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Assento , de 31 de Julho

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Sumário

O abandono definitivo de uma empresa pelos seus trabalhadores em autogestão antes da vigência da Lei n.º 68/78, de 16 de Outubro, põe fim a essa autogestão e torna invocáveis as garantias referidas no artigo 36.º da mesma lei

Texto do documento

Assento

1 - O Acórdão deste Tribunal de 15 de Novembro de 1983 - agora recorrido - decidiu subsistir a autogestão dos trabalhadores da sociedade CAFER, Lda., organizados na cooperativa REFAC. E, desse modo, vigorar o artigo 36.º da Lei 68/78, de 16 de Outubro, e a suspensão dos direitos de terceiros credores - como o autor Banco Pinto & Sottomayor -, através da ininvocabilidade de avales à CAFER. Assim, absolveu do pedido os avalistas.

Tratava-se do accionamento de livranças emitidas em 1971 pela sociedade, descontadas bancariamente e avalizadas por José Matos de Carvalho, José Aires de Carvalho e José Miguel Bragança, agora réus.

O anterior Acórdão de 25 de Janeiro de 1983 - o fundamento - considerou finda a autogestão e desaplicou o artigo 36.º Cessaria a suspensão e ininvocação de garantias e condenou os réus no pedido.

Em ambos houve identidade física de autor e réus. Mas acolheu-se diferentemente o mesmo facto do abandono em meados de 1977 do estabelecimento da CAFER pela REFAC, sem deixar património algum (resposta ao quesito 7.º).

Ante a discrepância, o autor pediu uniformização no sentido do acórdão-fundamento, considerando violados os artigos 1.º, 11.º, 14.º, 36.º, 39.º, 41.º, 43.º e 48.º da Lei 68/78, revogando-se a decisão e condenando-se os réus.

Houve contra-alegação: o Ministério Público é favorável ao acórdão recorrido.

2 - O acórdão intercalar decidiu haver oposição na mesma questão fundamental de direito. E, não obstante uma particularidade de menor relevo, assim é, no essencial, como ressalta do parágrafo anterior.

Na verdade, a contraposição é clara e conflui na aplicação do citado artigo 36.º, ou seja, naquilo a que chamamos a suspensão das garantias dos credores (no caso, o banco).

A particularidade, entretanto, consiste em que no primeiro se trata de avales, e no segundo, de fiança, em sentido técnico.

Para quem entenda, e não é o nosso caso (retomaremos este ponto adiante), que aval e fiança não se diferenciam na prática (cf. artigo 32.º, § 1.º, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, doravante indicada por LU), nenhumas dúvidas se põem já que o acórdão-fundamento se debruçara, justamente, num termo de fiança. E a «particularidade» seria irrelevante.

Mas, ainda entendendo-se o aval como garantia diferenciada, continua a não haver modificação sensível. É que, como veremos, a dilucidação do problema esgota-se essencialmente na análise da Lei 68/78. E, mesmo extravasando para institutos como a posse, a propriedade e o usufruto, continua a ser indiferente tratar-se de fiança ou aval.

A única coisa que sucede é que da adesão à tese do aval, como obrigação cambiária autónoma, resultam argumentos de reforço de uma das teses em presença. Mas que supõem a dilucidação de outras questões alheias à dicotomia aval-fiança.

Diremos, concluindo este ponto, ser a mesma a questão fundamental na sua essência. O que é suficiente. Revestindo-se a «particularidade» ou diversidade de simples carácter adjuvante.

3 - Por «uma evolução de facto não regularizada» onde os trabalhadores assumiram o controlo de empresas ou estabelecimentos comerciais entre 25 de Abril de 1974 e Outubro de 1978 nasce a situação autogestionária (Lei 68/78, artigo 1.º, n.º 1). Essa a linha histórica do novo instituto. Assim, para a Lei 68/78, basicamente, autogestão é o assumir de um governo empresarial pelos trabalhadores (artigo 1.º, n.º 3). E isso através de uma evolução de facto, mesmo não credenciada governamentalmente [em teoria, é confirmável (artigo 3.º)] e revestindo qualquer forma.

Particularizando, a lei caracteriza-a, agora numa perspectiva mais tecnicista, como a situação de governo onde se dissociam ou fragmentam, de um lado, «a posse útil e a gestão» no colectivo de trabalhadores e, de outro, a «nua-titularidade» no proprietário, e até nova ordem (artigos 3.º e 10.º, n.º 3, entre outros). Ou seja, os trabalhadores adquirem por uma evolução de facto, sublinhe-se, a «detenção e fruição de todos os bens», como outra posse qualquer (artigos 11.º e 12.º), ressalvados alguns efeitos, como, por exemplo, a usucapião (artigo 12.º, n.º 2), ressalva na linha da dissociação e independência posse-propriedade. Identicamente, aliás, quanto à gestão (artigos 14.º e 24.º).

A incipiente situação autogestionária, entretanto, tende a regularizar-se, mantendo-se, ou, como todas as coisas, a findar. A primeira modalidade é prevista no artigo 1.º, sob a fórmula «não regularizada nos termos gerais de direito», confirmada no artigo 10.º, n.º 1, «até à regularização definitiva», e é coroada no artigo 38.º, cujo capítulo é epigrafado, justamente, de «Regularização definitiva da autogestão».

