Assento
Acórdão
Acordam, em plenário, no Supremo Tribunal de Justiça:
Acácio Nogueira Baptista e mulher, Benilde Marques de Sousa, recorreram para o tribunal pleno, nos termos do artigo 763.º do Código de Processo Civil, do Acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Janeiro de 1984, proferido no processo 71043, da 1.ª Secção Cível, com o fundamento de que ele está em oposição com o Acórdão, também deste Supremo Tribunal, de 12 de Fevereiro de 1980, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 294, p. 312, sobre a mesma questão fundamental de direito: se são ou não nulos os contratos onerosos que tenham por objecto lotes de terrenos compreendidos em loteamentos urbanos sem ter sido obtida a licença de loteamento titulada por alvará, celebrados no domínio de vigência do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965.
A Secção, pelo acórdão de fl. 24, reconheceu a existência da oposição e mandou prosseguir o processo.
Os recorrentes alegaram doutamente, formulando as seguintes conclusões:
1.ª Na vigência do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965, eram nulos os negócios jurídicos de compra e venda de terrenos compreendidos em loteamento sem alvará;
2.ª Tal é a sanção que resulta do artigo 10.º desse diploma legal, conjugado com os artigos 294.º e 280.º do Código Civil;
3.ª O vendedor ficava ainda sujeito às multas previstas no artigo 12.º do mesmo diploma legal;
4.ª A solução apontada não quebra a unidade do sistema jurídico;
5.ª O Decreto-Lei 289/73, de 6 de Junho, apenas alargou a sanção da nulidade a outros negócios jurídicos, para além dos previstos no Decreto-Lei 46673;
6.ª O acórdão recorrido violou os artigos 10.º, 12.º, 13.º e 14.º do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965, e os artigos 280.º e 294.º do Código Civil.
Os recorridos haviam apresentado já alegações, também doutas, defendendo a solução oposta.
O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Supremo apresentou desenvolvido e muito douto parecer no qual sustenta que deve ser mantido o acórdão recorrido, sugerindo a formulação de assento nos seguintes termos: «Na vigência do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965, são válidos os negócios jurídicos de compra e venda, bem como a promessa de terrenos compreendidos em loteamentos sem alvará, excepto quando no momento da celebração do contrato houvesse impossibilidade de obtenção de alvará, por haver lei, regulamento ou acto administrativo e impeditivo da sua emissão.»
Tudo visto.
Porque o tribunal pleno não está vinculado à decisão preliminar proferida pela Secção, conforme se vê do disposto no n.º 3 do artigo 766.º do Código de Processo Civil - se bem que se possa entender que a reapreciação dessa decisão só possa ter lugar se entretanto for suscitada essa questão -, há que reapreciar a questão em ordem à verificação ou não dos pressupostos exigidos para o conhecimento do objecto do recurso.
E, assim, verifica-se que são idênticas as questões que em ambos os acórdãos considerados em oposição foram apreciadas, pois no acórdão recorrido tratava-se de contratos de compra e venda titulados por escrituras públicas de 6 de Dezembro de 1972 e de 10 de Janeiro de 1973 e no acórdão anterior apreciou-se um contrato-promessa de compra e venda, todos eles tendo por objecto terrenos para construção, sem que tivesse sido aprovado qualquer loteamento deles.
Nesse acórdão anterior, no chamado acórdão fundamento, entendeu-se que, nos termos do artigo 10.º, n.º 1, do referido Decreto-Lei 46673, conjugado com os artigos 280.º, 285.º e 294.º do Código Civil, o contrato-promessa era nulo, por ser legalmente impossível o objecto ou por ser o negócio jurídico contrário à lei ou contra disposições legais de carácter imperativo, como são as apontadas na tutela de superiores interesses gerais da disciplina urbanística, sem descurar a defesa dos interesses privados.
Mas no acórdão recorrido entendeu-se, não obstante o disposto naquele n.º 1 do artigo 10.º daquele Decreto-Lei 46673 visar acautelar a ordem pública, que a falta de licença apenas acarretava graves multas impostas aos irregulares vendedores, promitentes vendedores e anunciantes de vendas.
Assim, embora um dos acórdãos, o anterior, ou acórdão fundamento, se refira a contratos de compra e venda celebrados por escrituras públicas e o acórdão recorrido tenha incidido sobre um contrato-promessa de compra e venda, o certo é que ambos apreciam a validade ou nulidade dos contratos a que alude o artigo 10.º desse Decreto-Lei 46673 celebrados contra a proibição contida nesse preceito.
