do facto», como resulta da singular circunstância de, instado como foi, haver assumido, ainda implícita mas inequivocamente - sem registo de qualquer interposição policial, até ao momento - , a proposta incumbência.

Sublinho, aliás, a gigantesca eficiência causal da meticulosa e pertinaz actuação do arguido, mesmo que só pudesse ser valorada até ao momento da verificada desistência por parte do projectado executor. Actuação já praticamente esgotada, pois que só faltaria identificar o alvo humano com definitiva precisão, como veio, entretanto, a suceder, tudo assim sendo já do conhecimento do «homem da frente».

Pôs o seu plano criminoso em marcha, dando-o, para cumprimento, a outrem, que o aceitou tacitamente, num primeiro momento, a quem quis comunicar (e comunicou, por fim) todos os detalhes do elaborado propósito, requerendo, em simultâneo, prontidão executória, assim deixando de haver o seu projecto como é lógico, como singela cogitação pessoal e imediatamente colocando em perigo real a vida da vítima, dessa forma assim exposta intencionalmente, só se não tendo verificado a sua morte dada a desistência do executor, não comunicável, como é líquido, ao autor mediato.

Plano dado à execução, claramente, pois: nesse momento, ao menos aí, o arguido iniciou, sob a forma da tentativa, a execução do propósito criminoso.

Correspondentemente recepcionado, consciente e até interessadamente.

Aquela adesão tácita enquadra-se, do meu ponto de vista, no domínio da instável mas sempre minimamente apreensível previsão do alínea c) do n.º 2 do artigo 22.º do CP:

assim o reclamam as regras da experiência da vida e da ponderação do fim social do nosso ordenamento jurídico, empenhado em assegurar a integridade e a manutenção dos bens individuais e sociais contra qualquer perigo de lesão vital efectiva ou potencial, em cujo seio se tem por consagrada, correspondentemente, a «teoria da impressão do perigo», enquanto factor justificativo da punição da tentativa, por referência, conjuntamente, ao perigo real da consumação do crime (no caso, sem dúvida, iminente), à manifestação da concreta vontade criminosa (absolutamente determinada) e ao abalo na confiança dos cidadãos na força vinculativa da norma jurídica (crescentemente objecto de reclamação, em situações de facto idênticas, vulgarmente denominadas «morte encomendada» ou «homicídio de mercenário», cada vez mais numerosas).

Não creio razoável, ao contrário do que defendem algumas autorizadas vozes (S. M.;

M. C.; pelo menos), que se transponha ilimitadamente para a nossa área de trabalho o que pode colher-se da doutrina estrangeira (ou da nacional que se tenha deixado fidelizar por aquela), sem se atender às especificidades do regime jurídico português, do nosso vocabulário, das práticas e da própria experiência comum nacionais, em sede de motivação, determinação e actuação delituosa.

Censuro, por isso, entre o mais que se especificará, o desenvolvimento de argumentação filiada nos sugeridos conceitos de «instigação», «determinação» e «instrumentalização do autor imediato», sem que neles se introduza qualquer dose de maleabilidade. É que facilmente se objectaria, se o caso fosse de importação doutrinária simples, com a noção, por exemplo, provinda de Giuseppe Bettiol (Direito Penal, tradução da Colecção Coimbra Editora, n.º 28, Parte Geral, III, 1973, p. 239), de que «É instigador ao crime quem reforça ou excita um propósito delituoso já formado noutrem», ou com a de que, face ao artigo 31.º do CP brasileiro e segundo Magalhães Noronha (Direito Penal, I, 28.ª ed., act., 1991, p. 214), «Instigar é reforçar, é robustecer um desígnio criminoso». Tanto assim porque o corpo principal das reservas formuladas ao projecto do assento se fundamenta na ideia de que a hipótese de facto constitui instigação..., mesmo afirmando-se (insustentavelmente, segundo creio) que os pretensos executores nunca tiveram a intenção de praticar o crime encomendado.

Não se me afigura avisado, igualmente, o liminar afastamento da punibilidade, no caso, só por força da consideração da declarada inidoneidade dos factos (ou dos meios?) utilizados ou a utilizar: é que, como refere, por exemplo, Santiago Mir Puig (Estado, Pena y Delito, Ed. Arg., B. Aires, pp. 386-420), colocado perante as dificuldades de interpretação do artigo 16.º do CP espanhol de 1995 (exigência, para a verificação da tentativa, de que se tenham realizado «actos que objetivamente deberiam producir el resultado»), de conteúdo não coincidente mas compatível com aquele outro nosso texto, alínea c) do n.º 2 do nosso artigo 22.º,conjugado com o da alínea imediatamente antecedente, e rebuscando argumentação já conhecida desde antes, aliás, da sua entrada em vigor (em que se distinguia, na doutrina, já sob a crítica daquele professor, entre tentativa absolutamente inidónea e tentativa relativamente inidónea, por alusão à efectiva ou prospectiva existência de perigo e à aparência ex ante ou ex post da possibilidade de lesão), «La incapacidad de lesion de toda tentativa en el caso concreto no impide que tenga utilidad preventiva la conminación penal de la tentativa.

Ello incluye la tentativa inidónea, que no encierra un peligro menos real que la idónea.» Também discordo de que a execução do facto «por intermédio de outrem», segundo se refere no artigo 26.º do nosso CP, tenha de se mostrar associada à participação de um irresponsável penal ou não possa acomodar-se à autoria plural: não se colhem, no nosso ordenamento jurídico, quaisquer dados extraliterais que apontem, necessariamente, no sentido de uma tal interpretação, muito menos que assumam eles, porventura, sentido puramente literal, gramatical ou textual (artigo 9.º, n.º 1, do CC), sendo que, bem se sabe, «não pode ser considerado [...] o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (citado artigo, n.º 2).

Não deixo de considerar, também, a respeito da definição de «actos de execução», consoante decorre dos textos das diferentes alíneas do n.º 2 do artigo 22.º do CP, de concepção, é certo, predominantemente objectiva, que, quanto à sua terceira espécie - cf. alínea c) - , particularmente relevante para a apreciação do adquirido circunstancialismo factual, não será de desprezar a lição de autores nacionais que adoptem, face ao nosso ordenamento jurídico, leituras menos rígidas que algumas das provindas de intérpretes ditos «classistas»: atente-se, desde logo, quanto a essa terceira espécie de actos de execução dessa forma referenciados, que, segundo Eduardo Correia (Direito Criminal, 1963, II, pp. 226-240), não deverá deixar de representar-se o «plano concreto do agente», ou seja, o elemento subjectivo da tentativa, assim encarado como um dado da realidade objectivamente considerada, nele integrada, já, uma exigência de criação de perigo de lesão do bem jurídico tutelado, pelo que será de entender respeitarem esses actos a comportamentos que envolvam um perigo de lesão tal, como o focado, que devam ser abrangidos, dada também aquela íntima representação, pela função dita extensiva da punibilidade encerrada no próprio conceito de tentativa.

Não se compreende, ainda, a afirmação de que na autoria imediata, só o «homem de trás» possa ter o domínio do facto: sempre o poderá partilhar em algumas situações, pelo menos, mesmo consideradas as distintas vertentes do domínio da vontade ou até da acção (hipóteses, desde logo, em que fisicamente actue em rede com o «homem da frente», não accionando, ele próprio, todavia o percussor, mas ordenando-o àquele, responsavelmente submetido à vontade do mentor do plano criminoso.

Posições controversas, estas, mas submetidas, todas, à ponderação do colectivo, com o devido respeito de cada um dos ângulos de visão.

O que tenho por lastimável é, a avaliar por um texto que há pouco nos chegou, porventura ainda incompleto, que um professor de direito de uma consagrada faculdade, rasgando o seu deselegante comentário à decisão recorrida, intente simplesmente demoli-la, dando sinal, embora, desde logo, de que o entendimento da 1.ª instância, formado sobre a controvérsia (jurídica) atinente à existência ou concretização, ou não, do debatido acordo, deveria ser tido, aqui, também, por facto assente, como «premissa», conforme chega a escrever! Que surpreendente entendimento do que haja de ser tido por matéria de facto e matéria de direito! Não terá reflectido o arguente, a propósito, sobre textos legais de vital relevância (v. g., artigos 4.º 124.º e 368.º n.os 2 e 3, do CPP e 511.º, n.º 4, 646.º, n.º 4, 653.º, n.º 2, e 659.º, n.º 3, do CPC)? Refere, aliás, que a vítima não foi efectivamente colocada em perigo, o que se repudia;

observa que «o Supremo definiu como critério de aferição do início da execução apenas a perspectiva subjectiva do agente mediato», o que não é exacto; sugere que a (difusa) figura da instigação, afinal, vem «legalmente definida» no nosso ordenamento, o que parece constituir uma singular ousadia intelectual...; e termina agrestemente como se fôssemos adeptos incondicionais do discurso law and order, desatentos ou interessados seguidores do «Estado de segurança» e de uma nova visão do direito penal como o «direito penal da sociedade de risco», na interessante expressão de Hilgendorf («Gibt es ein Strafrecht der Risikogesellschaft?», NStZ, 1993, pp. 10 e seguintes), autor que, mesmo aderindo a diversas críticas da Escola de Frankfurt, alerta para a necessidade de se vir a registar alguma flexibilização das categorias dogmáticas clássicas, precisamente ao nível das regras de imputação.

