Acórdão doutrinário
Processo 60578. - Autos de recurso para tribunal pleno em que são: recorrente, Ministério Público, recorrida, Maria Margarida Osório Bernardo Antunes Ehlert.
Acordam no Supremo:
1.º Nos presentes autos de recurso para tribunal pleno é recorrente o Ministério Público e recorrida Maria Margarida Osório Bernardo Antunes Ehlert. Esta, portuguesa de origem, casou canònicamente em Portugal na vigência da Concordata com o súbdito alemão Walter Paulo Bruno Kolver. Obtiveram os cônjuges na Alemanha Federal sentença de divórcio, vindo ela requerer em Portugal a revisão e confirmação dessa sentença, o que lhe foi concedido pela Relação de Lisboa, mas com que não se conformou o Ministério Público, trazendo, por isso, recurso para o Supremo. Em 23 de Outubro de 1964 confirmou o Supremo esse acórdão. Ainda inconformado, recorreu o Ministério Público para o pleno, alegando haver a oposição prevista no artigo 763.º do Código de Processo Civil entre o mesmo e o Acórdão de 4 de Junho de 1963, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 128, 447.
Por seu acórdão de fl. 19 destes autos decidiu o Supremo que havia, com efeito, essa oposição. Assim, enquanto o Acórdão de 1964 decidiu que tal sentença podia ser revista e confirmada em Portugal, já o Acórdão de 1963, em caso idêntico, decidiu o contrário.
A oposição entre os dois acórdãos foi considerada como segura; assim o tiveram expressamente, além - é claro - do acórdão de fl. 19 tirado por unanimidade, quer a própria recorrida (fl. 4), quer até o próprio acórdão recorrido (fl. 26).
Continuando a entender-se que existe oposição sobre a mesma questão fundamental de direito, cumpre portanto conhecer e decidir.
2.º Acente-se que na petição para o pleno expressamente se considerou a circunstância de os cônjuges poderem ser estrangeiros. O objecto frontal do pedido era que se decidisse se podia ou não ser revista e confirmada uma sentença estrangeira de decretamento de divórcio de cônjuges, independentemente da sua nacionalidade, que tivessem casado canònicamente na vigência da Concordata. Aliás, também a própria recorrida conveio que era essa a questão fundamental (fl. 4). Assim, não importava que um dos cônjuges fosse originàriamente português e o outro alemão (caso do acórdão recorrido), ou fosse um português e o outro francês (caso do acórdão em oposição).
3.º Acentue-se mais que o problema só se põe em face da alínea f) do artigo 1096.º do Código de Processo Civil, seja se o decretamento do divórcio em causa contraria ou não os princípios da ordem pública portuguesa.
4.º A Concordata entre Portugal e a Santa Sé, assinada em Roma em 7 de Maio de 1940, ratificada em 1 de Junho seguinte, entrou em vigor, como direito interno português, na parte relativa ao casamento, em 1 de Agosto do mesmo ano de 1940, conforme os artigos 61.º e 62.º do Decreto 30615, de 25 de Julho também de 1940.
Dispõe o artigo XXIV da Concordata: «Em harmonia com as propriedades essenciais do casamento católico, entende-se que, pelo próprio facto da celebração do casamento canónico, os cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, que, por isso, não poderá ser aplicado pelos tribunais civis aos casamentos católicos».
Parece, pois, claro que aqueles que casaram em Portugal canònicamente depois de 1 de Agosto de 1940 não podem obter dos tribunais civis portugueses o divórcio, uma vez que a mera celebração desse casamento passou a implicar a renúncia ao pedido de divórcio - renúncia que, aliás, já vinha vinculando os cônjuges desde o respectivo processo preparatório, uma vez que é aí que eles têm, inicialmente, de declarar que desejam realizar a sua união conformemente às leis da Igreja Católica.
5.º Tal renúncia, parece-nos óbvio, tanto abrange o pedido de divórcio feito directamente aos tribunais comuns como o de revisão e confirmação da sentença estrangeira que o tivesse decretado; é que isso, afinal, é pràticamente um novo decretamento, agora pelos tribunais nacionais, de um divórcio a que os cônjuges haviam renunciado pelo mero facto de terem celebrado o casamento canónico.
Também dúvidas parece não poder haver de que o citado artigo XXIV tanto respeita a cônjuges portugueses como a estrangeiros, até porque não distingue.
6.º Realizado o casamento canónico depois da vigência da Concordata, ficam os cônjuges, desde então e para sempre, vinculados à renúncia, que, aliás, expontâneamente aceitaram, de pedirem a dissolução do casamento por meio do divórcio e isso, portanto, manifestamente, com prejuízo do que estabeleça a sua lei pessoal.
