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Acórdão 248/2009, de 15 de Junho

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Sumário

Decide não julga inconstitucional a norma do artigo 655.º do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de atribuir ao juiz o poder de livremente continuar a apreciar o valor de depoimento em que a testemunha não indicou a sua razão de ciência. (Proc. nº 78/09)

Texto do documento

Acórdão 248/2009

Processo 78/09

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

Rui José Moura Alves Ferreira Bastos intentou acção declarativa contra Frisomat - Comércio e Indústria de Materiais de Construção, S. A., e Jerónimo Albuquerque Pais de Faria, pedindo que a Ré Frisomate e, subsidiariamente, o Réu Jerónimo Faria, fossem condenados a pagar-lhe a quantia de USD 47.120,80, acrescida de USD 5.577.00 de juros vencidos, até 14 de Julho de 1998, e vincendos, até integral e efectivo pagamento, e a indemnizá-lo em quantitativo não inferior a USD 120.000,00, acrescido de juros desde a citação até integral pagamento.

Realizado julgamento foi proferida sentença que julgou a acção procedente, tendo a ré Frisomat sido condenada a restituir ao autor a quantia de USD 47.120 (ou a quantia correspondente em euros) e os juros legais vencidos e vincendos à taxa de 5 %, bem como a indemnizá-lo em USD 120.000 (ou a quantia correspondente em euros),

acrescida de juros desde a citação.

A Ré Frisomat recorreu desta sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra que, após ter proferido um primeiro acórdão que foi anulado por decisão do Supremo Tribunal de Justiça, julgou improcedente o recurso interposto, confirmando a sentença

da 1.ª instância.

A Ré Frisomat recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão proferido em 16-10-2008, julgou improcedente a revista.

A Ré Frisomat após ter sido indeferido um pedido de arguição de nulidade daquele acórdão, recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º,

n.º 1, b), da LTC, nos seguintes termos:

"O presente recurso tem como fundamento a violação dos artigos 2.º, 3.º n.º s 2 e 3, 8.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 32.º e 202.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e concomitantemente, do princípio do Estado de Direito, da garantia de processo justo e adequado à realização do Direito, do princípio da conformação do processo segundo os direitos fundamentais e do princípio da legalidade processual, na interpretação do princípio da livre apreciação da prova, que admite a valoração de prova testemunhal destituída de indicação concreta da respectiva razão de ciência, suscitada nas Alegações de Recurso interposto para este Supremo Tribunal de Justiça."

Apresentou alegações, com as seguintes conclusões:

"I. Nos presentes autos, a procedência da acção derivou exclusivamente, da valoração do depoimento prestado por uma "testemunha" que cedeu os créditos para poder legalmente sê-lo (ou para que os créditos poderem teoricamente existir) e de depoimentos de testemunhas que nunca referiram nos autos, o motivo, razão ou circunstâncias, em que adquiriram conhecimentos daquilo que afirmam ser a mais pura «verdade, pois consta do contrato» que a NEWPALM nunca celebrou as outras sociedades que eram geridas pela isenta testemunha Nuno Palmeira.

II. «Do princípio do Estado de Direito deduz-se, sem dúvida, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. Como a realização do direito é determinada pela conformação jurídica do procedimento e do processo, a constituição contém alguns princípios e normas designados por garantias gerais de procedimento e de processo.». Dentre as garantias do processo judicial que têm dignidade constitucional, por respeitarem a direitos considerados fundamentais, podem mencionar-se: a garantia do processo equitativo (artigo 20, n.º 4), o princípio da conformação do processo segundo os direitos fundamentais (artigo 32), o princípio da fundamentação dos actos judiciais (artigo 205.º, n.º), o princípio da legalidade

processual (artigo 32.º).

III. A exigibilidade de explicitação das razões de ciência das testemunhas prende-se, primeiramente, com o controlo do respeito pelos limites da livre apreciação da prova testemunhal, tendo em vista garantir um processo justo e equitativo, garantia de inequivocidade e clareza do processo e rejeição de decisões judiciais que se fundem

num juízo arbitrário.

IV. Na expressão do Professor Alberto dos Reis, «Tem a maior importância esta exigência» a que «Tanto apreço ligou a lei». Sendo as razões de ciência qualificadas por Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio Nora como «elemento essencial» que «reveste efectivamente a maior importância»., pois «[...] a prova testemunhal é

particularmente falível e precária»..

