Assento
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça em tribunal pleno:
1 - Na comarca de Coruche foram pronunciadas Filipa de Jesus Rosado, Regina Maria dos Santos Dionísio e Maria José Sequeira Raposo por um crime previsto e punido pelo artigo 358.º, §§ 1.º, 2.º e 4.º, do Código Penal de 1886. Em audiência de discussão e julgamento foi requerido que se considerasse prescrito o procedimento criminal, o que alcançou decisão favorável.
Recorreu o magistrado do Ministério Público, tendo obtido provimento. A ré Filipa recorreu para este Tribunal, pondo a questão nestes termos:
Entre a data das primeiras declarações da arguida (12 de Agosto de 1975) e a data em que foi notificada do despacho de pronúncia (29 de Maio de 1981) decorreram mais de cinco anos;
O prazo de prescrição para o crime de aborto no novo Código Penal é de cinco anos;
Segundo o n.º 4 do artigo 2.º do novo Código Penal, a norma que estabelece regime concretamente mais favorável ao agente é de aplicação retroactiva, salvo sentença com trânsito;
Quando este preceito se refere a disposições penais, não exclui as que regem a prescrição do procedimento criminal;
O n.º 4 do artigo 29.º da Constituição também estabelece a aplicação retroactiva das leis penais quando de conteúdo mais favorável ao arguido;
Assim, deve aplicar-se ao caso o regime mais favorável do novo Código Penal e declarar-se extinta, por prescrição, a responsabilidade criminal.
Por Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 1984, com trânsito em julgado a 30 de Janeiro de 1984, decidiu-se que o novo regime não era aplicável por não estar a correr o prazo de prescrição do procedimento criminal quando entrou em vigor o novo Código Penal, pois fora deduzida querela provisória pelo Ministério Público em 15 de Janeiro de 1976. Aceita que nada impediria a aplicação imediata do novo regime, mais favorável, se o problema da prescrição não estivesse, assim, afastado.
2 - Na comarca de Évora foi julgado prescrito o procedimento criminal contra João Victor da Conceição, acusado pelo crime previsto e punido nos termos dos artigos 453.º e 421.º, n.º 4.º, do Código Penal de 1886. A Relação de Évora confirmou a decisão e o magistrado do Ministério Público recorreu, alegando que a partir do exercício tempestivo da acção penal não correu qualquer prazo prescricional, não havendo que fazer renascer a questão da prescrição.
Por Acórdão, também deste Supremo Tribunal, de 2 de Abril de 1986, entendeu-se que a acusação em juízo foi desvalorizada ou descaracterizada pela nova lei, para efeitos interruptivos da prescrição, tudo se passando como se não tivesse tido lugar. Considera que, face a um procedimento criminal em curso, por não ter sido atingido pela prescrição de acordo com a lei anterior, deve aplicar-se o regime da lei nova por ser mais favorável ao agente, tornando mais fácil a consumação da prescrição.
Interposto recurso para tribunal pleno pelo Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, invocando a oposição entre estes dois acórdãos, foi ele admitido, sendo apresentada alegação tendente a demonstrar a oposição.
3 - A Secção Criminal, em julgamento da questão preliminar, de harmonia com o artigo 766.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, decidiu existir a oposição que é fundamento do recurso.
Apresentou o Exmo. Magistrado do Ministério Público a alegação prevista no n.º 2 do artigo 767.º do Código de Processo Civil, renovando a demonstração do conflito de jurisprudência entre os dois arestos, examinando a questão de fundo e propondo a formulação de assento nos seguintes termos:
Em matéria de prescrição do procedimento criminal deve aplicar-se o regime mais favorável ao réu, mesmo que no momento da entrada em vigor do Código Penal de 1982 estivesse suspenso o prazo de prescrição.
Não houve apresentação de alegações por parte do arguido e foram tomados os vistos.
4 - Questão preliminar.
Como questão preliminar, há que apreciar de novo a oposição entre as duas decisões, sendo certo que a primeira destas transitou em julgado.
Foram os dois acórdãos em confronto proferidos no domínio da mesma legislação a considerar - em um e outro caso os factos passaram-se quando vigente o Código Penal de 1886 e a decisão foi proferida quando vigente o Código Penal de 1982.
Ambos os arestos versam a mesma questão fundamental: se a acusação deduzida na vigência do Código Penal de 1886 continua a ser relevante para efeito de suspensão do prazo prescricional quando se conheça do curso deste em decisão a proferir na vigência do novo Código.
No primeiro acórdão entendeu-se que, deduzida acusação na vigência do Código Penal de 1886, antes de atingido o prazo prescricional do procedimento, não corria aquele prazo à data da entrada em vigor do Código Penal de 1982, pelo que não se colocava o problema de sucessão de leis no tempo, isto é, não se perdia o efeito suspensivo decorrente da acusação.
Diferentemente se decidiu no segundo aresto, pois considerou-se que a acusação deduzida na vigência do Código Penal de 1886 foi desvalorizada ou descaracterizada pelo novo Código Penal.