De resto, e reforçando, se necessário, a conclusão de que o preceito abrange tanto nacionais como estrangeiros, é de ter presente o que, similarmente, resulta, por exemplo, do que dispõe o artigo 1094.º do Código de Processo Civil, o qual, ao determinar que nenhuma decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro tem eficácia em Portugal sem estar revista e confirmada, expressamente declara que a regra se aplica seja qual for a nacionalidade das partes.
Tal também resulta do artigo 176.º do Código do Registo Civil, que diz: «O casamento católico celebrado no estrangeiro por nubentes portugueses ou por português e estrangeiro será sempre reconhecido como tal, qualquer que seja a forma da celebração prevista na lei local, mediante a transcrição, nos termos deste código, do respectivo registo». Daqui flui que a propriedade essencial do casamento católico - a indissolubilidade, salvo por morte - é reconhecida pela lei portuguesa mesmo para os casamentos realizados no estrangeiros e ainda que um dos cônjuges seja estrangeiro. Màximamente, portanto, para os casamentos realizados em Portugal e em que um dos cônjuges tenha, originàriamente, a nacionalidade portuguesa.
7.º Por outro lado, o artigo XXV da Concordata começa por estabelecer que «o conhecimento das causas concernentes à nulidade do casamento católico e à dispensa do casamento rato e não consumado é reservado aos tribunais e repartições eclesiásticas competentes» - disposição que o artigo 24.º do Decreto 30615, já citado, reproduz com ligeiras modificações sem alcance.
Assim, não obstante reconhecer-se que são figuras bem distintas a anulação de um casamento e a sua dissolução por divórcio, não nos podemos furtar a deixar formulada esta pergunta: de certo modo, não será já invadir o campo da competência dos tribunais eclesiásticos a tentativa de revisão e confirmação pelos tribunais civis da sentença em questão (de dissolução por divórcio de casamento concordatário), demais que ambas produzem os efeitos da dissolução por morte (artigo 69.º do Decreto 1)?
Atentas as reflexões que vêm sendo feitas, já se poderá dizer que não é possível considerar, em face dos termos da Concordata, o pedido de revisão e confirmação da sentença que nos vem ocupando.
Mas prossigamos.
8.º Certo que presentemente só há entre Portugal e a Alemanha tratado a respeito da matéria, mas que houvesse, ele nunca poderia contrariar, evidentemente, o que se acha estabelecido na Concordata, que é um tratado, ou como tal deve ser considerado no rigor jurídico, livremente assinado por Portugal. Enquanto ele vigorar não pode Portugal deixar de respeitar esse limite à sua soberania, como, de resto, e por forma expressa, o admite o artigo 4.º da Constituição Política.
9.º Como é sabido e consta dos Cânones, as duas propriedades essenciais do casamento católico são a unidade - dois numa só carne - e a indissolubilidade - não separe o homem o que Deus juntou (Evangelho segundo S. Mateus, XIX, 6).
Terão sido, pois, estas duas propriedades essenciais do casamento católico que se tiveram em vista no início do já citado artigo XXIV da Concordata.
Assim, a indissolubilidade do casamento católico significa que ele é perpétuo, só se podendo dissolver, portanto, por morte.
10.º Supõe-se que, sem voz em contrário, todos aceitam que a maioria dos portugueses, por ser católica, reconhece e tem como perpétuo o casamento (que até consideram sacramento), seja que essa maioria é pela indissolubilidade pelo divórcio. O casamento católico - no dizer do Prof. Gomes da Silva - «é uma exigência da consciência nacional, um sacramento e não mera forma de celebração» (Boletim n.º 65, 33).
Vem a propósito referir que, segundo as estatísticas, em cada 100 casamentos, 88-89 são católicos e apenas 11-12 são civis (v. alegações a fls. 28 e seguintes).
11.º É tradicional no País a indissolubilidade do casamento, regra que se consignou no artigo 1056.º do Código Civil.
Revogado e substituído este preceito pelo Decreto 1 de 25 de Dezembro de 1910, veio, não obstante, a consignar-se, no seu artigo 2.º, que o casamento é um contrato que se presume perpétuo, sem prejuízo da sua dissolução por divórcio, nos termos do Decreto de 3 de Novembro de 1910. Afirmou-se portanto aqui a regra da perpetuidade do casamento, sem prejuízo de sofrer a excepção da sua dissolução por divórcio, de resto tão-só nos casos taxativos do artigo 4.º desse decreto.
Por outro lado, a Constituição Política (artigos 12.º e 13.º) assegura a constituição e defesa da família como fonte de conservação e desenvolvimento da raça, como base primária da educação, disciplina e harmonia social e como fundamento da ordem política, assim como assenta no casamento a constituição da família.