Condescendendo, embora, a encerrar a sua apresentação, que «os factos apurados são moralmente reprováveis e podem até indiciar uma personalidade criminalmente perigosa». - Jorge Soares Ramos.

Declaração de voto

Votei contra a solução encontrada.

Desde logo, porque o acórdão, em vez de se limitar a abordar a questão jurídica comum aos acórdãos recorrido e fundamento na perspectiva de uma solução uniforme, enfrentou o acórdão recorrido, antes, na óptica de um mero recurso ordinário (1).

Depois, pelas razões invocadas, nas suas declarações de voto, pelos conselheiros Souto de Moura e Maia Costa, que, com vénia, adopto.

Para mim, com efeito, a resposta correcta à questão decidida, controversamente, pelos acórdãos recorrido e fundamento já há muito a dera, doutrinalmente, Figueiredo Dias, no seu Direito Penal Português, I, 2.ª edição, 2007 (2):

«§ 86 Se autoria mediata é, nos termos do artigo 26.º, execução do facto por intermédio de outrem, o ponto de partida para a resolução do problema de agora parece dever residir na afirmação de Frank [...] que a doutrina alemã pretende classificar dentro da "solução global": a tentativa não pode ter início antes do início da actuação do homem da frente. [...] Segundo a normalidade do desenvolvimento das hipóteses de autoria mediata, o princípio de Frank é válido para a generalidade dos casos; sem no entanto dever excluir-se que, em casos excepcionais devidamente comprovados [...] a actuação do autor mediato possa compreender já a prática de actos de execução [...] o que, no nosso entendimento do disposto no artigo 22.º, alínea e), sucederá, quando, no fim da actuação do agente mediato, existir já uma conexão de perigo típica para o bem jurídico ameaçado: em tal caso [...] será nesse momento que deve considerar-se iniciada a tentativa do autor mediato. [...] § 87 A alguns títulos diferente da anterior é a situação na co-autoria [...]: aqui, o que se pretende determinar é se, a partir do momento em que um co-autor pratica, de acordo com a decisão conjunta, o primeiro acto de execução, devem todos os outros co-autores ser punidos por tentativa, mesmo que ainda não tenham levado a cabo qualquer acto de execução (solução global): ou se, diferentemente, cada co-autor só deve ser punido por tentativa quando a sua actuação alcançou o estádio da execução (solução individual). A solução global é largamente dominante na doutrina alemã, na base, sobretudo, do argumento de que uma solução individual faria depender a punibilidade do co-autor do puro acaso (v. g., da concreta configuração do plano e de a intervenção de um co-autor anteceder a de outro) e conduziria a que os co-autores fossem desigualmente tratados [...]. Conceição Valdágua criticou, fundada e exaustivamente, este argumento [...]. Se, em caso de autoria e de acordo com o plano comum, um ou uns co-autores deram início à execução do crime, enquanto outro ou outros nada chegaram a executar, não se vê que seja injusto ou desigual tratar mais favoravelmente este(s) último(s); até porque [...] não viola o princípio da culpa o funcionamento do acaso em favor do agente. O que, de todo o modo, não parece legítimo é considerar que já a decisão conjunta como tal representa um início de execução susceptível de fundar a responsabilidade [...].

§ 88 De acordo com a concepção do domínio do facto atrás defendida, segundo a qual a co-autoria exige um contributo significativo do agente na fase da execução, uma solução individual parece merecer preferência. Na verdade, também o co-autor de uma tentativa deve condominar essa tentativa; o que só é possível quando ele exteriorize um comportamento ou co-actue no estádio da tentativa [...]. Por isso se deve recusar que actos meramente preparatórios possam bastar [...] para fundar uma tentativa em co-autoria. Tal só deve ser possível, relativamente a cada co-autor, quando ele pratica, de acordo com o plano conjunto, actos de execução nos termos do artigo 22.º O que é tanto mais assim quanto no direito português [...] o artigo 26.º, 3.ª alternativa, se não basta com que o "conjunto" dos co-autores pratique ou execute o facto, mas impõe que cada um tome parte directa na execução [...].

§ 89 O problema é aqui expressamente resolvido pela lei, que exige para existência da própria instigação que "haja execução ou começo de execução". Poderia à primeira vista dizer-se que tal não resolve a questão porque sem início de execução não existe punibilidade (salvo nos casos em que a preparação seja já em si mesma punível) para qualquer forma de autoria, individual ou em comparticipação. E é exacto. Mas por isso e porque uma tal reafirmação no artigo 26.º, 4:ª alternativa, constituiria pura inutilidade, tem de conceder-se que com aquela menção expressa quis o preceito legal significar [...] que o início da tentativa da prática do facto implica, na instigação, a prática de um acto de execução pelo instigado. Uma tal doutrina é fundada e não porque a instigação seja uma forma de participação, coisa que o preceito legal desmente. É fundada quer de um ponto de vista político-criminal [...] quer de um ponto de vista dogmático, porque à essência da instigação pertence que o instigado - o "homem da frente" - seja plenamente responsável e por isso a actuação do instigador só se toma imediatamente perigosa para o bem jurídico ameaçado se e quando o instigado der início à execução [...]» Também Nuno Brandão (3), num seu recentíssimo estudo (4), concluiu - a propósito exactamente do acórdão recorrido - que «o caso dos autos configura não uma situação de autoria mediata, mas sim de instigação, legalmente definida como a acção de determinação dolosa de outra pessoa à prática dê um facto penalmente relevante (artigo 26.º, 4.ª alternativa, do Código Penal) e concebida como uma forma autónoma de autoria»:

«Diferentemente do que decidiu o Acórdão, tendo em conta a plena responsabilidade dos executores aliciados, pensamos que o caso dos autos configura não uma situação de autoria mediata, mas sim de instigação, legalmente definida como a acção de determinação dolosa de outra pessoa à prática dê um facto penalmente relevante (artigo 26.º, 4.ª alternativa, do Código Penal) e concebida como uma forma autónoma de autoria. Como foi cabalmente sustentado por Figueiredo Dias em estudos recentes, a instigação assume no direito penal português vigente o estatuto de autoria. Na instigação-autoria, que constitui a 4.ª modalidade de autoria prevista no artigo 26.º do Código Penal, o instigador detém o domínio do facto sob forma de domínio da decisão:

"o instigador surge assim (mas só então) como verdadeiro senhor, dono ou dominador se não do ilícito típico como tal, ao menos e seguramente da decisão do instigado de o cometer [...]." De um ilícito, acrescente-se, que sendo embora inevitavelmente obra pessoal do homem-da-frente, faz aparecer o acontecimento (também ou sobretudo) como obra do instigador e dá ao seu contributo para o facto o carácter de (co)realização de um ilícito e não de mera "participação (externa ou 'estrangeira') no ilícito de outrem". Daí que, qualificada a instigação como autoria, perca sentido a via seguida por Conceição Valdágua para integrar na autoria, sob a forma de autoria mediata, a participação do agente mediato que detém o domínio do facto através da subordinação voluntária do executor à sua decisão: haverá aí seguramente domínio do facto pelo homem-de-trás, mas não em virtude de um domínio da vontade próprio da autoria mediata e sim de um domínio da decisão que caracteriza a instigação-autoria.