Há também identidade objectiva da situação de facto: correndo o prazo de prescrição do procedimento criminal (nos dois casos de cinco anos, aplicando o Código Penal de 1982), foi proferida acusação antes de este se completar, ainda que existindo um espaço temporal superior entre as primeiras declarações dos arguidos e a notificação da pronúncia.
Deverá reconhecer-se a existência de oposição entre os acórdãos invocados, havendo que produzir assento.
5 - Conhecimento de fundo.
Convém proceder a uma correcta identificação do ponto de divergência entre os dois acórdãos.
Este não se situa na aplicação retroactiva da lei nova para a determinação do prazo prescricional. O assento de 19 de Novembro de 1975 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 251, p. 75) formulou a doutrina de que a lei reguladora da prescrição do procedimento criminal que estabeleça prazo mais curto tem aplicação imediata. Ambos os arestos recolhem este ensinamento.
Onde se situa a oposição é quanto ao regime de contagem do prazo de prescrição - o da lei nova ou ainda aquele da lei vigente no momento da ocorrência dos factos suspensivos ou interruptivos do prazo?
Já no Acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Abril de 1975 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 240, p. 49) fora identificado e tratado o problema, decorrente então da mudança de regime de contagem com a publicação do Decreto-Lei 184/72, de 31 de Maio. Nele se escreveu:
Trata-se de determinar a forma como se conta o prazo de prescrição; este prazo corria ao abrigo da lei vigente respectiva e, portanto, nos termos por ela estabelecidos.
6 - Pela lei em vigor à data das suas acusações, a sua dedução não interrompia, mas suspendia, o curso do prazo prescricional.
No preâmbulo do Decreto-Lei 184/72, de 31 de Maio, é tal caracterização claramente afirmada, ao escrever-se:
Na disciplina jurídica das causas de extinção do procedimento criminal importava fixar o prazo de prescrição do procedimento por contravenções [...] e pôr termo às dúvidas que longamente se manifestaram quanto à interrupção da prescrição do procedimento criminal. Optou-se, neste particular, pela supressão de causas de interrupção da prescrição, regulamentando-se somente, por isso, a suspensão do prazo de prescrição. Assim, não se admite uma causa de interrupção que imponha nova contagem do prazo de prescrição; o prazo de prescrição é que não corre quando se verifique uma causa que determine a sua suspensão.
Nesta conformidade, o artigo 125.º, § 4.º, do Código Penal tomou a seguinte redacção:
A prescrição do procedimento criminal conta-se desde o dia em que foi cometido o crime.
A prescrição do procedimento criminal não corre:
1.º A partir da acusação em juízo e enquanto estiver pendente o processo pelo respectiva crime;
2.º Após a instauração da acção de que dependa a instrução do processo criminal e enquanto não passe em julgado a respectiva sentença.
7 - O regime de contagem do prazo de prescrição estabelecido pelo Código novo é mais complexo, tendo assento em três artigos - 118.º, 119.º e 120.º
O artigo 118.º indica o início do prazo, o artigo 119.º prevê a suspensão e o artigo 120.º regula a interrupção.
O n.º 1 do artigo 118.º contém a regra sobre o início da contagem do prazo: corre desde o dia em que o facto se consumou. Os n.os 2 e 3 prevêem casos particulares que não importa agora considerar.
A suspensão da prescrição também não interessa considerar, por não ser aplicável à hipótese versada.
A prescrição do procedimento criminal interrompe-se, entre outras situações, com:
A notificação para as primeiras declarações para comparência ou interrogatório do agente, como arguido, na instrução preparatória;
A notificação do despacho de pronúncia ou equivalente.
Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo.
São estes os dois regimes em confronto.
8 - O n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal de 1982 veio estabelecer:
Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, será sempre aplicado o regime que concretamente se mostre mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado.
Deste preceito há que reter duas determinações:
A escolha deverá fazer-se entre regimes;
A determinação de qual o regime mais favorável deverá fazer-se em concreto.
Relativamente ao «projecto» de 1963, substituiu-se a expressão «normas mais favoráveis» por «regime que concretamente se mostre mais favorável».
A referência a «regime», em vez de «normas», implica a ideia de que não se pode escolher de cada uma das leis os preceitos isolados que forem mais favoráveis ao agente, mas há que aplicar uma só lei, prescrevendo um conjunto normativo (bloco) definidor do regime do instituto ou infracção, que constitui o regime do instituto ou infracção.
Assim, não é lícito construir regimes particulares pela conjunção de elementos retirados de uma e outra lei, com o perigo da quebra de coerência e a obtenção de um resultado aberrante, ainda que concretamente vantajoso, para o agente. Proíbe-se o que, em expressão curiosa, já se designou por «aplicação simbiótica das leis penais». Aqui se toma a lição dos autores Beleza dos Santos, Lições, 1936, p. 194, Cavaleiro de Ferreira, Lições, 2.ª ed., p. 121, e Direito Penal Português, I, p. 124, e Eduardo Correia, Direito Criminal, I, p. 139. Na linguagem sintética do primeiro destes autores:
Convém dizer que deverá aplicar-se na sua integridade a lei antiga ou nova e não simultaneamente as disposições mais favoráveis de uma e outra.