E são três as modalidades aí consideradas:

a) Definição (solução) quanto ao proprietário;

b) Aquisição pelo Estado da «nua-titularidade»;

c) Aquisição da mesma nua-titularidade da empresa ou do estabelecimento pelos trabalhadores.

Não obstante a aparente taxatividade da enumeração - «dará lugar a uma das seguintes situações» (as três referidas) -, a verdade é que ela não abrange todas as possíveis. E, desde logo, isso sucede quando o Estado, expropriando [artigo 43.º, alínea a)], o faça não só quanto à «nua-titularidade» [hipótese supra, alínea b), a que chamaremos «expropriação parcial» (artigo 45.º, n.º 1), mas proceda à «expropriação total» «da empresa ou estabelecimento nos termos gerais de direito», assim pondo fim à autogestão (artigo 44.º n.º 1). O que significa, como se disse além da regularização autogestionária, também o seu fim [outro exemplo da segunda modalidade é a definição positiva do proprietário afectado, com a reaquisição do direito, por acordo ou acção judicial (artigo 39.º, n.º 3)].

Logo, e é a primeira conclusão, a autogesão provisória tanto desemboca na definitiva como na sua morte jurídica. E essa morte sucede nos casos apontados, como porventura noutras situações.

Outra conclusão - a segunda - é que a autogestão nasce de uma evolução de facto, em princípio desaparecendo com uma evolução de sinal contrário.

4 - É neste contexto de vida e morte da autogestão que surgem as disposições dos artigos 34.º e seguintes, quanto aos direitos de terceiros.

Em princípio, ela, a autogestão, não prejudica os terceiros credores. Salvo, diz a lei, as particularidades seguintes (artigo 34.º), designadamente a suspensão de alguns dos seus direitos, como no artigo 36.º em causa.

Prevê-se aí, nesse capítulo IV, que, se o dono inicial tiver um património distinto, separar-se-ão as dívidas da empresa e as de outra origem, entre as quais as pessoas daquele dono (artigo 35.º, n.º 1). Esta separação ou autonomização de patrimónios corresponde à nova realidade existente - propriedade, de um lado, e posse útil gestionária, de outro - e tem a ver com a equidade de beneficiar quem suporta os encargos; e, por outro lado, que quem foi privado dos benefícios não é justo suportar os segundos. Isto no tocante ao proprietário originário.

Daí, em suma, os credores da empresa só deverem pagar-se pelos bens desta, não confundíveis com os do proprietário (artigo 35.º, n.os 2 e 3).

E daí ainda, e agora trata-se de um claro benefício à autogestão e aos devedores «garantes» assim em moratória, que os credores vejam suspensos ou comprimidos os seus direitos relativamente a outros devedores que não a empresa (artigo 36.º). Por isso, os dizeres suspensivos enquanto durar a autogestão. Pois que, finda ela, dá-se a expansão normal do direito dos credores, como resulta, aliás, dos princípios gerais e do citado artigo 34.º A excepção do artigo 36.º, enfim, vigora só enquanto houver a situação jurídica pressuposta.

Excluímos, deste modo e desde já, o entendimento de «durante a autogestão» significar «enquanto o proprietário estiver privado da posse e gestão» ou «dos bens que a integravam», como sugere Vasco Xavier (cf. Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 117, p. 251 e nota 25). Entendimento esse onde se implicita a ideia de regresso da propriedade originária, o que já vimos não ser verdade necessariamente.

Pelo contrário, há na locução «durante a autogestão» um claro sentido literal e de conteúdo jurídico, já visto, de vigência autogestionária. Ou seja, a provisória, a regularizada, mas não já a finda.

Excepciona-se, em todo o caso, a «adaptação» do artigo 49.º, segundo o qual, finda a autogestão da Lei 68/78, mas persistindo o seu figurino sócio-económico-político, torna-se definitiva a suspensão das garantias, em homenagem ou no seguimento da situação anterior de autonomia de patrimónios. Trata-se de um rumo diferente do concebido naquela lei, mas que se instala no tecido jurídico definitivamente.

Podemos assentar agora na terceira conclusão e que é esta: a suspensão dos direitos dos credores, com a ininvocação das garantias dadas por terceiros, existe enquanto vigorar o figurino autogestionário da Lei 68/78. É o regime especial. Depois cai-se no regime normal.

5 - O problema agora é saber, no concreto, se a autogestão ainda vive ou acabou. Arredada como está a hipótese especial de consolidação da propriedade nos trabalhadores.

O acórdão-fundamento disse que não; o recorrido disse que sim.

Que factos há a considerar nesta perspectiva?

Na essência, que o exercício autogestionário começou em 1975, constituindo-se os trabalhadores na cooperativa REFAC. E que em meados de 1977 o estabelecimento da CAFER fora já abandonado por aquela, sem deixar património algum. Abandono idêntico, aliás, ao sucedido no acórdão-fundamento, já que se trata dos mesmos trabalhadores (REFAC) e da mesma empresa (CAFER).