V. Daí que «Se for omitida a explicação da razão da sua ciência acompanhada das circunstâncias que possam justificar o conhecimento dos factos, o depoimento inexiste, seja física, seja juridicamente» (Jorge Lourenço Martins in "O Depoimento Testemunhal em Processo Civil", citado por Isabel Alexandre, in "Provas ilícitas em Processo Civil").

VI. Relativamente à validade (ou existência...) do testemunho, a exigibilidade da indicação das razões de ciência das testemunhas, funda-se nestas premissas e encontra-se hoje positivada no artigo 683.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe: «Regime do Depoimento» (conjunto de regras que regulam a produção da prova testemunhal) exigindo-se portanto que a testemunha faça a declaração de um facto e indique como sabe (viu, ouviu, sonhou...) e explique as circunstâncias desse

conhecimento.

VII. Nos sistemas da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, com base na observação e análise da prova que lhe é apresentada, mas nem por isso fica desobrigado, «na formação dessa convicção», de indicar os fundamentos onde aquela assentou. A lei processual determina e faz impender, sobre o julgador, um ónus de objectivação da sua convicção, que virá a ser demonstrado na respectiva motivação, nos termos do artigo 653.º, n.º 2

do CPC.

VIII. Por imposição constitucional (primeiro) e legal (depois), a livre apreciação da prova, não é um juízo arbitrário ou de intuição sobre veracidade ou não de uma certa realidade de facto, mas antes uma convicção adquirida por intermédio dum processo racional, objectivado, alicerçado na análise critica comparativa dos diversos dados recolhidos nos autos na e com a produção das provas e na ponderação e maturação dos fundamentos e motivações, sendo que essa convicção carece de ser enunciada, por expressa imposição legal, como garante da transparência, da imparcialidade e da inerente assunção da responsabilidade por parte do julgador na administração da

justiça.

IX. Ao impor que as testemunhas apresentem a respectiva razão de ciência, a lei processual civil visa consubstanciar a garantias de imparcialidade e legalidade, bem como o direito a um processo justo, para que não ocorra aquilo que nos autos ocorreu:

serem valorados depoimentos de testemunhas destituídos (ou sendo presumidas) as

respectivas razões de ciência.

X. Por outras palavras, a exigibilidade de menção das razões de ciência consubstancia um princípio processual, plasmado na lei ordinária, concretiza e constitui corolário de outros, constitucionalmente consagrados como a exigência constitucional de um processo justo, plasmado no artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, devidamente concretizado, no «Regime» previsto no artigo 683.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, destinando-se a impedir que o sistema de prova livre e livre apreciação da prova, se converta num poder ilimitado e arbitrário do Juiz.

XI. A prova domina todo o processo declarativo, pois a sentença (que lhe põe termo) assenta necessariamente na prova. Dada a importância da prova, ela constitui o ponto central do processo e, consequentemente, do direito processual. Por isso, «Em sede de prova, o direito ao processo equitativo implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos, quer o sejam por violarem direitos fundamentais, quer porque se formaram ou

obtiveram por processos ilícitos.».

XII. Se nos termos do artigo 202.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa:

«Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo», não faz qualquer sentido aplicar uma lei processual diversa daquela que é a lei do povo em nome do qual o tribunal aplica a lei substantiva. E também a efectivação do princípio do direito ao processo equitativo exige o julgamento de acordo com as leis do país. Por essas razões, no direito processual civil não há qualquer excepção resultante da aplicação da lei: as normas de processo são exclusivamente

territoriais.

XIII. Da natureza pública do direito processual civil e do princípio da aplicação territorial absoluta da lei adjectiva, decorre que a validação dos depoimentos, de acordo com a (hipotética!) lei estrangeira afecta a independência do Estado Português.

XIV. Ainda que a prova seja livre, não o é a sua valoração. A vinculação do Juiz à lei do Estado em que julga o litígio é a expressão do Estado de Direito, pois nos termos do artigo 2 da Constituição da República Portuguesa, a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais, o que, nos termos do n.º 2 do artigo 202.º da Lei Fundamental, incumbe aos tribunais assegurar.