Compreende-se sem dificuldade que numa instigação assim definida, a que subjaz um efectivo domínio do facto através de um domínio da decisão, nem todo e qualquer acto de determinação possa assumir o estatuto de instigação-autoria, mas tão-só aquele que "produz ou cria de forma cabal [...] no executor a decisão de atentar contra um bem jurídico-penal através da comissão de um concreto ilícito-típico" [...]. Na síntese de João Raposo, "instigar é, numa frase, motivar decisivamente outrem a cometer um crime" [...]. A matéria provada revela que o arguido, se não conseguiu, pelo menos procurou de forma insistente e obstinada, pelos mais variados meios, criar numas pessoas de nacionalidade russa a decisão de porem termo à vida da sua mulher, tendo pensado ter firmado com eles um pacto criminoso, pelo qual a matariam contra a entrega de determinada quantia. Do que se tratou, portanto, foi de uma inequívoca acção de determinação sobre esses russos que só pode levar-se à conta do instituto da instigação. Não tendo esses russos aparentemente outro interesse na morte da vítima que não o decorrente da contrapartida que receberiam do arguido se a pretendessem e conseguissem matar, é evidente que, caso eles tivessem materializado esse propósito, o facto ilícito-típico de homicídio apareceria fundamentalmente como resultado de um impulso em última e decisiva instância imputável ao arguido. Nessa medida, ao contrário do que entendeu o tribunal ad quem, e à semelhança do que vem sendo defendido pela doutrina absolutamente maioritária [...] e boa parte da jurisprudência [...] nestes de casos de aliciamento ou pacto criminoso, o único enquadramento legalmente admissível para configurar a participação do homem-de-trás é o da instigação. A punição do arguido como instigador de um crime de homicídio na forma de tentativa deparava-se, porém, com dois obstáculos intransponíveis: em primeiro lugar, a falta de adesão de SP e de AZ ao plano criminoso lançado pelo arguido, e em segundo lugar, a completa ausência de actos de execução dos destinatários da proposta delituosa. É certo que o Supremo manifestou o entendimento de que durante um breve período SP e AZ aderiram, ao menos tacitamente, aos propósitos do arguido. Trata-se de uma leitura que não nos parece consentida pela factualidade provada, como, de resto, também consideraram os conselheiros que votaram vencido. Aliás, esta conclusão do Supremo é tirada ao completo arrepio da premissa deixada expressa pelo tribunal de 1.ª instância, que tomou a decisão em matéria de facto, quando discorreu sobre a qualificação jurídica dos factos: "não existiu qualquer acordo prévio, mesmo que tácito, e as pessoas por ele contactadas"; "o arguido, pese embora todos os factos praticados, nunca conseguiu criar nas pessoas contactadas a resolução de praticar qualquer facto ilícito típico"; "apesar do pretenso acordo dado pelas pessoas que eram interlocutoras do arguido, nunca pretenderam as mesmas, por qualquer forma, prestar-se ao que lhes era pedido". Não tendo o arguido sido bem sucedido no seu propósito de convencer SP e AZ a materializar o seu plano de matar a assistente MT, verifica-se que M não chegou sequer a "determinar outra pessoa à pratica do facto", como pressupõe o 4.º inciso do artigo 26.º do Código Penal. Tudo não passou afinal de uma tentativa de instigação, a qual, no direito português vigente, não é em geral susceptível de conduzir a responsabilização criminal. Como se acentua, de forma lapidar, no voto de vencido do conselheiro Souto Moura, "se o agente não determinou ninguém, não é, à luz do artigo 26.º do CP, instigador". Dando-se como assente que os interlocutores não chegaram a formar com o arguido qualquer pacto criminoso, nem aceitaram executar ou intermediar a execução da morte pedida pelo arguido, seria a ausência de uma efectiva determinação de outrem à prática de um ilícito-típico de homicídio que fundaria a conclusão indiscutível de que, de acordo com a lei penal portuguesa em vigor, ao arguido M não seria possível imputar a comissão de um crime de homicídio na forma tentada, já que, insiste-se, entre nós não é punível a tentativa de instigação frustrada.

De todo o modo, mesmo na hipótese tida em conta pelo Supremo - a de que houve um para matar formado entre o arguido M e os russos -, a responsabilização do arguido seria inviável, dado que se provou não ter sido cometido qualquer acto idóneo à produção do resultado típico, a morte da vítima, ou qualquer outro que tenha significado um começo de execução de um ilícito típico de homicídio. Estando provado que os "instigados" não deram início à execução do facto típico pactuado, o caso carece de um pressuposto essencial para a afirmação da responsabilidade penal do arguido como instigador de um ilícito-típico de homicídio na forma tentada, o previsto na parte final do artigo 26.º: que haja execução ou começo de execução do facto principal pelo instigado. Assim sendo, a única conclusão legalmente admissível em face dos factos imputados ao arguido é que esses factos são penalmente irrelevantes. Atenta a total irrelevância criminal da factualidade provada, deveria o arguido ter sido absolvido. Ao condená-lo, o acórdão assumiu uma interpretação exacerbadamente subjectiva do conceito de actos de execução, que não se compagina com o disposto no artigo 22.º do Código Penal e representa a adopção de um critério de início de execução que implica uma generalizada antecipação da tutela penal para estádios puramente preparatórios, como os da mera tomada de uma decisão ou da formação de um pacto criminoso. Critério inaceitável, porque incompatível com um direito penal de matriz liberal, e que se tomado como precedente de carácter geral comprometerá a função de tutela subsidiária de bens jurídicos cometida ao direito penal. É nossa firme convicção que o Supremo Tribunal de Justiça violou a lei portuguesa em vigor e puniu o arguido por uma factualidade que não era - como continua a não ser - descrita como crime na lei vigente ao tempo em que os factos foram praticados, o que significou uma infracção ao princípio da legalidade criminal, consagrado no artigo do Código Penal e no 29.º, n.º 1, da Constituição. Dúvidas não há de que os factos apurados são moralmente reprováveis e podem até indiciar uma personalidade criminalmente perigosa. Mas, se e enquanto não constituir crime o aliciamento ou a formação do pacto para matar, então não restará aos tribunais portugueses outra alternativa que não a de obedecer à lei e de a fazer cumprir, mandando o instigador em paz e liberdade».

(1) «L. O arguido encomendou a morte de uma pessoa a outrem, que definiu o montante monetário a receber do mandante pela prestação do facto, que o mandante aceitou, vindo a pagar-lhe parte daquele valor, e, dando-lhe indicações relacionadas com a prática do facto, devendo a restante parte da quantia ser paga depois da execução do mesmo, tendo ficado convicto e na expectativa de que o facto seria praticado pelo executor; o arguido ao delinear o plano criminoso contactando outrem para o realizar, ao entregar-lhe parte do montante estabelecido pelo pagamento do serviço letal, e, dando indicações relacionadas com a prática do facto, tinha plena intenção de causar a morte da pessoa visada, por intermédio de outrem, agindo de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta é reprovável e censurável, só não tendo conseguido a concretização do facto, por circunstâncias completamente alheias à sua própria vontade, pois que o executor não veio a praticar o facto, nem praticou qualquer acto de execução, outrossim tendo denunciado a situação à entidade policial, que veio a deter o arguido; a pessoa contactada para providenciar pela concretização do facto, no comportamento assumido para com o arguido, sempre objectivamente revelou efectiva adesão à proposta do arguido alimentando a convicção e confiança deste na relação sinalagmática assim estabelecida [...]. Até ao momento de ser detido, o arguido deteve o domínio do facto, aguardando que pela subordinação voluntária à sua vontade, o "executor" o concretizasse. [...] O comportamento do arguido assumido na encomenda do crime, na idoneidade e confiança reconhecidas ao contacto estabelecido para a concretização daquele, o fornecimento de detalhes relacionados com a pratica do mesmo, e o ajuste de dinheiro para pagar o serviço letal encomendado, ocorreu com vista a conduzir ao efeito ilícito por ele pretendido, de causar a morte de alguém, por intermédio de outrem, pelo que é de molde a integrar a previsão do artigo 26.º do CP na modalidade de autoria mediata na forma tentada prevista no artigo 22.º, n.º 2, alínea c), do mesmo diploma [...]. o arguido não desistiu de prosseguir na execução do crime, nem desenvolveu esforços no sentido de impedir a sua consumação, sendo que desenvolveu todos os actos de execução integrantes da sua esfera de decisor e condutor do facto - necessários e adequados à concretização por outrem do resultado objecto do seu plano criminoso -, que segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, eram de natureza a fazer esperar que se lhes seguisse a consumação do crime pelo intermediário».

(2) Cf., quanto à tentativa e ao início da tentativa na autoria mediata, na co-autoria e na instigação, os respectivos 28.º e 29.º capítulos.

(3) Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

(4) «Pacto para matar. Autoria e início de execução».