Para se afirmar que o abandono é ineficaz joga-se com dois argumentos essenciais: a insuficiência do facto abandono para extinguir a situação jurídica autogestionária, por um lado; a inaplicação da regra da perda da posse do artigo 1267.º, n.º 1, alínea a), do CCV, por não abranger a «posse útil», preferindo-se-lhe, na via do artigo 13.º da Lei 68/78, as regras do usufruto. Sendo certo, entretanto, que nenhum deles faria concluir pela extinção autogestionária (esta a posição de Vasco Xavier, ob. cit., loc. cit., p. 250).

Um outro aspecto será o vindo da cooperativa, que não poderia desaparecer com o mero abandono (este o sentido do vencido no acórdão-fundamento).

Analisemos com alguma minúcia estas posições.

O colectivo de trabalhadores tem a posse e a gestão. Qualificar a posse de «útil» não altera a realidade fundamental de exercício de um direito - essa posse -, em princípio, na esfera do proprietário (CCV, artigo 1251.º). E, justamente, foi o desmembramento ou dissociação característicos da autogestão que se ficcionou em nua-titularidade e posse útil ou efectiva para a distinguir da posse jurídica.

Mas nada impede que o abandono correspondente leve à perda, nos termos do citado artigo 1267.º, n.º 1, alínea a). Útil ou não, trata-se da posse de um direito real, porventura menor.

A fragilidade do pensar adverso, aliás, foi sentida pelo intérprete, que passou a raciocinar como se o abandono fora eficaz (Vasco Xavier, ob. cit., loc. cit., p. 251). E enveredou então por outros caminhos - os do entendimento «adaptado» da expressão «autogestão» - para convencer da recondução de «durante a autogestão» à óptica do proprietário virtual ou que o virá a ser. Ora, já vimos que assim não é necessariamente, nem foi o sucedido na hipótese, como veremos.

Regressemos a ideias já expressas e ao argumento específico de mero facto do abandono contra a realidade jurídica.

A autogestão existiu por mera evolução de facto, diz a lei.

Dissociando propriedade e posse (útil), passou a existir uma realidade que não é só jurídica, mas de direito e facto. Por isso, a nova realidade é mista, não podendo falar-se, vigorosamente, de facto contra direito. Sim em factos assumindo juridicidade e onde há a considerar uma nova evolução de sinal contrário, resumida no abandono genericamente considerado. Isto por um lado.

De outro, é sabido que a posse é o exercício de um direito. Adquire-se pela prática reiterada dos actos correspondentes [CCV, artigo 1263.º, alínea a)]. Mantém-se enquanto durar essa actuação (artigo 1257.º, n.º 1). E finda, diríamos lógica e naturalmente, havendo abandono. Ora, no acórdão-fundamento, como já sucedera, aliás, no de 26 de Maio de 1981, deu-se plena eficácia a esse abandono, diga-se a propósito (o segundo acórdão foi anotado na Revista de Legislação e de Jurisprudência, cit., a pp. 211 e 248).

De resto, constituiria ficção jurídica, impressionantemente fora da realidade, continuar a falar de uma autogestão inerte e sem património há mais de uma dezena de anos.

E também não o afecta a forma cooperativa da pessoa que deteve a autogestão. Sem dúvida que a forma assumida tem os seus meios próprios de extinção. Mas isso nada tem a ver com o facto diverso de essa pessoa, por hipótese ainda viva, perder uma posse. E o importante aqui é saber se a pessoa, singular ou colectiva, mantém ou não uma conduta de possuidor gestionário. E não se está viva. E que não a mantém, e há muitos anos, é irrecusável, por mais que se queira ficcionar.

6 - Acabámos de ver não existirem razões para a ineficácia do abandono e a desaplicação do instituto da perda de posse.

Mas a tese adversa dos defensores da ineficácia e da preferente aplicação subsidiária das regras do usufruto (Lei 68/78, artigo 13.º) conclui que por esta via a solução seria a mesma: a desocupação e abandono não configuraria a extinção do usufruto nem da autogestão (Revista de Legislação e de Jurisprudência, cit., p. 250, onde se equipara o detentor da posse útil ao usufrutuário). E diz-se: não ocorre nenhuma das previsões do artigo 1476.º do CCV, designadamente a renúncia.

Mas é aqui que divergimos. Pelo contrário, encaminhar assim as coisas só reforça a tese do fim da autogestão.

A renúncia, na verdade, é hoje uma declaração de vontade informal, expressa ou tácita. A segunda traduz-se em «factos que com toda a probabilidade a revelam» (CCV, artigo 217.º, n.º 1). Ora, que concluir, nessa óptica, de um colectivo de tabalhadores que desocupou e abandonou há longos anos se não que «com toda a probabilidade» renunciou?

Sendo assim, quando inconclusivo o abandono possessório - e não o é -, chegaríamos ao mesmo resultado por esta outra via da renúncia.

Recapitulando, verificamos que, de uma forma ou de outra, sempre a autogestão findou. E será a quarta conclusão.

7 - O aproveitamento das conclusões permite ainda encarar o problema sob ângulo diverso: que sucedeu à posse útil gestionária?

Que ela foi perdida é dado adquirido. Mas, sabido que a autogestão finda quando acabar a dissociação propriedade-posse, terá esta migrado para entidade diversa do actual dono da empresa, mantendo-se a situação autogestionária?