É, pois, no essencial, a mesma questão que se discute nos dois acórdãos.
E, como todos os contratos foram celebrados do domínio de vigência desse Decreto-Lei 46673, ambos os acórdãos se baseando fundamentalmente nele, estão sujeitos ao mesmo regime, certo como é que nesse período também se encontravam em vigor os mesmos preceitos, inalterados, do Código Civil.
E, conforme se referiu, os acórdãos em confronto adoptaram soluções diferentes, pois pelo acórdão recorrido o contrato-promessa foi considerado válido e pelo acórdão anterior os contratos celebrados foram declarados nulos.
É, assim, de reconhecer que existe a invocada oposição dos acórdãos referidos no domínio de vigência da mesma legislação relativamente à mesma questão de direito, pelo que há que conhecer do objecto do recurso.
No acórdão recorrido entendeu-se que no domínio de vigência do Decreto-Lei 46673 o contrato-promessa de compra e venda de terrenos compreendidos em loteamento sem que previamente se tivesse obtido a respectiva licença de loteamento era válido, pois, estabelecendo-se apenas multas aos irregulares vendedores e promitentes vendedores, é de concluir que não se quis atacar o negócio na sua validade, mas sim e unicamente se pretendeu desencorajar e castigar os especuladores vendedores como infractores ofertantes de loteamento urbano sem alvará, pelo que, conforme em tal acórdão expressa e textualmente se consignou, «não se fere o acto e apenas se sanciona o autor», entendimento esse que arranca das considerações de que o n.º 1 do artigo 10.º desse diploma apenas perspectiva a conduta singular do «anúncio de venda», que nunca podia ser nulo, e as actividades singulares de «venda» e de «promessa de venda», e não actos negociais bilaterais de «compra e venda», pois só os anunciantes de venda, os vendedores e promitentes vendedores são punidos com multa.
E no referido acórdão anterior, o de 12 de Fevereiro de 1980, favoravelmente anotado por Vaz Serra, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 114.º, p. 200, entendeu-se que, em tais circunstâncias, o contrato era nulo, nos termos dos artigos 280.º, 285.º e 294.º do Código Civil, em conjugação com o referido artigo 10.º do Decreto-Lei 46673, «por ser o objecto legalmente impossível ou por ser o negócio jurídico contrário à lei ou contra disposições legais de carácter imperativo, como são as apontadas na tutela de superiores interesses gerais da disciplina urbanística, sem descurar a defesa dos interesses privados», entendimento que é perfilhado, desenvolvidamente, por J. Osvaldo Gomes, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 41.º, p. 775, em anotação ao Acórdão deste Supremo de 31 de Março de 1981, in Boletim, n.º 305, p. 288, que decidiu ser válido o contrato-promessa de compra e venda de terreno compreendido em loteamento sem alvará constante de documento particular, na vigência do mesmo Decreto-Lei 46673, por tal contrato não ter eficácia real e o diploma só a contratos com tal eficácia se referir.
E, efectivamente, nos termos do artigo 280.º do Código Civil, é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
E entende-se que o objecto é ilegalmente impossível quando o acto é inidóneo para se realizar o efeito jurídico pretendido, sendo ilícito o objecto quando a lei exprima um juízo de reprovação para com ele (v. Vaz Serra, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 104.º, p. 8, nota 1).
Daí que, estabelecendo o n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei 46673 que «qualquer forma de anúncio de venda e a venda ou promessa de venda de terrenos, com ou sem construção, compreendidos em loteamentos só poderão efectuar-se depois de obtida a licença a que se referem os artigos antecedentes e de terem sido observados os condicionamentos nela estabelecidos», se tenha de chegar à conclusão de que, se não tiver sido observado ou satisfeito o aí consignado, seja legalmente impossível a venda ou promessa de venda, o que, numa primeira aproximação, parece que produzirá a nulidade do negócio, nos termos do artigo 294.º do Código Civil.
É que tal norma, sendo proibitiva, tem natureza imperativa (v. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 2.ª ed., p. 249) e a nulidade tanto pode apresentar-se sob a forma textual ou expressa, como virtual ou tácita, como defende Rui Alarcão, A Confirmação dos Negócios Anuláveis, I, p. 45, nota 41, entendimento que vem na esteira do de Manuel Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1964, p. 282, nota 1, este emitido em face do artigo 10.º do Código Civil de 1867, pelo que o facto de aquele diploma não cominar expressamente a nulidade não significa, em princípio, que ela não possa ser declarada.