J. Carmona da Mota.

Declaração de voto

Votei vencido, para além do mais sobre a questão preliminar, pois, na minha opinião, não há oposição de julgados, por não haver identidade dos factos.

A divergência dos factos respeita à existência ou inexistência de pessoa que executasse o crime, o que faz parte do acervo factual decisivo para se apurar se há ou não tentativa de homicídio por parte do instigador, já que a tentativa pressupõe um começo de execução e não há execução sem «executante».

Na verdade, os dois acórdãos têm em comum os seguintes factos:

O arguido formulou a intenção de matar outrem, mas não pelas próprias mãos, antes por «encomenda» da morte a terceiro, mediante preço a ajustar;

O arguido elaborou o plano para a execução do crime e contactou outra pessoa para que viesse a ser executado, a quem apresentou o plano e entregou o dinheiro correspondente ao preço combinado;

O arguido convenceu-se de que o crime iria ser executado conforme o plano;

A pessoa contactada pelo arguido nunca teve a intenção de dar seguimento ao plano do arguido.

Mas têm de diferente os seguintes factos:

No acórdão fundamento havia um «executante», pessoa que perante o arguido se comprometeu a executar o crime. No acórdão recorrido nunca houve executante mas apenas «intermediários», pessoas que apenas se comprometeram a arranjar alguém que executasse o crime, o que de todo nunca sucedeu;

No acórdão fundamento o executante fez o acordo com o arguido e recebeu o dinheiro antes de comunicar à polícia. No acórdão recorrido os «intermediários» só receberam o plano e o dinheiro do arguido após instruções da polícia nesse sentido.

Ora, a existência no acórdão fundamento de um «executante», isto é, de alguém que se propôs executar o crime, autoriza a que, no plano teórico, se coloque o problema de saber se a aceitação por este da «encomenda» do crime e do dinheiro, ainda que sem intenção de o cometer, é já um começo de execução, para o efeito do disposto nos artigos 21.º e 22.º do CP, isto é, para a verificação de tentativa de homicídio por parte do instigador.

Já no acórdão recorrido, não tendo sido ajustado, nem sequer procurado, um executante para o crime, nunca pode colocar-se o problema da tentativa de homicídio, nem por parte do instigador nem do pretenso instigado, pois, sem actos de execução, as acções do arguido e dos intermediários são simples actos preparatórios, não puníveis face à nossa lei.

Não é possível, portanto, falar-se em oposição de julgados, quando cada uma das decisões julgou factos que, na parte essencial, se mostram diferentes. Pois enquanto no acórdão fundamento poderia configurar-se a hipótese de instigação (a admitir-se que a aceitação do pacto criminoso é um começo de execução), no acórdão recorrido a hipótese de facto poderia, quando muito, reduzir-se a uma instigação à instigação, que não é punível. Ou seja, às hipóteses de facto subjazem questões de direito diversas. - Santos Carvalho.

Declaração

Partindo, como se parte, do entendimento professado expresso por Maria da Conceição Valdágua (1) entende-se que o artigo 26.º do Código Penal parece tratar indiferenciadamente o autor mediato e o instigador, ao prescrever que quer um, quer outro, é punível como autor. Todavia, tal aparência de uniformidade de tratamento das duas figuras no direito penal português é meramente superficial, pois no mesmo artigo a instigação e a autoria mediata estão estruturadas em termos diversos: a punição de quem «determinar outra pessoa à prática do facto» depende de existir «execução ou começo de execução», mas para a punição de quem executar o facto [...] por intermédio de outrem, não se exige esse requisito, nem qualquer outro equivalente.

Esta diversidade de estrutura da autoria mediata e da instigação é particularmente relevante numa ordem jurídica que, como a nossa, não incrimina a tentativa de instigação, pois daí decorre que o agente mediato, se o seu comportamento for tratado como instigação, ficará impune sempre que não chegar a haver execução ou começo de execução, por parte do instigado. Diferentemente, nos casos de autoria mediata, o regime resultante do artigo 26.º do Código Penal não exige para a responsabilidade do autor mediato o início da execução pelo autor imediato, não excluindo, assim, a possibilidade de o «homem de trás» ser punido por tentativa a partir de um momento anterior àquele em que o autor imediato começa a praticar actos de execução do tipo legal de crime.

Como bem se discorre na decisão proferida o cerne da questão que é proposta reconduz-se, assim, à pré-figuração da conduta desenhada pela actuação do agente:

instigação ou autoria mediata? Decididamente, e sem qualquer pretensão heurística, enfileiramos no entendimento proposto na mesma decisão, classificando aquela actuação como autoria mediata. Na verdade, e repescando novamente as palavras da mesma Autora citada, existe uma outra forma de autoria mediata, que não se reconduz à hipótese de coacção; erro ou instrumentalização de um aparelho organizado de poder, mas porventura tão susceptível com estas de proporcionar ao «homem de trás» o domínio do facto.

Integram-se neste âmbito a pluralidade de hipóteses que consubstanciam o inverso da coacção e são designadas pelo conceito de «aliciamento» O aliciamento pode ser uma forma de dominar a vontade do executor tão, ou mais, eficaz do que a coacção e leva à execução de crimes com uma frequência que certamente não será inferior à dos casos em que o agente mediato constrange o executor. Ao executor pode, nas circunstâncias concretas, ser mais fácil resistir, por exemplo, à coacção através de ameaças à integridade física do que ao aliciamento de receber uma avultada quantia que o tire e à sua família da miséria, ou que lhe permita custear uma dispendiosa intervenção cirúrgica que necessita fazer e não tem como pagar.

Como defende Conceição Valdágua não se vê, à partida, razão para assentar, como faz Roxin, em que o «homem de trás» só pode alcançar o domínio do facto (sob a forma de domínio da vontade) e, portanto, só pode ocupar a posição de autor mediato nos casos de coacção, erro ou domínio de um aparelho organizado de poder. Ao invés, tal domínio também sucederá no caso do denominado «homicídio sob contrato» em que a existência de um consenso em que o homem de trás define os termos e condições em que o acto ilícito terá lugar e condiciona a sua concretização e planeamento pelo executor. Sobre o homem de trás reside o poder de supradeterminação final do processo causal conducente à realização típica, ou seja, o domínio da vontade.

Acresce que, numa perspectiva de política criminal, dificilmente seria compreensível que o agente que determina todo o quadro de concretização do crime de homicídio em condições que necessariamente levariam à sua consumação, a qual só não se concretiza por circunstâncias alheias à sua vontade, visse a sua conduta isenta de qualquer sanção. Tal como no caso da tentativa inidónea que, apesar de estar impossibilitada de produzir o resultado típico é suficiente para abalar a confiança comunitária na vigência e validade da norma de comportamento, é uma questão de perigo para o bem jurídico protegido e necessidade de protecção da sua protecção (2) (3).

Assim, segue-se o entendimento da decisão recorrida de que a conduta do agente, na situação pré-figurada na oposição de acórdãos, integra o conceito de aliciamento, devendo ser punido como autor de um crime de homicídio voluntário sob a forma tentada.

(1) Figura central, aliciamento e autoria imediata - Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, pp. 933 e segs.

(2) Figueiredo Dias, Direito Penal, p. 715.

(3) Santiago Mir Puig [Sobre la punibilidad de la tentativa inidónea en el nuevo código penal - REPC 03-06 (2001)].

Voto de vencido

1 - Muito sinteticamente, a situação em apreciação reporta-se ao facto de alguém ter planeado matar outrem, e, para levar a cabo os seus intentos, resolver contactar quem, a seu ver, poderia executar materialmente o homicídio, por si, ou arranjando quem o fizesse. O autor do projecto forneceu indicações, ajustou pagamentos e chegou a entregar dinheiro.

Mas da parte dos contactados não foram praticados actos de execução, e acabaram até por alertar as autoridades, com as quais passaram a colaborar, sem o mandante saber.

Da matéria de facto considerada provada no acórdão fundamento consta, na verdade, entre o mais: «O D, porém, ao contrário do que era vontade dos arguidos jamais tivera intenção de tirar a vida ao C, dirigindo-se ao posto da GNR de O. do H. onde comunicou ao respectivo comandante o que sucedeu entre si e o arguido e lhe entregou os 100 000 escudos que havia recebido bem como o papel com as instruções dirigidas à arguida».

