Assento
Acordam, em tribunal pleno, no Supremo Tribunal de Justiça:
1 - O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto no Tribunal da Relação de Évora, por sua iniciativa e a requerimento da defesa, interpôs recurso extraordinário para este Supremo Tribunal, funcionando em tribunal pleno, nos termos do artigo 669.º do Código de Processo Penal (CPP), do acórdão daquela Relação de 9 de Abril de 1985, proferido no processo 24/85, por se encontrar em oposição com o acórdão da Relação de Coimbra de 5 de Novembro de 1965, proferido no processo 6311 e publicado na Jur. das Relações, ano XI, p. 1033.
O recurso foi admitido e o recorrente apresentou alegação, nos termos do artigo 765.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), nela afirmando que o acórdão recorrido encontra-se em oposição com o citado acórdão da Relação de Coimbra sobre a mesma matéria de direito - justamente a interpretação e aplicação do n.º 2 do artigo 192.º do Código das Custas Judiciais (CCJ).
Com efeito, enquanto o acórdão anterior de 1965 decidiu que tal norma só é aplicável ao recurso interposto dos acórdãos das relações para o Supremo Tribunal de Justiça, o acórdão recorrido decidiu que a referida norma se aplica igualmente ao recurso interposto das decisões da 1.ª instância, pelo que o pagamento do imposto devido pela interposição do recurso destas decisões deve ser acompanhado do depósito das quantias que o recorrente deva nesse momento garantir, sob pena de o recurso não ter seguimento.
Além desta manifesta oposição - refere o recorrente - verificam-se os restantes requisitos do recurso que interpôs.
Após parecer concordante do Exmo. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo, a Secção julgou a questão preliminar, nos termos do artigo 766.º, n.º 1, do CPC, decidindo verificarem-se todos os requisitos ou pressupostos do recurso em causa, a que aludem o artigo 699.º do CPP e os n.os 2, 3 e 4 do artigo 763.º do CPC, entre os quais a oposição relevante entre os arestos mencionados, porquanto as soluções adoptadas num e noutro, já apontadas, traduzem um verdadeiro conflito de jurisprudência - que é o fundamento fulcral do recurso para o tribunal pleno - a propósito de situações concretas idênticas: em ambos os processos verificou-se condenação em 1.ª instância, tendo os condenados interposto recurso, havendo quantias em dívida (impostos, acréscimos e multas) e não beneficiando qualquer dos recorrentes de isenção ou dispensa de preparos e custas.
Muito embora o acórdão que reconheceu a existência da oposição não impeça que se decida agora em sentido contrário (n.º 3 do artigo 766.º do CPC), este tribunal pleno, tendo reflectido sobre a questão preliminar, considera que não há razões para dissentir do decidido pela Secção, impondo-se assim prosseguir para julgamento do conflito sub judice, sem esquecer o douto parecer do Exmo. Magistrado, que é no sentido de o n.º 2 do artigo 292.º do CCJ ser aplicável somente aos recursos interpostos de acórdãos das relações.
II - Tudo visto.
Afigura-se-nos que a questão a decidir por este Tribunal poderá beneficiar de uma curta reflexão, adequada à índole de uma decisão judicial, sobre o relevo jurídico-constitucional dos recursos e de algumas das suas limitações.
O artigo 20.º da nossa lei fundamental consagra, ao mais alto nível normativo, a protecção judicial dos direitos fundamentais e dos interesses juridicamente relevantes, incluídos nestes, segundo alguns autores, os chamados «direitos difusos» (categoria intermédia entre interesses individuais e interesses colectivos, respeitantes a um grupo indeterminado de indivíduos, como o interesse em respirar o ar não contaminado pela poluição das fábricas, o desfrutar de um banho numa praia limpa, etc.) (cf. Colaço Antunes, «Para uma tutela jurisdicional dos interesses difusos», in Boletim do Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LX, 1984, p. 191).
O referido preceito constitucional menciona, ao lado do direito de acesso ao direito (n.º 1), que engloba o direito à informação jurídica e ao patrocínio jurídico, o direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos (n.º 2).