Relembre-se que o dono originário não só não definiu a sua situação [Lei 68/78, artigo 39.º, alíneas a) e b)], como também o Estado não expropriou, total ou parcialmente [artigos 39.º, alínea d), e 45.º, n.º 1]. E o resultado seria a aquisição automática pelo Estado [artigos 43.º, alínea b), e 47.º].

De qualquer modo, a propriedade da empresa surge ligada ao problema da sua posse, com base na primeira, podendo avançar-se quanto ao segundo, sempre visando a possível dissociação autogestionária.

Uma coisa é certa: os trabalhadores não adquiriram a propriedade (aliás, se a adquirissem, a dissociação findaria); outra é que pela via da perda da posse ou da renúncia dos trabalhadores, como se disse precedentemente, a posse autogestionária findou.

Em termos de raciocínio, vamos agora admitir ser discutível a assunção da propriedade pelo Estado. Então há que ensaiar outros caminhos.

A dilucidação do problema tem, na verdade, outra leitura possível e não encarada nas decisões confrontadas. Efectivamente, ambas supuseram a aplicação da Lei 68/78, só divergindo na desaplicação do seu artigo 36.º

Mas isso não impede encarar a questão de outro ângulo argumentativo, desde que abrigados no rumo do pagamento dos avalistas, esse, sim, o ponto final em oposição.

A Lei 68/78, diz o seu artigo 1.º, aplica-se às empresas e estabelecimentos onde pela citada evolução de facto, ainda não regularizada nos termos gerais de direito, os trabalhadores assumiram a gestão entre 25 de Abril de 1974 e a data da entrada em vigor da presente lei.

Sucede, porém, que, como vimos, os trabalhadores desassumiram a gestão em meados de 1977 (isto para usar a terminologia desse artigo 1.º).

Sucede, pois, que em fins de Outubro de 1978 (a lei é desse mês) os trabalhadores há muito haviam deixado a gestão.

Logo, não só o artigo 36.º mas a própria lei no seu todo, já não eram aplicáveis à situação concreta. É que ao tempo da sua entrada em vigor findara o assumir da gestão, tudo se reconduzindo ao regime do aval e que é o pagamento (no caso, incontestado por outras vias).

Efectivamente, em meados de 1977 a empresa encontrava-se numa situação de autogestão provisória, a regularizar posteriormente com os mecanismos da Lei 68/78. Mas isso não chegou a suceder, visto que a provisoriedade desaparecera com a desassunção.

Aliás, durante a provisoriedade, a regular nos termos do artigo 38.º - um dos quais é a aquisição da nua-titularidade ou propriedade dissociada -, «o proprietário mantém a nua-titularidade do seu direito» (artigo 30.º). Mas, ainda que o não dissesse, teria de ser assim, visto que os trabalhadores só a gestão assumiram. A propriedade continuava intacta pela lei geral, nesse ponto confirmada pela Lei 68/78. E tanto assim que uma das soluções, na visão do legislador de 1978, é a mera definição da situação do proprietário, necessariamente mantido, e não a aquisição do direito, que não perdera.

Concluímos que, independentemente da aquisição pelo Estado da nua-titularidade (uma via possível), sempre ela, a titularidade, era e é de outrem, que não dos trabalhadores.

Só que não seja objecto desta decisão a questão do proprietário, assim deixada em aberto. Aliás, em si mesmo, é indiferente saber quem ele seja, desde que não diverso do detentor da posse.

Por um dos caminhos ensaiados - mera argumentação para um resultado - sempre a dissociação propriedade-gestão acabou, e até já acabara em 1977, com ela findando a realidade autogestionária.

E, de uma forma ou de outra, a excepcional suspensão do artigo 36.º não tem aplicação, como se disse no acórdão-fundamento, embora por outras razões agora.

8 - Poderá, em todo o caso, questionar-se o destino dessa posse. É o problema colocado no início do parágrafo anterior.

Seja embora uma consideração lateral do decidendum, afigura-se-nos que ela se consolidou no proprietário.

Segundo o artigo 1251.º do CCV, a posse é o poder manifestado por uma actuação. Esse poder actuante não existe actualmente.

Por outro lado, e sabido que esse poder se liga estreitamente à propriedade (artigos 1251.º, 1287.º, 1293.º e outros), a correspondente relação continente-conteúdo, ou mais-menos, fica bem expressa no seguinte artigo 1305.º, ao dizer que, em princípio, o proprietário goza plena e exclusivamente do uso, fruição e disposição. Essa a mencionada vocação consolidante da propriedade.

Em termos de facto, a posse ou gestão em causa seria como que uma res nullius de migração incerta. Mas, de um ponto de vista de direito, reingressou naturalmente no proprietário, Estado ou sociedade comercial. E, reingressando, sempre acabou a realidade autogestionária.

9 - Trata-se, porém, de avalistas responsabilizados «da mesma maneira que a pessoa por eles afiançada» (LU, artigo 32.º, § 1.º).

Virá daí obstáculo?

A pessoa afiançada deve encarar-se objectivamente e não em óptica pessoalista ou de conveniência. De contrário, e falecida essa pessoa, por exemplo, desapareceria a garantia. E isso não é verdade, mesmo no puro campo da fiança, que é dada, não em benefício de devedor, mas do credor, e se extingue com a obrigação principal (CCV, artigo 651.º e ainda os artigos 627.º, n.º 1, 628.º, n.º 2, 632.º e 634.º).