O modo de operar deve ser este: aplica-se a lei antiga e, a seguir, a lei nova, uma e outra integralmente; comparam-se os resultados e determina-se, casuisticamente, qual a mais favorável para o agente, optando-se por esta.
9 - No primeiro dos acórdãos em confronto entendeu-se que a acusação dada na vigência da lei antiga tinha, face a esta, o efeito de suspender o curso do prazo prescricional, efeito que havia de respeitar-se.
Coloca-se o problema dos limites da retroactividade, que é expressamente considerado no Código Civil, artigo 13.º, seu n.º 1: ficando salvos os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza.
Como se sabe, as regras da aplicação da lei no tempo inscritas no Código Civil foram inspiradas por Enneccerus, fonte da qual retiramos a seguinte passagem (in Derecho Civil - Parte General, ed. esp., I, p. 233):
O juiz tem que aplicar a lei ditada com força retroactica [...] como se o seu conteúdo fosse válido já antes [...] e, portanto, aos litígios em aberto. Respeitar as relações definitivamente fixadas ou desenvolvidas em virtude de sentença firme transacção, renúncia, reconhecimento, cumprimento, compensação, etc., que portanto deva destruir-se a posteriori o seu estado definitivo.
Procurando dar uma ideia geral das situações que são ou não atingidas pela lei retroactiva, podemos dizer que esta abrange todos os casos que se encontram ainda em aberto, por não haver uma sentença com trânsito em julgado ou negócio jurídico definidor.
Procedendo à adaptação destes ensinamentos ao âmbito penal, que temos como válidos em sua essência quando a lei penal ganhe efeito retroactivo decorrente da aplicação do princípio da lex favorabilia, cremos que, enquanto a prescrição for questão em aberto, isto é, enquanto puder ser declarada, o que significa até haver decisão condenatória definitiva, deve aplicar-se a lei nova retroactiva.
Nesta conformidade, considerar-se-iam sem qualquer valor, para o efeito e suspensão ou interrupção da prescrição, actos judiciais que o tinham antes claramente definido pela lei vigente na altura em que foram praticados.
Sintetizando: o regime da prescrição do procedimento criminal estatuído em lei nova é aplicável retroactivamente em bloco quando seja mais favorável; o regime da prescrição integra o prazo, o seu processo de contagem e as causas de suspensão e de interrupção; só a sentença com trânsito em julgado obsta à aplicação da lei nova retroactiva.
10 - Termos em que se decide:
Confirmar a decisão recorrida;
Firmar-se o seguinte assento:
Em matéria de prescrição do procedimento criminal deve aplicar-se o regime mais favorável ao réu, mesmo que no momento da entrada em vigor do Código Penal de 1982 estivesse suspenso o prazo de prescrição por virtude de acusação deduzida.
Sem custas.
Lisboa, 15 de Fevereiro de 1989. - Pedro de Lemos e Sousa Macedo - Adelino Barbosa de Almeida - José Alexandre de Paiva Mendes Pinto - Vasco Eduardo Crispiano C. de Lacerda Abrantes Tinoco - João Solano Viana - Pedro Augusto Lisboa de Lima Cluny - Silvino Alberto Villa-Nova - António Carlos Vidal de Almeida Ribeiro - Augusto Tinoco de Almeida - Júlio Carlos Gomes dos Santos - José Alfredo Soares Manso Preto - Manuel Augusto Gama Prazeres - José Manuel Meneres Sampaio Pimentel - Alberto Baltazar Coelho - António Alexandre Soares Tomé - Salviano Francisco de Sousa - Joaquim José Rodrigues Gonçalves - Cesário Dias Alves - Abel Pereira Delgado - Jorge de Araújo Fernandes Fugas - José Saraiva - José Isolino Enes Calejo - José Manuel de Oliveira Domingues - Eliseu Rodrigues Figueira Júnior - Alberto Carlos Antunes Ferreira da Silva - Flávio Parreira da Trindade Pinto Ferreira - Fernando Heitor Barros de Sequeiros - Jorge da Cruz Vasconcelos - António de Almeida Simões - Fernando Faria Pimentel Lopes de Melo - José Henriques Ferreira Vidigal - Mário Sereno Cura Mariano - Cláudio César Veiga da Gama Vieira - João Alcides de Almeida - Mário Augusto Fernandes Afonso - Licínio Adalberto Vieira de Castro Caseiro - João de Deus Pinheiro Farinha (votei o assento. Entendo, porém, que não se pode dizer «aplica-se a lei antiga e, a seguir, a lei nova [...]». É que não se podem aplicar duas leis incompatíveis; pondera-se o segundo facto face às duas leis e aplica-se a mais favorável - esta e só esta).