Acórdão doutrinário
Processo 31708. - Autos de recurso para o tribunal pleno. Recorrente, Ministério Público. Recorrido, Rogério José Nogueira.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em tribunal pleno:
O representante do Ministério Público recorre para o tribunal pleno do Acórdão de 14 de Outubro de 1964, junto por fotocópia a fls. 3-10, mas já publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 140, pp. 319 e seguintes.
Alega que esse acórdão está em oposição, sobre a mesma questão de direito, com o de 29 de Maio de 1963, transitado em julgado e publicado no mesmo Boletim n.º 127, pp. 275 e seguintes, visto que:
O acórdão recorrido decidiu que, em processo penal, o réu está isento de imposto de justiça no caso de recurso obrigatório interposto pelo Ministério Público, com confirmação da decisão recorrida.
Contràriamente, o Acórdão de 1963 decidiu, em caso igual, que o réu deve pagar imposto de justiça.
A secção criminal mandou seguir o recurso, de harmonia com o disposto nos artigos 668.º e seu § único do Código de Processo Penal e 763.º e seguintes do Código de Processo Civil.
O recorrente apresentou a alegação junta a fls. 23 e seguintes, satisfazendo assim ao estabelecido no n.º 2 do artigo 767.º daquele último diploma.
Nela desenvolve doutas considerações tendentes a fundamentar um assento nos seguintes termos:
É devido imposto de justiça pelo réu quando, em recurso interposto pelo Ministério Público por imperativo legal, é confirmada a decisão condenatória.
Obtidos os vistos legais, cumpre agora decidir.
Tudo visto e ponderado:
1.º O acórdão da secção criminal que reconheceu existir a oposição que serve de fundamento ao recurso não impede que o tribunal pleno decida em sentido contrário (artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Apresenta-se-nos, porém, indubitável que nada de útil poderá aduzir-se em favor da inviabilidade do recurso.
Na verdade:
Os dois acórdãos em causa foram lavrados no domínio da mesma legislação.
O de 29 de Maio de 1963, transitado em julgado, decidiu que nos recursos obrigatórios do Ministério Público, ainda que a decisão recorrida, com que o réu se conformou, seja confirmada, tem o réu de suportar o imposto de justiça graduado no artigo 188.º do Código das Custas Judiciais.
O de 14 de Outubro de 1964 - o recorrido -, em caso igual, decidiu que o réu está isento de imposto de justiça.
Assim, temos de reconhecer, sem necessidade de outras considerações, que existe um conflito de jurisprudência que devemos resolver.
2.º Os princípios fundamentais relativos à responsabilidade por custas, em processo civil, ressaltam das normas dos artigos 447.º e seguintes do Código de Processo Civil.
Aquele artigo 447.º enuncia com nitidez:
a) O princípio da causalidade, segundo o qual paga as custas quem a elas houver dado causa, devendo entender-se que lhes dá causa «a parte vencida, na proporção em que o for»;
b) O princípio relativo aos casos em que normalmente não há vencimento da acção, por virtude do qual paga as custas quem tira proveito do processo (inventário, divisão de coisa comum e processos especiais semelhantes).
Em desdobramento do princípio da causalidade, o artigo 449.º indica que «dá causa à acção o autor sempre que o réu a ela não der causa e a não conteste» (nota 2 da p. 194 do n.º 122 do Boletim do Ministério da Justiça).
Em anotação ao artigo 456.º do Código de Processo Civil de 1939, que, no fundamental, não era diferente do actual artigo 447.º, o Prof. Alberto dos Reis, prevendo os casos de recurso, escreveu:
O acórdão da Relação ou do Supremo que julga um recurso há-de condenar em custas a parte vencida, isto é, o recorrido, se o recurso obteve provimento, o recorrente, se a decisão recorrida foi confirmada. Pouco importa que o recorrido não tenha acompanhado o recurso, isto é, não tenha sustentado a legalidade da decisão impugnada pelo recorrente; desde que tem a posição de parte vencida, há-de suportar as custas do recurso (vol. 2.º, p. 203).
3.º O Código de Processo Penal, sem formular princípios basilares, não deixou de estabelecer, como regra, que o réu, no caso de condenação, pagará ao Estado imposto de justiça (artigo 156.º).
Esta regra tem sido absorvida e desenvolvida por sucessivos diplomas relativos à regulamentação da tributação nos processos judiciais: tabelas das custas, artigo 20.º; Código das Custas Judiciais de 1940, artigos 150.º e seguintes; actual Código das Custas Judiciais, artigos 171.º e seguintes.
4.º Ora o artigo 171.º do actual código dispõe no seu n.º 1:
O réu pagará o imposto de justiça fixado pelo tribunal no caso de ser condenado na 1.ª instância, decair total ou parcialmente em recurso ou ficar vencido em incidente que requeira ou a que faça oposição.