Também nos artigos 19.º e 21.º desse diploma fundamental da Nação se destaca a importância directa da família na organização política.
Também no seu artigo 45.º se declara que a religião católica é a da Nação.
E o próprio Decreto 1, orientando-se da mesma forma, dispõe logo no seu artigo 1.º que o casamento é um contrato com o fim de se constituir legìtimamente a família.
12.º Salvo o respeito pelos juízes que o firmam, não convencerá o Acórdão deste Tribunal de 5 de Dezembro de 1958 (Boletim n.º 62, 429), apontado em primeiro lugar como contrário à tese que se defende aqui - acórdão que, de resto, não foi tirado por unanimidade.
Esse acórdão parte do princípio de que a proibição do artigo XXIV da Concordata não teve por fim «a defesa da estabilidade da família. Se isso fosse exacto - diz -, estar-se-ia efectivamente perante uma lei de ordem pública, não só interna, como internacional», portanto de respeitar - concluímos nós -, com prejuízo do respectivo estatuto pessoal.
Certo que nesse preceito não se consignaram essas precisas palavras, mas do seu texto resulta o mesmo, embora por outras. Com efeito esse artigo principia assim: «Em harmonia com as propriedades essenciais do casamento católico, entende-se que ... os cônjuges renunciarão à faculdade civil de requererem o divórcio, ...». Ora o próprio referido acórdão aceita, aliás como não podia deixar de ser, que nessa providência especialmente se teve em vista a propriedade desse casamento consistente na «absoluta indissolubilidade, a não ser por morte». Ora proibir a dissolução do casamento pelo divórcio é justamente defender a estabilidade da família, até porque o divórcio produz os mesmos efeitos da dissolução por morte (artigo 2.º do Decreto de 3 de Novembro de 1910 e artigo 69.º do Decreto 1).
Nem se tirem efeitos do facto de se continuar a admitir a dissolução dos casamentos não católicos e até dos casamentos católicos anteriores à vigência da Concordata. É que essa admissibilidade é uma excepção à regra da perpetuidade do casamento segundo a tese que vem a defender-se, e, por outro lado, se se mantém a dissolução por divórcio dos casamentos católicos anteriores ao acordo com a Santa Sé, é isso porque a lei não é de aplicar retroactivamente, princípio que resulta do artigo 8.º do Código Civil.
Afora outras considerações que haveria a produzir, estas afiguram-se-nos bastantes para não se poder aceitar a tese do dito Acórdão de 1958.
13.º Uma vez que a lei não define o que seja ordem pública e todos convêm que é ao julgador que compete fazê-lo em cada caso concreto -, parece que, na presente hipótese, esse conceito estará aqui suficientemente integrado e, assim, a revisão e confirmação da sentença em estudo contraria os princípios da ordem pública portuguesa, preservados na alínea f) do artigo 1096.º do Código do Processo Civil.
Não será de mais acentuar bem - como decerto vem a dizer-se - que não está em causa pròpriamente o instituto de divórcio, mas sim a sua aplicação a um casamento canónico celebrado na vigência da Concordata.
14.º Demais, se o divórcio em si é já uma excepção à regra da perpetuidade do casamento, como tem vindo a sustentar-se, mais uma razão portanto para não se admitir o alargamento desse campo de aplicação excepcional, o que òbviamente se daria se fosse revista e confirmada a sentença estrangeira em apreço. E a lei (artigo 11.º do Código Civil) expressamente restringe o campo de aplicação das normas excepcionais.
15.º De tudo isto se conclui que o casamento e, portanto, a sua perpetuidade, logo a sua indissolubilidade, são o alicerce moral, social e mesmo político da família portuguesa. Sendo a família a célula da Nação, não será, pois, de mais concluir que, na presente hipótese, se está em face de conceitos integradores da ordem pública portuguesa, portanto limitativos da aplicação da lei normalmente competente para regular as relações jurídicas no campo do direito internacional.
16.º Além do Acórdão de 1958 já citado e do recorrido, segue a tese contrária à defendida aqui o Acórdão de 22 de Abril de 1959 (Boletim n.º 86, 378), tese de que discorda a Revista dos Tribunais, ano 77, pp. 94 e 270.
A favor da tese que se defende está, além, é claro, do acórdão oferecido em oposição ao recorrido, mais o de 17 de Dezembro de 1963, no Boletim n.º 132, 356.
17.º É nestes termos que se dá provimento ao recurso, com custas pela recorrida, firmando-se o seguinte assento:
Não é de conceder a revisão e confirmação de sentença estrangeira que decreta o divórcio de nacionais ou estrangeiros casados segundo o regime da Concordata entre Portugal e a Santa Sé.