XV. Segundo o Acórdão recorrido «a falta de menção de conhecimento dos factos relatados pela testemunha não afecta o depoimento enquanto tal» e «não acarreta, de per si, a proibição de consideração do seu depoimento», fundando-se na premissa segundo a qual o artigo 638.º, n.º 1, do CPC, «dirige-se à ponderação da credibilidade do depoimento e, consequentemente, à formação da convicção do juiz [...]».

XVI. A fundamentação do Acórdão recorrido abre um perigoso precedente, pois recorre a uma singular interpretação do princípio da prova livre, legitimando "fundamentação" de qualquer decisão assente na prova testemunhal (ilicitamente) produzida e (ilegalmente) valorada, sem qualquer referência às razões de ciência, «exigência» e «elemento essencial) a que a lei «Tanto apreço ligou», sem as quais, conforme a doutrina entende unanimemente, fica o Tribunal impedido de apreciar a força probatória e de valorar a prova testemunhal, assim subvertendo a jurisprudência proferida por este Tribunal Constitucional, relativamente ao princípio da fundamentação

das decisões judiciais.

XVII. O Acórdão recorrido mostra-se claramente avesso à jurisprudência Constitucional, ao rejeitar a anulação dos Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Coimbra, na medida em que «só a falta absoluta de motivação constitui a nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 668 do C. Pr. Civil).

XVIII. O necessário acatamento da lei positiva, consubstanciado no princípio da legalidade processual, associado à necessidade de garantir a transparência das decisões judiciais, impõe que a formação da convicção se destine igualmente a combater a ocultação, por detrás de meras justificações formais, dos reais motivos da decisão, ou

sequer de «meias fundamentações».

XIX. Se a fundamentação da decisão não pode deixar de indicar os razões de ciência das testemunhas, sob pena de nulidade, também não poderá valorar-se um depoimento que vem sem as (assim necessárias) razões de ciência: sem conhecer as razões de ciência, o Julgador não pode enunciar os razões pelas quais valorou e creditou a prova testemunhal, nem efectuar qualquer análise crítica do depoimento destituído de razões de ciência. E não pode o cidadão conformar-se com tal juízo, totalmente arbitrário.

XX. A decisão recorrida é arbitrária, iníqua, injusta e ofensiva da dignidade constitucional do Princípio do Estado de Direito, pondo em crise o princípio da legalidade processual e da transparência das decisões judiciais, o direito a um processo justo e consequentemente, o princípio da legalidade democrática, a confiança no poder judicial e a própria noção de Estado de Direito: conforme afirmaria Taruffo, só seria uma boa decisão se para ela houvesse, ou pudesse haver, boas justificações.

XXI. Para rejeitar a «deficiente fundamentação da matéria de facto», o Acórdão limita-se, de forma artificial e falaciosa, a transcrever passagens do Acórdão da Relação "reformado", das quais se destaca «a testemunha tem conhecimento pelo facto de ter visto os contratos» e «referiram expressamente que este facto consta do contrato», quando o mesmo Tribunal e os mesmos Juízes Desembargadores, já haviam anteriormente considerado que «É certo que não se encontra mencionada naqueles a

razão de ciência».

XXII. Em Estado de Direito, subordinado «à Constituição e funda-se na legalidade democrática», o acatamento dos valores constitucionais da certeza e segurança jurídica e da imparcialidade do poder judicial, não é compaginável com decisões que visam "justificar-se" através da contradição e da aparência de legalidade! XXIII. A independência e a imparcialidade do Juiz não podem ser afirmadas só a nível de princípios gerais e abstractos, sob pena de provocarem o seu completo esvaziamento: o juiz só é independente e imparcial se demonstra sê-lo na particular decisão que profere, motivando-a de modo que ela resulte fundada sobre uma verificação objectiva dos factos da causa e sobre uma interpretação válida e imparcial

da norma.

XXIV. Sendo a obrigação de motivação garantida por uma norma constitucional, ela «não é já orientada só para a finalidade de controlo endoprocessual da sentença, passando a consubstanciar uma garantia geral e não vazia de conteúdo: sendo um instrumento de controle democrático sobre a justiça da decisão, a motivação tem um "valor instrumental" de efectivação de outros princípios fundamentais, relativos à administração da justiça no Estado de Direito, razão pela qual, não pode ter-se por cumprida "de qualquer maneira", bastando invocar uma boa "desculpa", como a livre prova e livre apreciação da prova, para assim "motivar" uma decisão completamente

ilegal e iníqua.