Este direito de acesso aos tribunais ou à via judiciária, ou ainda direito à jurisdição, estende-se à protecção contra os próprios actos jurisdicionais, o que supõe o direito de impugnação ou recurso dos mesmos para outro órgão jurisdicional hierarquicamente superior ao tribunal que os praticou e presuntivamente considerado mais idóneo para o reexame da matéria em causa.
E parece mais conforme à garantia constitucional de defesa dos direitos através dos tribunais que o direito ao recurso se estenda aos diversos graus de impugnação legalmente admitidos até ao julgamento definitivo da causa (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, p. 181, 2.ª ed.).
Isto não quer dizer, porém, que o reexame da questão, no esforço para encontrar o acerto e a justiça da decisão, possa ir até ao infinito, porque não há de facto algum meio que conduza à realização absoluta daquelas preocupações ou valores. Mas a ordem jurídica é sobretudo uma ordem prática, que não tem menos necessidade de certeza que de justiça, e, por isso, ela poderá, em dado momento, assentar sobre uma solução da controvérsia que não ofereça mais a possibilidade de modificação. Determinar quando se está nesse momento, quando se conseguiu um grau suficiente de indagação e de apreciação, é tarefa da mesma ordem jurídica, tendo em conta certos índices, como a estrutura do processo de primeiro grau, o valor da causa (a gravidade das infracções no processo penal), as próprias regras de experiência (cf. S. Satta, Diritto processuale civile, 1981, pp. 442 e segs.).
Há, todavia, um mínimo de garantia em matéria de recursos consubstanciado no princípio do duplo grau de jurisdição, que, no seu sentido rigoroso, significa que toda a controvérsia possa, após o primeiro julgamento, passar ao exame, em todos os seus aspectos - de facto e de direito -, de um outro órgão jurisdicional, em regra, superior, a fim de ser julgada novamente, corrigindo-se desta forma os erros de actividade (errores in procedendo) ou os erros de julgamento (errores in indicando) do juízo de primeiro grau (cf. S. Satta, loc. cit., Liebman, Manuale diritto processuale civile, III, 3.ª ed., pp. 45 e segs., e G. Bettiel, Instituições de Direito e Processo Penal, 1974).
Trata-se de um princípio acolhido universalmente, e, como facilmente se intui, ele assume um relevo particular no domínio do processo penal, em que, mais que os bens, pode estar em causa - e quase sempre está - a própria liberdade das pessoas.
Não surpreende, por isso, que no Pacto Internacional sobre os Direitos Civil e Político de 1976, aprovado por Portugal para ratificação pela Lei 29/78, de 12 de Junho, se estabeleça a garantia do duplo grau de jurisdição em processo penal (artigo 14.º, n.º 5).
Esta garantia é assim considerada indispensável e, segundo certa orientação, suficiente. [Neste sentido se integra o sistema, a todos os títulos inovador, entre nós, do regime de recursos adoptado no novo Código de Processo Penal, que aboliu, em regra, o duplo grau de recurso (3.º grau de jurisdição), conhecendo os tribunais da relação em última instância das decisões finais do juiz singular e, em princípio, das decisões interlocutórias do tribunal colectivo e do júri e o Supremo Tribunal de Justiça dos recursos, a interpor directamente, das decisões finais do tribunal colectivo e do júri (recurso per saltum) (cf. artigos 400.º e 432.º do citado diploma e do seu relatório preambular, III, c).]
Tendo o recurso das decisões da 1.ª instância, para a relação o alto relevo a que se vem aludindo, dentro de um sistema processual como o nosso actualmente vigente, compreende-se que a lei o favoreça em lugar de o limitar, designadamente em matéria de custas.
Já o mesmo não sucede com o recurso das relações para o Supremo, porquanto, embora seja idóneo a possibilitar uma mais perfeita decisão da causa, ele constitui, pelo menos em relação às causas menos importantes, uma via como que de «luxo», em princípio reservada às causas de maior importância, e, por isso, aceita-se já que o acesso a essa via só seja possível mediante a satisfaça de uma significativa «portagem», que é exactamente, para além do pagamento do imposto de justiça devido pela interposição, o depósito das quantias que o recorrente deva nesse momento garantir, consoante dispõe o controverso n.º 2 do artigo 192.º do CCJ.