Lisboa, 9 de Julho de 1965. - Eduardo Tovar de Lemos - Gonçalves Pereira (votei o assento) - Simões de Carvalho (votei o assento) - Lopes Cardoso (vencido. Votei que não havia oposição, pois o anterior acórdão decidiu sobre a revisão de divórcio entre portugueses e o acórdão recorrido tratou de revisão de divórcio entre estrangeiros. É assim inverso o termo principal das duas questões fundamentais resolvidas. Por isso, também me parece que o assento cometeu a nulidade de conhecer de questão da qual não devia conhecer e que o acórdão recorrido não apreciou - a confirmação de divórcio de portugueses.
Quanto ao fundo, entendi, que, confirmar um divórcio entre estrangeiros casados canònicamente em Portugal depois da Concordata ofende tão pouco a ordem pública portuguesa como confirmar o divórcio de estrangeiros casados antes da Concordata ou casados depois dela mas fora de Portugal.
Não é invadir a competência dos tribunais eclesiásticos confirmar um divórcio que é da exclusiva competência dos tribunais civis.
Nem quando se divorciam cônjuges casados catòlicamente antes da Concordata, como indiscutìvelmente é possível, isso representa dissolver o sacramento religioso do matrimónio.
Para a Igreja os cônjuges divorciados continuam casados; o seu casamento subsequente é puro adultério) - Torres Paulo (vencido, pois negava provimento ao recurso pelas razões aduzidas no acórdão recorrido de que fui relator) - Ludovico da Costa [vencido quanto à existência da oposição, pois que a um diferente condicionalismo de facto foi aplicado um diverso regime jurídico. No caso do acórdão recorrido, por estrangeiros ambos os cônjuges, decidiu-se que o artigo XXIV da Concordata só poderia servir de limite à aplicação de lei estrangeira, normalmente competente e que autoriza o divórcio, se integrasse, e não integra, a ordem pública portuguesa, de carácter internacional. No Acórdão de 1963, por o requerente, pelo menos, ser de nacionalidade portuguesa, não houve pronúncia sobre aquela questão de direito; bastou o reconhecimento de que tal preceito vigorava como direito interno português para se não confirmar o divórcio.
Por outro lado, é de observar a doutrina proclamada no Acórdão, em pleno, de 25 de Junho de 1943 e que este Supremo manteve em Acórdão de 10 de Novembro de 1964, respectivamente na Revista da Justiça n.º 28, 215, e no Boletim n.º 141, 277: de que o conceito da ordem pública, por vago e indefinido (como aqui se reconhece também), insusceptível é de ser fixado, e portanto de oposição que justifique um assento. Vencido ainda quanto ao fundo, porque uma norma proibitiva só pode ascender à categoria de ordem pública quando seja estatuída no interesse de todos (Vilela, no Tratado, I, 577/8). Ora, no caso, além de limitada, só o foi para satisfazer os sentimentos dos que professam a religião católica (Boletim n.º 82, 429); e isto, mesmo que eles, após o Decreto 35461, de 22 de Janeiro de 1946, que tornou a Concordata extensiva à parte ultramarina da Nação, continuem a formar a maioria desta.
De qualquer modo, o que decide é o Estado Português - Nação polìticamente organizada e abrangendo todos os seus cidadãos - continuar neutro em matéria religiosa e «manter em relação à Igreja Católica o regime de separação». E assim, por ser princípio supra-ordenado e ínsito nos respectivos textos constitucionais que «a missão do Estado nada tem de ver com as ideias religiosas dos membros de uma sociedade» (Constituição vigente, artigos 3.º, 8.º, n.º 3.º, 45.º e 46.º).
Finalmente, havendo países que em absoluto proíbem o divórcio a nacionais, mas o consentem a estrangeiros desde que a lei nacional destes o admita, e isto mesmo resulta do artigo 3.º da respectiva Convenção da Haia de 1902, que Portugal assinou (Vilela, ibidem, II, 567/9). - Daí outro argumento de que não é de ordem pública internacional a proibição que, para naturais, exista no Estado local] - Joaquim de Melo (vencido pelos mesmos fundamentos). (Votaram também o assento os Exmos. Colegas Alberto Toscano, Barbosa Viana, Albuquerque Rocha, Toscano Pessoa, Teixeira Botelho, Henrique Freire e Fragoso de Almeida, os quais não assinam por não estarem presentes. - Eduardo Tovar de Lemos).
Está conforme.
Supremo Tribunal de Justiça, 22 de Julho de 1965. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.