Quanto à matéria de facto, dada por provada no acórdão recorrido, ela é clara no sentido de que, depois de mais de um contacto do arguido, com quem se encarregaria de obter a morte da esposa dele, o contactado continuava a pensar que «tomar conta» da pessoa em causa significava, mesmo, estar com ela e apoiá-la, devido à idade. E depois de acabar por perceber o trabalho que lhe era pedido, o contactado falou com um companheiro e «[f]inda a conversa decidiram e acordaram que se impunha denunciar a situação, o que fizeram nesse mesmo dia, pelas 16 horas, no Piquete da Polícia Judiciária do Porto».

2 - Enquanto que o acórdão fundamento entendeu que se configurava um caso de instigação, do artigo 26.º, última parte, do CP, não punível por não ter havido começo de execução, sabido que a nossa lei não prevê a tentativa de instigação, o acórdão recorrido defendeu a punição do arguido, por se estar perante uma situação de autoria mediata, à luz da 2.ª proposição daquele artigo 26.º Considerou, na verdade, ter havido início de execução do crime de homicídio, que seria então punível a título de tentativa.

O assento envereda por esta tese também.

3 - Ao contrário do que ocorria no Código anterior, em que ao lado da autoria se elegiam a cumplicidade e o encobrimento como formas de comparticipação, presentemente, remeteram-se as situações de encobrimento para o âmbito das previsões típicas. Quedámo-nos apenas com a autoria, tratada nas suas várias aflorações do artigo 26.º do CP, por um lado, e com a cumplicidade, consagrada como categoria dependente da autoria, no artigo 27.º, por outro.

Sabe-se que o nosso direito se afastou da solução alemã de integrar a cumplicidade e a instigação no âmbito da «participação», por oposição à autoria, pelo que a instigação não pode, entre nós, deixar de figurar como uma modalidade de autoria plural.

Assim, naquele artigo 26.º poderão ver-se duas modalidades de autoria singular e outras duas de autoria plural. No primeiro caso, sempre que o crime é levado a cabo por uma única pessoa, ou então por mais, mas em termos de só uma poder ser responsabilizada. No segundo caso, em situações de co-autoria e instigação. A situação dos autos reclama que nos detenhamos, para já, na distinção entre a chamada autoria mediata e a instigação.

4 - A autoria mediata. - O artigo 26.º focado começa por se referir ao que poderemos chamar autoria singular imediata, «É punível como autor quem executar o facto por si mesmo», mas contempla a seguir a autoria singular mediata: também é autor quem executar o facto «por intermédio de outrem». Neste caso, a intervenção material de mais de uma pessoa é juridicamente inócua, no sentido de que, em termos penalmente significativos, só uma pode ser responsabilizada.

O autor não executa por si o facto, materialmente. Deixa que outrem, ou faz com que outrem, o execute por si e para si, sendo certo que este outrem não tem nenhum domínio do facto relevante. Acaba por surgir como instrumento (humano) nas mãos do autor.

Tal terá lugar quando esse executante material não tem vontade de agir, caso em que da parte dele nem sequer se poderia falar de acção humana (coacção absoluta, hipnose, etc.), quando o executante actua em erro sobre a factualidade típica, erro sobre a proibição, não exigibilidade relevante, ou com falta de consciência da ilicitude, não censurável, em que foi induzido pelo autor mediato. Ainda quando o executante material é inimputável, porque o domínio do facto não se reduz ao domínio naturalístico do facto. O domínio ético-jurídico do facto supõe evidentemente que se esteja à altura de o avaliar.

Mais discutíveis serão as situações ocorridas no seio de «aparelhos organizados de poder», trabalhadas pela doutrina e jurisprudência alemãs depois do episódio da 2.ª Guerra Mundial, como manifestação do domínio mediato do facto. Aí «o sujeito de trás tem à sua disposição uma maquinaria pessoal (quási sempre organizada estatalmente), com cuja ajuda pode cometer os crimes que pretende, sem ter que delegar a sua realização numa decisão autónoma do executante» (cf. Roxin in Autoria y Domínio del Hecho en Derecho Penal, p. 270). Ainda se poderia aludir a casos laterais, também sem interesse para o que nos ocupa, em que o executante «apesar de deter em princípio o domínio do facto, é um extraneus que não reúne as qualidades exigidas pelo tipo específico que cometeu» ou em «crimes cuja tipicidade exige uma intenção específica, quando ela não esteja presente no agente imediato sem por isso prejudicar o domínio do facto» (cf. F. Dias in Sumários e Notas das Lições de Direito Penal, polic. de 1976, pp. 64 e 65).

Passado em revista este conjunto de afloramentos de autoria mediata, ressalta como realmente decisivo que a natureza de mero instrumento, do «homem da frente», leva a que «todos os pressupostos de punibilidade têm que concorrer na pessoa do 'homem de trás' e hão-de colocar-se para efeito da sua caracterização dogmática, unicamente face a ele» (F. Dias, in Direito Penal, Parte Geral, I, p. 776).

Ora, surge como evidente que o domínio do facto, sob a forma de domínio da vontade, que hipoteticamente o arguido pudesse ter tido sobre os indivíduos que contactou, não excluiria, de todo, o domínio do facto, por parte destes, sob a forma de domínio da acção, caso tivessem anuído à proposta formulada. Tal se nos afigura suficiente para que, na factualidade aqui relevante, se não pudesse falar de autoria mediata, em relação ao arguido, melhor, em relação ao plano do arguido. Este teria sempre que contar com a vontade consciente e responsável dos «aliciados», cuja vinculação ao «ajuste» estaria sempre na mão deles manter ou não, mesmo depois de, responsável e conscientemente terem acedido a executar o trabalho. Se porventura tivesse sido esse o caso.

Tanto no acórdão recorrido como no presente acórdão de fixação de jurisprudência, optou-se por caracterizar a actuação do arguido como autoria mediata.

Recorreu-se ao pensamento de Maria da Conceição Valdágua, a quem é atribuída a inclusão, nos casos de autoria mediata, das situações de «aliciamento» sob a forma de ajuste. Seria esse, então, o caso dos autos. Porém, na sequência do que já se disse, não se vê como é que é possível considerar, o aliciado, um mero instrumento do autor mediato.

Segundo a ilustre autora citada, «[...] o 'homem de trás' tem o domínio do facto (sob a forma de domínio da vontade) e é, portanto autor mediato» (in 'Figura central, aliciamento e autoria mediata', Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, t. i, p.

937). Só que, a nosso ver, para se ser autor mediato não basta ter o domínio do facto.

É preciso que mais ninguém o tenha.

Ora, aquela autora prossegue do seguinte modo: «É que o aliciado, ao concordar, designadamente, com o estabelecimento de uma relação sinalagmática entre a realização da prestação, que o agente mediato se propõe proporcionar-lhe, e a prática do facto tipicamente ilícito, que é condição dessa prestação, põe nas mãos do agente mediato a decisão final, derradeira, sobre o cometimento do facto para que foi aliciado.

Na verdade, daquela relação sinalagmática, aceite pelo aliciado, decorre que, se o 'homem de trás' mudar de ideias e comunicar ao aliciado que não pagará a prestação inicialmente proposta, ou que, afinal, já não pretende a execução do facto, o aliciado não cometerá o facto punível. Ora, quem tem nas mãos a última decisão sobre a execução do facto possui, do mesmo passo, aquele poder de supradeterminação do processo causal, conducente à realização do tipo legal de crime, que é a quinta-essência do domínio do facto.» Prossegue aquela autora: «Quanto ao aliciado verifica-se que ele, nas circunstâncias referidas, aceita a tarefa de executor do plano criminoso do agente mediato e subordina-se inteiramente à vontade deste. Daí que deva entender-se que o domínio do facto, sob a forma de domínio da vontade, cabe ao agente mediato, sem embargo de também o executor ter o domínio do facto, sob a forma de domínio da acção» (idem).

Se bem lemos estas passagens, elas suscitam-nos o seguinte comentário: se se considerasse a autoria mediata como uma forma de autoria plural, por um lado, teria de se distinguir um «homem da frente» de um «homem de trás», mas, por outro, teria de poder atribuir-se o domínio do facto tanto ao «homem de trás» (que podia mudar de ideias e desistir do projecto), como ao «homem da frente» (que podia «roer a corda» e deixar de alinhar no projecto). Sem o domínio do facto por parte dos dois, não é possível falar de co-autoria. Ambos têm de ter, portanto, nas mãos, a última decisão sobre a execução do facto, eventualmente em fases diferentes de execução do crime.