Nem sequer, porém, o aval é uma fiança em absoluto. A expressão usada é uma tradução má do original francês, dont il s'est porté garant, ou da versão inglesa, as the person for whom he has become guarantor (cf. J. G. P. Coelho, Letras, II vol., fasc. v, p. 6).

O aval é, sim, uma garantia diferenciada (embora com semelhanças), tendendo a autonomizar-se e a consagrar a independência cambiária do avalista. Basta pensar, resumidamente, nas diferenças dos artigos 32.º, § 2.º, e 632.º do CCV e no seguinte § 3.º, quanto à sub-rogação, e, sobre excussão, o artigo 47.º da LU, em contraponto do artigo 638.º, n.º 1, do CCV.

O que tudo redunda, para o avalista, na assunção da obrigação literal, ou, ao menos, onde a subsidiariedade não esgota a sua natureza jurídica. O aval mostra-se um verdadeiro acto cambiário e, como tal, sujeito ao seu regime. O que corresponde, afinal, ao genérico da independência e abstracção das obrigações cambiárias (LU, artigo 7.º, e P. Coelho, ob. cit., loc. cit., p. 181).

10 - Um último considerando tem a ver com a justiça da solução.

Parecerá chocante responsabilizar os avalistas no fim de uma gestão ruinosa. O que, desde logo, constitui só uma vertente da questão.

O artigo 36.º em causa e ou a Lei 68/78 deram como que uma moratória aos garantes. Eles beneficiaram dela mais de uma dezena de anos. E agora esse tempo acabou.

Mas é preciso considerar também o reverso do problema: o credor privado há longos anos do pagamento que lhe é devido.

Os avalistas não tiveram a ver com a autogestão, é certo. Mas o credor também não. Só que, quanto aos primeiros, essa era uma modificação de circunstâncias que poderia ter sido invocada, e não o foi, nos quadros do artigo 437.º do CCV. O mesmo não sucedendo ao credor, que se veria despojado irremediavelmente de um crédito incontestado quanto ao fundo.

De qualquer modo, e será o principal, se o banco exigisse o pagamento entre o fim da autogestão e a vigência da Lei 68/78, que lhe suspendeu os direitos - meados de 1977 e finais de 1978 -, nada impedia essa exigência numa óptica estritamente jurídica. Como sucederia, aliás, no vencimento das livranças antes da autogestão, ou durante esta, mas antes da publicação da lei.

Se assim era, é de discutível justiça invocar agora uma lei que favoreceu os devedores para agora não pagar. Mesmo nos quadros de aplicação da lei, isso só sucederia se a posição dos trabalhadores vingasse com a aquisição por si da propriedade da empresa (citado artigo 49.º). Mas isso não aconteceu, retomando os acontecimentos o seu curso interrompido. Repete-se: descomprimidos os direitos dos credores, caímos na regra de que é pagar. E isso, repete-se também, quer pela desaplicação da Lei 68/78, no seu todo, como pela do seu artigo 36.º, nos quadros da aplicação genérica da lei.

11 - Desaparecidos, assim, os obstáculos vindos da Lei 68/78, e entrando em acção os mecanismos gerais do aval e deixados em aberto naquela lei, só há que responsabilizar os avalistas pelas obrigações assumidas (LU, artigos 32.º, 43.º, 47.º, 77.º e 78.º).

Correspondentemente, formula-se o assento seguinte:

O abandono definitivo de uma empresa pelos seus trabalhadores em autogestão antes da vigência da Lei 68/78, de 16 de Outubro, põe fim a essa autogestão e torna invocáveis as garantias referidas no artigo 36.º da mesma lei.

Em consequência, revoga-se o acórdão recorrido e ordena-se o envio do processo à 2.ª instância para pelos mesmos juízes, sendo possível, ser proferida nova decisão sobre o mérito da causa.

Custas pelos recorridos.

Lisboa, 15 de Junho de 1989. - Brochado Brandão - Licínio Caseiro - Tinoco de Almeida - Júlio Santos - Manso Preto - Gama Prazeres - Solano Viana - Salviano de Sousa - Rodrigues Gonçalves - Cesário Dias Alves - José Saraiva - José Domingues - Mário Afonso - Villa Nova - Vasco Tinoco - Barros de Sequeiros - Ferreira Vidigal - Castro Mendes - Baltazar Coelho - Maia Gonçalves - Ferreira Dias - António Soares Tomé [votei o assento com base nas razões expressas no acórdão-fundamento proferido no dia 25 de Janeiro de 1983 (Boletim, n.º 323, p. 415)] - António Carlos Vidal de Almeida Ribeiro [vencido, por entender que a autogestão não se extinguiu (artigos 38.º, 47.º, n.º 2, e 45.º da Lei 68/78), sem que tenha de considerar-se o disposto no artigo 36.º dessa lei: as garantias pessoais não podem ser invocadas pelos autores, ao contrário da decisão que fez vencimento] - João Alcides de Almeida (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto que junta) - Mário Sereno Cura Mariano (conforme declaração de voto, que junto, formulava assento em sentido oposto ao votado) - Jorge d'Araújo Fernandes Fugas (vencido, em conformidade com o voto do Exmo. Conselheiro Corte Real, que já não faz parte deste Tribunal, expresso no acórdão-fundamento publicado no Boletim, n.º 323, pp. 415 e segs., e com a orientação firmada no Acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Janeiro de 1980, in Boletim, n.º 293, pp. 372 e segs., que perfilhamos e desenvolvemos, em seu relato, no Acórdão da Relação do Porto de 1 de Março de 1983, proferido no recurso de agravo n.º 1904 da 4.ª Secção desse Tribunal) - Eliseu Figueira (vencido, conforme declaração de voto que junto) - Barbosa de Almeida (vencido, pelas razões constantes do voto que antecede) - Mendes Pinto (vencido, pelas mesmas razões do voto do Exmo. Conselheiro João Alcides de Almeida) - Flávio Pinto Ferreira (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Cura Mariano) - Jorge Vasconcelos (vencido, em conformidade da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Cura Mariano) - Ferreira da Silva (vencido, nos termos da declaração de voto do colega Eliseu Figueira) - Lopes de Melo (vencido, pelos fundamentos referidos na declaração de voto do Exmo. Conselheiro Eliseu Figueira) - Sousa Macedo (vencido, pelos fundamentos referidos na declaração de voto do Exmo. Conselheiro Eliseu Figueira) - José Menezes Pimentel (vencido, pelos fundamentos constantes da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Eliseu Figueira).