Porém, aquele artigo 294.º contém uma restrição a tal comando, ao da nulidade, pois diz-se nele «salvo se outra solução resultar da lei», o que significa (v. Manuel de Andrade, ob cit. e vol. cit., p. 335) que deverá ter-se por excluída a nulidade se a sanção se mostrar pouco adequada ao caso concreto.
E ela mostra-se, nos casos em apreciação, não só pouco adequada, mas até repelida por aquele diploma.
Na verdade, nos artigos 12.º e 13.º daquele Decreto-Lei 46673 cominam-se multas pela inobservância do disposto no artigo 10.º, ou seja, pela efectivação dos actos nele referidos sem a obtenção prévia da licença de loteamento.
Sanciona-se, pois, a falta de cumprimento de um dever do vendedor ou promitente vendedor para com a Administração, assim se configurando uma limitação administrativa à prática de tais actos, o que aponta para uma natureza administrativa da sanção aí imposta, naturalmente por o legislador haver então considerado que os bens jurídicos aí protegidos não eram valores ou interesses fundamentais da vida comunitária ou da personalidade ética do homem, mas simples valores da criação ou manutenção de uma certa ordem social (v. Eduardo Correia, Direito Criminal, I, 1963, pp. 28-29), para defesa dos quais se reputou suficiente a imposição de multas.
Surge, pois, a infracção a tal preceito nesse diploma como simples contravenção, com as multas a serem impostas pelo tribunal, nos termos do artigo 14.º desse diploma.
Assim, a sanção da nulidade dos contratos celebrados sem a prévia obtenção da licença de loteamento, porque não foi expressamente estabelecida pelo legislador, naturalmente em razão de então não haver sido considerada necessária ou oportuna ou haver sido considerada desajustada e imprópria, não pode ter aplicação, estando, assim, a sanção expressamente cominada exclusivamente integrada na esfera da tutela administrativa, e não da tutela jurisdicional.
Deve ser em resultado de considerações desta ordem - não se viu referida a fundamentação - que a jurisprudência italiana, segundo informa C. M. Bianco, Diritto civile, III, p. 582, vem decidindo que a cominação de uma particular sanção, diversa da nulidade, exaure a consequência da violação da lei, não dando, portanto, lugar à invalidado do contrato, com o que aquele autor concorda, com a restrição de ser penal a sanção, pois então cumular-se-ão, o que não se verifica no caso sujeito, pois, como se referiu, a sanção que o diploma aludido impõe é de natureza contravencional (v. ainda D. Rubino, La Compravendita, 1971, p. 23, onde se assinala que a inobservância de limitações administrativas não prejudica, por si só, a validade nem a simples eficácia dos contratos de compra e venda).
Ainda é de considerar que, havendo o legislador cominado, expressamente, apenas a sanção das multas, mas exclusivamente a uma das partes, àquela que pretende vender o terreno - artigos 10.º, 12.º e 13.º do mesmo Decreto-Lei 46673 -, manifesto é que tais sanções apenas visam um comportamento, uma conduta, e não o contrato celebrado, que, por isso, não deverá vir a ser afectado, podendo acontecer até que, se fosse entendido que se verificava a nulidade, viesse a ser prejudicada a outra parte, que em nada havia contribuído para a verificação da infracção, com o que, reflexamente, viria a beneficiar a parte infractora, a parte que não diligenciara quanto à obtenção da licença.
E que o alcance do preceito legal em causa é este resulta ainda do elemento histórico, como é salientado pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público, pois, tendo sido esta a interpretação dada àqueles preceitos pelo parecer 22/65, de 7 de Junho, da Procuradoria-Geral da República, que se supõe inédito e que incidiu sobre o projecto de diploma que se veio a converter naquele Decreto-Lei, nele se consignando explicitamente a plena concordância com o não estabelecimento da sanção da nulidade das operações de venda, por se reputarem suficientes as sanções impostas aos infractores, a redacção do preceito não veio a sofrer qualquer modificação em relação ao projecto, o que evidencia plena concordância com a interpretação que em tal parecer era dada.