Mas se enquadrarmos a autoria mediata na autoria singular, como nos parece dever ser, porque faleceria o domínio do facto ao autor imediato (ao «homem da frente» que pratica o crime), então, na hipótese de ajuste bem sucedido, com morte consumada, o «homem da frente», não seria responsabilizado como autor! Sendo evidente que se não passa da autoria singular para a autoria plural, em função do crime ser tentado ou consumado.

É dizer que se não vê, como é que é possível, em casos de ajuste, sem mais, ir para a autoria mediata, mantendo-nos no âmbito da autoria individual, e desresponsabilizando portanto o aliciado, ou então, como é que se pode responsabilizá-lo sem se cair na co-autoria, passando nesse caso a confundir esta com a autoria mediata.

Tanto o aliciado está nas mãos do aliciante para receber a contrapartida do seu trabalho, como o aliciante está nas mãos do aliciado para ver o seu projecto realizado.

Mas tanto o aliciante pode romper com o ajuste, como o aliciado pode deixar de ser sensível ao aliciamento, sendo este último a romper com o ajuste. Daí que das duas uma. Ou a situação se caracteriza como autoria mediata e só o «homem de trás» pode ter o domínio do facto, e mais ninguém, ou o «homem de trás» tem o domínio do facto sob a forma de domínio da vontade, e o da frente o domínio do facto sob a forma de domínio da acção, e entramos no domínio da co-autoria. Ou seja, da autoria plural.

Considerar que a expressão «executar o crime por intermédio de outrem», consensualmente referida aos casos de autoria mediata, é uma forma de co-autoria, seria, a nosso ver, lançar a maior das confusões sobre o artigo 26.º do nosso CP.

5 - A instigação. - A partir daqui somos levados a ensaiar o enquadramento da actividade do agente na instigação, como fez o acórdão fundamento.

Segundo o artigo 26.º do CP, última parte, é autor quem «dolosamente determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução». A lei prevê, neste segmento, as situações em que alguém comete um crime, e por ele é inteiramente responsável, certo que, no entanto, nunca o teria cometido se não fosse a influência psicológica de outrem. Determinar outrem é criar noutro a decisão de cometer o crime, assumindo-se o último como executante, autor material ou «homem da frente».

O instigador é na nossa lei autor porque sem ele não havia crime. É figura central, deu um contributo decisivo para que o crime ocorresse, ou, se quisermos abandonar uma concepção causal de autoria, para o legislador, o instigador ascende à categoria de autor, porque domina o facto, sob a forma de domínio da vontade (do executante).

Claro que, para que o crime tenha lugar, não basta a acção do instigador, importando ainda que haja quem o execute. E o executante também será autor, quer porque se entenda que o seu contributo é decisivo, quer porque se considera que domina o facto, sob a forma de domínio da acção. Dois autores (ou mais), portanto, e daí ser a instigação um afloramento de autoria plural, como se disse.

Ao contrário do que acontece na autoria mediata, em que o legislador começou logo por se referir a «quem executar o facto» (não tendo que falar mais em execução ou actos de execução), na instigação o legislador fez depender a sua relevância de haver «execução ou começo de execução». Do que resulta, em primeiro lugar, que a actividade dirigida a determinar alguém ao cometimento do crime não é vista, sem mais, como execução ou começo de execução do crime. Se a iniciativa e actividade de determinação, por parte do instigador, fosse o começo de execução do crime, não faria sentido dizer que tem de haver começo de execução. Daí que o começo de execução só possa reportar-se à actuação do(s) instigado(s). Como nos diz M. C.

Valdágua, «no caso da instigação, a execução do facto ilícito típico é algo que acresce à conduta do comparticipante em causa (instigador), algo, em suma, que terá que ser levado a cabo por outrem - o instigado - para que aquele seja punível.» (in Início da Tentativa do Co-Autor, p. 121).

Depois, mesmo que se concedesse que a acção finalisticamente ordenada à determinação, protagonizada pelo instigador, era o modo próprio de ele executar o crime, sempre importaria saber se determinou, ou não, de facto, outrem. E o legislador entendeu, como «exigência de política criminal» (a expressão é de F. Dias, in obra por último citada, p. 809), que o sinal, o sintoma, a revelação de que tinha ocorrido determinação, só podia ser dado, convincentemente, pelo menos com o começo de execução.

Assim, com o começo de execução por parte do «homem da frente» revelar-se-á, retrospectivamente, a execução levada a cabo pelo «homem de trás». Somos postos perante um procedimento do instigador cujo propósito é levar outrem a adoptar certo comportamento criminoso. O efeito psicológico produzido na mente do «instigado» tem de se revelar ao julgador por sinais exteriores, e por isso é que o legislador só aceita, como revelação suficiente de que houve uma efectiva determinação, o início da prática dolosa, por parte do instigado, de actos de execução do crime. O início da execução não acresce à determinação atomisticamente. A determinação só se revela através do início de execução.

No caso em referência, não só o começo de execução, ou a execução adiantada do homicídio, não foram impedidos pela intervenção de estranhos ao «ajuste», como foram os interlocutores do agente que resolveram não iniciar a execução, denunciando a situação às autoridades policiais.

Se o agente não determinou relevantemente ninguém, não é, à luz do artigo 26.º do CP instigador. E não sendo instigador não é por essa via autor. A lei não se basta, para que alguém ascenda à categoria de autor, que tenha pretendido ser autor, sem o conseguir.

«É também patente que enquanto o agente imediato não praticou nenhum acto de execução não há verdadeiramente instigação. Aliás nem de outra forma poderia ser, já que então estar-se-iam a punir meras cogitationes» (cf. Faria Costa in Jornadas de Direito Criminal, CEJ, p. 173), obviamente, do instigado, porque, quanto ao instigador, ele já passara das cogitationes, pelo menos, aos contactos com quem iria executar o crime.

Isto dito, fica sem sentido discorrer sobre se a factualidade em apreço, encarada como instigação, seria, em matéria de iter criminis, assimilável a uma situação de tentativa.

Dir-se-á, na sequência das anteriores considerações, e com F. Dias, mais uma vez, «que o início da tentativa da prática do facto implica, na instigação, a prática de um acto de execução pelo instigado» (ob. cit., p. 822). Anote-se ainda à margem que, se o executante houvesse de ser outro indivíduo que não o primeiro contactado, teríamos que configurar uma instigação em cadeia, com o mesmo resultado de se não poder punir o instigador, transformado em instigador do instigador.

Vale a pena anotar que segundo o Código Penal brasileiro (artigo 31.º), por exemplo, a situação teria o mesmo tratamento.

«[...] o ajuste [sublinhamos, 'o ajuste'], determinação (induzimento), instigação ou auxílio, são impuníveis, se o crime não chega, pelo menos a ser tentado. A forma tentada é o patamar mínimo para efeito da punibilidade da participação, que sempre depende de uma conduta principal (típica e antijurídica). Sabemos que a forma tentada exige actos executórios (execução do verbo núcleo do tipo ou começo de execução do crime - teoria objectiva-individual). Os actos preparatórios (que antecedem os executórios), em regra, não são puníveis. Isso é o que diz o artigo 31.º do CP. Várias pessoas ajustam (combinam) um roubo e elegem A para executá-lo. A, nem sequer inicia a execução. A combinação precedente, nesse caso, é impunível. Essa é regra do direito penal brasileiro.» (cf. Flávio Gomes e Garcia-Pablos de Molina, in Direito Penal - Parte Geral, vol. ii, p. 482).

6 - A co-autoria. - Há que ver, finalmente, se a situação dos autos não poderá implicar a responsabilização do arguido, considerando-o simplesmente um co-autor. Ou seja, necessariamente, um autor, ao lado de outro ou outros, no cometimento do mesmo crime. Adiante-se desde já que esta hipótese esbarra com o facto de, embora preenchidos os elementos da co-autoria em relação ao agente, falham em relação aos indivíduos por eles contactados. E não há co-autor sem pelo menos outro autor...

O artigo 26.º já citado considera, também, autor, quem:

Tomar parte directa na execução do facto;

Por acordo ou juntamente com outro ou outros.

A propósito deste segmento tem-se distinguido um elemento objectivo do elemento subjectivo da co-autoria.

Dir-se-á que, quanto ao primeiro, tem de existir uma distribuição complementar de tarefas para levar a cabo o crime. Para se afastar qualquer intervenção na execução, que seja só de cúmplice, importa que o co-autor tome parte na execução «de modo directo», com isso se querendo aludir a uma intervenção essencial em termos de causalidade adequada (E. Correia). Ou então que tenha o domínio funcional do facto (Roxin) sempre que, tendo em conta certo estádio de execução, a intervenção do co-autor for indispensável à execução do crime, sob pena de sem ela o plano de conjunto falhar.