XXV. Em concreto, a valoração dos depoimentos processuais influíram na decisão da causa, contribuindo determinantemente para o resultado probatório. Sem esses depoimentos, não seriam provados os factos vertidos nos pontos 5 e 6 da Base instrutória. Não seriam provados os prejuízos supostamente causados pela não celebração dos Contratos. Não existiria o crédito cedido ao Autor.

XXVI. A admissibilidade de tais depoimentos, destituídos da indicação da respectiva razão de ciência, põe em crise a confiança no poder judicial, que só se consegue obtendo o respeito e total confiança dos cidadãos no seu poder judicial, podendo mesmo considerar-se, por essa razão, contrária à ordem pública.

XXVII. Estes princípios relativos à produção da prova testemunhal, são por isso princípios de Direito geral ou comum, aplicáveis em sede de direito processual civil e comuns a todo o Estado de Direito que nos termos do artigo 8.º, n.º 1 da Constituição «fazem parte integrante do direito português.».

XXVIII. A interpretação dos princípios da prova livre e da livre apreciação da prova, adoptada nos presentes autos, segundo a qual a inexistência de declaração das razões de ciência não compromete a admissibilidade dos depoimentos, nem a admissibilidade de valoração desses depoimentos, mostra-se assim inconstitucional por violar o artigo 2.º, 3.º n.º s 2 e 3, 8.º, n.º 1, 20.º, n.º 4 e 202.º da Constituição da República

Portuguesa.

Termos em que deve ser declarada a inconstitucionalidade da interpretação ventilada no Acórdão recorrido, segundo a qual, o Tribunal é livre de apreciar os depoimentos destituídos de razão de ciência e a falta de menção e inexistência de declaração dessas razões de ciência das testemunhas, não determina a inadmissibilidade de valoração da prova assim produzida (pressupondo o «regime do depoimento» previsto no artigo 683.º, n.º 1, como meramente indicativo da credibilidade do depoimento, possibilitando a valoração de tais depoimentos ao abrigo do artigo 655.º, ambos do Código de Processo Civil) e em consequência, ser o mesmo revogado, assim se fazendo sã e

serena justiça."

O recorrido contra-alegou, sustentando que o Tribunal não deveria conhecer deste recurso, atento o cariz instrumental do recurso constitucional, e pugnando pela sua improcedência, para a hipótese de ser conhecido o seu mérito.

Fundamentação

1 - Da idoneidade do objecto do recurso

A recorrente pediu que o Tribunal Constitucional se pronunciasse sobre a constitucionalidade do princípio da livre apreciação da prova em processo civil (vertido no artigo 655.º, do C.P.C.), na interpretação segundo a qual é admissível a valoração de prova testemunhal destituída da indicação concreta da respectiva razão de ciência.

O recorrido defendeu que não deveria ser conhecido o mérito deste pedido, uma vez que o recurso constitucional tem natureza instrumental e a decisão recorrida apesar de ter sustentado a constitucionalidade daquela interpretação, tinha acrescentado que a razão de ciência das testemunhas em causa, apesar de não se encontrar indicada no registo dos seus depoimentos, decorria de elementos constantes no processo.

É certo que, tendo o recurso constitucional natureza instrumental, este Tribunal só deve conhecer do seu mérito quando o juízo de constitucionalidade a efectuar se repercuta utilmente sobre o sentido da decisão recorrida, não servindo este recurso para dilucidar

questões meramente académicas.

Contudo, pretendendo a recorrente que se verifique da constitucionalidade da interpretação normativa segundo a qual é possível ao julgador, em processo civil, valorar os depoimentos testemunhais donde não conste a indicação da sua razão de ciência, um eventual juízo de inconstitucionalidade que recaia sobre tal interpretação obrigará à reformulação da decisão recorrida, quanto à valoração daqueles depoimentos, uma vez que esta admitiu a falta dessa indicação.

O facto do tribunal recorrido acrescentar que, no caso concreto, a razão de ciência das testemunhas em cujo depoimento tal dado foi omitido, poder ser extraída de outros elementos do processo, não é susceptível de continuar a fundamentar este segmento da decisão recorrida, perante o juízo de inconstitucionalidade peticionado.

Daí a utilidade do presente recurso.