E tal entendimento resulta corroborado pela circunstância de o Decreto-Lei 289/73, de 6 de Junho, que veio a substituir aquele diploma, haver imposto, no n.º 2 do artigo 27.º, a sanção da nulidade, entre outros actos, dos instrumentos notariais atinentes a terrenos quando neles se não fizesse menção do número e data do alvará do loteamento, pois então era já a lei a ferir de nulidade tais actos, sanção que, segundo se infere do relatório que o precede, é inovadora, porquanto se diz nele que «nessa linha ferem-se de nulidade [...]», do que é de concluir que o legislador entendia que anteriormente não tinha lugar a sanção de nulidade.
Entende-se, pois, que a violação do citado artigo 10.º do Decreto-Lei 46673 não determina a nulidade dos contratos-promessa ou contratos de compra e venda de terrenos celebrados durante a sua vigência sem licença de loteamento.
Mas, como é evidente, tal conclusão não envolve a de que os contratos referidos não possam ser declarados nulos com base em qualquer outro fundamento legal.
Porém, esses fundamentos exorbitam do objecto do recurso, pelo que não há que fazer qualquer referência a eles na formulação do assento.
Nestes termos, negam provimento ao recurso, confirmando o douto acórdão recorrido, com custas pelos recorrentes.
E, nos termos do n.º 3 do artigo 768.º do Código de Processo Civil, formula-se o seguinte assento:
No domínio de vigência do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965, a falta de licença de loteamento não determina a nulidade dos contratos de compra e venda de terrenos, com ou sem construção, compreendida no loteamento.
Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Julho de 1987. - João Alcides de Almeida - Aurélio Fernandes - Pereira de Miranda - Frederico Baptista - Júlio Santos - Manso Preto - Pinto Gomes - Gama Prazeres - Almeida Simões - Pinheiro Farinha - Melo Franco - Vasconcelos de Carvalho - Magalhães Baião - Almeida Ribeiro - Licínio Caseiro - Dias Alves - Cura Mariano - Soares Tomé - Alves Peixoto (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto que junto) - Solano Viana (vencido, pelas razões constantes do voto do Exmo. Conselheiro Alves Peixoto) - Joaquim Figueiredo (vencido, nos termos da declaração que junto) - Lima Cluny (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto que junto em separado) - Silvino Villa-Nova (vencido, pelas razões constantes dos votos dos demais Exmos. Conselheiros vencidos) - Meneres Pimentel [vencido. O artigo 294.º do Código Civil contém uma regra e uma excepção: a primeira prescreve a nulidade dos negócios jurídicos celebrados contra disposição legal imperativa; a segunda tem de resultar da lei. Acontece que temos de distinguir três tipos de ilícito: o chamado ilícito penal de justiça, o designado ilícito penal administrativo (direito penal secundário) e, finalmente, o ilícito das contra-ordenações. O acórdão admite estar-se em presença da segunda espécie. Por isso e ainda pelo facto de a terceira espécie só ter obtido acolhimento efectivo no nosso sistema jurídico a partir de 1982, não entendo como se pode afirmar que a violação das disposições proibitivas do decreto-lei em análise não constitui infracção penal (no sentido lato do termo). Quanto a esta clarificação das normas do direito penal e de ordenação social, pode ler-se a magnífica lição do Prof. Doutor Figueiredo Dias, publicada na R. L. J., a partir do ano 116.º, p. 263. Revertendo agora ao início, parece óbvio não se verificar qualquer excepção à regra geral do artigo 294.º do Código Civil (pelo contrário). No mais acompanho a declaração de voto dos Exmos. Conselheiros Alves Peixoto e Joaquim Figueiredo] - Joaquim Gonçalves (vencido, de acordo com as razões do voto do Sr. Conselheiro Alves Peixoto) - Fernandes Fugas (vencido, de acordo com os fundamentos do voto do Exmo. Conselheiro Alves Peixoto).
Declaração de voto
Votei pela nulidade do negócio jurídico atinente ao terreno abrangido pelo loteamento celebrado antes de concedido o alvará, mesmo no domínio do Decreto-Lei 46673.
É que este diploma já proibia a «venda» e até as simples «promessas» e «anúncios», sob pena de multa, sanção característica daquilo que é considerado em direito penal uma contravenção, a qual, de iure constituto (artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro), é ainda mais que uma simples contra-ordenação, situando-se entre esta (ilícito criminal administrativo) e o crime (ilícito criminal de justiça).
Ora, proibindo aquele diploma, por razões de interesse e ordem pública (disciplina: construções, em função das indispensáveis infra-estruturas), a venda ou promessa de venda e tendo-a por infracção penal, seria um contra-senso considerá-la civilmente lícita.