Segundo o plano do arguido, este levou a cabo um conjunto de «tarefas» que já estão para além do trabalho de aliciamento, ou que fossem, só, pressuposto do ajuste que ele pensava ter sido feito. O arguido podia ter actuado, só, para psicologicamente criar noutrem a vontade de cometer o crime, fundamentalmente com a oferta duma compensação monetária. Acontece é que, para além disso, praticou os actos que a ele competiam, consubstanciados no fornecimento da informação indispensável ao cometimento do crime ou até no pagamento. Não custa aceitar que a prestação dessa informação está para além da acção de determinação de outrem, porque não aparece como elemento condicionante do próprio aliciamento.

Quanto ao elemento subjectivo, dir-se-á que, na perspectiva do arguido, começou por haver acordo para a execução do crime, e houve da sua parte colaboração para a sua execução, ao prestar a aludida informação. Sobretudo, é evidente que não falha em relação a ele o dolo de autor, porque era o arguido que mais tinha vontade na realização do tipo.

Acontece é que, no caso, a perspectiva do agente tem que ser conjugada com a existência de um acordo real, para se poder falar de co-autoria.

Em primeiro lugar, porque sem acordo (ou consciência de colaboração recíproca), não há execução que se mostre partilhada. Quando muito ocorreriam autorias paralelas, o que não vem ao caso.

Depois, e decisivamente, porque não há autor, e também portanto co-autor, sem dolo de autor.

No caso em apreço, a matéria de facto nada nos diz sobre se os indivíduos contactados chegaram a ter agido com dolo de autor (e muito menos de cúmplice).

Muito pelo contrário, a crer naquela factualidade no seu núcleo comum relevante, os contactados não agiram com dolo de autor quando fizeram o que se deu por provado que fizeram.

Resta dizer, que pouco interessará discorrer a partir da ideia de que, caso o crime se tivesse consumado, o arguido teria sido considerado autor, e não teria feito nem mais nem menos do que aquilo que fez (salvo, eventualmente, pagar o preço que faltasse).

Em primeiro lugar, porque nessa hipótese seria, desde logo, responsabilizado como instigador. Depois, porque caso o crime se tivesse consumado, e mesmo que raciocinássemos fora do contexto da instigação, o contributo do arguido para o cometimento do crime teria que ser conjugado com o dos participes, para o efeito de se aferir da sua idoneidade para produzir o resultado típico.

Diz-nos Cavaleiro Ferreira: «A idoneidade não pode qualificar cada um dos actos de execução. [...] o acto incoactivo ou inicial da execução pode não ser por si só idóneo, causal em relação ao resultado. A idoneidade para a produção do crime consumado refere-se à execução, de que o primeiro ou primeiros fazem parte.

E, por isso, a definição de cada acto de execução pressupõe a sua inserção na totalidade do plano de execução que o agente se propõe realizar. Há que partir do plano concebido pelo agente, quanto à execução, para avaliar da idoneidade de toda a execução, e é em função desse plano que se atribui a cada parcela, a cada acto do todo, idoneidade em conjunto com os actos não executados.

É também esta a interpretação que deve dar-se à alínea b) do n.º 2 do artigo 22.º» (in Lições de Direito Penal, vol. i, pp. 286 e 287).

É evidente que a opção de política legislativa que está por detrás desta situação resulta, não apenas da consideração da censura que o agente merece, e aqui seria a mesma, havendo consumação ou não, mas também do perigo efectivo criado para o bem jurídico protegido. No caso em apreço esse perigo não terá chegado a existir, tanto quanto a factualidade revela.

7 - A autoria singular. - Isto dito, somos empurrados para uma reflexão sobre a responsabilização do arguido, em termos de autoria tão-só singular. Ao discorrermos sobre a configuração da acção do arguido como simples co-autor, a resposta dada ressalvava sempre o plano do agente, o convencimento do arguido. Objectivamente não houve acordo, não houve consciência partilhada por parte dos co-autores de actuação conjunta, não houve participação na execução por parte dos contactados, porque não houve actos de execução dos contactados. Mas não será que, afastada a co-autoria, a actuação do agente não poderá ser encarada como simples autoria singular, de um crime tentado, sob a forma de tentativa impossível por inaptidão do meio - aqui a falta de anuência dos contactados - mas punível por esta inaptidão não ser manifesta? Como se sabe, não ocorreu a morte de ninguém, pelo que a ter havido crime, este teria forçosamente que ser tentado. Interessa então que nos detenhamos sobre a distinção entre actos preparatórios, e os actos de execução, para se saber se o agente praticou estes últimos.

O homicídio não é crime de execução vinculada, pelo que está à partida afastada a hipótese da al. a), do n.º 2 do artigo 22.º do CP., que contempla os actos de execução, como preenchimento de um elemento constitutivo de um tipo de crime.

A não idoneidade da actividade do arguido para, só por si, causar o resultado morte, decorre desde logo de se ter que socorrer de executantes materiais. Está assim afastada a hipótese da al. b): actos idóneos a produzir o resultado típico.

Fica-nos a hipótese de os procedimentos do arguido, «segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores» [alínea c)].

A doutrina tem explicitado que «se pode conferir relevo como de execução apenas ao acto que (assumindo as exigências de 'normalidade social' requeridas pela alínea em exame) antecede imediatamente, sem solução de continuidade substancial e temporal, o acto cabido nas alíneas a) ou b)» do n.º 2 do artigo 22.º do CP (cf. F. Dias in última ob. cit. p. 706).

Actos seguidos, das espécies das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 22.º , são os actos que, numa avaliação objectiva, previsivelmente se seguiriam à conduta do agente, sem outros de permeio. A esta «conexão de perigo» acrescentar-se-á uma «conexão típica», quando o acto perturbe a esfera de protecção da vítima, quando entre já no âmbito de protecção do tipo.

Na factualidade em apreço, não se pode falar de «conexão temporal estreita» entre os actos, entre o último acto do arguido e o que se esperava que se lhe seguisse, consistente no acto idóneo a causar a morte. A esfera de protecção da vida, da vítima potencial, também não chegou a ser realmente perturbada.

Por outras palavras, a factualidade provada não permite afirmar que, à luz da normal experiência da vida, «toda a gente iria pensar» que logo a seguir à actividade do arguido se ultimaria a execução do crime sobrevindo a morte da vítima. Na verdade, tudo iria ainda ficar dependente, e decisivamente dependente, da colaboração dos contactados, pessoas com vontade livre, que poderiam a todo o momento «voltar atrás».

Quando a nossa lei diz, na alínea c) do n.º 2 do artigo 22.º do CP, que só há actos de execução quando é de esperar que, «segundo a experiência comum», «lhes sigam» os idóneos a produzir o resultado, estes últimos haverão que seguir-se àqueles, sem outros de permeio. A lei não fala simplesmente a actos que se sigam aos executados já, e optou por precisar uma imediatez temporal, através da expressão «lhes sigam».

A nossa lei não centrou a punição da tentativa na mera perigosidade do agente, revelada só pela análise do seu plano. Fosse esse o caso, e bastaria que o agente, de acordo com o seu plano, pusesse em acção os actos que segundo ele eram decisivos para o crime, para terem que ser considerados actos de execução. A consideração do plano do agente interessa, como ponto de partida, para se saber se se está perante actos preparatórios ou de execução, mas, conhecido esse plano, importa que os actos do agente antecedam imediatamente o preenchimento de elementos do tipo, ou se posicionem como um perigo imediato de lesão do bem jurídico, «segundo a experiência comum».

Diga-se entre parêntesis que, havendo como há, actos de execução que em si não são ilícitos, eles cobram significado quando observados à luz do plano do agente. Mas importa ainda que, objectivamente, («segundo a experiência comum» diz a lei), seja de esperar que esses mesmo actos se façam seguir logo de outros, idóneos concretamente a produzir a morte, para o caso que nos ocupa.

Dando mais uma vez a palavra a M. C. Valdágua, «importa assinalar que a referida alínea c) do n.º 2 do artigo 22.º, abrange, em relação ao co-autor da tentativa, sempre e só actos que, isoladamente considerados, apenas fundamentariam a punição por cumplicidade no delito tentado, mas que, tendo em conta o plano concreto dos comparticipantes, são de natureza a fazer esperar ('segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis'), que se lhes sigam, em estreita conexão temporal com eles, actos do mesmo agente que justificam a sua qualificação como co-autor» (in Início da Tentativa do Co-Autor, pp. 214 e 215). «Em estreita conexão temporal com eles», sublinhe-se.

