Acórdão doutrinário
Processo 60748. - Autos de recurso para tribunal pleno. Recorrente, António Pinela de Jesus. Recorrida, Ascensão Chainho, em representação de sua filha menor Maria de São José Chainho Gonçalves.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
António Pinela de Jesus recorre para o tribunal pleno do Acórdão do Supremo de 18 de Dezembro de 1964 (Boletim n.º 142, p. 349) que lhe negou a revista na acção de investigação de paternidade ilegítima contra ele movida por Maria de São José Chainho Gonçalves.
Invoca oposição com o Acórdão do mesmo Tribunal de 29 de Outubro de 1937 (Colecção Oficial, vol. 36, p. 324). Julgando acção de investigação de paternidade ilegítima, com fundamento em sedução com promessas de casamento - n.º 4.º do artigo 34.º do Decreto 2 de 25 de Dezembro de 1910 -, o acórdão recorrido entendeu não cessar a sedução com a primeira cópula, mas continua «enquanto persiste o império da actuação ardilosa ou fraudulenta que o sedutor exerce sobre a sua vítima», pelo que julgou procedente a acção, não obstante a autora ter nascido em 19 de Março de 1960 e sua mãe se ter entregue ao seu namorado, o ora recorrente, pela primeira vez, em meados de 1949, seduzida pelas promessas de casamento que ele lhe fizera e repeliu até que a abandonou por se recusar ao aborto que ele lhe impunha.
Ora o Acórdão de 1937, julgando uma acção idêntica e com igual fundamento, decidiu não se verificar o requisito daquele preceito legal quando o nascimento ocorreu em Dezembro de 1901, datando de Novembro de 1899 a primeira cópula do sedutor com a seduzida e que o aresto designou por «data da sedução».
Verifica-se assim o conflito de jurisprudência relevante para a interposição e seguimento do presente recurso já reconhecido pela secção e nunca posto em dúvida por alguém.
E isto não obstante algumas diversidades de pormenor nas hipóteses decididas pelos dois arestos, sendo mais saliente que o recorrido permanecia solteiro aquando da concepção da recorrida, enquanto que o investigado na acção em que foi tirado o Acórdão de 1937 casara com outra mulher 21 meses antes do nascimento da investigante.
Ainda a contradição se evidencia pela seguinte declaração de voto do conselheiro Lopes Cardoso, no acórdão recorrido, aliás deturpada na certidão junta aos autos: «vencido. Continuo a pensar que a sedução é um facto e não um estado que se mantenha. No caso, a sedução deu-se dez anos antes do nascimento ...».
Passa-se, assim, a conhecer do recurso.
O recorente defende a tese do Acórdão de 1937, alvitrando que o assento a proferir seja no sentido de: «O n.º 4.º do artigo 34.º do Decreto 2 de 1910 considera que a coincidência entre a sedução e o nascimento do investigante deve ser determinada a partir da época da primeira entrega de sua mãe ao investigado».
Tardia e descabidamente - já depois de apresentada a contra-alegação da recorrida -, permitiu-se o recorrente voltar aos autos e, a pretexto de correcção a omissões e deficiências da sua alegação, veio aditar esta com nada menos de quatro fórmulas para o assento a proferir!
Tese oposta defende a recorrida, apoiada pelo ilustre magistrado do Ministério Público, que conclui o seu tão lúcido como breve parecer sugerindo esta formulação para o assento:
Para efeitos do artigo 34.º, n.º 4.º, da Lei 2 de 25 de Dezembro de 1910, a época da sedução não termina com a primeira cópula.
O artigo 34.º do Decreto 2 de 25 de Dezembro de 1910 permite a investigação da paternidade ilegítima, além de outros casos, no de sedução com promessa de casamento, coincidindo a época da concepção - assim é entendida a fórmula legal: «época do nascimento, nos termos indicados no artigo 1.º» - com a época da sedução.
Pode considerar-se corrente, de há muito, que o conceito de sedução envolve o estado de espírito da mulher que consente em manter relações sexuais ilícitas pelo engano a que foi levada por meios ardilosos ou fraudulentos usados pelo homem para vencer o seu pudor natural.
Quando esse engano resulta da esperança no casamento pelo sedutor prometido - mesmo quando este tenha efectivamente o propósito de com ela casar -, é evidente que a época da sedução perdura enquanto a mulher razoàvelmente acredita em tais promessas e, por isso, continua o trato sexual com o sedutor. A lei não distingue, nem se vê razão para distinguir, qualquer das conjunções carnais consentidas durante esse estado de engano e só por ele determinadas.