Declaração de voto

Dispõe o artigo 36.º da Lei 68/78 que «durante a autogestão» as garantias pessoais prestadas anteriormente não podem ser invocadas pelos credores.

Dúvidas não se têm de que, perante a ocupação da empresa, houve o propósito de salvaguardar os interesses dos «garantes», em prejuízo dos credores. «Garantes» que, normalmente, até eram os sócios ou proprietários da empresa e que se viram despojados dos bens sociais, dos seus instrumentos de trabalho ou da possibilidade de ganharem a vida. Daí a prevalência dos seus interesses sobre os dos credores, situação que durará enquanto se mantiver a autogestão, enquanto, como refere V. Lobo Xavier, «o proprietário estiver privado da posse e gestão» (Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 117.º, p. 251).

A compreensão desta situação jurídica assenta no disposto nos artigos 38.º, alínea b), e 43.º, alínea b), da Lei 68/78 - aquisição da nua-titularidade pelo Estado, o que conduziria a que os garantes fossem avalizar aquele Estado, o que não se concebe -, 45.º, n.º 2 - a aquisição da nua-titularidade conduz à consolidação da posse útil e da gestão pelo colectivo de trabalhadores, o que leva a que se considere que a empresa se subordina à autogestão definitiva, situação a considerar, já que o INEA não estabeleceu prazo de duração da posse útil em autogestão - e 46.º - havendo aquisição da nua-titularidade pelo colectivo de trabalhadores, a situação excepcional do artigo 36.º tornou-se definitiva, isto é, os garantes deixam de ser garantes, e isto sem consentimento ou oposição dos credores.

A posse útil não é uma modalidade de posse prevista nos artigos 1251.º e seguintes do CCV. É um direito real muito semelhante ao direito de usufruto, em que o abandono não tipifica a extinção do mesmo. Tão-pouco conduz a esta situação o abandono dos trabalhadores ou o encerramento da empresa - posição de V. Lobo Xavier, que perfilhamos.

Por outro lado, vem demonstrado que os trabalhadores se constituíram em cooperativa. As formas de extinção desta vêm expressamente contempladas nas leis respectivas - hoje Código Cooperativo - e não vemos que haja ocorrido a extinção daquela. Pelo que a cooperativa prevalece, e com ela, a posse útil que adquiriu, que, como concluímos, ainda não se extinguiu.

Não vem demonstrado que a cooperativa haja renunciado à posse útil. Uma coisa é não ser a mesma exercida, outra a renúncia a ela. O Supremo Tribunal de Justiça não pode extrair ilações de factos quando tais factos podem conduzir a mais do que uma solução. E a renúncia tácita só é de admitir quando não houver dúvidas sobre a solução a adoptar.

É certo que a solução propugnada poderá mostrar-se chocante em relação aos credores. No entanto, há que considerar que a lei da autogestão foi concebida em período em que se salvaguardavam predominantemente os interesses dos trabalhadores, sacrificando-se para tanto os interesses dos proprietários e os dos credores. Aqui foram sacrificados os interesses destes últimos, sendo beneficiados os dos trabalhadores e dos garantes, estes normalmente investidos nas pessoas de sócios ou de proprietários das empresas.

Formularia, assim, assento em sentido oposto ao proposto. - Cura Mariano.

Declaração de voto

1 - Vem dado como provado que a gestão da empresa em causa foi abandonada pelos trabalhadores em 1977.

Daí que ao caso sujeito decidido pelo acórdão recorrido não seja aplicável o regime constante da Lei 68/78, de 16 de Outubro, pois, segundo o artigo 1.º desse diploma, ele só é aplicável às empresas em que «por uma evolução de facto não regularizada ainda nos termos gerais de direito os trabalhadores assumiram a gestão entre 25 de Abril de 1974 e a data da entrada em vigor da presente lei», o que envolve que a gestão pelos trabalhadores ainda persista na data da entrada em vigor dessa lei, e que caso sujeito não se verificava, portanto.