A doutrina e jurisprudência alemãs vinham exigindo uma anterioridade temporal imediata, dos actos levados a cabo, em relação aos que consumariam o tipo, e, para casos especiais (de autoria mediata, omissão, tentativa acabada, ou actio libera in causa, que não interessam ao caso), exigiam que o agente tivesse invadido ou diminuído a esfera de protecção da vítima.

Como diz Jescheck, «[d]eterminante é que o comportamento ainda formalmente atípico esteja tão estreitamente vinculado com a verdadeira acção executiva, que se possa passar à fase decisiva do facto sem necessidade de passos intermédios essenciais» (in Derecho Penal - Parte General, p. 558). E Stratenverth adverte em consonância que, na tentativa, o acto de execução aparece para uma concepção natural como parte integrante da verdadeira acção típica, porque entre aquele e esta não existe «nenhum acto parcial essencial» (in Derecho Penal - Parte General I, p.

288).

Foi em consonância com estas posições que o § 22.º do CP alemão caracterizou a tentativa como «um avançar imediatamente para a realização do tipo penal» (cf. M. C.

Valdágua, ob. cit., p. 46). À letra, aquele preceito diz-nos que «[t]entará realizar um acto ilícito quem, de acordo com o seu plano de execução do facto se proponha realizar imediatamente a acção típica». Por isso é que Jakobs refere mesmo que não há tentativa, por exemplo, quando alguém não ultrapassa a fase de angariação de participes (in Derecho Penal. Parte General. Fundamentos y Teoria de la Imputación, p. 887).

Resta dizer que «[q]uanto à regulamentação do início da tentativa em geral (delimitação da tentativa face à fase dos actos preparatórios em princípio impunes), ela é feita no StGB em termos que, na substância das coisas, não se afastam essencialmente daqueles que o legislador português estabeleceu no artigo 22.º do nosso Código Penal.» (ainda M. C. Valdágua, in ob. cit., p. 45).

Concluímos portanto que, no caso, a actividade levada a cabo pelo agente não é suficiente para poder ser caracterizada como actos de execução. Só por isso ficará afastada a ocorrência da tentativa e portanto de uma tentativa impossível mas punível.

Poder-se-ia dizer, apesar de tudo, que caso o crime tivesse sido consumado, o agente não precisava de ter feito mais do que aquilo que fez, e seria punido como autor. A objecção não procede.

Caso o crime se tivesse consumado, tal não significaria que os actos preparatórios praticados pelo agente se transmutassem em actos de execução. O seu posicionamento no iter criminis permanecia evidentemente o mesmo. O que aconteceria é que, nessa eventualidade, dúvidas não restam que o agente seria punido como instigador, e a sua actuação, sem deixar de se conotar em si, formalmente, como actos preparatórios num contexto de crime consumado, seria punida. É que o artigo 21.º diz-nos que os actos preparatórios não são puníveis, salvo disposição em contrário.

8 - Em conclusão. - De todo o exposto se conclui que o agente, na situação em apreço, não pode ser punido.

Porque a tentativa de instigação não é punível entre nós, porque não pode ser considerado autor mediato, porque não ocorreu qualquer co-autoria, porque não praticou actos de execução para poder ser condenado como autor individual de um crime tentado.

Por isso, o assento que lavraria seria do seguinte teor, ou outro equivalente:

Em face da nossa lei penal, não é punível o comportamento do agente que contacta outra pessoa, para que esta mate ou arranje quem mate um terceiro, se ninguém chegou a praticar qualquer acto de execução do crime, em virtude da proposta formulada não ter obtido acolhimento.

Não fica sem referência que o comportamento do recorrido revela perigosidade, pese embora o bem jurídico protegido nunca ter estado ameaçado, de modo penalmente relevante, à luz da lei vigente. Mais, tendo em conta a chamada «teoria da impressão», quanto ao fundamento teórico da tentativa, estar-se-ia perante uma actuação que autorizava que o legislador a tivesse previsto e punido, em face do «alarme social causado».

A via a seguir poderia ser, em termos de política criminal, de enveredar (como chegou a propor-se na fase de projecto do actual CP), no sentido de se responsabilizar a «tentativa» de instigação, desde que não seja «manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente», à semelhança do que dispõe o artigo 23.º, n.º 3, do CP, ou substituindo esta expressão por «desde que não seja manifesta a ineficácia do procedimento do agente».

Ou ainda, seguindo o caminho que o do CP espanhol seguiu, onde os actos preparatórios também não são punidos, salvo se assim estiverem especificamente previstos. Por isso criou a figura da «conspiração», da «proposta», da «provocação» e «apologia» pública do crime, como forma de contornar as dificuldades sentidas, exactamente ao nível da distinção entre actos preparatórios e de execução. Diz-nos especificamente aquele CP espanhol que «a proposta existe quando aquele que resolveu cometer um crime convida outra ou outras pessoas para o executar», sendo indiferente saber se houve ou não acolhimento da dita proposta. Depois, pune, na parte especial, a simples «proposta» de homicídio (artigos 17.º, n.º 2, e 141.º do CP espanhol).

Não é essa a lei que temos. O que não significa que se não esteja perante uma lacuna grave de punibilidade, por parte do legislador. - José Souto de Moura.

Voto de vencido

Votei vencido quanto à oposição de julgados, nos termos da declaração de voto do conselheiro Santos Carvalho.

Votei vencido também quanto à questão de fundo pelas razões que seguem.

A posição maioritária fundamentou-se expressamente na posição de Conceição Valdágua quanto ao conceito de autoria mediata para chegar ao resultado a que chegou: a integração nesse conceito do mero «ajuste» da prática de um crime.

Mas a posição dessa autora é incompatível com a lei (artigo 26.º do Código Penal), à luz da qual a determinação de alguém, plenamente responsável penalmente, à prática de um facto ilícito deve ser integrada na instigação (parte final do artigo), e não na autoria mediata, que exige a plena instrumentalização do autor imediato, ou seja, a sua irresponsabilidade penal (por coacção, erro, incapacidade de discernimento ou menoridade penal).

Não é esse o caso da hipótese tratada, pelo que a autoria mediata é liminarmente de afastar.

Em todo o caso, mesmo a admitir-se a autoria mediata, nunca se poderia concluir pela punibilidade da conduta em causa (um crime cometido sob a forma de tentativa), uma vez que não houve início da execução.

Na verdade, como aquela mesma autora admite («Figura central, aliciamento e autoria mediata», Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, p. 934, nota 42), «não poderá falar-se de um início de tentativa enquanto não for realizado algum acto que possa considerar-se abrangido, pelo menos, na alínea c) do n.º 2 do artigo 22.º [do Código Penal].» Ora, é certo e seguro que nenhum acto executivo, sequer um dos referidos nessa alínea, foi praticado pelos pretensos executores, que nunca tiveram a intenção de praticar o crime «encomendado» (e também não pelo «autor mediato», que se limitou, depois de fornecer o «plano» criminoso, a ficar na «expectativa da execução do facto»).

Assim, mesmo de acordo com a concepção teórica adoptada, a conclusão é insustentável.

Em todo o caso, a hipótese de facto constitui instigação (e não autoria mediata), que só com o início da execução seria punível, o que não sucedeu, como disse.

Ao fazer recuar a tutela penal a um estado anterior à execução, a posição que fez vencimento acaba por punir meros actos preparatórios, assim violando o artigo 21.º do Código Penal.

Em meu entender, deveria ter-se fixado jurisprudência nestes termos:

Não é punível a conduta de quem, após planear a morte de uma pessoa, propõe a outrem a execução do plano, mediante o pagamento de determinado montante, que vem a entregar, dando-lhe as indicações precisas sobre a prática do facto, quando o contactado só aparentemente aceita a proposta e não vem a praticar nenhum acto de execução. - Eduardo Maia Costa.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/07/21/plain-257475.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/257475.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-09-23 - Decreto-Lei 400/82 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código Penal.

  • Tem documento Em vigor 1995-03-15 - Decreto-Lei 48/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Penal aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, e procede à sua republicação.

  • Tem documento Em vigor 2007-03-13 - Decreto-Lei 59/2007 - Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social

    Procede à extinção da Caixa de Previdência do Pessoal da Câmara Municipal de Lisboa por integração nos Serviços Sociais da Câmara Municipal de Lisboa.

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