2 - Do mérito do recurso

O tema deste recurso situa-se no domínio da valoração da prova testemunhal em

processo civil.

Para enquadramento da questão de constitucionalidade colocada neste recurso, importa relembrar o ocorrido neste processo relativamente à prova testemunhal em

causa.

Na fase da produção de prova foi expedida carta rogatória a Moçambique para inquirição de testemunhas, tendo em 29-9-2000 e em 6-10-2000 sido realizada esta diligência no Tribunal da Cidade de Maputo, onde prestaram depoimento Nuno António Rodrigues Palmeira, Sufiana Faharodine Aly Agy, Aires Fernandes, Hermínio Vidria, Pedro Loforte, Domingos Pedro Peho, Teresa Fernanda da Silva Costa Castel

White, Aida Fainda e Carlos Rosa Cossa.

O depoimento de algumas destas testemunhas, nomeadamente o de Nuno Palmeira, Teresa Castel White, Aida Fainda e Carlos Cossa, foi apontado como fundamento para a decisão da matéria de facto, quer em 1.ª instância, quer no acórdão do Tribunal da Relação que decidiu a impugnação daquela decisão.

O recorrente defendeu perante o Supremo Tribunal de Justiça que os depoimentos destas testemunhas não podiam ser valorados, uma vez que do registo escrito do seu depoimento não constava a razão de ciência destas testemunhas.

O acórdão recorrido, admitindo essa omissão, sustentou que a mesma não impedia que o julgador valorasse livremente tais depoimentos como meio de prova.

É este critério cuja constitucionalidade é questionada pelo recorrente.

Nos termos do disposto, especificamente, no artigo 396.º do C.C. e do princípio geral enunciado no artigo 655.º do C.P.C. o depoimento testemunhal é hoje um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador (em tempos recuados os depoimentos testemunhais já estiveram sujeitos a regimes de predominância do sistema da prova legal, sendo muitas vezes valorados em função de factores meramente quantitativos), devendo este avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência (sobre o conteúdo e limites deste princípio, vide Teixeira de Sousa, em "A livre apreciação da prova em processo Civil", em Scientia Iuridica, tomo XXXIII (1984), pág. 115 e seg., e Aroso Linhares, em "Regras de experiência e liberdade objectiva do juízo de prova - convenções e limites de um possível modelo teorético", ed. de 1988, da Coimbra Editora).

A adopção do sistema romano da "prova livre" privilegia a obtenção da verdade material dos factos, em detrimento da certeza do resultado da prova que preside ao

sistema da "prova legal".

Mas a liberdade na apreciação da prova não equivale a uma apreciação arbitrária das provas produzidas, uma vez que o inerente dever de fundamentação do resultado alcançado impedirá a possibilidade de julgamentos despóticos.

Na avaliação da prova testemunhal a fonte do conhecimento dos factos narrados pela testemunha é um elemento da maior importância para o julgador aferir da credibilidade do relato (vide, neste sentido, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, em "Manual de processo civil", pág. 624-625, da 2.ª ed., da Coimbra Editora, Anselmo de Castro, em "Direito processual civil declaratório", vol. III, pág. 341-342, da ed. de 1982, da Almedina, Pais do Amaral, em "Direito processual civil", pág. 304, da 5.ª ed., da Almedina, e Jorge Lourenço Martins, em "O depoimento testemunhal em processo civil", pág. 69-71, da ed. do Autor de 1988), defendendo este último a inexistência jurídica do depoimento que não contenha qualquer referência à razão de ciência).

Já nas Ordenações, regulando o ofício dos Enqueredores, se dispunha relativamente à

inquirição das testemunhas:

"E bem assi perguntarão declaradamente polo que sabem dos artigos...E se disserem, que sabem alguma cousa daquillo, porque são perguntados, perguntem-lhes como o sabem. E se disserem, que o sabem de vista, perguntem-lhes em que tempo e lugar o viram, e se stavam ahi outras pessoas, que o vissem. E se disserem que o sabem de ouvida, perguntem-lhes a quem o ouviram, e em que tempo e lugar. E todo o que disserem, façam screver, fazendo-lhes todas as outras perguntas, que lhes pareçam necessárias, per que melhor e mais claramente se possa saber a verdade" (In.