2 - E pode agora, em plenário, conhecer-se dessa questão.

Na verdade, a história do n.º 3 do artigo 768.º do Código de Processo Civil, onde se preceitua que o tribunal deve resolver o conflito e lavrar assento, «ainda que a resolução do conflito não tenha utilidade alguma para o caso concreto em litígio», aponta inequivocamente para essa possibilidade, pois, segundo informa J. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, VI, p. 312, tal dispositivo foi sugerido pelo conselheiro Botelho de Sousa, por o Supremo haver deixado de emitir assento num caso em que, reconhecendo-se embora a existência de conflito, se decidiu não o emitir com o fundamento de ser inútil, por, contrariamente ao que se decidira no acórdão recorrido, se haver entendido, num caso de embargos de terceiro, que o embargante não era terceiro.

3 - Mas há, na sequência do exposto, que proferir assento, pois é manifesto o conflito de jurisprudência.

O artigo 36.º da Lei 68/78 dispõe que «durante a autogestão as garantias pessoais prestadas anteriormente por dívidas decorrentes da aquisição e exploração da empresa ou do estabelecimento não podem ser invocadas pelos credores».

E a aquisição pelo Estado pode, além de outras formas, resultar da caducidade do direito a reivindicar a empresa ou o estabelecimento ou exigir a restituição da sua posse [alínea c) do artigo 43.º], com o que a nua-titularidade se transfere da sociedade proprietária para o Estado (n.º 2 do artigo 47.º).

Assim, passaria a autogestão de provisória a definitiva, pelo que, sendo o aval uma garantia pessoal, não pode invocar-se a responsabilidade dos avalistas por dívidas decorrentes de exploração da empresa, nos termos do artigo 36.º da Lei 68/78, que, aliás, não distingue entre as formas de gestão provisória e definitiva.

Nesta conformidade, e sem reflexo no acórdão recorrido, deveria formular-se o seguinte assento:

O artigo 36.º da Lei 68/78, de 16 de Outubro, é aplicável ao caso de ser definitiva a autogestão.

João Alcides de Almeida.

Declaração de voto

1 - O presente acórdão, ao reincidir no vício dogmatizante que, numa posição crítica da jurisprudência clássica, vem sendo denunciado e que consiste na classificação das normas jurídicas numa relação de subordinação regra-excepção, chega a um resultado errado, por ser contrário à tutela dos interesses que a ordem jurídica (Lei 68/78, de 16 de Outubro) se propõe alcançar e por negar a justiça material que essa mesma ordem jurídica, com a referida tutela, pretende realizar.

Uma correcta jurisprudência radica numa metodologia correcta; por isso, é a este nível metodológico que o julgador tem de assumir a realidade, na sua configuração multifacetada, procurar na ordem jurídica a tutela, não excepcional, mas especial, dirigida à satisfação dos interesses e à solução dos conflitos em cada uma das áreas em questão, e recusar a pretensão de meter no saco da pré-conceptuação elaborada em certa época ou para certas circunstâncias uma realidade que lhe escapa.

No caso concreto, para o presente acórdão há um regime geral, no que toca aos direitos de crédito de terceiros, e um regime-excepção, quanto à situação de autogestão, para se concluir, de forma inexacta e contrária à lei, que, finda ou extinta a autogestão, aqueles terceiros vêem os seus direitos expandir-se e retomar a potencialidade originária, até aí comprimida pelo regime autogestionário. Nada de mais inexacto com este resultado de uma justiça puramente formal a opor-se e a negar uma justiça substancial, que a ordem jurídica se propõe realizar, ao considerar todos os interesses envolvidos na situação autogestionária (os interesses do proprietário, do colectivo de trabalhadores, dos credores e dos seus garantes, fiadores ou avalistas).

2 - Segundo o artigo 1.º da Lei 68/78, o regime jurídico aí definido aplica-se às situações de autogestão verificadas entre 25 de Abril de 1974 e a data da entrada em vigor deste diploma, ainda que, entretanto, a gestão tenha sido abandonada pelos trabalhadores, precisamente porque há importantes interesses envolvidos e que importa proteger.

Daí que se mostrem despiciendas na presente análise todas as considerações à volta da perda da posse útil ou da persistência da situação de autogestão com o abandono da empresa ou da sua gestão pelos trabalhadores.

No caso de que trata o presente acórdão verificou-se o abandono da empresa pelos trabalhadores ainda antes da entrada em vigor do citado diploma, o que, como se disse, e, aliás, essa é a posição tomada no acórdão, não impede a aplicação do regime jurídico aí estabelecido, de harmonia com o referido no seu artigo 1.º

Só que o presente acórdão, ao fazer essa aplicação, parte de uma premissa contrária à lei, a de que com a caducidade do direito do proprietário à reivindicação da empresa ou à restituição da sua posse findara ou findaria a autogestão (se não tivesse havido abandono), com a transferência da empresa ou do estabelecimento para o Estado.