O que é lógico, isso sim, é que, nula uma das prestações, se julga nula a contraprestação, no caso a compra (entrega do preço) com a promessa de compra (abono do sinal).
De outro modo, para além do impossível jurídico de um contrato nulo (até penalmente ilícito), de uma banda, e válido, da outra, os resultados sociais seriam desastrosos - a urbanização descontrolada, sem o mínimo de condições de habitabilidade.
E é óbvio igualmente não poder distinguir-se, como faz o acórdão, o acto do autor - ninguém pode ser punido por conduta lícita.
É verdade que o artigo 294.º do Código Civil admite que excepcionalmente não se julgue nulo negócio celebrado contra lei imperativa. Mas não quando a ilicitude é até penal (concebe-se ilícito civil sem ilicitude penal, mas não a inversa). E não aqui ainda porque nenhum dos preceitos do Decreto-Lei 46673 leva a concluir pela validade; só se pune o anunciante, o promitente vendedor e o vendedor sem alvará por ser ele o autor do loteamento e ser ele o obrigado a premunir-se com este documento.
Mas nem por isso se deve «premiar» o comprador com a validade de um contrato ilegal, pois o loteamento é coisa que está à sua vista e todos sabem ou devem saber (artigo 6.º do Código Civil) da necessidade do licenciamento.
Por fim, quero salientar que o Decreto-Lei 289/73, rigorosamente, criou outra nulidade, não esta (cf. artigo 27.º, n.º 2).
Declaração de voto
A disposição, proibitiva, do artigo 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei 46673 inspirou-se, sem sombra de dúvida, num fim de interesse público: «obstar à criação de núcleos habitacionais que contrariam o racional desenvolvimento urbano do território» e «evitar que se efectuem operações de loteamento sem que previamente estejam asseguradas as indispensáveis infra-estruturas urbanísticas», como se diz no preâmbulo do diploma. Ora os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei - artigo 294.º do Código Civil. Do disposto nos artigos 12.º e 13.º daquele decreto-lei não resulta que in casu resulte da lei outra solução, pois, como se observa no Acórdão de 12 de Fevereiro de 1980, «os artigos 10.º a 14.º e 16.º do citado diploma de 1965 referem-se a ilícitos penais administrativos, e não à ilicitude que os negócios jurídicos [...] previstos no aludido artigo 10.º». E é claro que do mesmo artigo 294.º se deduz «não ser necessária uma norma especial declarando a nulidade para cada caso, o que significa admitirem-se nulidades virtuais, e não apenas nulidades textuais». Votei, pelo exposto, se concedesse provimento ao recurso, lavrando-se assento em que se adoptasse a doutrina daquele acórdão.
Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Julho de 1987. - Joaquim Figueiredo.
Declaração de voto
Ao contrário do «assento» agora formulado, pronunciei-me no sentido da nulidade dos contratos celebrados em desconformidade com o dispositivo do artigo 10.º do Decreto-Lei 46673, de 29 de Novembro de 1965.
Efectivamente, à face deste preceito, não podia deixar de entender-se como «contrária à lei» a venda, ou a promessa de compra e venda, de terrenos compreendidos em loteamento sem que fosse obtida a licença respectiva e sem que fossem observados os respectivos condicionamentos.
Daí que, independentemente das multas em caso de contravenção do ali estatuído, tais negócios fossem nulos, por contrários à lei, nos termos do n.º 1 do artigo 280.º do Código Civil, que não permite distinguir entre negócios apenas contrários à lei e aqueles que, por o serem, ainda ficam sujeitos a outro tipo específico de sancionamento, administrativo ou mesmo penal. Nem isso pode resultar do disposto na parte final do artigo 294.º, que se refere a outro tipo de «solução» (v. g., o da anulabilidade), que não a outro tipo de «sanção».
Por outro lado, não me parece de aceitar o argumento de que assim (isto é, a solução contrária à do «assento») se iria premiar o vendedor que infringiu a lei contra a inocência do comprador, ou promitente comprador [...], uma vez que este tinha o dever de se informar sobre se o terreno estava em condições legais de poder ser transaccionado, agindo negligentemente, se o não tiver feito.
Por fim, também não me impressiona o argumento tirado do relatório preambular do Decreto-Lei 289/73, dado que este veio avisar uma nulidade específica e diferenciada do que já resultava da aplicabilidade do artigo 280.º do Código Civil.
Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Julho de 1987. - Fernando Lima Cluny.