Ordenações Filipinas, Livro I, título LXXXVI, § 1.º, reproduzindo o § 2.º, t. 65, do

Livro 1.º, das Ordenações Manuelinas).

O Código Civil de 1867, que regulou a prova testemunhal, nos seus artigos 2506.º e seguintes, previa que a "força probatória dos depoimentos será avaliada tanto pelo conhecimento, que as testemunhas mostrarem ter dos factos, como pela fé que merecerem por seu estado, vida e costumes, ou pelo interesse que possam ter ou não ter no pleito, ou, finalmente, pelo seu parentesco ou relações com as partes" (artigo 2514.º), sendo o referido conhecimento que as testemunhas mostrarem ter dos factos, nada mais que a razão da sua ciência (vide, neste sentido, Cunha Gonçalves, em "Tratado de direito civil em comentário ao Código Civil Português", vol. XIV, pág.

372-373, da ed. de 1940, da Coimbra Editora).

E o Código de Processo Civil de 1939, que assumiu a regulamentação da produção da prova testemunhal, ao contrário do anterior Código de Processo Civil de 1876, retomando, curiosamente, a formulação das Ordenações, fez constar no artigo 641.º:

"A testemunha será interrogada sobre os factos incluídos no questionário que tiverem sido articulados pela parte que a ofereceu, e deporá com precisão, indicando a razão da ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o conhecimento dos factos.

...

§ 2.º A razão de ciência invocada pela testemunha será, quanto possível, especificada.

Se disser que sabe por ver, há-de explicar em que tempo e lugar viu o facto, se estavam aí outras pessoas que também vissem e quais eram; se disser que sabe por ouvir, há-de indicar a quem ouviu, em que tempo e lugar, e se estavam aí outras pessoas que também o ouvissem e quais eram.".

Alberto dos Reis explicou assim esta exigência legal:

"Tem a maior importância esta exigência da lei, porque a razão da ciência é um elemento de grande valor para a apreciação da força probatória do depoimento...Desceu a lei a estas minúcias, porque uma vez destruída ou abalada a razão da ciência, o depoimento perde o valor ou fica notavelmente enfraquecido; e para a parte contrária poder atacar a razão da ciência e o tribunal poder avaliar até que ponto é exacta a razão invocada, muito interessa saber as condições e circunstâncias especiais de que a testemunha se socorre para justificar o seu conhecimento" (In "Código de Processo Civil anotado", vol. IV, pág. 422, da ed. de 1951, da Coimbra

Editora).

A reforma de 1961 do Código de Processo Civil determinou que o regime do depoimento testemunhal passasse a constar do artigo 640.º, e suprimiu a 2.ª parte do § 2.º do anterior artigo 641.º, dispondo agora o n.º 5 do artigo 640.º, apenas que "a razão de ciência invocada pela testemunha será, quanto possível, especificada e

fundamentada".

O Decreto-Lei 47.690, de 11 de Maio de 1967, que introduziu no Código de Processo Civil as adaptações exigidas pela entrada em vigor do Código Civil de 1966, transpôs o regime do depoimento testemunhal para o artigo 638.º, dando-lhe a

redacção actual que é a seguinte:

"A testemunha é interrogada sobre os factos incluídos no questionário, que tenham sido articulados pela parte que a ofereceu, e depois deporá com precisão, indicando a razão de ciência e quaisquer circunstâncias que possam justificar o conhecimento dos factos;

a razão de ciência invocada será, quanto possível, especificada e fundamentada".

Era este também o preceito que se encontrava em vigor na República Popular de Moçambique nas datas em que foram efectuadas as inquirições em causa, uma vez que após a declaração de independência deste Estado, o Código de Processo Civil Português manteve-se em vigor na redacção que lhe havia sido conferida pelo Decreto-Lei 47.690, de 11 de Maio de 1967, sendo certo que o cumprimento das cartas rogatórias deve ser feito segundo a lei do tribunal rogado, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, do Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a Republica Popular de Moçambique, assinado em 12 de Abril de 1990, e aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/91, de 14 de Fevereiro, e que entrou em vigor em 22 de Fevereiro de 1996.

A lei aplicada no cumprimento da carta rogatória de tomada do depoimento a diversas testemunhas não foi, pois, diferente da lei nacional vigente, pelo que não faz qualquer sentido a invocação pela recorrente duma pretensa violação do princípio da legalidade

e da independência do Estado Português.