É este o núcleo viciante do presente acórdão. Contrariamente ao aí afirmado, resulta dos artigos 43.º, alínea b), e 47.º que com a caducidade do direito do proprietário não se transfere para o Estado a empresa, mas se transfere apenas a nua-propriedade, o que tem em vista considerar a empresa em autogestão definitiva (como se estabelece no artigo 45.º, n.º 2, para a expropriação pelo Estado da nua-propriedade) e, por esta via, tutelar os interesses do proprietário [com a separação de patrimónios (artigo 35.º)] e os dos garantes pessoais [com a ininvocabilidade das garantias pessoais pelos credores (artigo 36.º)].

3 - Os interesses envolvidos na situação autogestionária são os interesses do proprietário, do colectivo de trabalhadores, dos terceiros credores e dos garantes pessoais.

Durante a autogestão, seja ela provisória ou já regularizada, portanto definitiva, consagra-se no citado diploma um regime de separação de patrimónios (os credores por dívidas conexas com a empresa só pelos bens a ela afectados podem fazer-se pagar; os credores por dívidas pessoais do proprietário não podem fazer-se pagar pelos bens da empresa) e, por outro lado, consideram-se ininvocáveis pelos credores as garantias pessoais prestadas a dívidas contraídas anteriormente ao início da autogestão, já vencidas ou vencidas posteriormente.

Este regime traduz-se num benefício concedido ao proprietário e aos garantes pessoais como contrapartida de protecção da situação autogestionária e, vigorando durante a autogestão, provisória ou definitiva, estende-se à sua extinção, com a aquisição da nua-titularidade da empresa pelo colectivo de trabalhadores, como expressamente se estabelece no artigo 49.º do citado diploma.

Segundo um princípio de equidade e de justiça material, a lei, ao tutelar os interesses em conflito, resolve sacrificar os interesses dos credores, em regra, pessoas de negócios sujeitos ao risco da contratação, aos interesses do proprietário da empresa, cuja gestão foi assumida pelos trabalhadores, e aos interesses dos garantes pessoais (fiadores ou avalistas), tendo em conta que estes garantes são pessoas que por mero favor responsabilizam o seu património.

Portanto, pelas dívidas da empresa não responde o património do proprietário, para além dos bens àquela afectados, nem o património dos garantes pessoais, sendo este o benefício atribuído ao proprietário e aos garantes em prejuízo dos credores, durante a autogestão provisória ou definitiva e mesmo após a sua extinção, com a aquisição da nua-titularidade da empresa pelo colectivo de trabalhadores (artigo 49.º) ou com a expropriação da empresa pelo Estado [artigo 43.º, alínea a)].

Já se disse que com a aquisição pelo Estado da nua-titularidade da empresa por expropriação ou por caducidade do direito do proprietário se considera definitivamente consolidada a autogestão, pelo que em qualquer destes casos vigora o regime de separação de patrimónios e o de ininvocabilidade pelos credores das garantias pessoais, como decorre dos artigos 35.º, 36.º, 45.º, n.º 2, e 47.º, n.º 2, do referido diploma.

Para a hipótese de expropriação da empresa ou do estabelecimento pelo Estado, com o que finda e, por isso, se extingue a autogestão, também se mostra evidente, até na base de argumentação por absurdo, que se mantém o referido regime. Segundo o estabelecido para as expropriações (Decreto-Lei 845/76), a coisa expropriada é transferida para o Estado livre de ónus e encargos (artigos 44.º, 100.º e 101.º), sendo a correspondente indemnização partilhada por todos os interessados (proprietário, usufrutuário e credores com garantia real).

Portanto, os credores, segundo o aludido regime de separação de patrimónios, apenas têm como garantia geral a indemnização correspondente aos bens afectados à empresa expropriada e, no que respeita ao benefício concedido aos garantes pessoais, mantém-se a ininvocabilidade, tendo em conta que a ratio desta garantia pressupõe o direito de regresso contra todo o património da pessoa afiançada ou avalizada, património que, por razões de equidade, foi excluído da responsabilidade pelas dívidas da empresa enquanto esta não for recuperada pelo proprietário.

Do referido se conclui que só na hipótese de o proprietário recuperar a empresa o direito dos credores adquire a sua potencialidade originária; então, extinta a autogestão, os credores passam a ter como garantia geral todo o património do devedor e como garantia pessoal o património do fiador ou do avalista.

Mas não é pelo facto de se extinguir a autogestão que os direitos dos credores retomam a sua amplitude inicial. É, sim, porque o proprietário assumira a recuperação da empresa. Se o proprietário deixar caducar o direito à reivindicação da empresa ou à restituição da respectiva posse, o artigo 47.º do citado diploma, ao transferir para o Estado a nua-titularidade e ao considerar a empresa em autogestão definitiva (artigo 45.º), funciona como protecção à situação autogestionária, estendendo-se a tutela, como contrapartida, aos interesses do proprietário e dos garantes pessoais, para tanto se mantendo a separação de patrimónios e a ininvocabilidade estabelecida no artigo 36.º

O que se acaba de referir está clara e transparentemente demonstrado na Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 117, pp. 215 e 245, por Lobo Xavier.

Assim, e em resumo, «só no caso de recuperação da empresa ou do estabelecimento em autogestão pelo proprietário cessa o regime de separação de patrimónios e de ininvocabilidade das garantias pessoais pelos credores definido nos artigos 35.º e 36.º da Lei 68/78, de 16 de Outubro».

Lisboa, 15 de Junho de 1989. - Eliseu Figueira.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2486473.dre.pdf .

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