Há aqui, sem dúvida, uma enumeração que envolve a previsão de três casos:
a) O de o réu ser condenado em 1.ª instância;
b) O de o réu decair total ou parcialmente em recurso;
c) O de o réu ficar vencido em incidente que requeira ou a que faça oposição.
O primeiro caso, que já teve evidente domínio no Código de Processo Penal (citado artigo 156.º), contém, no fundo, a aplicação do princípio da causalidade a um processo que o Estado impõe ou consente que se organize para exercer o direito público de punir.
Definido, pela condenação em 1.ª instância, que o réu deu causa à acção penal, incumbe-lhe pagar imposto de justiça.
Mas, para além da condenação em 1.ª instância, a actividade judicial só continuará em caso de recurso. E então a lei determina - segundo caso previsto no citado artigo 171.º -, em claro desdobramento do mesmo princípio da causalidade, que passe a funcionar o princípio da sucumbência: o réu pagará imposto se decair e na medida em que decair.
Decai, ninguém o contesta, supomos, a parte que provoca uma actividade injustificada, a parte que sai vencida da sua controvérsia com a outra parte.
Assim, o réu, se é recorrente, decai na medida em que veja negado provimento parcial ou total ao seu recurso; se é recorrido, decai na medida em que o recorrente obtém provimento.
Se há provimento que afecte os seus interesses, o réu fica necessàriamente na posição de vencido, e então bem se compreende e fàcilmente se justifica que suporte o encargo do imposto estabelecido para o recurso. E assim, ainda que «não tenha sustentado a legalidade da decisão impugnada pelo recorrente» (aplicação da doutrina de Alberto dos Reis).
Trata-se de uma aplicação do princípio da causalidade como que fundido como o da sucumbência por uma relação incindível.
5.º- O recurso obrigatório, seja qual for a sua fundamentação doutrinária, há-de sempre integrar-se no conceito legal de recurso: meio de impugnar as decisões judiciais (artigo 677.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Por isso, ainda que o recorrente concorde com a decisão recorrida, a própria imposição legal do recurso contém em si, implícita, a aceitação do elemento que caracteriza todos os recursos: a impugnação.
De outro modo não parece fácil encontrar razoável explicação para a inevitável possibilidade de alterar a decisão recorrida.
Quer dizer: do julgamento do recurso obrigatório há-de necessàriamente resultar, tal como dos recursos voluntários, um vencedor e um vencido, qualificados através do princípio da sucumbência. E assim:
a) O recorrente será vencedor se vir modificada a decisão em prejuízo do réu, caso em que este fica necessàriamente na posição de vencido e, portanto, constituído na obrigação de pagar imposto de justiça;
b) O réu (não recorrente) será vencedor se vir confirmada a decisão que ele não impugnou e antes aceitou - apesar de condenado, absteve-se do livre exercício do direito de recorrer - ou se a vir alterada em termos que lhe sejam favoráveis; em qualquer destes casos não pagará imposto de justiça, visto que não decaiu.
Interpretando deste modo, na parte que aqui interessa, o várias vezes citado artigo 171.º, respeitam-se os princípios fundamentais da matéria em causa e evitam-se «situações tributárias injustas», satisfazendo os expressos intuitos do legislador do actual Código das Custas Judiciais (relatório do Decreto-Lei 44329, de 8 de Maio de 1962).
6.º As isenções tributárias, quando não constituem privilégios em benefício de certas pessoas ou entidades, são excepções a regras.
Por isso, e uma vez que dispomos de uma regra de tributação em imposto de justiça aplicável ao caso em apreço, só temos de averiguar se há alguma isenção que contenha qualquer desvio àquela regra.
Ora temos por seguro que nenhum desvio pode justificar-se com base em qualquer das isenções estabelecidas no artigo 183.º do citado Código das Custas Judiciais, podendo sublinhar-se que no seu n.º 3, ao regulamentar-se a tributação dos não recorrentes no caso previsto no artigo 663.º do Código de Processo Penal, não foi esquecido o dominante princípio da sucumbência.
7.º Nestes termos, decidem confirmar o acórdão recorrido e lavrar o seguinte assento:
Em processo penal não é devido imposto de justiça pelo réu quando, em recurso interposto pelo Ministério Público por imperativo legal, é confirmada a decisão condenatória.
Sem imposto de justiça.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 1967. - H. Dias Freire - Lopes Cardoso - Fernando Bernardes de Miranda - Gonçalves Pereira - Albuquerque Rocha - Oliveira Carvalho - Torres Paulo - Ludovico da Costa - Francisco Soares - Adriano Vera Jardim - J. Santos Carvalho Júnior - Joaquim de Melo - Eduardo Correia Guedes - António Teixeira de Andrade - José Cabral Ribeiro de Almeida.
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 7 de Março de 1967. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.