Apesar do preceituado na legislação ordinária, do registo escrito dos depoimentos das testemunhas ouvidas neste processo no Tribunal da Cidade de Maputo, por carta rogatória, conforme admitiu a decisão recorrida, não consta a indicação da sua razão

de ciência.

Se este dado é um elemento muito importante para o julgador poder aferir da credibilidade dos depoimentos, será que a valoração de prova testemunhal que foi produzida sem essa indicação concreta afronta alguma exigência constitucional? Nesta matéria o parâmetro constitucional que deve ser ponderado é o que exige que os processos em tribunal, incluindo o processo civil, tenham um procedimento equitativo

(artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P.)

O due process é o processo cujas regras de tramitação obedecem aos princípios materiais da justiça, cuja densificação tem vindo a ser realizada casuisticamente pelo Tribunal Constitucional, recorrendo muitas vezes à enunciação de sub-princípios, com particular atenção à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em torno do artigo 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, onde também se consagrou expressamente o direito a um processo equitativo.

No domínio das proibições de valoração da prova, em processo civil, tem sido defendida a aplicação analógica do disposto no artigo 32.º, n.º 8, da C.R.P., sempre que as provas sejam obtidas através de meios violadores dos direitos fundamentais (vide, neste sentido, Teixeira de Sousa, na ob. cit., pág. 140, Isabel Alexandre, em "Provas ilícitas em processo civil", pág. 233 e seg., da ed. de 1998, da Almedina, Paula Costa e Silva, em "Saneamento e condensação no novo Processo Civil", em "Aspectos do novo Processo Civil", pág. 255-256, da ed. de 1997, da Lex, e José João Abrantes, em "Prova ilícita", em "Revista Jurídica", pág. 35-36).

Além destes casos, a exigência constitucional de uma equidade processual orientada para a realização duma justiça material também pode não permitir a valoração de meios de prova manifestamente prejudiciais ao apuramento da verdade dos factos (v. g. as

antigas ordálias).

Neste caso, estamos apenas perante o incumprimento duma regra procedimental da produção de um meio de prova em processo civil, destinando-se essa regra a permitir um melhor apuramento da verdade. Com efeito, indicando a testemunha a fonte do seu conhecimento dos factos por ela relatados, o juiz poderá mais facilmente aferir da

credibilidade desse relato.

Ora, a protecção ao apuramento da verdade dos factos não exige, necessariamente, que o incumprimento duma regra procedimental de produção da prova, destinada a facilitar a aferição do seu valor, seja sancionado com a impossibilidade da sua apreciação, uma vez que, mesmo perante aquele incumprimento, sempre a prova deficientemente produzida poderá continuar a ter alguma utilidade na descoberta da verdade material, não impedindo que o juiz cumpra integralmente o dever de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.

Independentemente do juízo de constitucionalidade que possa ser formulado sobre a solução que se encontre para a falta de conhecimento pelo julgador da razão de ciência do depoimento testemunhal, a mera falta da indicação pela testemunha no seu depoimento das fontes do conhecimento dos factos por ela relatados, não determina inelutavelmente que o julgador não possa aperceber-se das razões da ciência revelada.

Não só essas razões poderão ser retiradas de outros elementos do processo (como a decisão recorrida diz suceder no caso sub iudice), como elas poderão estar implícitas nos próprios factos testemunhados ou resultarem da natureza da relação existente entre

as partes e a testemunha.

Daí que não seja possível dizer que o incumprimento daquela regra procedimental prejudique necessariamente o apuramento da verdade e o cumprimento do dever de fundamentação cabal das decisões jurisdicionais.

Deste modo conclui-se que a atribuição ao juiz do poder de livremente continuar a apreciar o valor do depoimento em que a testemunha não indicou a sua razão de ciência, não põe em causa a exigência constitucional de um processo equitativo, constante do artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P., nem qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.

Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, por Frisomat - Comércio e Indústria de Materiais de Construção, S. A., do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido nestes autos em 16-10-2008.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Lisboa, 12 de Maio de 2009. - João Cura Mariano - Benjamim Rodrigues - Mário José de Araújo Torres - Joaquim de Sousa Ribeiro - Rui Manuel Moura Ramos.

201888779

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2009/06/15/plain-254516.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/254516.dre.pdf .

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