Sendo esta a posição mais razoável, é de presumir que o legislador de custas a haja tido em atenção (cf. artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), bem como aquela ideia - bastante cara a uns e repelida por outros - da necessidade pragmática da limitação dos recursos, sobretudo perante o Supremo Tribunal de Justiça, que, situado no vértice da pirâmide dos tribunais judiciais - ele próprio vértice e centro da função judicial, na expressão de Calamandrei -, não pode ser encarado como normal terceira instância, pois lhe compete essencialmente, como tribunal de revista, «dizer» o direito, em sede jurisdicional, contribuindo, deste modo, para a desejável uniformidade da jurisprudência.
No sentido de que a lei de custas em vigor contende com a defesa dos direitos, cf. Guilherme da Fonseca, «A defesa dos direitos - princípio geral da tutela jurisdicional dos direitos fundamentais», in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 344, pp. 80 e segs. Também a Resolução do Conselho da Revolução n.º 56/82, de 18 de Março, bem como o Acórdão da Comissão Constitucional de 25 de Março de 1983, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 327, p. 431, entenderam que as normas do n.º 2 do artigo 192.º e do n.º 1 do artigo 189.º do CCJ não podem aplicar-se, por inconstitucionais, desde que o recorrente não disponha de suficiência económica para efectuar o depósito nelas previsto e se trate de multas e das garantias da condenação a que aludem.
O caso em apreciação não é, porém, subsumível à doutrina da resolução e acórdãos apontados.
Crê-se, por conseguinte, levando em conta tudo quanto foi dito, que a interpretação da norma do n.º 2 do artigo 192.º do CCJ tem de fazer-se em conjugação com o disposto no n.º 1 do artigo 189.º do mesmo diploma, que só aos recursos da relação se refere, do que resulta - e ainda porque não há qualquer outra norma que o imponha - que o depósito das quantias mencionadas nos dois preceitos (impostos, custas e multas em dívida) não é obrigatório quando se trate de recurso interposto na 1.ª instância. Tem sido este, aliás, o entendimento predominante da jurisprudência. (No mesmo sentido, Arala Chaves, Código das Custas Judiciais Anotado, 1967, p. 265.)
III - Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso, formulando o seguinte assento:
O disposto no n.º 2 do artigo 192.º do Código das Custas Judiciais é aplicável tão-só aos recursos interpostos dos acórdãos da relação.
Não é devido imposto de justiça.
Lisboa, 6 de Janeiro de 1988. - José Alfredo Soares Manso Preto - Fernando Pinto Gomes - Manuel Augusto Gama Prazeres - António de Almeida Simões - Cláudio César Veiga da Gama Vieira - João Alcides de Almeida - Manuel Alves Peixoto - João de Deus Pinheiro Farinha (com a declaração de que se não pode falar em «via de luxo» mesmo nos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça em causas menos importantes) - João Augusto Pacheco e Melo Franco - João Solano Viana - José Manuel Meneres Sampaio Pimentel - Joaquim José Rodrigues Gonçalves - Cesário Dias Alves - Mário Sereno Cura Mariano - Joaquim Augusto Roseira de Figueiredo - Pedro Augusto Lisboa de Lima Cluny - Silvino Alberto Villa-Nova - António Carlos Vidal de Almeida Ribeiro - Licínio Adalberto Vieira de Castro Caseiro - Augusto Tinoco de Almeida - Aurélio Pires Fernandes Vieira - Frederico Carvalho de Almeida Baptista - Júlio Carlos Gomes dos Santos - António Alexandre Soares Tomé - Abel Pereira Delgado - Salviano Francisco de Sousa - Jorge de Araújo Fernandes Fugas - José Saraiva - José Isolino Enes Calejo - António Poças - José Manuel de Oliveira Domingues.