Assim o disse o Prof. Alberto dos Reis, a p. 340 do ano 81.º da Revista de Legislação e Jurisprudência, respondendo à pergunta que formula:
Qual foi, ... a época da sedução?
Foi, manifestamente, o período de tempo que decorreu desde o primeiro acto sexual até ao abandono. Durante toda esta época a mulher viveu iludida e enganada; continuou a manter relações sexuais com o sedutor, pela mesma razão por que assentiu à primeira cópula: por estar convencida de que o seu amante ia recebê-la em casamento.
A sedução só desapareceu no momento em que se viu abandonada e traída.
É ainda o que expressivamente se diz nestes passos do douto parecer do Ministério Público:
Para se determinar se se está na época da sedução, apenas uma pergunta há a fazer: a mulher manteve relações por estar convencida de que o homem a desposaria?
Se a resposta for afirmativa, existe sedução, nada importando que a cópula não seja a primeira, já que, afinal, as próprias relações subsequentes foram mantidas precisamente pelo mesmo motivo por que a mulher assentira na primeira cópula.
Mais não é preciso, assim o cremos, para impor a rejeição da doutrina do douto acórdão aqui invocado em oposição ao recorrido.
Por isso se nega provimento ao recurso, com custas pelo recorrente.
E assente-se em que:
A época da sedução, para o efeito do disposto no n.º 4.º do artigo 34.º do Decreto 2 de 25 de Dezembro de 1910, não termina necessàriamente com a primeira cópula.
Lisboa, 19 de Julho de 1966. - Albuquerque Rocha - Torres Paulo - Ludovico da Costa - Joaquim de Melo - Oliveira Carvalho - Francisco Soares - J. S. Carvalho Júnior - Lopes Cardoso (vencido. O Código Civil, ao indicar os fundamentos de investigação de paternidade ilegítima, enumerava apenas, além das duas conjecturas clássicas entre nós - escrito do pai e posse de estado -, a do estupro ou rapto, que foi colher ao código napoleónico.
Depois, o Decreto de 1910 acrescentou dois outros que foi buscar ao projecto de 1901 que serviu de base à lei francesa de 1912: sedução e convívio marital.
A exemplo do aludido projecto, o artigo 34.º do decreto português equiparou certas formas de estupro não violento ao estupro com violência, para o efeito de fazer presumir paternidade ilegítima.
Como para o estupro violento, exige-se que a época da sedução coincida com a «época do nascimento».
A exigência também constava do projecto francês, mas foi suprimida quando ele foi transformado em lei.
A supressão fez-se precisamente para permitir a investigação fundada em sedução «contanto que, depois de ter sido seduzida, a mãe tenha continuado fiel ao seu sedutor, de modo que não se possa atribuir a outro pai o filho que ela concebeu». Assim se disse no relatório Guillier para a segunda deliberação do Senado Francês.
Justifica-se, pois, que os tribunais franceses tenham passado a enteder a sua lei nos termos do referido relatório, mas o entendimento não se justifica perante uma lei em que a restrição foi mantida.
Na verdade, tanto quando se averigúe que a mãe foi raptada ou violentada na época em que ficou grávida como quando se prove que foi seduzida nessa época, é fortíssima a conjectura de que o filho concebido tem por pai o raptor, violador ou sedutor.
Não tem paralelo como presunção de paternidade a aparente fidelidade da mulher violada, raptada ou seduzida, que concebeu em época distante da violação, do rapto ou da sedução.
Quer pela sua história, quer pela sua letra, a nova lei, ao falar em sedução, refere-se ao aspecto activo desta, e não ao passivo.
Tanto que fala em sedução praticada, e não em sedução sofrida.
Votei, pois, que a coincidência exigida por essa lei, relativamente à época do nascimento, respeita à data da primeira entrega, ou seja ao momento em que a mãe foi efectivamente seduzida) - Gonçalves Pereira (vencido, pelos mesmos fundamentos) - Adriano Vera Jardim (vencido, pelos mesmos fundamentos) - Eduardo Correia Guedes (vencido pelos mesmos fundamentos). - Tem voto de conformidade dos conselheiros Dias Freire e Bernardes de Miranda. Tem ainda voto de vencido do conselheiro Alberto Toscano. Não assinam, por os dois primeiros não estarem presentes e por o último já não pertencer ao Tribunal. - A. Rocha.
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Outubro de 1966. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.